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A Memória no Outono

Memory in autumn

Resumos

O artigo aproxima as relações percepção-memória e imaginação-memória. Refletindo sobre o livro Memória e Sociedade, compara a pesquisa no meio urbano com as realizadas no meio rural quanto às formas de evocar o tempo.

Memória; Velhos; Imaginação; Percepção


This article draws together the relation between perceptive-memory and imaginative-memory. Reflecting upon the book Memory and Society, it compares the results of this research, applied in an urban scenario, with one applied in a rural setting searching for similarities in the form with which time is evoked.

Memory; Aged; Imagination; Perception


A MEMÓRIA NO OUTONO

Carlos Rodrigues Brandão

Depto. de Antropologia - UNICAMP

O artigo aproxima as relações percepção-memória e imaginação-memória. Refletindo sobre o livro Memória e Sociedade, compara a pesquisa no meio urbano com as realizadas no meio rural quanto às formas de evocar o tempo.

Descritores: Memória. Velhos. Imaginação. Percepção.

Como lembram aqueles para quem a vida vai se tornando, dia a dia, cada vez mais, "apenas as lembranças"?

Ecléa Bosi diz o seguinte, ao anunciar ao leitor o que quis fazer em Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos: "... não pretendi escrever uma obra sobre memória nem uma obra sobre velhice. Fiquei na intersecção dessas realidades: colhi memórias de velhos." (Bosi, 1979, p.3).

A rusticidade certamente intencional do último verbo já sugere ao leitor uma vocação de narrativa. Pois ela resolveu "colher". Tomar da árvore da memória de outros e oferecer ao leitor a fruta da lembrança, tal como ela é, colhida, recolhida, narrada. Uma outra diferença importante entre o narrador-cronista e o cientista-intérprete é estabelecida por Marilena Chauí, em Os trabalhos da memória, sua apresentação ao livro de Ecléa Bosi. Quem sempre interpreta acredita que o que interessa nunca está onde está: onde é visto, onde foi ouvido, onde se dá ao outro tal como é. Por isso, é preciso cavucar, fazer a autópsia, despir a roupa, se possível, a pele do corpo da obra do outro. É preciso dizer uma outra palavra que substitua a primeira e, assim, tomando o que se interpreta como algo sempre relativo, sempre substituível, estabelecer a fala que interessa: a do intérprete. Enquanto para o cronista tudo é importante tal como se ouve e, logo, tal como se conta, "pois todo o dia é o último dia. E o último dia é hoje." (Chauí, 1979, p.xviii).

É preciso guardar para sempre uma fórmula feliz: comunidade de destino, lembrada por Ecléa a partir de Jacques Loew (Bosi, 1979, p.2). Voltaremos a ela.

Na diferença não pequena entre Henri Bergson e Maurice Halb-wachs, o primeiro puxa a questão das lembranças para dentro. Para a relação entre eu-e-meu-corpo, mediatizada pela relação meu-corpo-e-meu-mundo, considerando a memória, de qualquer maneira, uma legítima atividade do espírito. Halbwachs puxa a memória para fora e a questão da lembrança se estabelece na relação eu-e-meu-mundo (social). Destarte, a atividade psicologicamente criadora da memória submete-se aos princípios da socialização de quem recorda e da sociabilidade do que se recorda. Uma quase diferença entre "eu lembro os outros em mim" e "os outros se lembram em mim".

A porta da questão da memória em Bergson está em que toda a percepção está carregada de recordações, empapada de lembranças (Bosi, 1979). Afora o caso de uma absoluta nova percepção, e nem ela escapa, tudo o de que nos damos conta não só é "percebido" em sua mescla com percepções anteriores subliminarmente guardadas como lembranças, como, ao integrar-se em nosso corpo de percepções, subsiste não como uma forma nova e pura de percepção, mas como o exato resultado das combinações entre o que percebemos em um momento de presente do corpo e o que preservamos em uma espécie de atemporalidade do espírito.

Tudo o que nós percebemos é vivenciado como um momento de presente. Um instante "virgem" de relação entre eu-e-o-mundo. Mas ele próprio nos surge já misturado com "milhares de pormenores da nossa experiência passada." (Bergson apud Bosi, 1979, p.9). A infinidade de lembranças e de conjuntos sistemáticos de lembranças guardadas em nós como percepções e reações vividas no passado tem mais do que o poder de tão somente impregnar as percepções do momento presente. As nossas lembranças "deslocam" (o verbo é de Bergson, traduzido por Ecléa Bosi) as "percepções reais" de tal sorte que o que nós retemos de cada viagem dos sentidos ao mundo não é uma percepção real-atual de uma imagem e/ou de uma vivência. É, antes, a maneira como a força do passado retida em nós seleciona o que percebemos no presente. De igual maneira, tudo o que guardamos, o que "retemos", são fragmentos selecionados do vivido-percebido-e-retido; "meros signos destinados a evocar antigas imagens."1 1 A citação é tomada de Henri Bergson, traduzida por Ecléa Bosi (Bosi, 1979, p.9). Eis como Bosi (1979) sintetiza, melhor do que eu, essa idéia importante.

Com a última afirmação, começa-se a atribuir à memória uma função decisiva no processo psicológico total: a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo "atual" das representações. Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, "desloca" estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo, profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora. (p.9).

O infinito somatório das percepções vividas e, depois, mescladas e "guardadas" como lembranças está em um permanente movimento. Se em sua base (a base do cone invertido sugerido por Bergson) estão em relativa tranqüilidade as lembranças de percepções não convocadas a atualizarem-se em um momento do presente, diante de novas vivências e outras percepções, incontáveis feixes de lembranças estão a todo momento deslocando-se da estabilidade da base invertida para regiões dinâmicas do vértice, cuja ponta toca o plano do real - do contato imediato entre a pessoa e seu mundo objetivo, real. E, desde aí, estão interagindo com o processo de percepção e o trabalho consciente e inconsciente de transformação de vivências percebidas em lembranças. Se as lembranças do passado, de infinitas vivências de passados experimentados pelo sujeito, selecionam e determinam a construção pessoal de novas percepções, não esquecer que "é do presente que parte o chamado ao qual a lembrança responde." (Bergson apud Bosi, 1979, p.10).

Tornadas parte do espírito da pessoa, as evocações das vivências podem dividir-se em memórias-hábito e imagens-lembranças (Bosi, 1979, p.11). Fácil compreender a diferença estabelecida por Bergson. As primeiras a todo o momento atuam na epiderme ativa da esfera da prática. Se podemos esquecer a gramática das muitas linguagens técnicas e sociais em cujos mundos nos movemos, é porque o corpo e o costume subjetivo a todo instante "lembram" o que não pode ser esquecido para que uma ação eficaz ou adequada seja realizada sem que eu precise pensar nela.

Mas, ao falar das imagens-lembranças, é preciso trazer Bachelard à vizinhança de Bergson. Porque, se o primeiro tipo de lembranças opera na esfera prática da ação presente, repetível, infinitamente reproduzível, a todo momento, todos os dias, o segundo tipo de recordações conspira contra o primeiro. Conspira como o devaneio noturno conspira contra a vigília diurna do conceito, da razão discursiva. O que as lembranças de imagens das imagens-lembranças trazem à tona dos sentidos e dos sentimentos pode ser, ao contrário, a evocação não-utilitária (nem eficaz como ação prática a nem adequada como ação social) de um momento único. De uma vivência pessoal preservada em sua absoluta individualidade, em sua primorosa afetiva inutilidade ... a não ser como um valor de sentimento duplamente único. Primeiro, porque, tal como a vivi e a evoco (quantas vezes sem a minha vontade ou mesmo contra ela!), a minha lembrança é somente minha. Segundo, porque, entre tantas outras lembranças que posso reconhecer como minhas, aquela é por inteiro individualizada. Ela única, não associável, não redutível a outras. Um rosto ... um gesto ... um acontecimento ...

Mas, atenção, enquanto as lembranças da memória das imagens- lembranças em Bergson estão inevitavelmente mergulhadas na temporalidade interior e, em boa medida, pelo menos em parte, marcadas também pelos sucessos do fluir dos tempos sociais em que nos vemos metidos, o devaneio poético sugerido por Gaston Bachelard luta por fazer-se ser fenomenologicamente um "fora do tempo". Se possível, até mesmo algo distante da atenção, alheio à própria memória. Algo que se vive intensamente em um momento de descoberta afetuosa-intuitiva de algo que "toca fundo". Toca no fundo justamente porque, por um instante, o espírito livra-se dos afazeres do tempo, das interligações dos espaços, e se deixa envolver por inteiro em um absoluto "algo" que lhe surge miraculosamente em-si-mesmo, desligado de tudo. Ainda que, adiante, a razão do espírito e a força da memória venham a pôr de novo ordem na casa das lembranças. E venham a incorporar o devaneio vivido à memória lembrada, como algo a não ser nunca mais esquecido; ou a sê-lo amanhã de manhã, de tão súbito, de tão único, de tão deslumbrante.

É comum, com efeito, inscrever o devaneio entre os fenômenos da distensão psíquica. Vivemo-lo num tempo de distensão, tempo sem força ligante [grifos meus]. Sendo destituído de atenção, não raro é destituído de memória [grifos meus]. O devaneio é uma fuga para fora do real, nem sempre encontrando um mundo irreal consistente. Seguindo a "inclinação do devaneio" - uma inclinação que sempre desce -, a consciência se distende, se dispersa e, por conseguinte, se obscurece [grifos do autor]. Assim, quando se devaneia é hora de se "fazer fenomenologia." (Bachelard, 1988, p.5).

Não será supérfluo lembrar que, na dialética da relação memória- percepção, no jogo de passado preservado-presente vivido do cone de Bergson, as lembranças também "descem" (Bosi, 1979, p.10) da base acima para o vértice abaixo e, no limite inferior, em contato com o mundo real, tal como na "inclinação do devaneio" de Bachelard.

Poucas páginas adiante não resisto a convidar Bachelard e Bosi para uma visita com Bergson a Benjamin. Pois ele lembra que, de uma maneira oposta ao que acontece com o sonho, o devaneio "não se conta." (Bachelard, 1988, p.7). Eu tendo a concordar intensamente com ele. De fato, lembramos memórias e contamos lembranças a nós mesmos e aos outros. Mas a vivência de um devaneio soa estranha quando contada, quando narrada. Inscrita em um momento do afeto diante de, o devaneio ou se cala ou se escreve. Por isso, ele é o gesto do poeta, um escritor que, não narrando (a não ser na epopéia), não interpretando (a não ser nos poetas pedantes e chatos), escreve o que pensa dizendo o que sente. Mas o que escreve quem devaneia? A escrita carregada de sentidos e de sentimentos de sua imediata vivência. Pois "para comunicá-lo é preciso escrevê-lo, escrevê-lo com emoção, com gosto, revivendo-o melhor ao transcrevê-lo." (Bachelard, 1988, p.7, grifos do autor). E não será outra a razão por que Bachelard lembra as cartas de amor... que já não se escrevem mais. Pois os amantes, envolvidos no surto do devaneio desvairado de seu amor, escrevem-se de longe (não raro, nem tanto), o que é impossível dizer falando quando se está junto. E não porque entre os dois a inibição ou o pudor tolha o que, no silêncio solitário da noite, fica fácil colocar no papel. É porque há uma intensa fala do afeto que só se diz por escrito, mesmo quando para ser lida, depois, diante do outro. Teremos todos vivido essa experiência? E por que não lembrar o amante desesperado de O Amor nos Tempos do Cólera (Garcia-Marquez, 1985), que ademais de suas infinitas cartas não respondidas, escritas no ímpeto do amor por muito tempo impossível, tornou-se em praça pública um escrevinhador gratuito de cartas de amor de quantos, como ele ou mais afortunados (embora analfabetos), precisassem dizer algo por escrito à pessoa amada, próxima ou distante?

Mas, se o devaneio que não se conta e se escreve cabe na poesia e lembra a carta de amor, a sua linguagem se aproxima, pelo caminho oposto, à de nosso narrador. Porque também sobre ele se quer dizer sem pensar. Se quer contar-o-que-eu-sinto sem colocar entre "isto" e você, leitor, nada mais do que as palavras que, da maneira mais tortuosamente direta e imediata, sem mediações (poesias e cartas de amor não têm notas de rodapé), diga a você exatamente "isto mesmo."

Sem citá-lo em momento algum, Bachelard percorre idéias de Aristóteles, ao fazer uma inevitável associação entre a imaginação e a memória. Esqueçamos por agora Aristóteles e voltemos a Bachelard. Cito-o longamente.

Ao longo de trabalhos anteriores, dissemos freqüentemente que não se podia fazer uma psicologia da imaginação criadora se não se distinguisse nitidamente a imaginação e a memória. Se há um domínio em que a distinção se toma difícil, é o domínio das recordações da infância, o domínio das imagens amadas, guardadas, desde a infância, na memória. Essas lembranças que vivem pela imagem, na virtude da imagem, tomam-se, em certas horas de nossa vida, particularmente no tempo da idade apaziguada, a origem e a matéria de um devaneio bastante complexo: a memória sonha, o devaneio lembra. Quando esse devaneio da lembrança se torna o germe de uma obra poética, o complexo da memória e imaginação se adensa, há ações múltiplas e recíprocas que enganam a sinceridade do poeta. Mais exatamente, as lembranças da infância feliz são ditas com uma sinceridade de poeta. Ininterruptamente a imaginação reanima a memória, ilustra a memória. (Bachelard, 1988, p.20).

Quando se vai a um dicionário qualquer, as palavras do reino da memória aparecem como sinônimas e umas visitam os verbetes das outras: "memória", "lembrança", "recordação", "vocação" e algumas outras. No entanto, tomando-os nos seus verbos e, entre Bosi, Benjamin, Berg-son e Bachelard, podemos desconfiar que de maneira nenhuma elas querem dizer a mesma coisa, de modo que somente podem ser consideradas como perfeitas sinônimas em alguns casos e, mesmo assim, imperfeitamente.

Por exemplo, eu memorizo um número de telefone; eu me lembro de um número e de telefonar para de onde ele é. Eu relembro, eu recordo uma conversa havida anos atrás e eu evoco, tanto tempo depois, o que pelo mesmo telefone alguém me disse um dia...

Alguns verbos querem dizer o primeiro tipo de memória em Henri Bergson; outros podem muito bem estar a meio caminho entre um tipo e o outro. Mas outros ficam mais à vontade apenas quando usados para as memórias do segundo tipo. Aquelas que, por terem a palavra "imagem" no primeiro termo, sugerem de perto a associação de ida e volta que Gaston Bachelard faz para as oposições e as convergências entre a imaginação e a memória.

Vejamos. Coloquemos de um lado as ações subjetivas da memória-hábito. Coloquemos no outro extremo as da imagem-lembrança. Distribuamos alguns verbos da casa da memória entre um extremo e o outro.

Minha "tabela de verbos da memória" não é nada perfeita e eu a fiz ao acaso, lembrando os nomes que dou ao que lembro. As posições no gradiente vertical não têm valor algum e valem apenas as do gradiente horizontal.

Ecléa Bosi lembra algo que aproxima Bergson de Bachelard, de uma maneira feliz. Ele chama de "memória pura" algo próximo ao que Bachelard chama de "devaneio". Ou de algo situado entre o devaneio de um momento e o rol de lembranças que ele evoca, com que ele "reanima" e "ilustra" a memória. Não esquecer que, no Bachelard noturno, é a memória que sonha e é a imaginação que lembra ... e obriga a memória a vir co-lembrar. Pois bem, em Bergson, a "memória pura" opera no sonho e na poesia (Bachelard diria que no devaneio contra o sonho e na poesia contra as fórmulas da razão serva do conceito e da lógica). Entre uma e outra, de novo em Bergson, através de Ecléa, existe a diferença entre o domínio do espírito livre, onde recordar é um ato voluntário de criação espontânea e o domínio do espírito cativo do hábito, ou mesmo dos gestos tornados hábitos sem a atividade presente do espírito, onde lembrar serve a uma "pura" utilidade do momento (Bosi, 1979, p.13).

E ela convive com os seus "velhos" na dimensão afetuosa da evocação, da imaginação da memória, da "memória pura". Eis que os seus homens e mulheres, desobrigados de conviver sob o imperativo prático da memória-hábito - ou porque já a utilizaram demais, ou porque não precisam mais tanto dela como antes para o exercício da vida cotidiana - podem entregar- se, diante dela e para eles mesmos, como narradores-de-si, evocadores.

Entre tempos - a matéria da memória, além do "corpo", em Berg-son - eles estabelecem um tempo passado que é "o seu" e que de uma maneira inevitável opõem a um presente, que eles habitam, mas que não é mais mesmo o deles. Eis o que poderia ser um dos indicadores mais dolorosos da experiência da velhice, sobretudo quando, além de "velho", vai-se ficando "sozinho".

Não posso deixar de associar aqui os seus velhos aos meus, os de minha convivência e os de minhas pesquisas em Goiás, em Minas Gerais e em São Paulo. Havia algo sempre presente na imensa maioria deles? Sim. Uma desesperançada e persistente oposição de significados da vida entre um tempo "antigo", o deles até antes de velhos, e "os dias de hoje". Os tempos do presente, quando eles e não os outros são os velhos e quando as pessoas, as relações, o mundo e as coisas, a começar pela comida, pela água, pelo ar, pelos mínimos imensos seres cotidianos da vida, já não são mais... como eram.

Quantas sugestivas aproximações entre os meus velhos, moradores de patrimônios, de povoados, de bairros rurais, de sítios e de fazendas, trabalhadores rurais aposentados "pelo Funrural" uns, "ainda no cabo da enxada" outros, e os homens e mulheres paulistanos de nascimento ou de adoção, do Lembranças de Velhos.

Uma diferença de viés, por certo, empurrou então o meu olhar em direção de Halbwachs, que nos espera adiante. Praticamente em todas as minhas pesquisas de campo, seja entre agentes populares de rituais do catolicismo negro e/ou camponês, seja com diferentes tipos - mas sempre irmanados em uma tão pesarosa pobreza, em uma "vida tão dura" -, o meu interesse esteve muito marcado pelo registro e pela decifração de alguma ideologia: a da prática econômica (trabalho e produção), da vida social e do parentesco; a da participação política; a de algum domínio definido da vida (como os hábitos e ideologias alimentares em Mossâmedes, Goiás); a da identidade étnica; a da religião. Portanto, os tempos da vida falados com uma igual evocada nostalgia pelos meus velhos e os de Ecléa eu os colocava sempre no marco de um discurso social de identidade, de uma ideologia de classe, de uma representação social da/através da memória.

Também entre os meus velhos, a experiência da solidão indesejada era bastante menor. Todos eles estavam vivendo dentro de algum ramo de família, quando não no velho tronco de sua própria família. Quase todos se sentiam parte de uma comunidade de referência, de uma visível, palpável, restrita, mas acolhedora, comunidade de destino: de uma confraria de artistas, de uma pequena "sociedade" de iguais, mesmo quando de velhos já fora do trabalho.

No entanto, em quase todas as vezes em que se falava dos tempos "da vida e do lugar", uma temporalidade social de três eras era a medida de tudo. De tudo o que houve e de tudo o que estava havendo agora. Algumas vezes, o primeiro "tempo" era o menos motivado, porque sempre ele era antecedente de vários ou de muitos e muitos anos à própria existência do velho. Se a conversa era sobre "religião", era muito comum que a memória começasse o exercício de sua narrativa por algo tão arcaico como: "Ah! Isso vem do princípio do Mundo!", "Isso que o senhor vê a gente dançando aqui vem desde os tempos de Adão (mas podia ser: "de Cristo"; "dos apóstolos"; "dos muito antigos", "dos escravos"). Quando era sobre a vida de trabalho e dos ciclos de produção agropastoril (comum um velho de 70 a 80 anos ter passado por dois ou três), o primeiro "tempo" era dito "dos antigos" (mas essa mesma palavra muito comum servia para nomear o próprio tempo da infância e da juventude do falante); "dos nossos primeiros"; "dos índios que já houve por aqui até quando chegaram os brancos" etc. De nada adiantava pedir datas, precisões de épocas, de anos até. Toda a lembrança era sempre muito mais mística do que histórica: o "começo do mundo" podia ser "há uns mil anos atrás" e o tempo "dos índios que houve" podia ser entre 300 e 100 anos. Não era raro que alguns velhos começassem a cronologia dos tempos pelo "dos mais velhos", dos "antigos", em cujas fronteiras ele próprio se colocava. Isso porque, com muita freqüência, os velhos - e muito mais as velhas - mesclavam uma história social do lugar ou da região aos seus próprios começos: o dos seus ascendentes reconhecidos e sobre os quais há algo a narrar; o dos pais (via de regra, muito motivado) e o deles próprios, pelo menos durante a infância, a adolescência e, em alguns, a juventude, o casamento e uma vida familiarmente autônoma.

Esse "tempo" mais motivado do que os outros era invariavelmente a "idade do ouro". Busquei sempre uma explicação social, onde a base das variações econômicas era sempre muito forte e, em linha direta ou indireta, parecia dominar a explicação do que, de então em diante, aconteceu com os outros campos da vida. Hoje, eu aprenderia com Ecléa uma outra razão. Uma razão que eles próprios teriam me falado se eu tivesse sensibilidade para, então, perguntar. É que, fora casos dramáticos, ou de vidas individuais e familiares onde ocorreu uma efetiva mudança ascendente de indicadores da qualidade social de vida e da felicidade, sempre se é mais um pré-sujeito (uma criança) ou um pleno-sujeito (um homem jovem, solteiro, ou um adulto-jovem, começando a "vida de casado"; um adulto pai-mãe de filhos em pleno uso do seu vigor) "daquele tempo", quando se está ainda nos breves anos da infância camponesa. Quando então, mesmo tendo sido ela pobre, a lembrança do que se viveu podia não ser "feliz", como em Bachelard, mas era quase sempre reconhecida como a de "um tempo bom". As qualidades da bondade do "tempo dos antigos" repetem-se muito: as pessoas "eram mais unidas", "havia mais respeito pelos pais, pelos mais velhos"; "a gente era mais pobre, mas gozava de mais fartura, porque tinha sempre o que comer, mais do que agora"; "havia mais saúde" ("as águas eram mais puras, a terra era mais fértil, as plantações mais frutíferas", dentro de um calendário natural "mais regrado"); havia mais festa, mais solidariedade, "menos ambição". Este último explicador repetiu-se sempre, com muita freqüência, e, muitas vezes, era tomado como a chave de leitura de tudo o mais que aconteceu.

Que aconteceu no quê? Quando? Provocando o quê?

Que aconteceu na irrevogável passagem do "tempo dos antigos" para os "dias de hoje"- ("os tempos de hoje", "os tempos de agora")? As regras das gramáticas da vida perderam o que possuíam de melhor. E os ritos de trocas entre desiguais igualados tornaram-se o jogo de interesse entre desiguais reconhecidos. As qualidades "naturais" de uma "vida antiga", regida por princípios de um código camponês que qualquer velho ou velha "da roça" conhece e, em sua versão culturalmente pessoal está sempre motivado a declamar, foram aos poucos e, agora, de maneira vertiginosa, substituídas por modos de vida, tipos de sentimento e de disposições de relacionamentos "modernos".

Maneiras de ser, de sentir a vida e de se estabelecer éticas de trocas advindas da cidade, ou dos que trazem para "o campo", as leis e os costumes "da cidade". Razões conhecidas e repetidas demais para que eu me alongue mais.

Mas, entre os velhos de agora, raro aquele que atravessou os momentos mais agudos das mudanças lembradas dos "dias de agora" ainda jovem. Quase sempre se estava em plena "idade da razão". Quase sempre já não se era mais um jovem e nem mesmo um adulto jovem, mas um homem "pai de filhos e chefe de família", ou uma mulher "dona de casa e mãe de filhos", mesmo quando ainda jovem para os nossos critérios. Pois, no tempo delas, uma mulher entre os 19 e os 20 anos começava a "largar mão" de pedir marido a Santo Antônio ("casamenteiro das moças") e começava "a se agarrar com São Gonçalo" ("casamenteiro das velhas").

Acho que, de maneira bastante mais rústica do que em Ecléa Bosi, estou falando da maneira sobre como uma sensibilidade do "lembrar os tempos" mescla os acontecimentos sociais, regidos pela vida de trabalho, com os da vida subjetiva, pessoal, quase sempre uma biografia igualmente regida e lembrada através do trabalho dos feitos do trabalho e dos efeitos do trabalho sobre a vida da pessoa que fala e de seus familiares: primeiro, os do grupo doméstico e, depois, os da parentela dos dois lados.

Nunca são apenas indicadores motivadamente objetivos aqueles que as pessoas escolhem para falar de seus tempos. Para avaliar cada um, para compará-los e estabelecer uma lembrança consistente a ser narrada ao outro.

Um olhar mais sensível saberia entrever (e nisso, sem dúvida, Ecléa Bosi, entre Bergson e Halbwachs, foi uma boa mestra) palavras carregadas de afeto nas linhas e nas entrelinhas das narrativas de evocação. Avaliações onde a felicidade, o amor entre as pessoas, a "união" gratificante, eram o sentido de tudo e, agora, servem para evocar a diferença entre tudo. Frases esquecidas daquele a quem interessava a "dimensão social da cultura"... ou "da questão". Mas que corrigiam, na fala ingênua das lembranças de velhos sertanejos, o olhar empobrecido de quem fazia as perguntas e indicava, com gestos e falas do percurso, qual o melhor rumo do depoimento.

Pois se tratava sempre de lembrar razões e mudanças econômicas para, logo em seguida, usar "isto" para falar do que aconteceu "na família", "aqui na comunidade", "na nossa região", "neste nosso Brasil".

E o que era evocado para traçar a progressiva desqualificação dos "tempos de hoje" em nome de um outro, vivido, lembrado e perdido... "que já não volta mais", servia, entre o silêncio e a confissão tímida diante do outro, mas carregada do ar triste do afeto de quem "perdeu", a assinalar que o tempo todo se está falando da vida. Se está narrando como se era, o que se foi, como se é "menos", agora, quando se está velho e tudo à volta "mudou".

Por que será que os pentecostais, muitos deles velhos convertidos, aprenderam desde os seus começos de fé a exagerar a visão apocalíptica católica, em que todos os sinais visíveis e comentados do que "anda acontecendo num mundo" é um sinal alarmante - diante da "cegueira dos homens"- dos "tempos do Fim-do-Mundo"?

Pois também o Mundo, de tanto decair, envelheceu. Cumpriu o seu tempo. Chegou perto da hora do seu Juízo Final.

BRANDÃO. C.R., Memory in Autumn, Psicologia USP, São Paulo, v.9, n.2, p.297-310, 1998.

Abstract: This article draws together the relation between perceptive-memory and imaginative-memory. Reflecting upon the book Memory and Society, it compares the results of this research, applied in an urban scenario, with one applied in a rural setting searching for similarities in the form with which time is evoked.

Index terms: Memory. Aged. Imagination. Perception.

  • BACHELARD, G. A poética do devaneio Săo Paulo, Martins Fontes, 1988.
  • BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. Săo Paulo, T. A. Queiroz, 1979.
  • CHAUÍ, M.S. Os trabalhos da memória: introduçăo. In: BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. Săo Paulo, T. A. Queiroz, 1979.
  • GARCIA-MARQUEZ, G. O amor nos tempos do cólera 3.ed. Rio de Janeiro, Record, 1985.
  • 1
    A citação é tomada de Henri Bergson, traduzida por Ecléa Bosi (Bosi, 1979, p.9).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 1999
    • Data do Fascículo
      1998
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