Acessibilidade / Reportar erro

Carolina em 20 Anos

CAROLINA EM 20 ANOS

Ennio Candotti

Depto. de Física da Universidade Federal do Espírito Santo

Lembro de Carolina em 76 na Reunião Anual de Brasília, com uma moção nas mãos pedindo o fim do AI-5. A moção deveria chegar até a Assembléia Geral para votação. Nem todos simpatizavam com a ousadia, Florestan Fernandes a havia proposto. Exemplar.

Um ano depois a Reunião Anual de 77 foi proibida pelo Governo, mas realizada pela SBPC, apoiada por um amplo movimento de sócios. Uma geração se formou nesse exemplo de desobediência. E tensão.

Na Assembléia de 77, uma moção em favor da convocação de uma Assembléia Constituinte que devolvesse ao país as liberdades democráticas polarizou sócios e não sócios. O debate, se cabia ou não à SBPC apoiar tal proposta, levou várias horas. O teatro da PUC-SP estava lotado. As opiniões na Diretoria se dividiram. Seria expressão de tese partidária ou manifesto de toda uma sociedade? Prevaleceu a primeira. A moção não foi votada.

Deveríamos esperar por mais oito anos o fim da ditadura e dez pela Assembléia Constituinte. Os quadros se repetiriam ao longo de quase vinte anos. Foi permanente a tensão entre a defesa dos valores da ciência e a resistência à ditadura antes e a difícil construção da democracia depois.

A pesquisa científica, a sua institucionalização em nosso país, exigia (e exige) cuidados, recursos, um certo recolhimento conservador. A luta pela democracia: desprendimento, espírito público, indignação. Na SBPC esse conflito foi (e é) permanente, Carolina sabia que o exemplo de Florestan não podia ser esquecido. Queria.

A questão nuclear foi outro exemplo. Ânimos e razões estavam divididos entre a ciência, ética e política. Prevaleceu o debate, livre, informado, em tempos de limites e olhares prepotentes.

Os estatutos da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência foram mudados em 78 e durante cerca de três anos seu regimento foi discutido. O Conselho que era eleito por todos os sócios passou a ser eleito pelos sócios de cada região. Uma mudança que muito contribuiu para diversificar a origem dos conselheiros e ampliar a representatividade nacional da Sociedade. Discutiu-se se a SBPC deveria adotar um estatuto federativo, que daria plena autonomia às regionais. Prevaleceu a fórmula centralizada: uma sociedade nacional com representações regionais.

Naqueles mesmos anos amadurecia a idéia de criar uma revista de divulgação científica. Em 79 o presidente do CNPQ propôs à SBPC traduzir o Scientific American e aos poucos acrescentar artigos locais. Recursos não faltariam. Em 82 surgiu no Rio a Ciência Hoje, com o apoio de outro CNPQ. Não era tradução. Os valores da ciência e da indignação deveriam conviver em suas páginas. Carolina temia pelo alto custo do projeto. Em paciência e dinheiro. Tinha razão, Quanto à indignação, Ciência Hoje comportou-se bem. Pouco tempo depois, em São Paulo surgia o programa de difusão científica da SBPC pelo rádio e se pensou também em produzir programas de TV.

Ainda em 82 Carolina participou de uma comissão denominada ABC-SBPC que definiu o perfil de um novo estatuto do CNPq (que seria adotado em 85) e evitou o fim do FNDCT. Corria a proposta de um novo programa: o PADCT/BIRD, seletivo, concorrencial, deveria substituí-lo. Na mesma época a idéia de laboratórios associados dava os seus segundos passos (os primeiros são de 79). Preservou-se o FNDCT e nasceu o PADCT. A tensão entre os dois modelos reproduzia velhos conflitos, persistentes entre pesquisadores e administradores de ciência. Como construir instituições (científicas) em um país com tantas desigualdades? A concorrência desempata, centraliza, não planta institutos onde eles são necessários, longe. Dizia-se então e repete-se hoje.

Quatorze anos depois, em 96, o debate sobre o PRONEX, pálido substituto da idéia de laboratórios associados de 92, indica que os mesmos conflitos persistem e os caminhos da institucionalização ainda divergem.

Entre 86 e 89 Carolina presidiu a Sociedade. Foram os anos de reconstrução da democracia, da Assembléia Nacional Constituinte. Convocada permanentemente pelas autoridades, surgiu nessa época um sutil dilema: deveria a SBPC, quando convidada, participar diretamente dos conselhos e comissões de governo ou apenas colaborar indiretamente. Indicar bons nomes para essas comissões, não representantes? Carolina preferia preservar a autonomia da Sociedade. Evitar que se envolvesse diretamente na administração dos conflitos ou na delicada distribuição de recursos. No caso do Conselho Deliberativo do CNPQ, a SBPC, convidada, admitiu coordenar a escolha dos representantes da comunidade científica, mas não indicar um seu representante. Este período de intensa convocação coincidiu também com a crescente influência das sociedades científicas que, muitas vezes nascidas na SBPC, ganhavam dimensões, autonomia e autoridade.

A grande Reunião Anual da Sociedade perdia boa parte de seus mais ilustres participantes, empenhados em promover encontros próprios, especializadas . Um novo perfil de Reunião Anual deveria ser imaginado. Nasceram os encontros multidisciplinares, as reuniões regionais, dedicadas a temas específicos. Exemplos: João Pessoa, Manaus e Santa Maria onde se tratou da cooperação científica com Uruguai e Argentina (no Paraguai ainda sobrevivia a ditadura).

Ampliou-se também o intercâmbio com o exterior. A Associação Interciência foi criada em 74 e reuniu as SBPCs do continente inclusive a norteamericana, mas foi a partir de 85, com o retorno das democracias no continente, que ganhou força. Em 86 e 87 missões da SBPC foram à Argentina com o objetivo de criar lá uma Ciência Hoje. Em 88 nasceu a Ciencia Hoy em Buenos Aires (ainda viva ).

Ciência Hoje das Crianças, a CHC, é de dezembro de 86. Carolina estava preocupada. Havia pouca experiência no escrever ciência para crianças. E para os professores o que diríamos? CHC encontrou a curiosidade das crianças mas, ainda não, o caminho dos professores.

Em 85 foi criada uma Comissão de Sociedades Científicas que junto com a SBPC se tomaria importante canal de representação da comunidade científica. Esta, dividida entre seus imperativos éticos e orçamentos virtuais, encontrava na SBPC memória e alguns princípios. A trincheira da resistência tornara-se a tenda ou o guarda-chuva dos tempos de crise financeira.

Nos anos oitenta os recursos para a ciência foram oscilantes, decresceram até 85. Melhoraram até 87, mas depois voltaram a cair. Os reclamos foram permanentes. A SBPC aprendeu a atuar no Congresso, acompanhar os orçamentos, participar da definição de prioridades e da sua penosa execução.

Não se pode, também, esquecer de um fato que teve na SBPC de 87 sua origem: a ampliação do programa de bolsas de pós-graduação. O ministro Archer que ocupava a pasta de Ciência e Tecnologia, sensível aos argumentos da SBPC (Pavan era presidente do CNPq) convenceu-se de que este era um programa prioritário, e obteve do Presidente da República recursos para mais trinta mil bolsas.

Os anos de 87 e 88 foram anos de Constituinte. Os capítulos de meio ambiente, armas nucleares, direitos das populações indígenas, educação, autonomia das universidades, ciência e tecnologia foram detidamente discutidos na Diretoria, no Conselho, em Comissões, encontros e Reuniões Anuais. No Congresso a SBPC contava com o apoio permanente de ilustres Constituintes: Florestan Fernandes, Severo Gomes, Otávio Elísio A. Brito, Mário Covas e Fernando Henrique Cardoso entre tantos outros. O parágrafo que permite a vinculação de recursos nos Estados para o fomento da educação, ciência e tecnologia, insistentemente defendido pela SBPC, correu até os últimos momentos perigo de ser excluído. Pacientes negociações o preservaram. Era o início de uma progressiva descentralização do sistema de ciência e tecnologia. Os capítulos sobre meio ambiente e populações indígenas preservaram a marca dos debates que os escreveram. Educação e Universidade percorreram caminhos mais conturbados, mas os textos atuais não se afastam muito das propostas iniciais da SBPC.

Contei histórias de 16 anos. Para chegar aos vinte faltam quatro, os de 89 a 93 em que fui presidente da SBPC sucedendo Carolina. Dela recebi exemplos e valores. Estes que relatei.

Não tenho certeza de que os fatos tenham ocorrido assim como os descrevi, mas sei que estas páginas de história foram escritas com grande participação de Carolina. Sem ela teriam sido diferentes. Mas não foram. Em sua homenagem.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 1998
  • Data do Fascículo
    1998
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco A, sala 202, Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, 05508-900 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revpsico@usp.br