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Em busca do referente, às voltas com a polissemia dos sonhos: a questão em Freud, Stuart Mill e Lacan

In search of the referent, dealing with dream's polysemy: the question in Freud, Stuart Mill and Lacan

Resumos

Este texto examina a influência do associacionismo nominalista de John Stuart Mill no pensamento freudiano e, dialogando estas concepções com as formulações da segunda tópica, delineia um ângulo possível de articulação das mesmas com a inovação lacaniana.

Psicanálise; Teoria psicanalítica; Afasia; Lacan, Jacques; Freud, Sigmund


This paper examines the influence of John Stuart Mill's associationism in Freudian thought. Stablishing a dialogue of these conceptions with death instinct's definition, it presents a possible point of view for their articulation with the Lacanian inovation.

Psychoanalysis; Psychoanalytic theory; Aphasia; Lacan, Jacques; Freud, Sigmund


EM BUSCA DO REFERENTE, ÀS VOLTAS COM A POLISSEMIA DOS SONHOS: A QUESTÃO EM FREUD, STUART MILL E LACAN1 1 Agradeço ao Prof. Osmyr Faria Gabbi Jr., cujas aulas, no curso de especialização em "Fundamentos Filosóficos da Psicologia e da Psicanálise", no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, em 1994, estimularam-me a realizar esta investigação.

Ana Maria Loffredo

Instituto de Psicologia - USP

Este texto examina a influência do associacionismo nominalista de John Stuart Mill no pensamento freudiano e, dialogando estas concepções com as formulações da segunda tópica, delineia um ângulo possível de articulação das mesmas com a inovação lacaniana.

Descritores: Psicanálise. Teoria psicanalítica. Afasia. Lacan, Jacques, 1901-1981. Freud, Sigmund, 1856-1939.

Não é desprovido de interesse que nos voltemos aos fundamentos da constituição da clínica psicanalítica, examinando, na produção teórica inicial de Freud, o espaço ocupado pela noção de "representação" e seu alcance no desenvolvimento das concepções teóricas posteriores. Por exemplo, sabemos que à pulsão, "conceito básico", "limite entre o somático e psíquico" (Freud, 1915b, p.113, 117), não cabe a oposição consciente - inconsciente, desde que não faz parte do psiquíco, a não ser através de seus representantes. Além disso, mais do que um conceito, à pulsão caberá o estatuto de "doutrina" (Freud, 1938, p.146), o que testemunha sua posição fundamental na arquitetura teórica freudiana. De modo que a noção de representação pode ser considerada um ponto nodal em torno do qual gravitam questões cruciais. Sua relevância se recorta tanto por nos remeter à fontes filosóficas de que se serviu Freud, como por nos instrumentalizar para acompanharmos os impasses teóricos que culminaram na "ruptura" da segunda tópica. Também nos permite colocar estas aspas anteriores se, amparados na tematização desenvolvida por Monzani (1991) a esse respeito, considerarmos que "o que se denomina mudança ou corte no pensamento de Freud não passa de um efeito de superfície, sendo o discurso freudiano muito mais homogêneo do que se pensa comumente." (p.132).

A noção de representação é também um operador teórico útil para nos situarmos em relação às divergências que permeiam o movimento psicanalítico pós Freud. Basta nos determos no espaço, no mínimo polêmico, ocupado pelo conceito de pulsão, como bem aponta Birman (1991). Na trilha de sua argumentação, esse autor enfatiza que não se trata de opor, teoricamente, o modelo positivista da metapsicologia com o modelo interpretativo da experiência psicanalítica mas, ao contrário, tratá-las como um "indício de uma problemática teórica e não como um equívoco." Sendo fundamental tratar as questões do sujeito e da interpretação "... como fundadas no conceito de pulsão." (p.19). Isso não significa que a questão tenha sido resolvida pelo discurso freudiano, mas delineia-se o campo teórico onde situá-la na contemporaneidade.

Assim, esse trabalho divide-se em duas partes: na primeira, acompanharei o trajeto da noção de representação em três momentos do percurso freudiano - nas obras Sobre a Concepção das Afasias (1891), Projeto de uma Psicologia (1895)2 1 Agradeço ao Prof. Osmyr Faria Gabbi Jr., cujas aulas, no curso de especialização em "Fundamentos Filosóficos da Psicologia e da Psicanálise", no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, em 1994, estimularam-me a realizar esta investigação. e no artigo O inconsciente (1915a) - através dos quais serão examinadas as articulações do pensamento de Freud com o associacionismo nominalista de J. S. Mill; na segunda, serão colocados em diálogo esses fundamentos nominalistas e as concepções da segunda tópica, encenando as articulações possíveis das mesmas com uma das vertentes teóricas pós-Freud, expressa na inovação lacaniana. Tal exercício, ainda em andamento, é uma proposta que deverá ser continuada por investigações posteriores.

I. Freud e Mill: pontuando articulações

1. Em Afasias, Freud (1891) abalou de forma radical a concepção localizacionista das afasias, criticando um ponto de vista mecanicista do psiquismo que o enquadrava como uma espécie de epifenômeno do funcionamento nervoso. Sendo proposto um circuito funcional da linguagem que apresentava uma relativa autonomia da topografia anatômica do sistema nervoso. Em sua proposta de leitura, privilegiando o registro funcional sobre o registro tópico, recortava-se a psique como fundada na linguagem, tendo sido afirmado, na mesma época, o poder terapêutico da palavra, num texto de 1890, onde está escrito "... as palavras são, de fato, o instrumento essencial do tratamento anímico." (Freud, 1890, p.115). Ou seja, na genealogia dos conceitos psicanalíticos, o aparelho psíquico foi concebido basicamente como umaparelho de linguagem (Birman, 1991, p.17).

Desde então, instalaram-se no corpo teórico freudiano -para ficar - as noções de representação de palavra e de objeto, para cuja elaboração serviram de inspiração duas obras fundamentais de John Stuart Mill: Um Exame da Filosofia de Sir William Hamilton (Mill, 1974a) e Sistema de Lógica Dedutiva e Indutiva (Mill, 1974b).3 1 Agradeço ao Prof. Osmyr Faria Gabbi Jr., cujas aulas, no curso de especialização em "Fundamentos Filosóficos da Psicologia e da Psicanálise", no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, em 1994, estimularam-me a realizar esta investigação. O seguinte parágrafo, em Afasias, testemunha esta influência:

Da filosofia aprendemos que a representação do objeto não compreende senão isto, e que a aparência de uma "coisa", de cujas diferentes "propriedades" falam aquelas impressões sensoriais, surge apenas na medida em que no leque das impressões sensoriais obtidas por um objeto incluirmos também a possibilidade de uma longa sucessão de novas impressões na mesma cadeia associativa. (Freud, 1891, p.71).

Esta citação tem uma importância peculiar, não só por nomear claramente as incursões de Freud pela filosofia, como pela famosa nota de rodapé que a acompanha onde explicita, sem nenhum equívoco, sua dívida com o filósofo. Cabendo compartilhar da estranheza, apontada por Gabbi Jr., de que uma referência tão explícita não tenha promovido investigações das relações de Freud com o pensamento de J. S. Mill, como com o de outras eventuais fontes filosóficas.4 4 Para este autor, há dois fatores que dificultaram explorar essa articulação: do lado de Freud, Afasias só teve uma edição em alemão em 1891 e a tradução para o inglês, de 1953, não foi útil para um trabalho rigoroso. O Projeto - onde não é difícil ser detectado a influência do filósofo - desautorizado e não publicado por Freud, foi salvo de ser jogado no lixo pelo próprio, por sua discípula M. Bonaparte. Só apareceu, em alemão, em 1950. Quanto a Mill, das duas obras citadas por Freud em Afasias, uma delas só se tornou disponível para os pesquisadores na edição de 1979, publicada pela Universidade de Toronto. O segundo fator, segundo Gabbi Jr., poderia ser devido à influência da psicanálise francesa, notadamente a vertente lacaniana. Embora Lacan tenha estimulado o interesse pela Filosofia, o fez na direção de autores como Hegel e Heidegger, que tornavam sem sentido articulá-lo ao empirismo inglês. Escreve Gabbi Jr.(1995): "O naturalismo explícito da teoria psicanalítica transformou-se, assim, em um exemplo de leitura equivocada, ideológica, que não merecia ser feita, pois impediria um verdadeiro retorno a Freud." (p.107-8). Exemplo disso pode ser encontrado em Nassif (1977, p.376-7) que, com certeza comete um equívoco, ao voltar a filiação da noção de "representação de objeto" na direção de Brentano. Desautorizando a referência explícita, citada anteriormente, feita pelo próprio Freud a Mill.

Em Afasias aparecem dois tipos de representações, de objeto e de palavra, apresentadas num esquema que Freud chama de psicológico. Ambas são representações complexas, sendo que a representação de palavra (onde há elementos acústicos, visuais e cinestésicos) liga-se à representação de objeto através de sua imagem acústica, e, entre as várias associações de objeto (que se compõem de representações acústicas, táteis, etc.) são as visuais que o representam. Dito de outra forma, o elemento organizador (ou delegado) de um é a imagem acústica e, a do outro, a visual. A representação de palavra é um complexo fechado, embora sendo capaz de ampliações e a de objeto é um complexo aberto. O termo representação de objeto não se refere à coisa ou ao referente, mas sim, na sua relação com a representação da palavra, designa o significado.

Como representação complexa, revelando uma abordagem mais holista ou "estrutural", sua unidade supõe elementos pertinentes a lugares diferentes do campo da linguagem, no que está colocado um ponto de vista radicalmente diverso da concepção elementarista, segundo a qual a linguagem seria o efeito de uma "impressão", como se houvesse uma relação ponto a ponto entre a periferia e o córtex (Garcia–Roza, 1991, p. 31). Os três tipos de afasia (verbal, assimbólica e agnóstica) remetem-se às possíveis relações entre os componentes de cada uma das representações, bem como na relação entre elas (Freud, 1891, p.72):

l afasia verbal (de primeira ordem) - as associações entre os elementos simples da representação da fala estão perturbadas;

l afasia assimbólica (de segunda ordem) - a associação entre representação de palavra e do objeto está perturbada;

l afasia agnóstica (de terceira ordem) - não há reconhecimento de objetos.

A tese central de Freud sobre a afasia é articular a representação da palavra à de objeto apenas via suas imagens acústicas, de modo que, com o abandono da base anatômica, é a imagem acústica que passa a ocupar o papel de um universal na teoria, como propõe Gabbi Jr. (1991, p.193).

Este autor enfatiza que Freud faz referência a Mill, justo no momento em que descreve os diversos modos de formações das associações lingüísticas, embasando-se a análise psicológica na concepção dos fenômenos como formando compostos (Gabbi Jr., 1994, p.203). Esta influência fica transparente ao nos reportarmos, aponta o mesmo autor, a Giannotti em John Stuart Mill: o Psicologismo e a Fundamentação da Lógica, onde se lê:

... em vez de descrever os fatos mentais à procura dos mais primitivos, deve-se se proceder ao exame de seus modos de formação, a fim de que não se corra o perigo de tomar por simples o fato composto cujos trâmites de produção foram perdidos. Portanto, todo fenômeno redutível a elementos mais simples, por estes modos de produção já estabelecidos, não será tomado como simples, ainda que a intuição assim nô-lo apresente. (Giannotti, 1964, p.32).

A partir do exposto, o patológico é considerado uma desarticulação que se opera dentro desse complexo e cada tipo de afasia corresponde a uma dissolução em algum ponto do aparelho da fala, de tal forma que o sintoma pode ser entendido "... como um ponteiro que aponta para o tipo de lesão presente no paciente." (Gabbi Jr., 1991, p.192). Para descrever as características dos fenômenos é preciso investigar, portanto, seu processo de formação. O patológico seria a porta de entrada para se estudar esses modos de formação, desde que, nele, esse composto se expressa, justamente por estar de-composto. Importa enfatizar que essa maneira de investigação, que orienta o trabalho inicial de Freud, permeará todo seu percurso posterior. É assim que uma das características de seu procedimento com sonhos é de fragmentá-lo, isto é, o trabalho proposto pela interpretação, como explicita em 1900, é feito em detalhe, não em massa, pois está subjacente a ele que se considera o sonho um material composto "... como um conglomerado de formações psíquicas." (Freud, 1900a, p.125).

Portanto, é fundamental destacar que "Freud não retirou de Mill uma concepção, mas um método de investigação do fenômeno mental", como propõe Gabbi Jr. (1994, p.204, grifo meu).

2. No Projeto aparecem três tipos de representações: de palavra, de objeto e de coisa (DING). A representação de coisa, que se inspirou na "possibilidade permanente de sensação" de Mill (1974a, p.263), tem o caráter de pura referência. A pulsão é uma representação de coisa, na medida em que oferece a possibilidade permanente de sensação, que a ela se associa, como um invariante (a pulsão é uma força constante).

Na vivência de satisfação, por exemplo, temos quatro representações: a de coisa, representante da pulsão; a de objeto, representa o objeto desejado; a de palavra, representa a palavra ouvida; e a quarta, que indica que parou o processo de somação no aparelho psíquico. Como estão em relação de contigüidade (Mill, 1974a, p.258), ao serem evocadas, terão ocupação5 4 Para este autor, há dois fatores que dificultaram explorar essa articulação: do lado de Freud, Afasias só teve uma edição em alemão em 1891 e a tradução para o inglês, de 1953, não foi útil para um trabalho rigoroso. O Projeto - onde não é difícil ser detectado a influência do filósofo - desautorizado e não publicado por Freud, foi salvo de ser jogado no lixo pelo próprio, por sua discípula M. Bonaparte. Só apareceu, em alemão, em 1950. Quanto a Mill, das duas obras citadas por Freud em Afasias, uma delas só se tornou disponível para os pesquisadores na edição de 1979, publicada pela Universidade de Toronto. O segundo fator, segundo Gabbi Jr., poderia ser devido à influência da psicanálise francesa, notadamente a vertente lacaniana. Embora Lacan tenha estimulado o interesse pela Filosofia, o fez na direção de autores como Hegel e Heidegger, que tornavam sem sentido articulá-lo ao empirismo inglês. Escreve Gabbi Jr.(1995): "O naturalismo explícito da teoria psicanalítica transformou-se, assim, em um exemplo de leitura equivocada, ideológica, que não merecia ser feita, pois impediria um verdadeiro retorno a Freud." (p.107-8). Exemplo disso pode ser encontrado em Nassif (1977, p.376-7) que, com certeza comete um equívoco, ao voltar a filiação da noção de "representação de objeto" na direção de Brentano. Desautorizando a referência explícita, citada anteriormente, feita pelo próprio Freud a Mill. simultânea e é para esta ocupação simultânea que Freud usa o termo desejo.

Importa assinalar que na estrutura e funcionamento desse aparelho psicológico, estão atuando, desde o início, modos de associação promovidos pela relação com um outro aparelho de linguagem. Se as ações humanas se norteiam por dois eixos básicos - busca de prazer e fuga da dor - nomeadas por Freud (1895), no Projeto, de vivência de satisfação e vivência de dor, estas são estruturas-matrizes que organizam a relação com o objeto. Como, inicialmente, o organismo precisa do auxílio do próximo (semelhante), pois não é capaz de efetuar a ação específica, é através da descarga no sistema neurônico y6 4 Para este autor, há dois fatores que dificultaram explorar essa articulação: do lado de Freud, Afasias só teve uma edição em alemão em 1891 e a tradução para o inglês, de 1953, não foi útil para um trabalho rigoroso. O Projeto - onde não é difícil ser detectado a influência do filósofo - desautorizado e não publicado por Freud, foi salvo de ser jogado no lixo pelo próprio, por sua discípula M. Bonaparte. Só apareceu, em alemão, em 1950. Quanto a Mill, das duas obras citadas por Freud em Afasias, uma delas só se tornou disponível para os pesquisadores na edição de 1979, publicada pela Universidade de Toronto. O segundo fator, segundo Gabbi Jr., poderia ser devido à influência da psicanálise francesa, notadamente a vertente lacaniana. Embora Lacan tenha estimulado o interesse pela Filosofia, o fez na direção de autores como Hegel e Heidegger, que tornavam sem sentido articulá-lo ao empirismo inglês. Escreve Gabbi Jr.(1995): "O naturalismo explícito da teoria psicanalítica transformou-se, assim, em um exemplo de leitura equivocada, ideológica, que não merecia ser feita, pois impediria um verdadeiro retorno a Freud." (p.107-8). Exemplo disso pode ser encontrado em Nassif (1977, p.376-7) que, com certeza comete um equívoco, ao voltar a filiação da noção de "representação de objeto" na direção de Brentano. Desautorizando a referência explícita, citada anteriormente, feita pelo próprio Freud a Mill. , que leva a uma alteração interna (choro, grito, por exemplo), que outra pessoa se dá conta do estado da criança, traduzindo o grito como um sinal de estado de carência. Escreve Freud (1895): "esta via de eliminação passa a ter, assim, a função secundária, da mais alta importância, de comunicação e o desamparo inicial do ser humano é a fonte originária de todos os motivos morais." (p.32).

Os cuidados que ocorrem nesse estado de desamparo inicial são acompanhados pela fala de quem cuida; isto é, envolvem, além das funções de contato (toque, cheiro, etc.), a palavra ouvida. É assim que se pode entender como as noções de ação e de representação de palavra têm papel essencial no Projeto. As palavras (ou a comunicação pré-verbal) adquirem significação porque têm efeito na ação do outro.

Ou seja, desde o início da produção teórica freudiana o psiquismo foi sempre investigado no campo da relação dialógica com o outro, onde está implícito um abandono do método de introspecção, característico da psicologia clássica. Esse deslocamento metodológico, onde "... o psiquismo foi deslocado do seu isolamento absoluto e do seu ensimesmamento radical ..." expressaria, como bem assinala Birman (1991, p.17), a influência teórica de Charcot, Bernheim e Breuer sobre Freud. A estes, ao que tudo indica, devemos acrescentar o "método psicológico" utilizado por Mill, em contraponto ao "método introspectivo" de Sir William Hamilton, cuja filosofia é examinada num dos textos de Mill nomeados por Freud.

Aqui cabe apresentar as quatro teses de Mill que estariam subjacentes às concepções apresentadas no Projeto:

1. "... a mente humana é capaz de 'expectativa'. Em outras palavras (...) após termos sensações reais, somos capazes de formar a concepção de sensações possíveis ..." (Mill, 1974a, p.258).

Essa expectativa existe a partir do movimento associativo, desde que "perceber é associar imediatamente", como escreve Freud, o que quer dizer que a percepção tem sempre um caráter hipotético, nunca podendo ser "pura" ou "absoluta", se é que dá para dizer assim.

O método indutivo proposto é investigar do particular, para o particular, procedimento facilmente detectável no percurso utilizado por Freud na apresentação da proton pseudos histérica, quando apresenta a psicopatologia da histeria. Trata-se de percorrer as cadeias associativas, investigando esse código privado (que se manifesta na seqüência de derivações falsas a partir de uma premissa falsa), que não é reconhecido, nem pela comunidade dos falantes, nem pelo próprio sujeito. Até que a compulsão histérica possa ser solucionada se for esclarecida, isto é, tornar-se compreensível (Freud, 1895, p.60). O sintoma é uma troca de nomes e solucioná-lo significa percorrer o caminho inverso daquele de sua formação, para poder colocar os nomes nos "devidos lugares", isto é, associarem-se ao objeto adequado.

O caráter de expectativa está bem explicitado no Projeto, onde o pensar se volta ao reconhecimento do objeto, ou seja, "... a meta e final de todos os processos de pensar é levar a um estado de identidade ..." (Freud, 1895, p.45). Que não é a identidade alucinatória, promovida pelo processo primário, mas resulta de uma dessemelhança (ou semelhança parcial) entre uma ocupação de uma lembrança e a ocupação perceptiva correspondente a ela. Essa dessemelhança provoca uma inibição por parte do eu e possibilita o trabalho de pensar. Escreve Freud (1895):

O julgar, mais tarde um meio para reconhecer o objeto que talvez tenha importância prática, é, assim originariamente um processo associativo entre ocupações vindas do exterior e ocupações provindas do próprio corpo, uma identificação entre notícias ou ocupações de f e de dentro. (p.47).

2. Leis de "Associação de idéias" (Mill, 1974a, p.258-9).

a. semelhança: "fenômenos similares tendem a ser pensados juntos". Talvez aqui possa se inserir a referência que faz Freud, quando o objeto em questão é um outro ser humano:

... através do próximo, o homem aprende a reconhecer. Então os complexos de percepção que decorrem deste próximo serão em parte novos e incomparáveis, suas feições no domínio visual, mas outras percepções visuais, por exemplo os movimentos de sua mão, coincidirão no sujeito com a recordação de impressões visuais próprias, bastante semelhantes do próprio corpo que estão associadas com recordações de movimentos vividos por ele mesmo. (Freud, 1895, p.45).

b. contigüidade, que é de duas espécies: simultaneidade e sucessão imediata. É fácil detectar o primeiro caso na operação do processo primário e o segundo no processo secundário.

c. "associações produzidas por contigüidade tornam-se mais exatas e rápidas por repetição."

As duas vivências matrizes do Projeto, de satisfação e de dor, são associações que produzem uma compulsão à repetição, isto é, se não houver inibição por parte do eu, a partir da vivência de satisfação é criada uma expectativa que tudo é objeto de desejo e, a partir da vivência de dor, que nada é objeto hostil.

d. "Quando uma associação adquire este caráter de inseparabilidade - quando o vínculo entre as duas idéias foi assim firmemente fixado - (...) coisas que somos incapazes de conceber separadamente parecem incapazes de existir separadamente, e a crença que temos em sua coexistência, apesar de ser realmente um produto da experiência, parece intuitiva.

" Ou seja, é possível a crença num mundo exterior, não só através das sensações que ocorrem no presente, mas também pela variedade de possibilidades de sensações que significam previsão ou expectativa, a partir das quais as noções de mundo exterior e matéria são entendidas. É assim que a matéria "... pode ser definida como uma possibilidade permanente de sensação." (Mill, 1974a, p.263). E essas possibilidades de sensação, que se produzem através da experiência passada apresentam-se através de grupos de sensações, delineando os objetos do mundo exterior (p.260).

Se o objetivo de todo pensar é levar a um estado de identidade, a argumentação do Projeto é articulada para mostrar como cessa a alucinação, isto é, em que momento se opera uma inibição por parte do eu. Freud então não se refere à existência do objeto, mas à sua crença, o que supõe não ser possível emitir juízos de certeza ou prova em relação a ele. Isso é retirado, ao que tudo indica, diretamente de Mill e poderia revelar a posição oscilante de ambos entre um realismo e um idealismo. Escreve Freud (1895): "Se, após a conclusão do ato de pensar, chegar o signo de realidade para a percepção, obtém-se o juízo de realidade para a percepção, a crença, e alcança-se a meta da totalidade do trabalho." (p.46).

O objetivo maior do pensamento é atingir uma crença do mundo externo. É coerente, portanto, que o que w fornece à y é uma indicação da realidade, através de um signo de realidade. Disso se entende que o princípio de realidade refere-se não ao mundo exterior enquanto tal, mas aos signos que o indicam. É possível dizer então, que "o que delimita o aparelho psíquico é sua função de produtor de signos os quais, em última instância, estão submetidos à função estruturante da linguagem." (Garcia-Roza, 1991, p.154).

Como o objeto é um complexo de representações, e "perceber é associar imediatamente", fica assinalado que a percepção é função da memória e esse ponto de vista vai ser posteriormente mais elaborado. Na famosa carta de Freud a Fliess, de 6/12/1896, que pode ser considerada uma herdeira do Projeto e uma precursora do esquema do cap. VII da Interpretação dos Sonhos, está escrito:

... o que há de essencialmente novo em minha teoria é a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, e sim ao longo de diversas vezes, e que é registrada em vários tipos de indicações. (Freud, 1896, p.208).

Freud sempre se voltou a conciliar percepção e memória na elaboração de seu aparelho psíquico. No Projeto, os neurônios f (permeáveis), os y (impermeáveis) e a noção de barreira de contato tentaram dar conta disso. Mas é incontestável que a memória tem um papel central, podendo-se dizer que o aparelho psíquico freudiano é basicamente um aparelho de memória.7 7 Devendo ser lembrado que priorizar a memória é também uma característica da psicologia de Mill (Gabbi Jr., 1995, p.119). No esquema posterior, de 1900, a consciência, situada num dos extremos do eixo - que não é à toa deve ser plano - percebe algo que já foi organizado pelos três sistemas intermediários (Freud, 1900b, p.534). Fica evidente ser a consciência função da memória e não da percepção, sendo o movimento sempre no sentido de reconhecimento do objeto. De modo que, não só é a pulsão que o constitui, como o objeto, como tanto insistiu Freud, é o que a pulsão tem de mais inespecífico. O essencial do aparelho psíquico, onde se alojam as redes de representações, situa-se, portanto, entre os extremos do eixo, isto é, entre a percepção e a consciência.

Voltemos ao Projeto. Mill, como Freud, não aceita a idéia de coisa em si, mas a investe de causalidade. É assim que a representação de coisa tem como propriedades:

1. representa uma possibilidade geral de sensação, portanto não pode apresentar nenhuma propriedade qualitativa, sensorial. Como não há conexão entre w (consciência) e y do núcleo, então não é possível que à coisa se atribuam qualidades sensoriais via w. Escreve Freud (1895): "o que nós chamamos de coisas são restos que se subtraem à apreciação." (p.47).

2. desempenham um papel causal. Isto é, a causa da presença da representação de objeto no manto é a ocupação em y nuclear.

3. remete-se a um objeto externo. Nesse caso, a representação de coisa pode ter o papel de referente.

O sintoma é entendido como um símbolo que substitui outra representação que não pode ter acesso à consciência, e que se desfaz quando é esclarecido, isto é, quando é identificado a que ele se remete. Isso quer dizer que o que está no papel de causa é, simultaneamente, aquilo que na formação do símbolo é a sua referência.

Como o objeto é entendido como uma possibilidade permanente de sensações, é a palavra que dá a garantia que estou diante do mesmo objeto. No caso do sintoma, houve uma ruptura entre o nome e uma classe de objetos, que são os objetos sexuais, desde que, para Mill (1974b) "... os nomes (são) ... os nomes das próprias coisas e não meramente de nossas idéias das coisas." (p.89).

É fundamental destacar que a representação de coisa é capaz de predicar, sem poder ser predicada, isto é, faz parte do que Mill denomina de nomes não-conotativos. Apenas os nomes de objetos que não conotam nada são denominados nomes próprios: "... e estes não tem, a rigor, nenhuma significação." (Mill, 1974b, p.17). Estas concepções dão suporte à teoria de significação de Freud, na qual os nomes são tomados como nomes próprios que, à revelia do sujeito, passam a adquirir a propriedade de portar atributos. Isto é, no sintoma, o nome deixa de apontar para o objeto e passa a apontar para uma propriedade.

3. Resta examinarmos a noção de representação em O Inconsciente (Freud, 1915a). Aqui, a representação de objeto passa a ter como componentes a representação de coisa e a representação de palavra. A primeira é a representação de objeto propriamente dita e, a outra, refere-se à palavra ouvida. Essa nova construção pretende tratar da questão de como se transpõem as representações do sistema Icc ao Prcc/Cc. O inconsciente - substantivado como um sistema com leis próprias - tem uma gramática particular que deve ser traduzida para a do Prcc-Cc para que algo emerja à consciência. É crucial poder resolver, teoricamente, como algo se transpõe de um para outro sistema, pois o método analítico se propõe como caminho para tal. Em O Inconsciente, como sabemos, Freud (1915a) apresenta, inicialmente, duas hipóteses possíveis relativas a essa transposição. Na hipótese tópica, haveria duas transcrições do mesmo conteúdo em lugares diferentes, uma no Icc, outra no Cc (Prcc); na hipótese funcional, haveria uma mudança de estado, através das magnitudes em jogo, que ocorreria sobre o mesmo material e na mesma localidade. A hipótese escolhida propõe que "... a representação consciente abarca a representação de coisa mais a correspondente representação de palavra, e a inconsciente é somente a representação de coisa." (Freud, 1915a, p.198). Deve ser acrescentado que "... o enlace com representações de palavras não coincide entretanto com o tornar-se consciente, mas sim que meramente brinda a possibilidade disso; portanto, não caracteriza outro sistema senão o do Prcc." (p.199). Está transparente que no aparelho psíquico freudiano a linguagem habita o sistema Prcc/Cc.

II. Uma teoria da referência, a nomeação da pulsão de morte e uma leitura possível da inovação lacaniana

O que se pode entender é que o anseio cientificista de Freud leva-o a formular uma teoria sobre os atos irracionais que se funda numa teoria da referência, e daí seu recurso de se apropriar das questões conforme formuladas por Mill. Sua teoria da significação vai, na trilha de dar às palavras o papel de nomes próprios e buscar uma referência última, recuando, do abandono da cena de sedução, às noções de fantasia, sexualidade infantil e Complexo de Édipo. Ancorando-se, finalmente, na pré-história, em Totem e Tabu (Gabbi Jr., 1994).

Esse ponto de partida levou-o a instrumentalizar-se de uma noção de verdade enquanto correspondência - daí a busca da referência externa. Embora o próprio corpo teórico da produção freudiana tivesse condições de lhe fornecer a apropriação de uma noção de verdade enquanto consistência interna.

Teve a chance de seguir por esse caminho na investigação das parafasias, quando então as redefiniu como um distúrbio onde as palavras apropriadas são substituídas por palavras inapropriadas que conservam, entretanto, com as primeiras, alguma espécie de relação (Freud, 1891, p.35). O que significa dizer que a substituição é sempre motivada. Ou seja, a parafasia se aproxima muito do que mais tarde vai corresponder à descrição dos atos falhos (o ato de fala falhou, à maneira de um ato falho). O rumo teria sido outro, portanto, se o sintoma histérico não fosse tomado como uma afasia assimbólica (onde o vínculo entre a representação de palavra e representação do objeto está perturbado) - que é o que Freud propôs - mas sim como uma afasia verbal, onde estão perturbadas as associações entre os elementos da representação de palavra.

A linha dupla que une a imagem sonora da representação de palavra com a imagem visual da representação do objeto, no esquema psicológico das Afasias (Freud, 1891, p.71), parece ter sido uma espécie de fio de aço indestrutível que Freud jamais deixou que se destruísse. Desde que a palavra é a garantia de existência (ou melhor, da crença - perdurabilidade) do objeto, o método de trabalho na clínica procurará buscar o referencial externo que esclareça os contra-sensos emitidos pelo sujeito.

Entretanto, já em 1900, Freud nos adverte que, mesmo nos sonhos nos quais se exerceu um bom trabalho de interpretação, é preciso reconhecer um ponto obscuro, onde há um conjunto de pensamentos que não se deixa desenovelar, e que também não contribui ao conteúdo do sonho: "Então esse é o umbigo do sonho, o lugar em que ele se assenta no desconhecido", escreve na frase tão famosa (1900b, p.519). Reafirmando o brilhante cientista, em 1925, incisivamente e em tom conformado, a respeito da incompletude de uma interpretação: "... não temos mais remédio senão nos familiarizarmos com esta polissemia dos sonhos." (p.131, grifo meu). Fica evidente que sempre conviveu com a busca do referente uma outra teoria - a da plasticidade/polissemia das palavras - e foi sob esse outro ângulo que é possível dizer que se manteve o interesse pela fertilidade e originalidade da construção teórica freudiana.

Neste ponto, articular a inovação lacaniana e Além do Princípio do Prazer, isto é, a "ruptura" de 1920, com as concepções de J. S. Mill, pode ser um caminho fértil nesse exercício de investigação. É possível entender que a proposta de Lacan foi, entre outras coisas, no sentido de desenganchar Freud dessa teoria associacionista do século XIX. Supondo seu famoso "retorno", um deslocamento de ponto de vista, tomando a primeira tópica com a perspectiva das lentes fornecidas pela segunda e montando uma espécie de "cruzada" em defesa da originalidade freudiana. Nesse sentido, seu movimento seria uma tentativa de afastar o freudismo dos impasses promovidos pela utilização dessas teorias psicológicas.

O que interessa é tentar perseguir os trajetos de Freud e Lacan, na sua busca da concretização de um ideal de cientificidade, que estava subjacente à produção teórica de ambos. Nos vários momentos que podem ser destacados no percurso teórico lacaniano, a construção de instrumentos mais sofisticados, a cada passo, trazia subjacente a mesma questão: como resolver um problema que permeou o pensamento freudiano, expressando-se com clareza na segunda tópica - o problema da referência. Isto é, como livrar a psicanálise da busca de um referente último e, portanto, da necessidade de que as palavras se remetam a objetos e a estados de coisa.

Para que Freud abandonasse a idéia de referência seria necessário que abandonasse também a idéia de gênese do sintoma, mas parece que Freud nunca abriu mão disso completamente. Daí o grande problema com a pulsão de morte, vinte e cinco anos depois do Projeto: haveria algo de irredutivelmente irracional nos atos racionais, que não é totalmente do domínio da intencionalidade. Isso significaria, em última instância, que não haveria cura e o sintoma seria irremovível. Ou seja, seria possível chegar ao originário do sintoma mas não ao originário da fantasia originária pois, nesse caso, estaríamos tendo acesso a ver (a cena) como a fantasia se forma. Lacan tomará a fantasia como pressuposto da análise e não como objeto dela, na medida em que falará de estruturas a priori, anteriores à condição social, e inerentes ao humano. Portanto, inatingíveis, embora matrizes geradoras das regras de constituição que se fazem a partir delas. Aqui se introduziria a abordagem de Austin (1990), que apresenta convergência com o pensamento lacaniano, na medida em que possibilita uma teoria lingüística que não obriga a buscar a referência, ocupando-se dos efeitos da fala no outro, isto é, de sua propriedade contextual. Só seres capazes de racionalidade são capazes de atos imorais e irracionais, e isso só é possível para seres dotados de linguagem (mentir, fingir, dizer-se o que não se quer dizer, dizer e não se compreender dizendo). É a linguagem, característica do humano, que descortina a possibilidade de não se agir/reagir mecanicamente a partir de estímulos discriminativos e, portanto, de se expressar a capacidade de intencionalidade.

Voltemos a Freud. Com a enunciação da pulsão de morte, a construção teórica freudiana sofre um abalo constrangedor em um de seus pilares básicos: a noção de representação. Desde que, nesse ponto, circuscreve-se o campo do não-representável. A busca do referente, que pretendia promover uma garantia de cientificidade, culminou no auge do impasse, isto é, não se pode mais dizer que o nome remete a objetos e a estados de coisa. A pretensão à ciência, pelo menos no sentido em que a entendia Freud, é posta em questão.

A interpretação, tão fundamental até 1920, pois é ela que dá condições de se nomear o que está sendo nomeado equivocadamente (isto é, os nomes estão associados a atributos incorretos), deve se fazer acompanhar do procedimento de construção, pois irrompe o campo do inomeável. Agora, a compulsão a repetir, que não é intencional - colocando a questão da responsabilidade do sujeito pelo seu sintoma, ou, como diria Lacan, pelo seu desejo - apodera-se das representações, mantendo-se ela própria como irrepresentável. A angústia, que operaria da mesma forma, foi um problema com o qual Freud se deparou desde o início. Sua tentativa de apresentar uma solução, em Inibição, Sintoma e Angústia (1926), já está dentro do reinado da segunda tópica e faz então sentido que a angústia, de produção marginal, passe a se situar como verdadeiro paradigma da teoria. Escreve Freud, em 1920: "o que resta é o bastante para justificar a hipótese da compulsão de repetição, e esta nos aparece como mais originária, mais elementar, mais pulsional8 7 Devendo ser lembrado que priorizar a memória é também uma característica da psicologia de Mill (Gabbi Jr., 1995, p.119). que o princípio de prazer que ela destrona." (p.23).

Ou seja, a compulsão a repetir é mais fundamental que a pulsão. O que se trata aqui é - questão nuclear que ocupou Freud desde cedo (escolha da neurose, o sujeito é responsável pelos seus sonhos) - como fazer com a intenção, se o princípio do determinismo está subjacente ao trabalho o tempo todo? Para Lacan, estar nele inserido não o conduz, como aponta Ogilvie. (1991): " ... a considerar como sem valor ou sem realidade aquilo que parece lhe escapar, mas, ao contrário, a buscar o tipo de determinismo adaptado aquilo que se apresenta, justamente, como fugaz." (p.19).

Se tanto Freud como Lacan estavam perseguindo a determinação própria do psiquismo, a originalidade desse último repousaria em sua tentativa de tratar essa questão pela ótica das questões filosóficas que ela suscita, o que recorta sua obra como simultaneamente "técnica" e "filosófica". O alcance dessa originalidade, continua este autor, é que sua atitude "epistemológica" leva-o a um questionamento sobre as condições de possibilidade de sua própria produção conceitual. "Ele começa por observar que o objeto que procura já foi atingido pela interdição e suscitou uma oposição entre duas correntes de pensamento." (Ogilvie, 1991, p.31).

Se as intenções conscientes tem sido alvo de crítica dos "físicos" e moralistas, - afirma Lacan, em 1932, em sua Tese de Medicina - dado seu caráter ilusório, daí a dúvida da ciência quanto ao sentido dos fenômenos psicológicos, por outro lado, "... por mais ilusório que seja, esse sentido, do mesmo modo que qualquer fenômeno, tem sua lei." (Lacan, 1987, p.248).9 7 Devendo ser lembrado que priorizar a memória é também uma característica da psicologia de Mill (Gabbi Jr., 1995, p.119). Continua Lacan:

O mérito dessa nova disciplina, que é a psicanálise, é nos ter ensinado a conhecer essas leis, a saber: aquelas que definem a relação entre o sentido subjetivo de um fenômeno de consciência e o fenômeno objetivo a que corresponde ... (p.248).

Aqui está recortado, claramente, um ponto de vista, uma posição que é ainda melhor compreendida com o comentário que faz Ogilvie (1991, p.32) de um texto de Foucault, extremamente esclarecedor para os embates que suscitam o texto freudiano, permitindo localizar onde se assentaria a leitura inovadora proposta por Lacan. Escreve Foucault, em 1984, num artigo dedicado à obra de G. Cauguilhem:

Sem desconhecer as clivagens que durante esses últimos anos e desde o fim da guerra opuseram marxistas e não-marxistas, freudianos e não-freudianos, especialistas de uma disciplina e filósofos, universitários e não-universitários, teóricos e políticos, parece-me que se poderia encontrar uma outra linha divisória que atravessa todas essas oposições. É aquela que separa uma filosofia da experiência, do sentido, do sujeito, de uma filosofia do saber, da racionalidade e do conceito. Por um lado, uma filiação que é a de Sartre e Merleau-Ponty; por outro lado, aquela que é a de Cavailles, de Bachelard, de Koyré e de Canguilhem. Sem dúvida, essa clivagem vem de longe e poderíamos fazer remontar seus traços através do século XIX (...). E em todo caso, estava a tal ponto constituída no século XX, que foi através dela que a fenomenologia foi recebida na França. (Foucault, 1985, p.4).

Para Ogilvie (1991), Foucault, sem dúvida, teria colocado a si próprio e a Lacan do lado das filosofias do conceito. Entretanto, este último ocupa uma posição bastante peculiar. Já na Tese não se trata de uma posição racionalista alheia às questões relativas às filosofias da experiência, do sentido e do sujeito, mas sim de um ponto de vista que as recorta como objeto de investigação. Essa posição não tem nada de conciliatória; ao contrário, uma vez que essa oposição é considerada bem delimitada, Lacan "faz de uma o campo de investigação privilegiado da outra." (p.33). Na medida em que faz uma escolha, desde que se nomeia materialista e determinista, opera uma inversão: acompanha essa escolha pela temática e atitudes articuladas ao lado oposto. De tal forma que se pode dizer que, já no texto de 1932, está procurando um "saber", uma "racionalidade" da "experiência, do sentido e do sujeito". Desse modo, Lacan teve o projeto e o mérito de estabelecer um diálogo entre tradições filosóficas distintas e opostas. É possível compreender, daí sua aproximação à fenomenologia e, também, explicar, objetivo de qualquer ciência dita positiva.

Bem, voltemos ao Projeto. Lá está escrito: "a memória se apresenta, através das diferenças nas facilitações entre os neurônios y." (Freud, 1895, p.14). Como o aparelho psíquico freudiano é, basicamente, um aparelho de memória, essa definição é fundamental. É interessante que não só Lacan aloja nessa noção de facilitação a originalidade do Projeto, como aproxima esse trilhamento da "articulação significante", como enfatiza Garcia-Roza (1991, p.137).

A facilitação não deve ser concebida, assinala ele, como efeito do hábito, "ela é invocada como prazer da facilidade e será retomada como prazer da repetição." (Lacan, 1988, p.272). De modo que, à luz da ótica lacaniana, a representação de palavra (fala) corresponderia ao eixo do simbólico (Uber-ich), a representação de objeto (ich) corresponderia ao imaginário (a) e a representação de coisa (A) corresponderia ao real (Es).

Uma vez que o inconsciente freudiano, considerado biológico por Lacan, vai ser substituído por um inconsciente lingüístico, correspondendo, portanto, a um conjunto de relações, a questão da referência se dilui por princípio. De certa forma, Lacan vai seguir o caminho que poderia ter sido trilhado por Freud, caso ele tivesse optado por entender o sintoma histérico como correspondente a uma afasia verbal. Em outras palavras, entendo que é como se Lacan fizesse Freud retornar àquele ponto de opção no encaminhamento dado ao entendimento das parafasias.

Como, em Freud, o inconsciente aparece como um substantivo (é um sistema regido por leis próprias), o trabalho de investigação vai ser inspirado por essa busca de "substantivação": Escreve Freud (1891) em Afasias: "a palavra adquire sua referência (Bedeutung) através da ligação com a 'representação de objeto', pelo menos, quando limitamos nossas considerações aos substantivos." (p.70).

E espero ter deixado claro, anteriormente, que o procedimento do singular para o singular, que dirige a análise dos símbolos privados, volta-se sobre os substantivos.

Ao contrário, se o inconsciente lacaniano é tomado como um conjunto de relações, não representa coisas e é possível então, uma ciência do inconsciente, porque é possível uma ciência da linguagem. A diferença entre a clínica freudiana e a lacaniana se depositaria, portanto, nessas diferentes concepções de inconsciente (Calligaris, 1991, p.169). Sendo a psicanálise uma Ética, não se trata de conhecer um objeto, mas de produzi-lo a partir dos princípios de ação fornecidos pela teoria, os quais devem dar condição para que o sujeito do inconsciente seja produzido. Escreve Lacan (1979): "O inconsciente (...) se manifesta para nós como algo que fica em espera na área, eu diria algo de não nascido." (p.28). Ou seja, "o inconsciente não é nem ser nem não-ser, mas é algo de não-realizado." (p.34).

Trata-se, então de separar verdade e saber, pois nessa concepção a verdade não é suscetível de transformar-se em um saber. Tentar incessantemente transformar-se em um saber é um efeito da própria neurose, na medida em que em sua constituição está implícito um pai como sujeito de um saber. Se o inconsciente é definido radicalmente como algo a ser realizado, fica esclarecido, de forma marcante, que o "... estatuto ôntico do inconsciente é frágil." (Calligaris, 1991, p.181). Para Lacan, ao que tudo indica, a compulsão a repetir é um dado constituinte da subjetividade. De forma que, por princípio, não cria constrangimentos para a teoria, como no caso de Freud.

A partir do exposto, não é à toa que é possível estabelecer relações entre o Projeto e a obra de 1920. Já vimos que o que w fornece à y não é a realidade, ela própria, mas signos de realidade. O princípio de realidade se funda nas informações emitidas por w, de quem depende a percepção-consciência. Como Freud nos diz que o princípio de prazer se exerce sobre a percepção, perseguindo uma identidade perceptiva, a questão é: como distinguir quando esta se expressa de forma alucinatória ou real? Lacan chega, como esclarece Garcia-Roza (1991, p.166) a uma conclusão paradoxal ou surpreendente, mas esclarecedora: a característica fundamental do aparelho psíquico é que ele é montado, não para satisfazer a necessidade, mas sim para aluciná-la. Assim, enquanto meio de correção, o princípio de realidade não tem por função corrigir o mundo interno em relação ao mundo externo, mas propõe-se a corrigir o mundo interno em relação a ele próprio (Lacan, 1988, p.43-4).

Isso não se conciliaria com a proposta de Freud de que deve haver algo, no processo de subjetivação, que permita distinguir percepção e alucinação. É preciso que algo interno à subjetividade aponte para a realidade externa como índice dela. É ele que dá substrato para a crença. E é aqui que se introduziria a coisa (Das Ding) que, enquanto vazio, enquanto inomeável, inexpugnável, funcionaria como índice de exterioridade. "O que nós chamamos de coisas são restos que se subtraem à apreciação." (Freud, 1895, p.47) e, justo por permanecerem estranhas ou isoladas na obscuridade subjetiva, são pura referência, índice do primeiro exterior. Aí está o real lacaniano.

Os signos de qualidade funcionam como outro índice de exterioridade, e como signos da realidade objetiva, carregam consigo a ambigüidade própria a todos os signos, isto é, o engano. Que não é entendido na psicanálise como um desvio incômodo, mas como o próprio âmago de sua prática.

No "estádio do espelho", onde Lacan (1966) define claramente a diferença entre o moi e o je, é recortado o verdadeiro objeto do trabalho analítico. Se a falta de maturação biológica do indivíduo representa uma exigência que sua relação com o meio seja mediada por uma forma (Gestalt), uma imagem, através da qual prenuncia/entrevê/antevê o seu futuro, o indivíduo construirá uma miragem - o moi - um eu ideal, em cuja direção se movimentará continuamente. O moi, cuja origem se funda na percepção, não deve ser confundido com o je - produto da linguagem - uma estrutura organizadora do sujeito em cuja direção seu moi se movimentará, assintoticamente, sem, no entanto, jamais coincidir totalmente com ela. É essa estrutura organizadora - o je - da ordem da linguagem e que, como tal é inatingível, que é o objeto do trabalho analítico.

Assim, quando Lacan, paradoxalmente, entende o princípio de realidade como uma correção do mundo interno em relação a ele próprio, está em jogo esse movimento incessante do moi em direção ao je, sem jamais atingi-lo e é esse o motor do funcionamento do psiquismo. O je permite, portanto, "corrigir" o moi.

Se com o "estádio do espelho" é apresentada uma estrutura-matriz do processo de constituição do sujeito, tentando superar certos impasses do discurso freudiano - isto é, há universais anteriores à condição social, próprios da condição humana - foi também, como sabemos, um tiro certeiro na psicanálise americana. Crítica que vai tomar a dimensão de uma espécie de "declaração de princípios", que inspira o "Discurso de Roma", de 1953, onde a frase-chave de sua introdução sintetiza o espírito que norteia o texto: "Para ascender às causas dessa deterioração do discurso analítico, é legítimo aplicar o método psicanalítico à coletividade que o suporta." (Lacan, 1978a, p.109). Ou seja, apesar de que o desejo do sujeito se faz a partir do desejo do outro, há que se chegar o momento onde essa diferença seja estabelecida, condição de des-alienação. Portanto, a análise não poderá ter como objeto o moi , que é uma formação sintomática. Escreve Lacan (1978a): "Tal é o terror que se apodera do homem ao descobrir a figura de seu poder que dela se desvia na ação mesma que é a sua quando essa ação a mostra desnuda. É o caso da psicanálise." (p.106).

Em suma, importa delinear para Lacan qual a originalidade da descoberta freudiana, que desvios se promoveram a partir dela e, principalmente, qual relação entre um e outro. Podendo então ser afirmado que os desvios são efeito da resistência do objeto, tanto na teoria como na técnica.

Portanto, o que está em jogo é uma teoria da constituição dos objetos, que no lacanismo é a teoria do simbólico como costura entre o real e o imaginário. O problema do dualismo substancialista é o objetivismo, que comete o erro de identificar realidade e objetividade, como escreve Prado Jr. (1991, p.56). Esse antiobjetivismo está na base do antigeneticismo de Lacan, o que o faz criticar quaisquer teorias psicológicas do desenvolvimento, tentando remover, em Freud, uma pré-determinação, uma espécie de teleologia voltada à função genital. Deve ser enfatizado, continua Prado Jr., que esse antiobjetivismo em Lacan é sempre um anti-solipsismo:

Um anti-solipsismo paradoxal, já que se justifica sobre o fundo da introdução do conceito do narcisismo como chave da metapsicologia (...). Alter e Ipse articulam-se necessariamente na idéia de narcisismo, e a constituição centrípeta do sujeito, através da intervenção da alteridade, é condição da constituição do objeto. (p.56).

Aqui se insere a dialética hegeliana do senhor e do escravo, onde o que está em jogo é o reconhecimento intersubjetivo, condição da recognição do objeto (Arantes, 1992). Lacan, portanto, circunscreve, a constituição do objeto a uma teoria da intersubjetividade ou das posições do sujeito, como pontua Prado Jr.:

Para que haja relação de objeto, é necessário que haja anteriormente relação narcísica do eu ao outro. Ela é, aliás, a condição primordial de toda objetivação do mundo exterior - tanto da objetivação ingênua, espontânea, quanto da objetivação científica. (Lacan, 1978b, p.118 apud Prado Jr., 1991, p.57).

Portanto, a concepção lacaniana de constituição de objeto é pertinente tanto ao campo da experiência vivida, quanto à objetivação empreendida pelo conhecimento científico, onde os objetos da percepção comum são substituídos por construtos e modelos. O que quer dizer relativizar as posições de sujeito e objeto no âmbito da produção referente à ciência. Daí a crítica lacaniana às propostas da gênese das "relações de objeto", onde se supõe que de uma origem egocêntrica se encaminharia para uma relação madura e genital com o objeto. Esse movimento converge claramente na "psicologia do ego", alvo de críticas constantes de Lacan, pois aí está recortado o processo terapêutico como pretendendo promover uma adaptação ao real e à boa sexualidade nas palavras de Prado Jr., ou seja, uma concepção pedagógica do processo analítico (1991, p.59).

O que está em questão é um objeto definido como ser real ou em si, o que supõe uma ausência de uma fundamental teoria da constituição do objeto. Se o próprio de uma ciência é ter um objeto, como escreve Lacan (1979) no Seminário 11, este recorta para a psicanálise seu problema e seu equívoco, como esclarece Ogilvie (1991, p.39). Se o objeto da psicanálise é o sujeito, não se trata de um sujeito tomado como um objeto perante um observador neutro - desnível hierárquico, fator de "objetividade", que se pretende numa observação científica - mas sim, podendo se constituir como objeto dentro de uma relação, uma estrutura, da qual faz parte necessariamente o analista. É, pois, da tentação de escorregar para um cientificismo ou obscurantismo que Lacan está sistematicamente querendo livrar a descoberta freudiana. Dado que sua especificidade se assentaria na via sutil e estreita de uma espécie de corda bamba, tem o investigador necessariamente que se confrontar com equívocos e ambigüi-dades, que estão no cerne dessa disciplina e lhe são constitutivos.

Tanto em Freud como em Lacan, fica evidente que a relação indivíduo/meio não deve ser concebida como realidades externas que se chocam, mas um constrói o outro, isto é, o "interno/externo" é uma construção do aparelho psíquico. Daí não serem opostos, nem devam ser considerados dados a priori, constituindo modalidades de um mesmo princípio de objetivação.

Bem, se o moi se encaminha em direção a uma estrutura organizadora da constituição do sujeito, e que jamais será atingida pois é uma estrutura, o sentido da busca do referente último desvanece-se por princípio. Não há objeto em si, pois parece que a função do objeto (que em si não tem importância) é manter aceso o fogo do desejo. Lacan, portanto, leva às últimas conseqüências a nomeação da pulsão como "conceito fundamental". Se seu objeto é inespecífico, sendo mesmo indiferente, como assinala enfaticamente no Seminário 11, enuncia a melhor forma de apresentá-lo, afirmando que a "pulsão o contorna", devendo isso ser entendido, simultaneamente, como borda em torno do qual se dá a volta e volta de uma escamoteação (Lacan, 1979, p.159-60). Aí está a pulsão, essa força constante, para a qual não cabe, portanto, qualquer referencial no plano do que se entende por satisfação. A referência ao objeto da pulsão serve para se dizer que ele não existe, sendo, portanto, a constatação de uma impossibilidade, constitutiva do humano.

Como inserir a pulsão de morte neste contexto?

Para Freud, o inconsciente nada sabe sobre a morte. "A morte é um conceito abstrato de conteúdo negativo para o qual não se descobre nenhum correlato inconsciente", escreve em O Eu e o Isso (1923, p.58). O inconsciente ser atemporal articula-se, obviamente, a essa proposição.

Como esclarece Forrester (1990), Lacan "revê, refuta e amplia o tratamento da morte dado por Freud" (p.148), desde que esse conceito abstrato de conteúdo negativo é o símbolo, que define os limites do campo psicanalítico. E que "se manifesta primeiro como assassínio da coisa, e essa morte constitui no sujeito a eternização de seu desejo." (Lacan, 1978a, p.184). A coisidade da coisa se perde - desde que o que distingue o objeto é "um pacto de nomeação, onde dois sujeitos criam um mundo simbólico" (Forrester, 1990, p.148) - e, ao tomar-se uma coisa-em-relação-com-outras-coisas, inscreve-se na ordem simbólica.

É o simbólico que instaura a possibilidade da ausência, isto é, a simbolização da presença torna possível a ausência. Morte é o nome dado a essa ausência originária. Para Lacan, o espelho não se restringe a um momento do desenvolvimento, mas tem um papel exemplar, como matriz de um panorama geral, numa história negativa.

Tudo começa por uma perda e prossegue, ironicamente, num desenvolvimento que procura tampar por uma fuga para adiante (através da série das identificações secundárias e da proliferação da linguagem) essa "falta" que é, na realidade, a sua causa. (Ogilvie, 1991, p.118).

A desconstrução da idéia de intenção (a morte não tem intencionalidade nenhuma), leva a uma desconstrução do sujeito. Não cabe, portanto, falar de gênese: o eu é uma estrutura que tem origem, mas não tem gênese. Na linha do "eu é um outro", trazido pela função do espelho, o sujeito se identifica com aquilo que deseja ser e, portanto, ama, mas, por ser outro, ao mesmo tempo, odeia. Essa reciprocidade que caracteriza o imaginário, muda o desejo de morte por um medo do desejo de morte que vem do outro - medo da castração - morte, entretanto, desejada, já que ela é o próprio horizonte da "precipitação" do sujeito (Ogilvie, 1991, p.118).

Escreve Lacan (1966):

É neste nó que jaz, com efeito, a relação entre a imagem e a tendência suicida, que o mito de Narciso exprime essencialmente. Esta tendência suicida que representa, a nosso ver, aquilo que Freud buscou situar na sua metapsicologia, sob o nome de pulsão de morte, ou ainda de masoquismo primordial depende para nós do fato de que a morte do homem, bem antes de se refletir, de modo aliás sempre ambíguo, em seu pensamento, é por ele experimentada na fase de miséria original que ele vive, do trauma do nascimento até o fim dos seis primeiros meses de prematuração fisiológica, e que vai repercutir, em seguida, no trauma do desmame. (p.187).

Assim, o que para Freud é irrepresentável, pura negatividade, transforma-se em Lacan no promotor privilegiado de todas as representações, de todo significado. Permito-me citar um trecho de Forrester (1990), embora se trate, novamente, de uma citação longa, pois acho que ele sintetiza "o espírito da coisa" com eficiência:

Tão logo a morte esteja instalada em mim, em meus primórdios, tão logo eu me tenha tornado um ser dotado da fala, a conjurar a morte das coisas com o nascimento da linguagem, tão logo eu tenha um ego, efeito de uma identificação com um outro morto, sempre à disposição, tão logo eu seja um ser humano que reconhece a existência da vida após a morte (no dizer de Freud), que reconhece a existência de uma ordem simbólica (no dizer de Lacan), tão logo isso ocorra, posso considerar-me vivo. (p.149).

LOFFREDO, A.M. In Search of the Referent, Dealing With Dream's Polysemy: the question in Freud, Stuart Mill and Lacan. Psicologia USP, São Paulo, v.10, n.1, p.169-97, 1999.

Abstract: This paper examines the influence of John Stuart Mill's associationism in Freudian thought. Stablishing a dialogue of these conceptions with death instinct's definition, it presents a possible point of view for their articulation with the Lacanian inovation.

Index terms: Psychoanalysis. Psychoanalytic theory. Aphasia. Lacan, Jacques, 1901-1981. Freud, Sigmund, 1856-1939.

2 Daqui para frente, Afasias (Freud, 1891) e Projeto (Freud, 1895).

3 Daqui para frente, Um Exame (Mill, 1974a) e Sistema (Mill, 1974b).

5 Utilizo para besetzen a tradução ocupar, e não investir ou catexizar, segundo argumentação desenvolvida por Gabbi Jr. (1995, p.116).

6 Remeto o leitor para o Projeto, parte I, onde se apresentam as características dos sistemas neurônicos f,y (do núcleo e do manto) e w.

8 Nota do tradutor: triebhaf- o impulsivo, apaixonado, irreflexivo: o oposto da conduta racional e esclarecida (Freud, 1920, p.35).

9 Daqui para a frente, Tese.

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  • 1
    Agradeço ao Prof. Osmyr Faria Gabbi Jr., cujas aulas, no curso de especialização em "Fundamentos Filosóficos da Psicologia e da Psicanálise", no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, em 1994, estimularam-me a realizar esta investigação.
  • 4
    Para este autor, há dois fatores que dificultaram explorar essa articulação: do lado de Freud,
    Afasias só teve uma edição em alemão em 1891 e a tradução para o inglês, de 1953, não foi útil para um trabalho rigoroso. O
    Projeto - onde não é difícil ser detectado a influência do filósofo - desautorizado e não publicado por Freud, foi salvo de ser jogado no lixo pelo próprio, por sua discípula M. Bonaparte. Só apareceu, em alemão, em 1950. Quanto a Mill, das duas obras citadas por Freud em
    Afasias, uma delas só se tornou disponível para os pesquisadores na edição de 1979, publicada pela Universidade de Toronto. O segundo fator, segundo Gabbi Jr., poderia ser devido à influência da psicanálise francesa, notadamente a vertente lacaniana. Embora Lacan tenha estimulado o interesse pela Filosofia, o fez na direção de autores como Hegel e Heidegger, que tornavam sem sentido articulá-lo ao empirismo inglês. Escreve Gabbi Jr.(1995): "O naturalismo explícito da teoria psicanalítica transformou-se, assim, em um exemplo de leitura equivocada, ideológica, que não merecia ser feita, pois impediria um verdadeiro retorno a Freud." (p.107-8). Exemplo disso pode ser encontrado em Nassif (1977, p.376-7) que, com certeza comete um equívoco, ao voltar a filiação da noção de "representação de objeto" na direção de Brentano. Desautorizando a referência explícita, citada anteriormente, feita pelo próprio Freud a Mill.
  • 7
    Devendo ser lembrado que priorizar a memória é também uma característica da psicologia de Mill (Gabbi Jr., 1995, p.119).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 1999
    • Data do Fascículo
      1999
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