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Representação de Escola e Trajetória Escolar

Resumos

O artigo examina o trajeto da representação de escola num grupo de crianças pobres ao longo do seu primeiro ano de escolaridade. Foram realizadas entrevistas e aplicadas adaptações de dois procedimentos: Desenhos-Estórias e Histórias para Completar. A análise indicou que as representações iniciais evoluem negativamente. Observações em sala de aula e entrevistas com professoras revelaram incompetência pedagógica e atitudes negativas em relação à criança pobre e sua família. Os pais, que vêem na escolarização dos filhos a esperança de melhores dias, tentam amoldá-los à escola. O saldo é o fracasso escolar e a diminuição da auto-estima das crianças.

Representação; Escola; Relação professor-aluno; Fracasso escolar


This article puts forth the representation of school in a group of poor children throughout their first year in school. Interviews were introduced and adaptations of two procedures (Story-draws and Stories to be completed) were utilized. The analysis showed that the representation had a negative progress. Classroom observations and interviews made with teachers revealed pedagogical incompetence and negative attitudes towards the impoverished child and his or her family. The parents, who see in the child’s academic career a hope for better days to come, try to shape the child according to the mold established by the school. The result is academic failure and the diminishing of the children’s self-esteem.

Representation; Schools; Teacher-student relationships; School failure


REPRESENTAÇÃO DE ESCOLA E TRAJETÓRIA ESCOLAR 1 1 Artigo baseado na dissertação de Mestrado: "A representação da escola em crianças da classe trabalhadora", defendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, em 1987.

Silvia Helena Vieira Cruz

Faculdade de Educação - UFCeará

O artigo examina o trajeto da representação de escola num grupo de crianças pobres ao longo do seu primeiro ano de escolaridade. Foram realizadas entrevistas e aplicadas adaptações de dois procedimentos: Desenhos-Estórias e Histórias para Completar. A análise indicou que as representações iniciais evoluem negativamente. Observações em sala de aula e entrevistas com professoras revelaram incompetência pedagógica e atitudes negativas em relação à criança pobre e sua família. Os pais, que vêem na escolarização dos filhos a esperança de melhores dias, tentam amoldá-los à escola. O saldo é o fracasso escolar e a diminuição da auto-estima das crianças.

Descritores: Representação. Escola. Relação professor-aluno. Fracasso escolar.

É comum que o desempenho escolar das crianças pobres (geralmente baixo) seja atribuído a características suas; características que são vistas como inatas ou, numa concepção mais recente, incorporadas a elas pela sua vivência num ambiente pobre e inadequado para o bom desenvolvimento. Nessa perspectiva, questionar as possibilidades intelectuais dessas crianças tem sido uma decorrência freqüente.

Em meados dos anos 80 realizei uma pesquisa que teve como tema a representação da escola em crianças das camadas populares. Embora não tenha se constituído em tema central, o contato freqüente e prolongado com algumas crianças forneceu elementos preciosos para compreender o seu desempenho escolar.

A pesquisa de campo foi realizada na cidade de Fortaleza (Ceará), centrando-se em algumas crianças moradoras da favela do Lagamar ou de um cortiço nas suas imediações. Era meu desejo contribuir para o resgate do aluno enquanto sujeito que informa, em primeira mão, o que pensa e sente a respeito da sua vivência escolar. O tema escolhido atende a esse desejo na medida em que a representação, ao mesmo tempo que coletiva (porque partilhada por um determinado segmento de classe), também é fruto do que o indivíduo possui de particular.

Para conhecer a representação que as crianças têm da escola e acompanhar as transformações que essa forma particular de conhecimento foi sofrendo ao longo do ano utilizei entrevistas e adaptações que introduzi em dois procedimentos do exame psicológico infantil (as Histórias para Completar, da Dra. Madaleine Backes Thomas e os Desenhos-Estórias, do Dr. Walter Trinca). A utilização desses instrumentos mostrou-se oportuna; além dos conteúdos de cada história ou entrevista, a atitude frente à tarefa, a qualidade das produções e os comentários adicionais também permitiram o acesso a informações ricas e variadas, que se complementaram.

A opção metodológica implicou um grande número de encontros com cada criança, que aconteceram nas casas das próprias famílias. A primeira série de encontros ocorreu antes do início das aulas pois, antes mesmo de nela ingressar, a criança já possui uma representação de escola. Ela libera a sua imaginação e acrescenta seus sentimentos às informações que já possui acerca do que lá vai encontrar; informações que são fruto tanto de sua vivência quanto do que pode ir recolhendo entre seus parentes, amigos e vizinhos e o que é veiculado pela mídia. É assim que esse novo mundo vai se tornando inteligível e adquirindo sentido; como diz Moscovici (1978), o indivíduo "completa um ser objetivamente determinado com um suplemento de alma subjetiva." (p.27).

Contudo, a representação é um sistema essencialmente dinâmico," uma atividade de construção e reconstrução do real pelo sujeito", nas palavras de Mollo (1979, p.31). Portanto, ao mesmo tempo que as representações influenciam a forma particular como cada criança entra em contato com a escola, as representações que elas possuem no início do ano letivo necessariamente sofrem alterações no decorrer da sua interação com essa instituição, às quais se acrescem as suas vivências fora dela. Assim, foram realizadas outras séries de encontros na metade do ano letivo, durante o segundo semestre e ao término das aulas para tentar acompanhar as transformações da representação de escola dessas crianças.

Apesar de nossas freqüentes conversas informais, que sempre adicionavam informações sobre a história da família e suas expectativas e percepções acerca do processo de escolarização, considerei importante também marcar entrevistas com as mães das crianças. Essas entrevistas aconteceram após a segunda e a última série de encontros com seus filhos e mostraram-se valiosas não só para a pesquisa, mas para as próprias entrevistadas, pois se constituiram em preciosa oportunidade para revisitarem lugares, pessoas e fatos significativos, às vezes perdidos na lembrança, e, nesse processo, reconstruirem sua própria trajetória e se perceberem melhor como sujeitos. Vale ainda acrescentar que, de forma semelhante ao que ocorreu com as crianças, essas entrevistas também indicaram o que essas mulheres julgam mais adequado responder; apenas com o aumento da confiança na pesquisadora, puderam expressar mais francamente suas percepções e sentimentos acerca da escola.

As crianças que participaram da pesquisa eram alunas da mesma classe de 1ª série de uma escola da rede pública. Após rápidos contatos ocorridos antes do início do ano letivo, passei a freqüentá-la durante o segundo semestre. Um pequeno levantamento da sua história, estrutura e funcionamento, observações em sala de aula e entrevistas com a professora possibilitaram conhecer personagens, ambientes e fatos que marcaram essa etapa do processo de escolarização desses alunos.

Foram convidadas a participar do trabalho todas as crianças identificadas como não-repetentes2 2 Esse requisito justificava-se pela intenção de captar a representação de escola antes da experiência direta e pessoal com o ensino regular de 1º grau. e que tinham endereço anotado na ficha de matrícula. O grupo inicialmente formado reduziu-se, por motivos alheios à pesquisa, a cinco crianças: Andrea, Daniele, Flávio, Jânio e Reginaldo.

Andrea é bastante simpática, muito espontânea na expressão da sua afetividade, de suas opiniões e de seus desejos. Daniele, um pouco pequena para a sua idade, é bem vaidosa, tem olhos grandes, muito vivos, e gosta muito de conversar. Flávio é franzino, tem um sorriso tímido e grande habilidade em jogos e também na fabricação de brinquedos como móveis para as brincadeiras das irmãs, pipas, bolas de meia e pernas de pau. Jânio é também muito afetuoso e o fato de ser o único que nasceu no sertão está presente na sua fala, de sotaque bem característico. Reginaldo ri com facilidade (o que deixa à mostra a sua troca de dentes), é bastante robusto e, pouco limpo, algumas vezes apresentou perebas nas pernas.

Eles têm entre seis e sete anos. São saudáveis, mantêm bom relacionamento com os seus familiares, possuem muitos amigos (especialmente Flávio e Reginaldo, muito populares no Lagamar), brincam bastante e ajudam na lida doméstica - Jânio e Reginaldo já contribuem financeiramente para as despesas de casa.

Moram com suas famílias. Com exceção dos pais de Daniele, nascidos em Fortaleza, os demais vieram do sertão a procura de emprego quando as dificuldades de sobrevivência foram agravadas por algum período de seca. Suas histórias assemelham-se às da grande maioria de pessoas que vivem em condições miseráveis na periferia ou favelas da Região Metropolitana da capital. Ao chegar à cidade, não atendendo às exigências do mercado para atividades que possibilitam melhores rendimentos, esses migrantes passam a "ganhar a vida" como empregados domésticos, vigias, biscateiros, artesãos etc. ou, no setor formal, empregando-se como operários da construção civil. A renda mensal dessas famílias quase nunca ultrapassa dois salários mínimos.3 3 Dados de estudo realizado pelo CAEM (Mestrado em Economia da Universidade Federal do Ceará) e pelo CETREDE (Centro de Treinamento em Desenvolvimento Econômico Regional), em 1977.

O encontro com a escola e as transformações da representação

Todas as crianças do grupo passaram por algum tipo de instituição pré-escolar: Andrea e Reginaldo participaram de turmas que funcionavam numa lavanderia mantida pela L.B.A.4 4 Trata-se de um local de instalações bastante precárias, utilizado por mulheres da redondeza para lavar roupas sob encomenda. ; Daniele freqüentou alguns meses uma pré-escola particular; Flávio foi aluno de uma classe de alfabetização numa escola conveniada com o Estado e Jânio também cursou a albabetização numa escola rural. Assim, suas primeiras representações de escola são marcadas por essas experiências.

Entre os sentimentos positivos despertados pela ida à escola, destacam-se a esperança de lá aprender coisas importantes (especialmente escrever e ler) e, dessa forma, "num sê burro", como diz o Flávio. Mas também esperam encontrar na escola um lugar privilegiado para brincar e fazer novos amigos. Como Daniele, que imagina que na escola

vai ser bom. Vai ser bom porque lá tem um corredor pra mim brincar e eu tenho uma amiga lá, eu já conheço ela (...). Os alunos são alegres, eles gostam de mim, brincam comigo ...

Antes do início das aulas as crianças mostraram também um razoável conhecimento do que devem encontrar na escola. Andrea afirma:

Lá tem brinquedo, tem boneca, tem carro, tem bola, na classe tem mesa, cadeira, aqueles armarinhos de botar livro. E ... tem desenho, lápis de cera.

A fala de Jânio também é exemplar:

Às vezes tem ... na escola, assim de criança, tem brinquedo pra gente brincar. (...) Na classe tem as cadeiras, né, tem a lousa pra gente desenhar, tem as mesas pra gente botar os cadernos, né? A lousa serve pra gente botar os nomes. E quando a gente tá na cadeira, se for pra tomar nota, aí olha na lousa e faz no caderno.

Certamente tudo isso contribui para que estejam ansiosos para começar a freqüentar aquela escola grande, de dois andares, quase imponente se comparada às suas modestas moradias. As suas mães relatam, inclusive, que nos primeiros dias de aula as crianças não gostam quando, por algum motivo, precisam faltar.

No entanto, essa representação inicial de escola é também povoada pelo temor de repreensões e castigos da professora. As crianças trazem histórias como essa, de Reginaldo:

[a professora] disse: ‘Vá fazer o dever, então vá pro banheiro’ [Pra que?] Pra trancar, trancar ele. [Por que?] Porque não tava fazendo o dever.

Poder-se-ia argumentar que essas crianças levam para a escola fantasias de agressão que talvez sejam produto apenas do seu mundo subjetivo; mas a experiência escolar concreta, diária, confirmou essas possíveis fantasias ou expectativas negativas, que foram se acentuando muito ao longo do ano.

A professora, de religião protestante, reserva boa parte do período de aula a cantos religiosos e preleções, que ela chama de "conversas com Jesus". Além disso, chama a atenção que cerca de 90% do tempo destinado às atividades propriamente didáticas sejam ocupados com cópias de tarefas que as crianças devem fazer na classe ou em casa. Embora tenha assistido a doze aulas, em dias variados, não cheguei a presenciar nenhuma explicação de assuntos novos; mas as rápidas" recordações" do que as crianças já deveriam saber e as explicações dos exercícios propostos são confusas e incompletas. Os próprios exercícios geralmente têm enunciados, além de longos, bastante complicados ou pouco claros, o que acarreta muitas dúvidas nas crianças.5 5 Cagliari (1985), entre outros autores, chama a atenção para a questão da clareza das explicações da professora, como também das instruções utilizadas em pesquisas com crianças. Mostra como a insuficiência de informações ou a confusão do que é dito podem tornar a criança totalmente inapta a compreender o que está sendo" explicado" e, portanto, dar a resposta esperada. E essas dúvidas não provocam esclarecimentos gerais, para toda a turma, mas são tratadas como dificuldades individuais. Na realidade, quando os alunos afirmam que não sabem algo a professora os recrimina abertamente, envergonhando-as perante as outras e a si mesmas. Assim, sentem-se sem ajuda para superar as dificuldades com as quais constantemente se deparam. Referem-se a isso com freqüência, como quando Andrea descreve a professora:

É muito boa ela, tia. Mas quando às vezes ela ... ela briga ... [Às vezes ela briga?] Ô se não briga, briga é muito! A pior coisa é quando ela briga. [Por que ela briga ?] Porque ... porque eu nunca sei.

Ou quando Reginaldo fala sobre o que acontece na sala de aula:

Se não saber o alfabeto, fica de castigo, a tia bota de castigo. Se num fizer direito, a diretora dá carão, também bota de castigo. É de joelho, até ... quando for simbora.

As crianças passam, então, a perceber que a escola está voltada para uma minoria, "os grandes, os que já sabem fazer dever mais direito", segundo Daniele. Lá não é o lugar onde se aprende, mas onde se tem que mostrar que sabe. Então, em muitos momentos a partir de meados do ano letivo, as crianças deixam claro que compreendem o papel fundamental que, nessas circunstâncias, assume a ajuda de seus familiares ou vizinhos para a sua aprendizagem. Andrea, por exemplo, afirma: "Pra passar precisa aprender. [Como vai aprender?] Na minha casa, que a minha mãe e a minha irmã faz. [Quem te ensina mais?] Minha professora ensina mais do que minha irmã. [Com quem tu aprende mais?] Com a minha irmã."

Jânio informa o mesmo, ao completar a história de um menino que não conseguia aprender:

... a professora dele disse, no dia que tem a reunião das mães: "O seu filho não sabe nada. Você tem que deixar mais ele em casa pra poder ele vim pra aula" [E o que aconteceu?] Aí ele não foi mais pra aula não. Passou um horror de dia ... Quando ele já tava sabendo mais do que todo mundo, aí ele foi pra aula. [Como ele aprendeu?] Ele ... a mãe dele todo dia botava ele pra ler, pra ler ... Mas fica até de noite! Aí ele aprendeu. Aprendeu mais do que os outros.

Esse mesmo garoto, o único do grupo aprovado ao final do ano letivo, justifica assim o seu sucesso:

Eu li nas cartilhas, estudava em casa. A mãe ajudava e o Ubiratan e Galeno [irmãos mais velhos] também ajudavam. [E se não ajudassem?] Não aprendia.

Outro aspecto que marca a experiência escolar dessas crianças é o predomínio da forma sobre o conteúdo do que ali é realizado: as crianças não conseguem efetuar as operações matemáticas propostas, mas ficam muito atentas à disposição com que estas devem ser copiadas; não sabem responder à questão anterior nem à posterior, mas a preocupação maior parece ser com o número exato de linhas do caderno que precisam" pular"... Sabem muito bem que não obedecer a esses detalhes (que não são enfatizados na leitura que a professora faz da tarefa) significa apagar tudo o que, com dificuldade, já copiaram e refazer todo o trabalho.

A professora considera fundamental exercer total domínio também sobre o comportamento dos seus alunos: a concentração, a postura , os gestos, as comunicações entre eles são alvo de toda sua atenção. Reclamações do tipo" não têm comportamento", "são muito inquietos", "precisam de muito controle" são muito mais presentes do que comentários sobre a aprendizagem das crianças.

Essa verdadeira tentativa de cerceamento da liberdade das crianças foi muito sentida por elas. Jânio, por exemplo, revelou numa entrevista:

O pior é só ficar sentado na cadeira. [E o que você queria que acontecesse?] Que a gente pudesse levantar, ao menos um instante. Fica ... fica sentado até na hora do recreio!

O que torna essa contenção mais penosa de ser suportada é que não se trata de condição necessária à realização de algo que percebam como positivo ou traga algum prazer. Na verdade, a própria professora não acredita na possibilidade de seus alunos aprenderem. Em agosto, sentencia: "A maioria ... a grande maioria não vai aproveitar nem isso!" E as crianças percebem que têm tido poucas possibilidades de aprender, como Flávio afirma na nossa última conversa: "Aprendi, mas aprendi pouco mesmo, bem pouquinho ..."

Como aprendem pouco, o medo de lhes ser exigido mais do que são capazes está sempre presente. E esse medo é bastante justificado: além do desconforto provocado pela encenação da professora, que insiste em fazer de conta que eles sabem o que, de fato, não sabem6 6 Esse faz-de-conta ficava bastante evidente, por exemplo, nas atividades que supunham que as crianças soubessem ler, quando a professora lia os enunciados que escrevia na lousa como se estivesse dando uma informação apenas complementar ou mesmo desnecessária. , as crianças têm consciência de que a conseqüência do não saber é, em geral, a violência. Sofrem não apenas a violência de que são vítimas na escola, mas também em suas próprias casas. Andrea expressa a percepção disso ao explicar porque a personagem de uma história precisa ir à escola:

Porque ... porque a mãe dela queria que ela fosse pra escola! Senão, levava uma pisa na bunda. (...) A menina não quis: "Mamãe, por que a senhora quer que eu vá?" "Minha filha, pra você ... é pra você aprender. Se você não for, eu dou uma pisa de corda." Aí a menina: "Tá certo, mamãe, eu vou. Eu não quero apanhar."

No contato com as famílias, uma constatação salta aos olhos: a grande importância que conferem à educação. Afirmações de que a situação social e econômica das classes baixas é tal que seus membros não valorizam a educação, pois não lhe atribuem valor prático, foram negadas pelo depoimento de cada mãe ouvida. Para elas, é o "estudo maior" que irá possibilitar uma profissão mais rendosa e, portanto, a melhoria das condições de vida dos filhos e delas próprias. São freqüentes falas como a da mãe de Daniele: "Eu digo a ela: Dani, você tem que estudar que é pra você ajudar a mamãe." Existe valor prático maior? Socorro, mãe da Andrea, explicita essa esperança comparando o futuro que deseja para os filhos com a sua própria história:

Eles vão crescer, quando estiverem grande vão trabalhar. Vão ... eu não quero que eles sejam o que eu fui não! [Como?] Sem estudo. Como é que uma criança sem estudo quando crescer, pode pegar um emprego bom, né? (...) Quero pra eles um futuro melhor, melhor do que eu nunca tive, né?

D. Conceição, avó do Reginaldo, resume de maneira mais dramática o que representa para ela a escolarização dos seus netos: "Se eu tirar meus neto do colégio, pronto! Perdeu todas as esperança da minha vida!"

No entanto, no decorrer do ano letivo, as famílias começam a perceber que a escola não ensina ou ensina mal e exige mais do que realmente dá. Isso é constatado principalmente quando as crianças levam para casa tarefas que não sabem fazer, ou incompletas porque não conseguem copiar da lousa. Mesmo as mães que possuem maior escolaridade e desejam ajudar os filhos, têm dificuldades para isso, como comentou Socorro:

Você sabe, essas tias não vão se preocupar com uma ruma de menino. Aí, quando ela passa aqueles deveres, quando dá fé ... apaga! E a Andrea não tem terminado, aí diz: "Tia, não terminei não!" Mas aí ela não quer nem saber, né? Passou, não escreveu, pronto, né? Ela trazia muito dever que não sabia o que era!

E quando as mães procuram a escola para pedir ajuda no sentido de promover o maior aproveitamento dos seus filhos, a frustração é a regra. A professora e demais membros da escola colocam nelas ou nas suas crianças a culpa (e a possibilidade de solução) de todos os problemas que lhes são apresentados. Diante disso, o que podem fazer a fim de não perderem a esperança de um futuro melhor que sonham conseguir, através do sucesso escolar dos filhos?

Como não percebem a possibilidade de um enfrentamento coletivo para obter mudanças no funcionamento da escola, resta-lhes tentar modificar os filhos, pois são eles que sentem próximos e passíveis de serem transformados por suas ações. Tentam isso de todas as maneiras que conhecem. Além das repreensões e castigos físicos, lançam mão de doutrinamento, como D. Conceição acredita ser a melhor tática:

Aí eu digo: "Meu filho, olhe, você tem que ser um menino calmo. Seje um menino bom que você vai ganhar tudo que você tem que ganhar." Ele diz: "É, né, vovó?" E eu digo: "É, porque o Papai do Céu, o Senhor Jesus Cristo, ele pede pras mães, pras avós, os pais, os avôs, os tios, aconselhar as crianças, aqueles que são distabelecidos [indisciplinados]." "É, vovó, eu vou ser bem comportado." Ave Maria, eu não quero que meus filhos perdem os estudos não! Deus o livre! Ele tem que abrandar a natureza! Ele tem que aprender, se Deus quiser!

Mannoni (1977) afirma que "... quanto mais fraca for a classe socio-econômica a que a mãe pertence, mais se empenhará em preparar seus filhos para uma vida de submissão; para conservá-los vivos, a mãe faz deles, involuntariamente, prisioneiros." No entanto, parece-me que essa preparação não se dá de forma inconsciente, isto é, as mães não a realizam simplesmente por assumirem a ótica da classe dominante e, portanto, acreditarem que as crianças realmente precisam tornar-se submissas (como se esta qualidade fosse desejável por si mesma). Ocorre que, na situação em que elas se encontram, pensam que "abrandar a natureza" dos seus filhos é a única estratégia possível.

Nesse processo, em geral os pais são vistos como aliados da escola. As crianças só os imaginam ao lado delas, defendendo-as, em situações em que uma injustiça ou agressão maior é cometida contra elas. Podemos perceber isso quando Jânio conta como foi o primeiro dia de aula do personagem de uma história:

Ele contou que lá [na escola] era bom, mas só que a tia dele não deixou ele ir pro recreio porque ... na primeira aula ele não ia não. Era pra ele ir pro recreio, mas ela não deixou não. A mãe dele disse assim: "Você tá proibido de ir pra essa aula, você não vai mais pra aula. Eu arranjo outro colégio." Aí ela desmatriculou o menino, aí ela foi e botou ele noutro colégio. [Por que a professora não deixou o menino ir pro recreio?] Não deixou ele ir porque ... ele tava quieto, só porque ele não sabia fazê nem ... nem um pouquinho do dever, que era difícil.

Outro exemplo dessa situação envolvendo dificuldade de aprendizagem, castigo sentido como injusto e reação de solidariedade da família é dado por Daniele:

[A professora] botou ela de castigo e ... os meninos sairam e a professora foi dormir e a menina ficou na escola presa. Aí a mãe dela e o pai dela foram na escola dizer que ... que eles não vão mais pra escola não. Vão estudar em casa. (...) O pai dela ... botou a mulher ... lá na delegacia.

Mas, regra geral, as crianças sentem-se abandonadas à sua sorte na escola, "a terra dos [outros]", como diz o Flávio. Assim, a solução que vêem é a fuga do ambiente ameaçador. Expressam o desejo de fugir, mesmo momentaneamente, como Andrea, que afirma gostar muito de "ir buscar qualquer coisa pra tia, fora da classe" ou Reginaldo, que diz que, se fosse professor," deixava os alunos ir tudo pra fora da classe." Sair da classe é conseguido não só mediante a utilização de meios aceitos, mas também transgredindo normas, ainda que se precise sofrer as conseqüências disso, como relata Flávio: "Nós não podia sair nem pra fazer a ponta! Ela: ‘Ei, ei! Volte pra dentro!’ (...) Quando nós estava assim na porta, ela pegava, puxava nossa orelha." E o final infeliz "... aí ele não voltou nunca mais na escola" é o mais freqüente em todas as histórias que elaboraram.

Por outro lado, a ameaça de expulsão é uma constante. Incluida na representação que as crianças têm da escola, provoca-lhes insegurança quanto à continuidade de sua escolarização. A incapacidade para aprender e o comportamento inadequado são os principais motivos percebidos para a expulsão. Como quando Andrea relata:

A menina pensava que não dava pra ela fazer o dever. Aí a tia botava ela de castigo e falava: ‘Se você não fizer, eu mando a diretora tirá você da escola. E ainda mando um bilhete para a sua mãe’.

Também o Flávio traz uma percepção semelhante quando diz o que aconteceu quando um garoto comportou-se mal na escola: "A tia dele disse que não ... que não viesse mais, nunca mais na escola."

Tal sentimento de rejeição pode chocar o suficiente para que se suponha que, provavelmente, ele é fruto da imaginação (e até do desejo) das crianças. Mas os vivos relatos das famílias atestam a triste concretude dessas situações. É o que narra D. Conceição, avó do Reginaldo, com quem ele e os irmãos moram desde que a mãe faleceu:

A professora do Reginaldo disse: "D. Conceição, se eu fosse a senhora nem comprava livro pra esse menino não. Deixava ele só no que tá mesmo. Se eu fosse a senhora não deixava mais nem esse menino vim aqui pro colégio." Aí eu digo: "Mas por que, professora? Se é o prazer maior que eu tenho na minha vida é trazer os meus quatro neto pro colégio!" 7 7 No início do ano seguinte, D. Conceição conta o que ouviu da diretora, após todos os preparativos para o reinício das aulas ("... o pai comprou a calça, comprou a camisa ... aquele negócio do bolso da farda eu comprei."): "Quando eu fui deixar ele, ela foi e disse: ‘Mulher, tu já vem com esse menino de novo! (...) Você sabe que não precisava gastar dinheiro pra comprar pasta, comprar livro, comprar caderno, comprar lápis, que esse menino não dá pra nada, não’." Mas ela resiste: "Dá, minha filha, tenho fé em Deus que ele dá."

A submissão às normas da escola, recomendada pelas mães, é captada com bastante clareza pelas crianças, como exemplifica Andrea, ao afirmar que a personagem de uma história "obedecia todo mundo, só obedecia, só obedecia. A mãe dela quer que ela obedece bem muitão." Mas, como ocorre em relação às suas mães, não se pode confundir uma atitude que é fruto do que as crianças já assimilaram ser o que é esperado delas com a sua adesão incondicional às regras vigentes. Ao contrário, percebem as agressões cometidas diariamente contra elas e se revoltam com isso. Mesmo Jânio, o que conseguiu amoldar-se melhor às exigências da escola, refere-se com freqüência ao ambiente opressivo em que a professora converte a sala de aula:

A professora briga, que a minha é ruim! Ela só vive brigando. (...) A minha professora, ela é bruta porque ela chega na classe e vai logo brigando com a gente. ‘Pessoal, quero que vocês fiquem bem quietos, não falando nunca’. Fala assim!

Mas eles conhecem muito bem a situação em que se encontram frente à professora. Como explicita Mollo (1979),

o conformismo é a expressão do mais fraco numa relação assimétrica; ele se inscreve na estratégia da relação de forças. Se ele ainda está solidamente implantado na escola, não é obra do acaso. É na escola que a relação de forças entre a criança e o adulto é institucionalmente irreversível. (p.48).

Andrea, Daniele e Reginaldo, apesar de tudo, no final do ano letivo ainda buscam conformar-se ao modelo imposto pela escola. Ainda sob o sentimento de fracasso diante da reprovação, tentam não perder a esperança de que o próximo ano será melhor, que terão boas professoras e conseguirão passar de ano. Na verdade, não fossem os fortes motivos que os impelem a freqüentar a escola que lhes é oferecida, o que prefeririam mesmo era "ficar na rua, brincando com os amigos", como confessa o Reginaldo, pois na escola "é muito ruim, a gente não faz nada lá, sem brincar e sem nada ...", resume Daniele.

Flávio não se conformou. Após algumas fugas, deixou definitivamente aquela escola, engrossando as estatísticas dos "evadidos" - expulsos seria a palavra apropriada, como afirmam Campos e Goldenstein (1981). A necessidade de fugir de um ambiente que sentia como extremamente ameaçador era tão imperiosa que o fez suportar todas as punições decorrentes, até que sua família a aceitasse. Sua mãe narra:

Eu dava tapa nele aqui mode ele ir, o pai dele também deu foi muito nele também, mode [para] ele ir. (...) Aí ele dizia: ‘Pode me matar, mas eu não vou!’ Aí ... eu não ia forçar ele ir pra um canto que ele não queria ir mesmo, né?

De fato, é apenas no final do ano letivo, quando constatam que nem os castigos físicos que lhes infligiram nem os maus tratos que receberam da professora foram suficientes para garantir o sucesso dos filhos, que as mães passam a criticar o comportamento da professora. Francisca, mãe do Flávio, a que mais concordava com o tratamento que o menino recebia na escola, relata:

Cansou dele chegar aqui chorando. Tinha dia que ele fugia da escola na hora do recreio; não entrava mais, vinha era simbora chorando que a professora tinha brigado com ele. (...) Ele falou que a professora puxava as orelha dele, dizia desse jeito pra ele: "Olha, tu te aquieta, porque se tu não te aquietar, eu puxo tuas orelhas." Ela é assim... exigente, né? Eu achei ela muito exigente!

No segundo semestre, quase todas as mães tecem críticas à forma como a professora se relaciona com os alunos e com suas famílias.8 8 A exceção ficou por conta de Valda, mãe do Jânio, que sempre afirmou que "tudo está bem" na escola, o que deve estar relacionado ao fato de que todos os seus filhos têm bom desempenho. A mesma Francisca, por exemplo, revela grande ressentimento em relação à forma como os problemas são tratados nas reuniões com os pais:

Foi no dia da reunião. Eu fui lá falar com a professora sobre ele [Flávio], que eu queria muito falar com ela sobre ele. Era só ela falando pras mães que ‘Num tem nem um aluno que preste’. (...) A Fátima, aquela Fátima ali [uma vizinha], fez foi chorar no dia que ela pegou e esculhambou os meninos dela, lá. [Na reunião?] É. A Fátima ficou foi com vergonha! A pessoa que quer falar uma coisa assim, uma conversa assim com a pessoa, chama a pessoa particular, né? (...) Chamou foi na frente de todo mundo lá e disse pra mulher!

É importante assinalar que, mesmo quando mostram indignação diante da forma humilhante com que são conduzidas essas reuniões, não há indício de que percebam o caráter de intimidação, principal característica dessas reuniões. Como concluem Campos e Goldenstein (1981),

seria preciso que a análise desvendasse o caráter da intimidação e do medo durante a avaliação dos filhos. Ela é conseguida a partir da exploração da responsabilidade dos pais, através de um tratamento individual e não coletivo, para que não se configure o problema das crianças de tal professora, a serem discutidos conjuntamente. Ao contrário, há uma relação autoritária em que a professora, investida de poderes que parecem muito grandes, repreende, humilha e recrimina a mãe através dos filhos. Esse ‘método’ tem uma dupla finalidade: impedir que a professora seja vista como parte igualmente responsável e impedir que se alterem as relações de dominação. (p.117).

No entanto, no segundo semestre começam a surgir reclamações, como as de Eroneide, quanto ao que elas percebem como desinteresse da professora:

A Daniele não entende, não escreve direito, e ela não explica pra garota, né? Aí, chega aqui; "Mãe, a tia disse que é pra mim copiar umas contas, mas não falou qual era a página do livro! Não sei qual é a conta ..." Porque tem várias, que é um livro de Matemática. Aí eu acho que a menina não tem condição de aprender desse jeito não! (...) A melhor coisa naquela escola era as professoras se interessar mais pelos alunos.

E, ao término das aulas, a maioria das mães passou a atribuir também à professora o fracasso escolar das suas crianças, que antes era visto como responsabilidade apenas delas. D. Conceição foi a mais enfática a esse respeito:

A Cecília [professora], ela mesma, ela me dizia que eu levava o Reginaldo era só pro Reginaldo "fazer besteira lá, andar na carreira mais os outros, que ele não aprende nada não." Eu acho que o Reginaldo não aprendeu mesmo nada não. Mas foi por causa disso, mas também pelo problema dela porque ela fracassou. Parece que ela não tinha gosto de ficar ali com o bichinho, né?

É uma visão parcial da questão, reduzindo-a a uma simples característica pessoal da professora. Mas é um passo na busca de novas respostas para o fraco desempenho escolar dos seu filhos.

Considerações finais

Durante as permanências nas casas das crianças e na escola, na análise das entrevistas, dos desenhos e das histórias produzidos pelas crianças, sentimentos afloraram, percepções foram se impondo, idéias foram surgindo ou ganhando novos sentidos. Além do que já foi apresentado no decorrer desse trabalho, gostaria de acrescentar aqui algumas considerações.

Acredito que o acompanhamento da representação de escola dessas crianças pode contribuir para compreender melhor o quanto o desempenho escolar delas é resultado de múltiplos e complexos fatores. O sucesso ou o fracasso na aquisição das informações, habilidades e posturas exigidas pela escola aparece como resultado da ação conjunta desses fatores, boa parte dos quais exteriores às crianças. E logo ficou evidente que esse desempenho se reflete não só no modo como as crianças pensam e sentem a escola, mas também a si mesmas.

De fato, acompanhar a evolução da representação de escola dessas crianças significou acompanhar as dificuldades que foram enfrentando no seu contato com essa instituição e a gradativa diminuição da confiança, tanto em obter ajuda da professora para vencer essas dificuldades, como nas suas próprias possibilidades para aprender. Daniele é o caso mais contundente: antes do início das aulas gaba-se de ter" muita facilação [facilidade] pra fazer dever difícil", mas apenas alguns meses depois já tem certeza de que não passará de ano porque a professora lhe afirmou isso e porque acha que não poderá conseguir fazer "um monte de coisa que não... que a gente não sabe". E às diversas situações em que são levados a se sentir praticamente incapazes de assimilar o que a escola deveria lhes ensinar, somam-se os momentos em que são publicamente declarados sujos, desleixados ou mal-comportados, enquanto suas famílias são consideradas displicentes, desorganizadas, enfim, inadequadas.

Durante as minhas incursões na sala de aula, o aspecto que mais me chamou a atenção não foi a falta de competência da professora para ensinar os conteúdos propostos, mas esses ataques à auto-estima das crianças. E as recriminações, tanto a elas como às suas famílias, mostram-se mais veementes nos momentos em que as crianças espelham para a professora que ela não está sendo capaz de lhes ensinar: suas perguntas, demonstrando que não entendem o que ela diz ou que não sabem realizar as tarefas propostas, deixam-na exasperada. O resultado é o estabelecimento de uma relação entre a professora e os alunos onde predomina a hostilidade e o medo, bastante presentes na representação de escola das crianças.

Por outro lado, à falta de conteúdo real que conduza os encontros na sala de aula, o aspecto formal do que ali fazem passa a ter importância fundamental. Além disso, as atividades desenvolvidas não despertam real interesse nem na professora nem nos alunos. Como constatou Patto (1990), "o que se ensina e a forma como se ensina tornam a tarefa de ensinar e de aprender uma sucessão de atividades sem sentido que todos, professora e alunos, executam visivelmente contrafeitos e desinteressados."(p.233).

Daniele expressa enfaticamente o resultado disso: na sua concepção," a professora não deixa fazer nada, nada, nada!" Na verdade, a professora impõe uma série de atividades; mas elas lhe parecem como "nada", porque vazias de sentido.9 9 No caso do Reginaldo, essa situação é ainda mais desesperadora, pois constantemente ele é obrigado a ficar sentado (e na postura que a professora julga correta), sem que a professora lhe proponha nenhum trabalho, pois ela o julga incapaz disso. É oportuno lembrar, com Madalena Freire, que "pensar sobre algo que não lhe diz nada não é pensar. O erro não está nas crianças, mas sim na escola alienada da realidade das crianças." (Mello & Freire, 1986, p.101).

Um exemplo de desconhecimento ou pouco caso, por parte da escola, da realidade do aluno, onde o analfabetismo não é incomum, é a necessidade, nítidamente percebida pelas crianças, de ajuda diária dos familiares ou vizinhos para a realização dos "deveres de casa". Essa necessidade revela também a inadequação dessas tarefas e é apenas uma das muitas barreiras interpostas entre a criança e o sucesso escolar.

As crianças não demonstram perceber a falta de competência da professora para lhes ensinar, embora seguramente sofram as conseqüências disso. No entanto, o cerceamento quase total da sua liberdade de ação e a falta de espaço para o prazer; a forma como a professora lida com as suas dificuldades, responsabilizando a elas e a suas famílias pelo seu fracasso; a expectativa negativa dela em relação às suas possibilidades; o autoritarismo, a violência e a cobrança do que não sabem são sentidos e expressados intensamente ao longo de todo o ano.

Nessas condições, assume importância fundamental para o sucesso escolar a capacidade das crianças perceberem um valor no aprendizado que ultrapasse a vivência imediata10 10 Jânio, que além do suporte intelectual e afetivo para aprender, recebe muita ajuda da sua família (especialmente da sua mãe) para compreender e valorizar o sentido de estudar, afirma no segundo semestre que só não está achando melhor ir pra escola " por causa da professora, que é ruim, só vive brigando (...) mas o negócio é só o estudo mesmo, estudo é bom." , a oportunidade de aprenderem os conteúdos escolares fora da escola, a possibilidade de se deformarem, amoldando-se ao modelo imposto pela escola (Andrea chegou a pensar em "virar crente" para agradar à professora...) e, finalmente, resistirem à frustração de encontrarem tão pouco do que esperavam encontrar na escola. Não é uma tarefa fácil, mesmo para um adulto.

O grande saldo negativo da experiência escolar dessas crianças é a diminuição da sua auto-estima, tanto como aprendizes quanto como pessoas.

É preciso lembrar também que as reações que uma instituição provoca numa pessoa nos dizem muito dessa instituição. Manonni (1977) chama a atenção para isso quando afirma que "os desajustados, que são cada vez mais numerosos, devem ser considerados um sintoma da doença das instituições." (p.49). Portanto, o fato de apenas uma criança entre cinco ter conseguido ser aprovada ao final do ano letivo revela a inadequação da escola para realizar a sua tarefa. Ampliando a afirmação da D. Conceição de que a professora fracassou, acredito que o fracasso das crianças espelha o fracasso da escola. Ela parece ser eficiente apenas para quem menos precisa dela.

Certamente há escolas e professoras mais competentes e, portanto, mais sensíveis aos desejos e necessidades das crianças pobres, que constituem a grande maioria da população, clientela compulsória da escola pública que lhes é oferecida. No entanto, os altos índices de evasão e repetência, tanto no estado do Ceará, em particular, como em todo o Brasil indicam que as histórias dessas crianças não são fundamentalmente diferentes das que se desenrolam na maioria de outras escolas do país.

CRUZ, S.H.V. School Representation and Academic Trajectory. Psicologia USP, São Paulo, v.8, n.1, p.91-111, 1997.

Abstract: This article puts forth the representation of school in a group of poor children throughout their first year in school. Interviews were introduced and adaptations of two procedures (Story-draws and Stories to be completed) were utilized. The analysis showed that the representation had a negative progress. Classroom observations and interviews made with teachers revealed pedagogical incompetence and negative attitudes towards the impoverished child and his or her family. The parents, who see in the child’s academic career a hope for better days to come, try to shape the child according to the mold established by the school. The result is academic failure and the diminishing of the children’s self-esteem.

Index terms: Representation. Schools. Teacher-student relationships. School failure.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAEM - CETREDE. Emprego e renda familiar na região metropolitana de Fortaleza. Fortaleza, 1977. [Mimiografado]

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CAMPOS, M.M.M.; GOLDENSTEIN, M. O ensino obrigatório e as crianças fora da escola: um estudo da população de 7 a 14 anos excluída da escola na cidade de São Paulo. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, 1981. (Projeto Educação e Desenvolvimento Social: Subprojeto, 5)

CRUZ, S.H.V. A representação da escola em crianças da classe trabalhadora. São Paulo, 1987. 2v. Dissertação (Mestrado) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.

MANNONI, M. Educação impossível. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977.

MELLO, S.L.; FREIRE, M. Relatos da (con)vivência: crianças e mulheres da Vila Helena nas famílias e na escola. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n.56, p.82-105, fev. 1986.

MOLLO, S. Les muets parlent aux sourds. Les discours de l’enfant sur l’école. Paris, Casterman, 1979.

MOSCOVICI, S. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.

PATTO, M.H.S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo, T. A. Queiroz, 1990.

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  • PATTO, M.H.S. A produçăo do fracasso escolar: histórias de submissăo e rebeldia. Săo Paulo, T. A. Queiroz, 1990.
  • 1
    Artigo baseado na dissertação de Mestrado: "A representação da escola em crianças da classe trabalhadora", defendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, em 1987.
  • 2
    Esse requisito justificava-se pela intenção de captar a representação de escola antes da experiência direta e pessoal com o ensino regular de 1º grau.
  • 3
    Dados de estudo realizado pelo CAEM (Mestrado em Economia da Universidade Federal do Ceará) e pelo CETREDE (Centro de Treinamento em Desenvolvimento Econômico Regional), em 1977.
  • 4
    Trata-se de um local de instalações bastante precárias, utilizado por mulheres da redondeza para lavar roupas sob encomenda.
  • 5
    Cagliari (1985), entre outros autores, chama a atenção para a questão da clareza das explicações da professora, como também das instruções utilizadas em pesquisas com crianças. Mostra como a insuficiência de informações ou a confusão do que é dito podem tornar a criança totalmente inapta a compreender o que está sendo" explicado" e, portanto, dar a resposta esperada.
  • 6
    Esse faz-de-conta ficava bastante evidente, por exemplo, nas atividades que supunham que as crianças soubessem ler, quando a professora lia os enunciados que escrevia na lousa como se estivesse dando uma informação apenas complementar ou mesmo desnecessária.
  • 7
    No início do ano seguinte, D. Conceição conta o que ouviu da diretora, após todos os preparativos para o reinício das aulas ("... o pai comprou a calça, comprou a camisa ... aquele negócio do bolso da farda eu comprei."): "Quando eu fui deixar ele, ela foi e disse: ‘Mulher, tu já vem com esse menino de novo! (...) Você sabe que não precisava gastar dinheiro pra comprar pasta, comprar livro, comprar caderno, comprar lápis, que esse menino não dá pra nada, não’." Mas ela resiste: "Dá, minha filha, tenho fé em Deus que ele dá."
  • 8
    A exceção ficou por conta de Valda, mãe do Jânio, que sempre afirmou que
    "tudo está bem" na escola, o que deve estar relacionado ao fato de que todos os seus filhos têm bom desempenho.
  • 9
    No caso do Reginaldo, essa situação é ainda mais desesperadora, pois constantemente ele é obrigado a ficar sentado (e na postura que a professora julga correta), sem que a professora lhe proponha nenhum trabalho, pois ela o julga incapaz disso.
  • 10
    Jânio, que além do suporte intelectual e afetivo para aprender, recebe muita ajuda da sua família (especialmente da sua mãe) para compreender e valorizar o sentido de estudar, afirma no segundo semestre que só não está achando melhor ir pra escola "
    por causa da professora, que é ruim, só vive brigando (...)
    mas o negócio é só o estudo mesmo, estudo é bom."
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Nov 1998
    • Data do Fascículo
      1997
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