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O memorial de Sofia: leitura psicanalítica de um conto de Clarice Lispector

Memorial of Sofia: psychoanalytical reading of a story by Clarice Lispector

Resumos

Esse trabalho pretende analisar o conto "Os "Desastres de Sofia", de Clarice Lispector, utilizando-se o instrumental da Psicanálise e da Estilística. Considerando-se que se trata de uma narrativa confessional, em que sujeito e objeto se confundem, a leitura proposta mostra de que maneira memória e ficção estão interrelacionadas na construção do texto, trazendo o inconsciente como material privilegiado da criação literária. As personagens são entendidas no interior de um campo de projeções e identificações, resultando daí uma descoberta surpreendente: a protagonista adolescente se descobre escritora, à sua própria revelia, em meio aos jogos sádicos com o seu professor.

Literatura; Psicanálise; Inconsciente; Linguagem escrita; Escritores


This paper intends to analyse Clarice Lispector's short story "Os Desastres de Sofia", by using Psychoanalysis and Stylistics as resources. Considering it's a confessional narrative plot, in which subject and object intermingle, the suggested aproach shows how memory and ficction are interrelated in the construction of the text, bringing forth the unconscious as a privileged material for literary creation. The characteres are interpreted within a field of projections and identifications, from which comes up a surprising revelation: the teenage protagonist discovers herself as a writer to her own awe, within the sadistic games with her teacher.

Literature; Psychoanalysis; Unconscious; Written language; Writers


O MEMORIAL DE SOFIA: LEITURA PSICANALÍTICA DE UM CONTO DE CLARICE LISPECTOR1 1 Esse ensaio é um recorte de um capítulo da tese de doutoramento As metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector (FFLCH-USP), atualmente no prelo (EDUSP/FAPESP).

Yudith Rosenbaum

Teoria Literária e Literatura Comparada – FFLCH USP

Esse trabalho pretende analisar o conto "Os "Desastres de Sofia", de Clarice Lispector, utilizando-se o instrumental da Psicanálise e da Estilística. Considerando-se que se trata de uma narrativa confessional, em que sujeito e objeto se confundem, a leitura proposta mostra de que maneira memória e ficção estão interrelacionadas na construção do texto, trazendo o inconsciente como material privilegiado da criação literária. As personagens são entendidas no interior de um campo de projeções e identificações, resultando daí uma descoberta surpreendente: a protagonista adolescente se descobre escritora, à sua própria revelia, em meio aos jogos sádicos com o seu professor.

Descritores: Literatura (análise e crítica). Psicanálise. Inconsciente. Linguagem escrita. Escritores.

"O fato literário só vive de receptar em si uma parte de inconsciência, ou de inconsciente."

(Jean Bellemin-Noël)

O interesse de Freud pela literatura, expresso em vários ensaios que tomam o texto literário como campo de leitura psicanalítica, tem sido seguido por muitos analistas desde o advento da Psicanálise. Igualmente, muitos literatos e críticos da literatura recorrem à Psicanálise para subsidiar suas leituras, acreditando que a aventura do inconsciente não se dá só nos divãs clínicos, mas em toda esfera da linguagem humana. Se Freud privilegiou em seus estudos a relação entre a vida imaginária dos homens e os desejos inconscientes, nada mais legítimo do que os profissionais da área do discurso fazerem o mesmo com o sinal de mão invertido: buscar na teoria freudiana elementos que desvendem alguns dos múltiplos sentidos da obra literária.

Sendo essa a proposta do presente ensaio - analisar, tendo em vista alguns conceitos psicanalíticos, as representações da linguagem num conto de Clarice Lispector - alguns cuidados devem ser tomados.

O primeiro deles é não perder de vista que o objeto de análise é um texto e não um caso clínico; alguns sucessores de Freud, como os estudiosos da chamada Patografia, ou das abordagens psicobiográficas de forma geral, buscavam os elos entre vida e obra do escritor como modo de diagnosticá-lo. Embora tal abordagem possa levantar elementos importantes para o interesse clínico, não diz respeito ao trajeto estilístico-temático que pretendo fazer aqui. Quando Jones (1909) diagnostica o complexo de Édipo em Hamlet, ou quando Laforgue (1931) descreve a neurose de "fracasso" do poeta Baudelaire, estão contribuindo mais com a Psicanálise do que com a crítica literária, e nisso não há mal algum, desde que se esclareçam os propósitos.

O segundo alerta, conseqüência do primeiro, trata de não reduzir ao campo psicanalítico a riqueza de recursos estéticos que se estendem para além do olhar estritamente freudiano. O próprio Freud reconhecia que o segredo do "prazer preliminar" decorrente da obra de arte era inacessível à ciência, cabendo a outros saberes desvendá-lo.2 1 Esse ensaio é um recorte de um capítulo da tese de doutoramento As metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector (FFLCH-USP), atualmente no prelo (EDUSP/FAPESP). Sendo assim, o intuito desse artigo é partir da perspectiva da crítica literária – ainda que quem escreva seja também psicóloga – para surpreender relações de sentido passíveis de interpretação psicanalítica. A especificidade do objeto estético, espera-se, deve permanecer o foco de nosso estudo. Na acepção barthesiana, o texto literário é um "tecido de significantes", por onde circulam discursos de muitas áreas. Fazer dialogar a Literatura e a Psicanálise será, então, nosso caminho hermenêutico, uma vez que ambas as áreas atuam como Hermes, o deus mensageiro (daí a palavra grega "hermeneuein"), transportando mensagens e traduzindo um saber pela palavra. Analista e artista se encontram como intérpretes do inconsciente, propondo uma leitura do humano que transcende o fenômeno aparente. O crítico literário é o terceiro dessa cadeia simbólica, buscando na análise da obra um outro olhar desvendador. Embora hermenêutica, a tarefa aqui não é descobrir um latente, mas construir com o texto e as associações do leitor um campo, sempre infindável, de sentidos possíveis. Como diz Ricoeur (1977), "Onde quer que um homem sonhe, profetize ou poetize, outro se ergue para interpretar." (p.26).

Dito isso, vamos ao texto de Clarice Lispector, Os Desastres de Sofia, publicado em 1964 no volume de contos e crônicas A Legião Estrangeira. O texto é uma longa narrativa que busca decifrar sua anti-heróina, Sofia, revisitada na pré-adolescência em suas memórias de adulta. Eco perverso da homônima Sophie, de Les Malheurs de Sophie, obra escrita no século XIX pela Condessa de Ségur, a Sofia de Clarice Lispector narra-se a si mesma para, quem sabe, desvendar elos obscuros de sua história.

Os fatos do enredo são raros, dando logo a medida de que a autora/personagem está narrando muito mais um processo do que descrevendo acontecimentos. Não temos mais a narrativa mimética que "copiava" (ou acreditava copiar) a realidade empírica; trata-se, agora, de elevar ao "status" de tema literário a construção psíquica que cada sujeito faz de si mesmo, onde não há um tempo passado a ser fielmente descrito pelo narrador e o que se conta está repleto de dúvidas e hesitações.

Essa falência do narrador onisciente foi contextualizada de forma notável no ensaio Reflexões sobre o Romance Moderno, de Rosenfeld (1976). Mostrou-se ali como as vanguardas literárias do começo do século trataram de desmascarar o retratismo (erguido desde o Renascimento), denunciando o ilusionismo da perspectiva nas artes. A consciência humana apreende o universo dos fenômenos a partir de um viés inevitável e o que aparece não pode ser (como querem os racionalistas de todas as épocas) o absoluto da visão, mas sim a ilusão das mais variadas óticas ou pontos-de-vista. O que diz o ensaísta parece confirmar a visada psicanalítica, que não por acaso também é fruto do "zeitgeist"da virada do século: "Espaço, tempo e causalidade foram 'desmascarados' como meras aparências exteriores, como formas epidérmicas por meio das quais o senso comum procura impor uma ordem fictícia à realidade." (Rosenfeld, 1976, p.85).

Nesse mesmo sentido, a máxima de Lacan torna-se inevitável: a verdade é da ordem da ficção, ou seja, o que se crê verdadeiro participa do mundo imaginativo, processo construtivo inacabado por excelência. E a partir daí podemos abordar o presente conto - e toda a obra clariceana - como a construção fantasmática de um sujeito à procura de uma identidade perdida. A obsessão por atingir uma verdade ou totalidade sempre esquiva é a fissura irônica maior da obra de Clarice, que faz da linguagem fonte, objeto e alvo da pulsão criativa em constante ebulição. A ironia está em nomear o inominável, que só se dá a ver na distração do ser:

A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la - e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas - volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu. (Lispector, 1986, p.172).

Veremos como, no conto em questão, o imprevisto, o que escapa ao controle, o avesso do que se almeja, inaugura em Sofia um novo saber, cuja marca já habita a etimologia de seu nome ("sophia", do grego, "sabedoria").

O memorial de Sofia

O eu-narrador delimita a história por uma perspectiva memorialista e autobiográfica, ressignificando o passado. Este, por sua vez, só existe como tomada de sentido no presente. Desenvolve-se, no limite, uma teoria do memorialismo que mostra ser a realidade muito mais uma invenção da linguagem do que suporia a ciência estrita. Aliás, memória e invenção são irmãs desde Aristóteles com seu Tratado da Memória e da Reminiscência; as afinidades entre rememorar e imaginar serão, posteriormente, reelaboradas pela Psicanálise, sobretudo no texto "Lembranças encobridoras", que mostra as construções inusitadas que resultam dos encontros entre a rememoração e os desejos inconscientes. (Freud, 1899, p.333-54).

No conto, a visada rememorante recria, para a consciência adulta de Sofia, a passagem ritualística e iniciática de sua puberdade. O mergulho introspectivo se serve de uma estrutura em "mise-en-abîme", fazendo coexistirem vários planos ficcionais para um mesmo sujeito. Há vários níveis de relatos (e, portanto, de verdades) nesse texto: há o conto em que se conta uma história na qual a personagem reconta sua história onde escreve um conto sobre uma história narrada por outra personagem ... Em qual delas se dá o reconhecimento de si? O fio narrativo que tece o "mithos" desse conto transforma a matéria da memória em ficção. Afinal, Mnemozine, a deusa grega da memória, é mãe das musas inspiradoras do poeta. A autora-personagem se torna, assim, uma tecelã da palavra e irmã das mulheres fiandeiras míticas: "Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias." (Lispector, 1992, p.10).

Desde o primeiro parágrafo, a narradora apresenta a figura do professor como um sujeito rompido com sua história, alijado de forma abrupta de seu desejo: "Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de profissão, e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos dele." (Lispector, 1992, p.9).

Contrastando com esse passado misterioso (enigma que logo cativa Sofia), o parágrafo seguinte ao trecho citado é uma tentativa quase obsessiva de descrever a exótica aparência do professor, como se assim a narrativa pudesse penetrá-lo e compensar sua impotência para decifrá-lo em sua intimidade. As associações são bastante incomuns e as adjetivações reiteradas mostram essencialmente uma personagem calcada em antíteses e desmedidas:

O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó na garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com um fio de ouro encimando o nariz grosso e romano. (Lispector, 1992, p.9).

O professor é o próprio descompasso, descarregando nos alunos a sua frustração (passara pesadamente a ensinar). Essa desarmonia do mestre, sua esquisitice, seu lado obscuro, são o que parece atrair Sofia. Até aí nenhuma surpresa, uma vez que essa atração pelo mal-formado, pelo desconjuntado, pelo grotesco é traço profundo da obra clariceana e da arte moderna; ambas vêem na deformação recurso privilegiado para romper a moldura estética classicizante e lançar no leitor aquele "foco de perturbação" de linhagem vanguardista. É, por exemplo, o que a personagem de A Hora da Estrela, Macabéia, ("incompetente para a vida", como diz o narrador) encarna em toda a sua radicalidade.

As imagens antitéticas se multiplicam a partir desse início, contaminando todo o texto: "controlada impaciência, ferida triunfante, glória de martírio, assustadora esperança, escuríssima doçura." A figura do paradoxo aparece como a principal estruturante desse conto, ao mesmo tempo em que denuncia o paradoxal mundo interno das personagens, bem como o vínculo que as une. Na verdade, vemos que a própria narrativa é paradoxal, na medida em que vai se contradizendo inúmeras vezes, deixando claro que não há uma construção definitiva e que o ser está em perpétua transformação: "... eu estava sendo a prostituta e ele o santo. Não, talvez não seja isso." (p.10).

Logo nos damos conta de que o professor é o espelho virtual de Sofia: em retrato da época, ela se percebe uma fantasmagórica estranha, selvagem e suave como o seu duplo, o professor. Assim como ele parece escravizado pela árdua tarefa de educar, Sofia ver-se-á, ao final, escrava de sua escritura. Talvez seja mesmo por esse jogo especular, matizado pela ambivalência terrível de amor e ódio, que o texto vai sendo tomado pelas fantasias sádicas da aluna: "Contundida, eu me tornara o seu demônio e tormento, símbolo do inferno que devia ser para ele ensinar aquela turma risonha de desinteressados. Tornara-se um prazer já terrível o de não deixá-lo em paz." (Lispector, 1992, p.10).

O desconhecimento do mundo interno do professor e de sua misteriosa história, da qual Sofia está excluída, parece alavancar um complexo processo de construção de um objeto persecutório, nos moldes mesmo do objeto interno kleiniano. Através de mecanismos de projeção e introjeção, que marcam as primitivas relações objetais, a realidade é invadida pelas fantasias que deformam a experiência, seja idealizando-a, seja destruindo-a por representar uma ameaça ao sujeito. Daí entendermos o enredamento de Sofia em uma trama de perdição e salvação, cujo alvo parece ser destruir fora o que não está integrado dentro. "Liberta" de sua sombra, projetada maciçamente na figura do mestre, Sofia se sente atraída e irritada pelo homem com o qual atrelou-se por identificação projetiva.3 1 Esse ensaio é um recorte de um capítulo da tese de doutoramento As metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector (FFLCH-USP), atualmente no prelo (EDUSP/FAPESP). Ela precisa devassar a opacidade do outro para, assim, revelar o indivizível. O projeto de salvação do professor, que é antes salvar-se a si mesma, está fundado, paradoxalmente, nos mecanismos sádicos de provocação e desobediência, que a pequena Sofia exerce com maestria. A relação filial entre as personagens é logo explicada: "Não o amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto ..." (Lispector, 1992, p.9, grifos nossos).

Com sua volúpia salvadora, Sofia se inclina ao pai, objeto proibido e inalcançável, construindo uma compreensão sempre faltante e insuficiente sobre um sentido perdido no passado. Ao reeditar, assim, traços de uma triangulação edípica em que algo interpõe-se entre o sujeito desejante e seu objeto, Sofia insiste em penetrar no universo alheio, pois afinal "me tornara sua sedutora, dever que ninguém me impusera." (p.11). Ou ainda: "Era de se lamentar que tivesse caído em minhas mãos erradas a tarefa de salvá-lo pela tentação ...." (p.11). Qual uma intrusa, Sofia quer arrombar o segredo proibido do professor, destruir nele uma persona que intui e abomina. Por caminhos tortuosos, Sofia quer devassar a pompa do mestre, seu corpo contraído e apertado, seu autocontrole. Em suma: Sofia, cuja identidade negativa se afirma em todo conto ("viver errado me atraía"), ataca o estrito princípio de realidade do professor, opondo-lhe sua "vadiação" e seu gosto pelo prazer de violar o instituído. A marca transgressora de Joana, heroína do primeiro romance da autora, Perto do Coração Selvagem (Lispector, 1944), inscreve-se aqui novamente. A mola propulsora do conto está justamente na dinâmica relacional ditada pelo confronto, mobilizando o campo de forças no qual o enredo se constrói.

Ligações perigosas

Mais do que nunca, a vertente sádica desse conto aponta para as primeiras formulações de Freud sobre o assunto, quando então a pulsão de morte era concebida em associação à libido, desdobrando-se em sadismo e masoquismo.4 4 Sobre isso, ver Freud (1924). A articulação entre Eros e Thânatos movimenta o enredo do conto, definindo seu campo de forças. O triunfo de Sofia é ser castigada por sua vítima/algoz, atraindo sua atenção. Impedida de viver o gozo erótico, Sofia envereda rumo ao gozo do mal. Como quer Freud (1930) em Mal Estar na Civilização, o gozo é o mal, já que só é alcançado pela transgressão. Ou mais precisamente: "... ele (o gozo) será propriamente o gozo da transgressão." (Garcia-Roza, 1990, p.162). Sofia quer o Outro por trás da máscara, ela deseja fazê-lo conhecer um gozo desconhecido, quer flagrá-lo no seu crime de não ser ele mesmo, como de resto também o quer toda a escrita de Clarice em sua obsessão pelo desvelamento do que repousa sob a casca da superfície. "Ouvi com ar de desprezo, ostensivamente brincando com o lápis, como se quisesse deixar claro que suas histórias não me ludibriavam e que eu bem sabia quem ele era." (Lispector, 1992, p.14).

A polaridade salvação/destruição, ou seja, redimir o mal dentro de si mesmo destruindo-o no outro, domina toda a primeira parte do conto, até a notícia da morte do professor, quatro anos depois da tumultuada relação dos dois na escola. Aqui, o relato sofre um corte, o mesmo que é descrito pela personagem ao narrar o impacto sofrido, para depois retornar às memórias dos anos da escola. Vale a pena transcrever o modo como Sofia reage à notícia do desaparecimento do professor: "E branca, de olhos muito abertos, eu olhara a rua vertiginosa a meus pés. Minha compostura quebrada como a de uma boneca partida." (Lispector, 1992, p.13).

É notável como a autora retira os verbos da última frase, restando a imobilidade da cena, pura substancialidade paralisada pelo choque. A linguagem recria a vivência emocional nas escolhas sintáticas e semânticas, carnalizando o discurso com palavras que respiram o psiquismo das personagens.

Ao lado de todo jogo agressivo por onde caminha o aprendizado amoroso de Sofia, e que fomos acompanhando até agora, desvenda-se uma outra experiência: a gênese da mulher. Vejamos como são descritas as transformações corporais, índices torturantes de um turbulento crescimento: "... as pernas não combinavam com os olhos, e a boca era emocionada enquanto as mãos esgalhavam sujas – na minha pressa eu crescia sem saber para onde." (Lispector, 1992, p.13).

A própria auto-imagem ou representação do feminino que Sofia apresenta está marcada pela fragmentação metonímica, que denuncia uma totalidade problemática. Essa montagem disforme de si mesma deposita no professor a redenção de sua própria feminilidade. A missionária Sofia não busca apenas perverter a "boa ordem" do mestre; há também a missão de crescer e se tornar mulher, "suportando com desenvoltura as minhas pernas compridas e os sapatos sempre cambaios, humilhada por não ser uma flor ..." (Lispector, 1992, p.12).

Delineia-se a formação dolorida de um sujeito feminino, cujo suporte masculino no texto se desdobra para além do professor, trazendo para o interior da trama apenas personagens masculinos: o amiguinho que lhe noticia o óbito, os meninos que ela espera impacientemente no recreio, o caseiro ("amigo e protetor"), o pai que estava no trabalho e a marca da ausência da mãe, que "morrera há meses". A alteridade que engendra o feminino é o homem, afirmado na exclusividade das personagens do conto e projetado intensamente na figura salvadora (e que ela também quer salvar ...) do professor. Mas a figura da alteridade, por excelência, será a palavra, o discurso, o ato da linguagem - sendo essa a segunda gênese importante do conto.

Só sei que nada sei

Na rede de polaridades que engendram a narrativa, outro par decisivo, e que decorre do anterior, é justamente o par sabedoria/ignorância. Os pólos dessa dualidade dialetizam a todo momento, até desaguarem na síntese criativa e intelectual de Sofia, com uma redação pedida pelo professor. Os embates entre o desconhecimento e o saber instituído percorrem todo o texto: "Seria para as escuridões da ignorância que eu seduzia o professor?" (p.11), pergunta-se a narradora. Assim ela se caracteriza em dado momento do conto: "Aceitava a vastidão do que eu não conhecia e a ela me confiava toda, com segredos de confessionário." (Lispector, 1992, p.11).

Vislumbra-se nesse não-saber um conhecimento outro, uma intuição liberta das convenções do cogito escolar, uma entrega à dimensão do desconhecido. A metáfora do inconsciente surge em toda sua potência: "Eu era a escura ignorância com suas fomes e risos, com as pequenas mortes alimentando a minha vida inevitável."

O professor, de outro lado, é o porta-voz da história triste que ele conta aos alunos, cuja moral exalta o trabalho árduo como caminho da riqueza:

O que ele contou: um homem muito pobre sonhara que descobrira um tesouro e ficara muito rico; acordando, arrumara sua trouxa, saíra em busca do tesouro; andara o mundo inteiro e continuava sem achar o tesouro; cansado, voltara para a sua pobre, pobre casinha; como não tinha o que comer, começara a plantar no seu pobre quintal; tanto plantara, tanto colhera, tanto começara a vender que terminara ficando muito rico. (Lispector, 1992, p.14).

O professor pede à classe que faça uma composição, inspirada na história, "usando as palavras de vocês." (Lispector, 1992, p.13). Mas, Sofia perverte o sentido da pequena historieta e conclui levianamente pela moral oposta, "... alguma coisa sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é só descobrir (...) sujos quintais com tesouros ..." (p.15). Para a aluna rebelde, "o ócio, mais que o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas a que eu aspirava." (Lispector, 1992, p.15).

A marca transgressora do ato narrativo é inequívoca, abarcando tanto a moral quanto a técnica convencionais. Ou como afirma a crítica Russotto (1989), "Sofia subvierte el mensaje sacrosanto del esfuerzo sostenido por una versión pagana, feliz e endemoniada, digamos macunaímica, de la experiência: ella denuncia no sólo la tendenciosidad oculta en la exigência de 'obtener la moral'del cuento, sino que también propone una interpretación 'diferente.'" (p.87, grifo da autora). A inversão da moral, ruptura irônica do discurso, aparece como recurso privilegiado de uma narrativa movida por paradoxos e antíteses, dramatizando a vivência conflitiva do sujeito. A subversão do sentido, expressa pela redação, recoloca todas as peças do jogo de xadrez das personagens. O que detinha o suposto saber se encanta com a que supunha nada saber. O desprezo e a leviandade de Sofia, faces constantes de sua reiterada desobediência, acabam por revelar aos olhos do professor uma nascente escritora. O sadismo escapa como texto e se transforma, à revelia de seu agente, num ato de criatividade. Dos sujos quintais de Sofia, floresce a palavra, capaz de mover no homem o que as diabruras anteriores não conseguiram. Também ela, a palavra, nasce da violação insolente do sentido instituído. O mal, assim, emerge como agente disruptivo e catalizador de transformações, rompendo a rigidez das formas estabelecidas.

A gênese do sujeito escritor ocorre através da autonomia do texto, de seu efeito imprevisto no leitor. O sujeito, assim, é falado pela escritura e nisso reconhecemos não só a produção da linguagem como a entende a Psicanálise, mas o processo criativo que Clarice Lispector insiste em declarar.5 4 Sobre isso, ver Freud (1924). Como afirma o crítico Milliet (1981), sobre a relação da autora com as palavras em seu primeiro romance: "Não as domina mais, então elas é que tomam conta dela." (p.27-32).

Usando suas próprias palavras, como queria o professor, Sofia revive o mito da busca romanesca; mas aqui faz-se a apologia das anti-batalhas do herói que, entregue ao princípio do prazer e do ócio, acaba por dar-se bem ao descobrir sem esforço o tesouro em seu próprio quintal. Ainda assim, a história acena para um tesouro a ser cavado no interior de si mesmo, nos sujos quintais de cada um. É a palavra, por fim, na forma de uma redação escolar, que desvenda essa riqueza oculta – metáfora do trabalho analítico, arqueologia psíquica que opera a metamorfose do fantasma em linguagem. O sujeito, então, apropria-se, através do discurso, do seu próprio desejo. Sofia o faz pela palavra ressoando na escuta do professor. Já a narradora do conto, pelo texto que rememora: "E de repente, apertando os olhos fechados, gemi entendendo um pouco mais: estaria ele querendo dizer que (...) que eu era um tesouro disfarçado?" (Lispector, 1992, p.23).

Perversa sedução

A partir desse momento, Sofia descobre a potência sedutora e perversa da ficção. A cólera do agressor imaginário se transmuta em regozijo, elogio, sorriso, marca do gozo do prazer estético no leitor:

Então, ele disse, usando pela primeira vez o sorriso que aprendera: - Sua composição do tesouro está tão bonita. O tesouro que é só descobrir. Você ... – ele nada acrescentou por um momento. Perscrutou-me suave, indiscreto, tão meu íntimo como se ele fosse o meu coração. – Você é uma menina muito engraçada, disse afinal. (Lispector, 1992, p.20-1).

Sofia, na sua militância sádica, renega o gesto amoroso do professor (pois, acreditava ela, tal gesto acabaria por encorajar sua "vida errada"), preferindo enfrentar a antiga ira: "Mas como me foi difícil engolir a seco essa alegria que tão irresponsavelmente eu causara!" (Lispector, 1992, p.21). E será o escritor responsável, alguma vez, por aquilo que cativa? O jogo das palavras desnorteia o leitor e o torna muitas vezes indefeso à penetração do discurso; também o autor, por sua vez, é surpreendido pela falta de domínio sobre sua própria produção.6 4 Sobre isso, ver Freud (1924). O texto, aos olhos de Sofia, é um monstro descontrolado, que ludibria as frágeis consciências. O poder destrutivo da personagem se vê agora deslocado para a linguagem literária, reconstrução revolucionária do real.

Toda a cena que focaliza a surpresa do professor com a originalidade da redação de Sofia faz emergir, sincronicamente, a gênese da escritura com o nascimento do feminino. A púbere Sofia eclode em todo o seu desconcerto frente ao homem estranhamente familiar. Chamada a se aproximar da mesa do professor e esperando ser repreendida com severidade, Sofia é surpreendida pelo encontro das diferenças, ritual que é sintomaticamente marcado pela escuta de seu nome:

Ao som de meu nome a sala se desipnotizara. E bem devagar vi o professor todo inteiro. Bem devagar vi que o professor era muito grande e muito feio, e que ele era o homem da minha vida. (...) Ele me olhava. E eu não soube como existir na frente de um homem. (Lispector, 1992, p.17-8).

Esse Outro, vivificado fora da tela de projeções da personagem, surge como objeto sexual em toda sua potência, significação que até então fora excluída do campo simbólico.Para defender-se da visão desastrosa e obscena do encontro sexual, era preciso que o professor encarnasse o Mal para ofuscar-lhe a face do desejo. Flagrada em sua nascente feminilidade, Sofia conhece (no sentido próximo ao bíblico: "eu era uma menina muito curiosa ...") a nudez de si e do outro. Deslumbramento e estranhamento se encontram para consagrar a mulher e o homem, recém-descobertos.

A aproximação entre Sofia e o professor se dá pelo encontro epifânico de olhares, motivo recorrente na obra da autora e já bastante comentado pela crítica. Nunes (1989), inclusive, associou essa "potência mágica do olhar" ao que seria o "descortínio contemplativo silencioso", ou seja, no âmago de uma crise agônica que revela às personagens toda a paixão da existência, o confronto do olhar desnuda o que antes deveria ficar oculto.

O que vi, vi tão de perto que não sei o que vi. Como se meu olho curioso se tivesse colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse do outro lado com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de um olho. (Nunes, 1989, p.20).

E o que Sofia vê, qual "pérola arrancada da barriga aberta, é um homem com entranhas sorrindo." E a esse sorriso, que gera um estranhamento familiar7 4 Sobre isso, ver Freud (1924). , Sofia reage com uma "incoercível crise de vômitos", pois, diz ela, "ver a esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estômago." (Lispector, 1992, p.20). Aqui a epifania é, antes, anti-epifania, tensionada entre o fascínio e a maldição, usando-se a narrativa de imagens corrosivas e escatológicas. O grotesco se funde ao sublime, instaurando a desordem e o ilógico em meio ao cenário escolar convencional.

Essa visão escatológica, presente em outros momentos da obra de Clarice, alia-se aos detalhes grotescos ("essa coisa ainda se parecia tão pouco com um sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei", Lispector, 1992, p.20) para dar expressão a uma realidade de estranheza e espanto. Podemos falar, com uma certa cautela, que há traços da arte grotesca disseminados pela obra da autora, forjando a representação, através das imagens insólitas, da própria deformação de um mundo tornado indevassável. "A desproporção no miúdo sugere uma desarmonia universal", afirma Rosenfeld em A visão grotesca (p.62). A ordem habitual do mundo se desfamiliariza e o que emerge é a caracterização de uma crise profunda nas categorias convencionas que sustentam a percepção da realidade. O novo olhar se expressa, em Clarice, nas quebras do modo linear de narrar, como os atos falhos e sintomas são rupturas na forma lógica do consciente. A escritura, portanto, é cúmplice da natureza do que se narra, fazendo convergir a identidade do ser e da palavra.

Trágica e epifânica, a visão da vida e da criação pode "cegar os curiosos", como diz a narradora, pois "era cedo demais para eu ver tanto. Era cedo demais para eu ver como nasce a vida. Vida nascendo era tão mais sangrento do que morrer." (Lispector, 1992, p.20). A partir da "visão cegante", tópico familiar na literatura desde o mito edípico, encontramos aqui a concepção do conhecimento como queda, perda da inocência. A ignorância de Sofia, pedra de toque da narrativa, era também a preservação de um ser que se protegia da vida. O conhecimento do outro se dá mediado pelo Outro-Escritura, instaurando a possibilidade do movimento.

O arco e a lira

Mas, o caráter grotesco da cena em que o professor sorri diante do ato criativo, enquanto Sofia se amedronta, remete-nos, ainda, às entranhas de um movimento maior da escritura clariceana: desfolhar a superfície do homem aculturado para tocar-lhe o cerne da vida, o "humus" de onde tudo vem e tudo retorna. Desenterrar o núcleo do ser, o avesso da forma, a essência de onde tudo emana. Para isso, é preciso contatar o que lateja no escuro, sob a casca, na vertigem do abismo. Essa experiência limite invade os textos de Clarice, numa busca incansável do que seja a vida primeira flagrada em seu instante primordial. O trecho abaixo, do romance Água Viva (Lispector, 1980), acena para esta vivência, cuja afinidade com a dimensão do inconsciente está metaforicamente referida por nomes familiares à Psicanálise, como "it"e "aquilo":

Vou voltar para o desconhecido de mim mesma e quando nascer falarei em "ele" ou "ela". Por enquanto o que me sustenta é o "aquilo" que é um "it". Criar de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é dor de parto: nasce uma coisa que é. É-se. É duro como uma pedra seca. Mas o âmago é it mole e vivo, perecível, periclitante. Vida de matéria elementar. (p.46).

Já no conto em questão, o processo de desvelamento do sujeito encoberto pelas máscaras está simbolizado pela dualidade belo/feio, limpo/sujo, sendo o pólo da impureza o modo de se aproximar do que já fomos um dia: "Seria fácil demais querer o limpo; inalcançável pelo amor era o feio, amar o impuro era a nossa mais profunda nostalgia." (p.24).

A autora constrói uma "estética do negativo" que aponta, em sua ironia, para a ruptura das ilusões convencionais. O insólito e o desarmônico tomam seu lugar na esfera estética e dialetizam com o registro da regularidade e da contenção. A esse respeito, é exemplar a apresentação que Clarice faz de seu "Fundo de Gaveta", que é a Parte II da primeira edição do volume de contos e crônicas A Legião Estrangeira (Lispector, 1964):

Por que publicar o que não presta? Porque o que presta também não presta. Além do mais, o que não presta sempre me interessou muito. Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno vôo e cai sem graça no chão. (p.127).

Há ainda uma última passagem em nosso percurso da leitura do conto. Trata-se de conceber o ato criativo - a alteridade que triangulariza o que antes era especularidade entre Sofia e o professor - à luz das palavras da narradora, no início do relato biográfico:

... meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias. E nem todas posso contar – uma palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer desabar pelo despenhadeiro as minhas altas geleiras. (p.10-1).

Uma frase homóloga de Clarice Lispector, compilada por sua amiga Olga Boreli (1981), potencializa ainda mais a imagem de uma palavra única, capaz de desmoronar a construção da subjetividade: "Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido." (p.85).

Não seria essa a palavra, certamente não tão única e exclusiva, que se percorre na análise do inconsciente? A idéia do recalque está claramente exposta na imagem do impronunciável. O que se deve calar no mundo ordinário ganha espaço de representação no universo literário, em meio aos disfarces da linguagem que vela e desvela o real. Aqui, a palavra mais verdadeira, almejada e recusada, a tal palavra proibida, foi dita por Sofia ao desenterrar de seus sujos quintais, de sua alma ruim , o gesto amoroso da escrita.

Esse "texto maldito", (mas também iluminado), que faz desabar sua idolatria por seu amargo ídolo, que destrói sua fantasia de uma salvação impossível, que inaugura a experiência da sexualidade, é o reverso da visão mítica da palavra mágica que tudo harmoniza. Palavra demoníaca, talvez? A literatura, em Clarice, parece apontar para a intranqüilidade do mundo, para o seu caos e não para sua ordem. De fato, o escritor não controla o efeito de sua escrita, cuja potência fascina e assusta. Sobre isso, a ensaísta Perrone-Moisés (1990) afirma: "A literatura parte de um real que pretende dizer, falha sempre ao dizê-lo, mas ao falhar diz outra coisa, desvenda um mundo mais real do que aquele que pretendia dizer." (p.102).

Nascido da falha, castrado na impossibilidade de dizer tudo, o texto acaba dizendo demais. A redação de Sofia move uma transformação de si mesma, ainda que à sua revelia. E ao ser amada pelo seu maior "inimigo", a menina impura, que antes se dizia prostituta, torna-se imaculada: "Como uma virgem anunciada, sim." (p.24). O jogo das inversões, armação maior desse conto, continua multiplicando suas polaridades. Sofia, movida pelo sadismo, engendra um texto que é pura riqueza escondida nas trevas e recebe como troco uma forma inocente de amar. Paradoxalmente, portanto, no interior da expressão sádica emerge o despertar amoroso.

A intenção de Sofia com a irreverente redação é, antes de tudo, provocar a ira do professor. Mas, o feitiço se volta contra o feiticeiro. O professor se deixa cativar pelo inusitado da criação de Sofia, que se trai pela letra. Na verdade, como diz Bellemin-Noël (1983):

... as palavras de todos os dias reunidas de uma certa maneira adquirem o poder de sugerir o imprevisível, o desconhecido; e os escritores são homens que, escrevendo, falam, sem o saberem, de coisas que literalmente "eles não sabem". O poema sabe mais do que o poeta. (p.13).

Daí a fala literária de Sofia ser o reverso do desejo sádico, ou seja, ânsia de ser amada nos seus equívocos e na sua irremediável solidão.

Esse amor mobilizado no outro é visto pela pequena Sofia como fruto de um engodo, já que seu texto fora nascido da mentira e da rebelião. E não seria sempre a literatura uma invenção rebelde? Se "aquele homem grande se deixara enganar por uma menina safadinha" (p.22), fisgado por sua diabólica inocência, arruina-se a fé no adulto redentor, consagrando-se o ritual da maturidade pela desilusão. Somente quando é possível à protagonista discriminar-se do objeto amoroso - o que se dá pelo evento da escrita - abre-se o campo da experiência amorosa, ainda que ambivalente e ainda repleta de contradições. Os paradoxos se multiplicam em frases que são puro jogo de oposições:

Mas se eu antes já havia descoberto em mim todo o ávido veneno com que se nasce e com que se rói a vida - só naquele instante de mel e flores descobria de que modo eu curava: quem me amasse, assim eu teria curado quem sofresse de mim. (p.23).

Mel e veneno, cura e sofrimento, amor e ódio. Desses contrários se faz a narrativa, como uma espiral que se desenovela ao longo do texto. Esse caminho do avesso está também na introdução "A Possíveis Leitores", do romance de 1964, A Paixão Segundo G.H.: "... a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente - atravessando inclusive o oposto daquilo de que se vai aproximar." (Lispector, 1986, p.5).

Da mesma natureza é a experiência do leitor que, empatizado com a narradora/protagonista, não consegue deixar de percorrer as mesmas trilhas de Sofia. A técnica narrativa, que consiste em fragmentar o instante tensionando-o até o limite, fazendo perdurar a dramaticidade de cada cena, promove a identificação entre o leitor e a personagem. O desenlace do conto acena com o repouso de um final tranqüilizador após tantas peripécias, mas deixa em aberto a possibilidade de outras histórias constituintes do mesmo enredo:

... E foi assim que no grande parque do colégio lentamente comecei a aprender a ser amada, suportando o sacrifício de não merecer, apenas para suavizar a dor de quem não ama. Não, esse foi somente um dos motivos. É que os outros fazem outras histórias. Em algumas foi de meu coração que outras garras cheias de duro amor arrancaram a flecha farpada, e sem nojo de meu grito. (Lispector, 1992, p.25).

Inacabada, portanto, a aventura de Sofia - de certo modo, também, a de cada um de nós - prossegue agora na imaginação dos leitores, como a anunciar a contínua construção de verdades. A dinâmica que arma o enredo, sempre cambiante e pronto para recomeçar, mimetiza, enfim, o processo de constituição do próprio psiquismo, também ele avesso às certezas absolutas. Tanto o sujeito quanto a narrativa são formações ficcionais, cujos significados se modificam a cada instante, fazendo vida e morte se alternaram em eterno movimento.

ROSENBAUM, Y. Memorial of Sofia: Psychoanalytical Reading of a Story by Clarice Lispector. Psicologia USP, São Paulo, v.10, n.1, p.259-80, 1999.

Abstract: This paper intends to analyse Clarice Lispector's short story "Os Desastres de Sofia", by using Psychoanalysis and Stylistics as resources. Considering it's a confessional narrative plot, in which subject and object intermingle, the suggested aproach shows how memory and ficction are interrelated in the construction of the text, bringing forth the unconscious as a privileged material for literary creation. The characteres are interpreted within a field of projections and identifications, from which comes up a surprising revelation: the teenage protagonist discovers herself as a writer to her own awe, within the sadistic games with her teacher.

Index terms: Literature (analysis and critics). Psychoanalysis. Unconscious. Written language. Writers.

2 Freud chama de "prazer preliminar" ao "prazer puramente formal, isto é, estético", que o escritor nos oferece como resultado dos disfarces de suas fantasias e do caráter egoísta de seus devaneios. (1910, p.158). De fato, poderíamos discordar dessa "teoria estética"de Freud, que reduz o efeito artístico a um formalismo ingênuo, uma vez que a forma artística é mais do que o revestimento de conteúdos conflitivos. Já no artigo de 1919, O Estranho, a magia do artista ainda é enigmática, porém Freud amplia seu olhar para o estilo artístico, considerando-o responsável pela identificação entre leitor e obra, dada pela universalidade alcançada por ela.

3 O termo "identificação projetiva" faz parte do corpo teórico kleiniano e refere-se aos processos defensivos próprios da posição esquizo-paranóide no bebê de três a quatro meses. Sob domínio da ansiedade persecutória, fruto da experiência do nascimento, a criança expulsa partes ameaçadoras de seu mundo interno e identifica-se com elas no outro onde as projetou. Klein (1969) acredita, ainda, que esses mecanismos dominam também o mundo adulto: "A minha experiência analítica mostrou-me que os processos de introjeção e projeção, na vida ulterior, repetem, em certa medida, o padrão das introjeções e projeções mais remotas: o mundo exterior é repetidamente admitido e expelido – reintrojetado e reprojetado." (p.24).

5 "Não sigo nenhum plano, nenhuma teoria. Eu trabalho sob inspiração. Não consigo obedecer planos, assim como não consigo planejar minha vida. Tudo me vem impulsivo e corrosivo. Brota de mim."(Apud SÁ, 1979, p.212).

6 Sobre isso, afirma o crítico Nunes (1989): "Sofia compreende a sua vocação de escritora e o destino intranqüilo que o dom da palavra lhe impunha." (p.89).

7 Inevitável pensarmos na categoria do "unheimliche" freudiano, que se refere, exatamente. ao que deveria ter permanecido oculto, mas veio à luz. (Freud, 1919).

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  • SÁ, O. A escritura de Clarice Lispector Petrópolis,Vozes/Lorena, FATEA, 1979.
  • 1
    Esse ensaio é um recorte de um capítulo da tese de doutoramento
    As metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector (FFLCH-USP), atualmente no prelo (EDUSP/FAPESP).
  • 4
    Sobre isso, ver Freud (1924).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 1999
    • Data do Fascículo
      1999
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