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Lembranças a Respeito de Carolina:1968

LEMBRANÇAS A RESPEITO DE

CAROLINA: 1968

César Ades

Instituto de Psicologia - USP

Contrariamente a Skinner que, em sua autobiografia, se propôs" escrever mais a partir dos registros do que a partir da memória", ao relembrar Carolina, no ano de 1968, uso mais a memória. É uma pena não haver preocupação em conservar os documentos, os relatos, as fotos, os ofícios, as atas, enfim, tudo o que permitisse ter uma crônica dos momentos relevantes da Universidade de São Paulo. E 1968 foi certamente um desses momentos. Como aluno de graduação em Psicologia, lá pelo início dos anos sessenta, mais precisamente em 1962 (faz um bocadinho de tempo), eu participara do movimento estudantil que pedia um terço de representação dos estudantes nos órgãos colegiados. Já era muita ambição. A luta não surtiu efeitos, era ainda a época da cátedra, mas criou uma reivindicação latente à qual se juntou o interesse de docentes pela reforma universitária. Em 1968, este desejo de transformação culminou de forma incrivelmente poderosa. Não mais um terço de representação mas, segundo um termo que na época tinha a conotação de engajamento e de universidade nova, a paridade, as paritárias. Alunos equiparados a professores em poder de voto, democracia já, agora. A idéia de que seria possível refazer a universidade, não de fora, através de decisões de ministérios ou secretarias caducas, mas a partir de uma discussão aberta entre interessados tornou-se, de repente, mais do que uma idéia teórica, poderia ser executada, nas salas da Maria Antônia, nos anfiteatros da Cidade Universitária. Lembro-me de ter assistido a uma "congregação aberta" da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, lá num dos anfiteatros do prédio da História: Florestan Fernandes criticando a carreira acadêmica ... Congregação aberta, uma contradição nos termos ...

Gozamos, nessa época, de uma liberdade impressionante, era como se estivéssemos em plena utopia, como se nos fosse dado tomar o destino da Universidade nas mãos; talvez, mais adiante, fosse possível sacudir a sociedade inteira, o "gigante adormecido" de seu sono subdesenvolvido. O movimento saía da universidade, ganhava as ruas, passeatas iam pela Consolação, pela Avenida São João, subiam até a Libero Badaró, brucutus e cães policiais e pânico. Ocupações de prédios eram efetuadas: em julho, os alunos tomaram o Bloco 10, lacrando a porta da sala de Da. Annita, pressionando para que não fosse mantida como pseudo-catedrática; a clínica da rua Jaguaribe foi tomada, num episódio que colegas talvez ainda guardem como lembrança dolorosa.

Esta liberdade destoava dos episódios violentos que prenunciavam uma repressão ainda mais violenta, morte de um estudante no Rio de Janeiro (em Março, se não me engano), guerra da Maria Antônia, com coquetéis molotovs e morte de um secundarista, provavelmente por bala da polícia, em outubro. Em Dezembro, o Ato Institucional número 5, a invasão do CRUSP. O regime queria mostrar que não brincava em serviço. Depois da euforia das paritárias e das ocupações de prédios e das faculdades, iniciava-se um longo período de silêncio, abafada a idéia de uma gestão interna da USP , adiado o entusiasmo dos alunos (para quando ?). As transformações da universidade não deixaram de ocorrer, houve a reforma universitária, nasceu o Instituto de Psicologia, mas tudo dentro do modelo formal, nos "conformes" administrativos, sem nada do ardor revolucionário dos meses de 1968.

As lembranças a respeito de Carolina que eu quero trazer se situam neste cenário.

O que era notável, o que é notável a respeito de Carolina, é a sua determinação. Ela tinha1 1 Uso o tempo passado, tendo consciência de que muito do que coloco tem um valor presente. Ativa como é, Carolina não se deixa catalogar no passado. Cruzei com ela outro dia, perto da Reitoria da Cidade Universitária. Como em outras vezes em que o acaso fez com que nos encontrássemos, me impressionou seu jeito ereto, decidido, seu olhar posto mais sobre o que ainda deveria ser feito. idéias muito definidas a respeito do que deveria ser a psicologia, não havia dúvida, para ela, de que a psicologia era, deveria ser, uma ciência experimental. Nunca a vi criticar abertamente outras formas de ver nossa área, mas sua posição era implícita, transparecia no vigor com a qual defendia a pesquisa. Entusiasmada previamente por Kurt Lewin (eu usei o seu texto na preparação de um trabalho sobre Kurt Lewin, requisito da matéria de Psicologia Experimental) tinha se convertido ao ideal operante, com uma firmeza toda dela, alguns diriam, com intransigência.

Lembro de uma reunião, em Abril, em que o setor de Psicologia Experimental da cadeira, com seus membros mais ativos, Carolina, Walter, Arno, Mário e eu-mesmo, teve entrevista longa, ao redor de uma mesa de jacarandá, com o Diretor Científico da FAPESP, Alberto Carvalho da Silva, que era então catedrático de Fisiologia na Faculdade de Medicina da USP. Mostrou-se muito favorável aos nossos projetos de desenvolver laboratórios de ensino e pesquisa em psicologia. A idéia da experimentação estava muito viva em todos nós, e em Carolina em particular.

Por conta de sua história de lutas em prol da Psicologia no Brasil e de sua atuação no curso de psicologia da USP, Carolina assumia uma posição de liderança. Não que sintonizasse com os ideais dos alunos ou com o clima" revolucionário"; não que lhe fosse poupada a oposição de outros colegas, no contexto das rivalidades antigas que ficavam patentes nas reuniões da Coordenação (o órgão em que eram tomadas as decisões importantes, reunidas as três cadeiras). Ela era uma autoridade natural e sua firmeza a tornava um referencial.

Desgastada a posição de Da. Annita, era natural que se pensasse, como sucessora, em Carolina. Da. Annita simbolizava os aspectos negativos de tudo o que a universidade fora, o poder concentrado na mão de uma elite de catedráticos, a arbitrariedade na contratação e descontratação de docentes2 2 Os contratos dos professores extranumerários eram renovados a cada dois anos e, para isso, era imprescindível uma assinaturazinha, a do catedrático. , ampliados por características pessoais que, para dizer o mínimo, dificultavam o relacionamento pessoal. Carolina defendia a idéia de departamento e, através desta idéia, a renovação do ensino da psicologia. Uma psicologia olhando para a frente, como ela própria.

Há de se levar em conta, também, o apoio que a Cadeira de Psicologia Social e Experimental recebia dos alunos. Os alunos - inesquecíveis Elias, Laerte, Tutinha e outros - ao mesmo tempo em que assumiam uma posição fortemente contrária à permanência de Da. Annita como chefe (já mencionei como lacraram o seu escritório, no B-10), se viam como apoiados pelos docentes da cadeira e os apoiavam de diversas maneiras, nas discussões das paritárias, no boicote diferencial às aulas. Daí termos sido vistos, por colegas das outras cadeiras, como protagonistas de uma mudança até certo ponto perigosa e unilateral.

Carolina se mantinha "na sua", por assim dizer. Acho que uma parte de sua habilidade consistia em não se expor em conflitos específicos e com possíveis repercussões pessoais. Ela se manteve fiel a Da. Annita. Apesar de um passado de conflitos e desconfianças, talvez se sentisse reconhecida por Da. Annita tê-la acolhido novamente na cadeira, depois do episódio da UnB. Nunca a ouvi criticar, diretamente, Da. Annita, e tenho a minha suspeita de que, ao se votar a chefia do" departamento" (transformamos, por conta própria, a cadeira em departamento e votamos a chefia, democrática e paritariamente, numa memorável sessão da qual Da. Annita participou, destemida, sabendo que não seria escolhida), um dos votos para a velha chefe tenha sido o dela. Mais tarde, nos anos 70, Carolina sempre manteve também um canal de comunicação, porque era necessário, com o Professor Arrigo Angelini, apesar de possível mal-estar causado pela participação deste na tese de livre-docência de Carolina, apresentada e retirada.

Como era a "política" da cadeira e do curso, em 1968? Intensa, com muitas reuniões, uma vivência de discussões e de projetos. Saíamos de uma reunião para entrar noutra. Eram reuniões setoriais (o pessoal de experimental tinha formado um "setor", dentro da cadeira), reuniões da cadeira, presididas pela Da. Annita, reuniões de coordenação, e reuniões paritárias.

É interessante notar que estávamos empenhados em cindir a Cadeira em duas. Numa reunião do final de março, Walter Hugo preparou uma carta que foi assinada por todos os instrutores e na qual se pedia à Da. Annita que levasse a cabo a divisão da cadeira de Psicologia em duas cadeiras, uma de Psicologia Experimental e Comparada, outra de Psicologia Social e Industrial. Entre os motivos alegados, havia a idéia de que a divisão traria uma possibilidade de novos contratos e mais poder na congregação. Provavelmente também estivesse em jogo uma vontade de cada grupo ou setor de se desenvolver de forma coerente e autônoma. Esta subdivisão acabou ocorrendo mais tarde, com a reforma universitária, quando ganhamos Da. Maria José Mondego de Moraes Barros, da Escola de Educação Física, como chefe e quando o novo Departamento de Psicologia Social e do Trabalho se estabeleceu, primeiro tutelado (fiz parte do conselho de tutela) e depois, como departamento pleno, com a vinda de Dante Moreira Leite para o Instituto.

Carolina defendia uma idéia diferente, a de agregar as cadeiras num departamento único, que passou a ser denominado "departamentão". A proposta acabou sendo comprada pelos alunos e pela paritária. Em agosto, sei que tivemos várias reuniões da paritária para discutir o regimento do "departamentão". Numa destas sessões estavam presentes, da Cadeira de Psicologia Educacional, Nelson Rosamilha, Arrigo Leonardo Angelini, Geraldina Porto Witter, Maria Helena Souza Patto e Heleny. Do" departamentinho", ou seja, de nossa cadeira, Maria Alice Silva Leme, Lúcia Seixas Prado, Ana Maria Almeida, Arno Engelmann, Walter Hugo Andrade Cunha, Carolina e eu. Alunos numerosos. Houve calor nas discussões sobre as atribuições do Diretor do" departamentão". Arrigo e Nelson queriam dotar o Diretor de toda a responsabilidade e poder (era uma espécie de atualização do papel do Catedrático, mantidas praticamente todas as suas prerrogativas). A posição de Carolina e a nossa era instaurar um departamento dirigido por um grupo de pessoas. Eu me lembro do protesto de Nelson: "A gente não consegue colocar nada. Tudo o que a gente diz não é votado".

Lembro-me perfeitamente do modo assertivo e seguro com que Carolina defendia o "departamentão", escrevendo na lousa possíveis subdivisões e funções, respondendo a perguntas e a críticas. Não creio, contudo, que o Instituto tenha nascido da idéia de "departamentão" e nem que Carolina tenha sido um elemento essencial para que o Instituto fosse criado. Houve, por volta de 1969/1970, uma discussão brava sobre onde deveríamos ir, como departamento: alguns preferiam o que viria a ser a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; outros, o que era, em potencial, o Instituto de Biociências. A decisão pela criação do Instituto que, eu acho, foi feliz e nos garantiu uma autonomia preciosa, além de firmar nossa identidade, nasceu de debates na Congregação.

Colaborei estreitamente com Carolina, em 1968, e não apenas nas reuniões e nos projetos (cuja audácia me surpreende, quando penso a respeito: tudo era possível e é pena que este possível tenha sido submergido por uma realidade em muitos aspectos conservadora). Estava se implantando a pós-graduação em Psicologia. Embora ainda não tivesse o título de Doutor, participei com Carolina da ministração de duas disciplinas. Numa delas, Metodologia Científica, dada no primeiro semestre, Carolina aplicava, se não me engano pela primeira vez, o sistema de ensino programado individualizado, idéia cara ao Professor Fred Keller e muito cara a ela própria, a uma disciplina em nível de pós (as experiências de Brasília tinham se centrado na graduação). Eram textos de epistemologia e metodologia da Psicologia, constavam artigos de Marx (o psicólogo, não Karl), Kessen, etc. Na época eram vivas as discussões sobre o objeto da psicologia, sobre o método experimental, sobre os conceitos intervenientes e os constructos hipotéticos, etc. As escolhas de texto da Carolina se marcavam, não apenas pelo valor e interesse dos textos, como pela abertura, os assuntos não se restringiam à análise experimental do comportamento. Minha tarefa era preparar as perguntas através das quais os alunos eram avaliados e através das quais, se acertassem, poderiam passar adiante, cada qual no seu ritmo, como manda a técnica de ensino. O entrosamento entre Carolina e eu foi bom, não me lembro que discutisse ou criticasse as perguntas que eu propunha, seu estilo era de ter confiança e deixar que eu fizesse, um estilo muito eficiente neste contexto e que, acredito, explica que ela tenha podido orientar tantas teses e tantos trabalhos.

Também participei, com Carolina e com Walter, desta vez como docente, da ministração da disciplina de pós-graduação "Metodologia de Pesquisa" baseada na leitura e discussão do livro de Murray Sidman sobre táticas da pesquisa científica. Embora o fulcro da proposta fosse, evidentemente, operante, as discussões extrapolavam, em todos os sentidos, o quadro sidmaniano e os três docentes, cada qual com uma posição própria e com forte intenção de defendê-la, assim como os alunos do curso, entre os quais estava Lino de Macedo, traziam à baila um rico material. Guardo estes episódios de cooperação com Carolina como momentos gratificantes e criativos de minha carreira.

Figura 1: O célebre barracão "B-10", na Cidade Universitária da USP, onde funcionou, durante as décadas de 60 e 70, o Departamento de Psicologia Experimental (foto cedida por César Ades).

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    Uso o tempo passado, tendo consciência de que muito do que coloco tem um valor presente. Ativa como é, Carolina não se deixa catalogar no passado. Cruzei com ela outro dia, perto da Reitoria da Cidade Universitária. Como em outras vezes em que o acaso fez com que nos encontrássemos, me impressionou seu jeito ereto, decidido, seu olhar posto mais sobre o que ainda deveria ser feito.
  • 2
    Os contratos dos professores extranumerários eram renovados a cada dois anos e, para isso, era imprescindível uma assinaturazinha, a do catedrático.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Nov 1998
    • Data do Fascículo
      1998
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