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O discurso e o laço social dos meninos de rua

Street boys discourse and social ties

Resumos

O artigo relata pesquisa que quer compreender como a constituição subjetiva de crianças e adolescentes que vivem na rua, os chamados meninos de rua, articula-se ao laço social, a partir da especificidade da escuta psicanalítica de crianças e adolescentes. Um processo de desqualificação e desvalorização social da família destes jovens, propicia a ruptura destes com a família e escola, levando-os para a rua. Tal ruptura faz surgir o discurso social, que substitui o discurso dos pais, de onde poderiam extrair os significantes de sua filiação e sexuação, e destitui estes meninos do lugar de crianças e adolescentes, justifica o abandono, o descaso e o medo, e oferece-lhes como única possibilidade de nomeação a identidade de delinqüente.

Psicanálise; Meninos de rua; Família; Processos sociais; Delinqüência juvenil


The article reports a research on how the subjective constitution of children and adolescents who live on the streets, known as street kids, relate to the social ties, based on the specific psychoanalical hearing of children and adolescents. A process of social disqualification and depreciation of these children’s families, conducts them to break up with their families and schools, leading them to the streets. This rupture brings the social address about, which substitutes the parents address, from which they could take the meaning of their filiation and sexuality. This rupture also deprives them of the condition of being children and adolescents, justifying the abandonment, the neglect and the fear and offering them the only possibility of an identity as a delinquent.

Psychoanalysis; Street boys; Family; Social processes; Juvenile delinquency


O DISCURSO E O LAÇO SOCIAL DOS MENINOS DE RUA1 1 Trabalho da Mesa "Psicanálise e problemas sociais contemporâneos", do Núcleo de Estudos e Pesquisa Psicanálise e Sociedade, apresentado no II Congresso Iberoamericano de Psicologia, Madrid, 1998.

Miriam Debieux Rosa2 1 Trabalho da Mesa "Psicanálise e problemas sociais contemporâneos", do Núcleo de Estudos e Pesquisa Psicanálise e Sociedade, apresentado no II Congresso Iberoamericano de Psicologia, Madrid, 1998.

Instituto de Psicologia - USP

Faculdade de Psicologia da PUC-SP

O artigo relata pesquisa que quer compreender como a constituição subjetiva de crianças e adolescentes que vivem na rua, os chamados meninos de rua, articula-se ao laço social, a partir da especificidade da escuta psicanalítica de crianças e adolescentes. Um processo de desqualificação e desvalorização social da família destes jovens, propicia a ruptura destes com a família e escola, levando-os para a rua. Tal ruptura faz surgir o discurso social, que substitui o discurso dos pais, de onde poderiam extrair os significantes de sua filiação e sexuação, e destitui estes meninos do lugar de crianças e adolescentes, justifica o abandono, o descaso e o medo, e oferece-lhes como única possibilidade de nomeação a identidade de delinqüente.

Descritores: Psicanálise. Meninos de rua. Família. Processos sociais. Delinqüência juvenil.

A proposta de análise das particularidades do processo de constituição subjetiva de crianças e adolescentes que vivem na rua baseia-se no pressuposto de que este processo é articulado à construção do laço social, ancorado nos conceitos psicanalíticos de Lei, ideal e identificação. Considera que não há subjetividade que se organize fora do laço social, sendo que os discursos não são senão o modo em que se efetiva esta articulação com o laço social; articulação que parte da constatação dos efeitos da presença do Outro na subjetividade. Trabalhamos, sem entrar na especificidade dos tipos de discurso, com a hipótese que o discurso do Outro, relevante à constituição do sujeito, mostra-se impregnado da produção imaginária do grupo social, ou seja, o discurso do Outro remete ao imaginário social na medida em que contém fantasmas dos grupos sociais.

Examinaremos este processo junto aos meninos de rua.

Meninos de rua3 1 Trabalho da Mesa "Psicanálise e problemas sociais contemporâneos", do Núcleo de Estudos e Pesquisa Psicanálise e Sociedade, apresentado no II Congresso Iberoamericano de Psicologia, Madrid, 1998.

A questão da criança abandonada vem da época do Brasil Colônia. Teixeira (1994) inclui nesta categoria: órfãos que vieram de Portugal para auxiliar os jesuítas na educação e catequese dos órfãos da terra (crianças mestiças) e das crianças enjeitadas, no século XVII; crianças trabalhadoras e filhos da Lei do Ventre Livre (1871), separados das mães; crianças que viviam nas ruas das cidades em processo de urbanização, na virada do século; crianças institucionalizadas e crianças exploradas no trabalho infantil, no início deste século.

Durante o século XVIII coube às instituições não governamentais, como confrarias, irmandades e santas casas de misericórdia, o cuidado destas crianças. Nos anos 20, o Estado responsabiliza-se socialmente pela questão da infância, visando protegê-la. Passa a utilizar o termo "menor" para a infância pobre (Andrade, 1994), época da formação de quadrilhas nos grandes centros.

O modelo institucional na década de 30 e 40 foi o internato. Em 1948 a preocupação com a criança ganha dimensão internacional, quando é criada a UNICEF(Fundo das Nações Unidas para a Infância). Em 1964, cria-se a FUNABEM para possibilitar uma coordenação central e uma fiscalização sobre as entidades. Em 1990, com o objetivo de modificar a política do menor, é criado o Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelecendo seus direitos, que não atingem parte da população, especialmente os meninos de rua e crianças pobres.

Ao lado desta história de cuidados e descuidos, pode-se constatar um discurso que contém o imaginário social sobre a questão, um discurso social de dupla mão a respeito destas crianças: o discurso da pobreza e o discurso do perigoso. Segundo Teixeira (1994),

É importante constatar que não são os pobres os únicos agentes e vítimas da violência, embora esta idéia exista e seja estimulada, pelos meios de comunicação de massa e setores mais reacionários da opinião pública. A representação social que associa os pobres às classes perigosas tem como conseqüência que as crianças e adolescentes pobres sejam vistos como perigosos ou potencialmente perigosos - os pequenos bandidos. É, portanto, sobre eles que incide, preferencialmente, o aparato repressivo-policial ou repressivo assistencial. (p. 6)

Ela continua, definindo as múltiplas determinações do delito do adolescente: "o delito do adolescente ‘fala’ de um distúrbio. É o sintoma de algo grave que ocorre no tecido social, nos grupos de pertinência e nele mesmo" (p. 7). E pergunta-se:

como superar o discurso da pobreza como único e exclusivo determinante da prática de delitos pelos adolescentes e poder compreendê-los e atendê-los considerando a prática infracional como um dado concreto de sua história? Como superar a concepção do adolescente infrator exclusivamente como vítima e considerá-lo como agente de violência e como sujeito de direitos? Quais as implicações desta nova concepção para a prática do atendimento direto? (p. 9)

O discurso sobre o menino de rua, ao mesmo tempo em que evidencia a carência, a necessidade de cuidados e atenção, coloca-o em um lugar despido de valor fálico. À menor dificuldade desliza-se do discurso da carência para o discurso do perigoso - aquele que vive o ideal de poder gozar fora da lei, que não se assujeita; aquele que ameaça com seu gozo e precisa ser detido. É preciso salientar que o discurso sobre o menino de rua potencializa no primeiro aspecto - o que vive o ideal de poder gozar fora da lei - o discurso atual sobre a criança em geral.

Perguntamos o que imprime maior força ao discurso sobre a criança em geral, quando se trata dos meninos de rua? Pensamos que a resposta diz respeito a quem enuncia. No caso das crianças "de família", o discurso será enunciado pelos pais que, como dissemos, são marcados pela divisão entre desejo e lei, têm o gozo no plano da fantasia e estão implicados na relação com o filho. Já para os meninos de rua, o enunciado é diluído em vários "outros": ora o motorista do carro, ora a polícia e outros. Para eles, em oposição aos de família, é oferecido apenas o discurso de uma criança que não lhe diz respeito, que não é "filho" e que não faz laço com sua condição desejante, esta sim, que inclui o Outro e implica o enunciante no efeito subjetivo produzido pelo discurso. Tal discurso, sem um sujeito do enunciado engajado, realça o aspecto ameaçador do gozo e é pronunciado carregado de expectativas culturais, qualificando os atos destas crianças como delitos, atos estes que podem não diferir dos pequenos delitos cometidos pelos ditos meninos de família - pequenos roubos, uso de drogas, desobediência, brigas etc. Nestes(meninos de família), tais atos são trabalhados no contexto da escola ou da família, sem o peso da qualificação como sinal de delinqüência prevista.

Outro aspecto importante a frisar é que a prevalência do discurso social para estas crianças vem ancorado no apagamento do discurso familiar. Discute-se, atualmente, como a liderança do pai tem desaparecido, preocupação esta já presente em Freud.

Freud declara sua preocupação frente ao avanço da modernidade e à constituição de uma subjetividade onde a liderança do pai desaparece. Preocupação compreensível na medida em que, para Freud, a subjetividade sexuada é conseqüência de um discurso constituído pelos significantes sociais que operam no nível da dialética superego-ideal do ego.

Ora, os mecanismos de normas, ideais e identificação apoiam-se nas insígnias paternas, derivadas da função paterna, fundamentais para a constituição do sintoma que é a neurose. Volnovich (1991) pensa que ocorreu o que Freud temia, isto é, que houve a queda do significante pai e sua substituição por um conjunto de saberes, o que mudou o sintoma social e o próprio indivíduo. A queda do significante pai resultou numa fragmentação no nível familiar e numa metaforização do conjunto de saberes sobre o gozo que nos aproximam da idéia de que atualmente o sintoma que amarra os homens à modernidade é o narcisismo.

A questão sobre a queda ou o enfraquecimento do pai e de sua substituição pelos saberes sociais, do pediatra, do psicólogo, é das mais interessantes.

O suporte que, segundo as diferentes culturas, sustenta o papel de representante do discurso dos outros não é indiferente para o destino psíquico do sujeito, como não é indiferente a maior ou menor valorização do modelo pelo grupo. Eis porque existem culturas ou momentos de uma cultura que poderão agravar ou reduzir o risco psicótico. Em nossa cultura, diz Aulagnier (1979), a função materna precisa apoiar-se sobre um modelo, sendo o modelo calçado na função paterna o invocado para a criança como razão, lei, fundamento do seu agir. Neste modelo há uma lei que decide em que condições o homem pode ou não dar seu nome, regras e préstimos exigidos pelo sistema de parentesco: este conjunto de prescrições determina um modelo de relação do casal parental e de sua relação com a criança, no qual o pai herda um poder de jurisdição exemplificado pelo direito romano que, numa primeira fase, atribuía-lhe até o direito de vida e morte sobre a criança. Este poder perdeu grande parte de seus atributos, mas ele preservou sua função no registro da transmissão do nome, com tudo o que isto comporta. Se, na nossa cultura, a referência ao pai é a mais apta para testemunhar à criança que se trata de uma delegação e não de um poder abusivo é porque, também aqui, encontramos este traço específico do funcionamento psíquico, que faz com que o conhecimento ou o reconhecimento seja precedido de um pré-investimento daquilo que deve ser reconhecido.

Ela ainda ressalta dois pontos: para que estes enunciados exerçam esta função, é preciso que eles sejam recebidos como palavras de certeza. Se este atributo lhes falta, eles serão abandonados e substituídos por uma nova série, de tal forma que, de qualquer maneira, a função não ficará jamais sem titular.

Neste posicionamento, Aulagnier destaca várias modificações culturais, inclusive na função paterna. Mas esta, para ela, mantém o fundamental: seu nome, o que não sugere, portanto, transformações na estrutura subjetiva, embora ela pondere possíveis efeitos sobre o sujeito.

Fica um problema em aberto. Há uma queda do significante pai ou de uma atribuição de significado que deixa marcas registradas de uma expressão característica de uma época? Na segunda hipótese, não está suposta uma alteração na forma de constituição da subjetividade. Pode haver um mascaramento evidente da função paterna, mas não será precipitada a idéia de sua queda ou exclusão?

O que se constata na questão do menino de rua é que há uma parte da população mais atingida por este fenômeno, particularmente aquela que tem seu lugar fálico na cultura ameaçado, como é o caso das famílias destas crianças. Estas famílias se caracterizam por rupturas com o lugar de origem, com as raízes culturais e com figuras expressivas; carências materiais; ocupação de um lugar marginal na sociedade, o que traz violência e fragmentação para as relações familiares.

Entendemos que um dos possíveis efeitos do enfraquecimento do significante pai é tornar emergente o discurso social, que traduz seu poder no real na expressão encarnada de suas instituições, especialmente a policial, jurídica, médica...Expressão que encarna o poder e o saber absoluto sobre aqueles que pretende cuidar, educar, reeducar, punir ...

Ouvindo os meninos que "comem luz"

Neste trabalho vamos nos centrar no meninos de rua, utilizando dados de entrevistas realizadas em trabalho de Iniciação Científica, sob nossa orientação, intitulado "Estudo da organização psíquica em crianças de rua" (Mountian & Dantas, 1995). Tais crianças diferem substancialmente entre si, estando unidas apenas no que diz respeito à condição de não-direito à cidadania, à infância e à adolescência. As crianças entrevistadas têm em comum vivências na rua, iniciadas a partir de ruptura com as instituições família e escola. O trabalho visou saber como estas crianças lidam com a lei, os valores, os ideais e as relações estabelecidas na rua. As entrevistas giraram em torno dos motivos da chegada à rua, quando são relatados os motivos de ruptura com a família; como é a vida na rua, como são os grupos, suas regras e sua adesão a elas; quais os ideais contidos nos planos, desejos, medos.

As rupturas relatadas foram vividas e elaboradas de formas diferentes: a mãe que preferiu seu companheiro em detrimento do filho, o pai que espancou, experiências em idades diferentes, vínculos diferentes. Em comum, nota-se que, antes da ruptura, houve diferentes formas de violência na família, descritas com frases soltas, proferidas com aparente distanciamento emocional que precisam ser encadeadas pelo ouvinte.

Os relatos das situações de rua evidenciam falta de condições mínimas de alimentação, saúde, educação, segurança: "eles batiam - os moleques, a polícia". A busca da sobrevivência dá-se através do roubo, da esmola, do tráfico. No entanto, é enfatizada, com prazer, a liberdade que permite: "brincá no parquinho, banho no chafariz da praça, rouba uma coisa aqui, ali ..."

Há referência constante a grupos. Relatam as regras do pai e da mãe de rua, do chefe da rua: obedecer ou sair fora e, se sai, "ele" não vai ajudar. Claramente a hierarquia estabelece-se pela força e não pela lei.

Mostram diversidade na forma como lidam com as regras e valores estabelecidos no e pelo grupo. Alguns não fazem distinção entre brincadeiras e furtos e uso de drogas; outros, a maioria, diferenciam as regras para sobreviverem na rua de outras regras: as da rua e as da sociedade. As crianças variam na forma de lidar com as duas: "elas (mães de rua) me adoravam, mas não gostava que eu não roubava. Era errado", diz, referindo-se às regras sociais; um deles identificava-se com o ato e valorizava a infração: "foi furto qualificado no 57 ... é um roubo fortemente".

Outro aspecto investigado remete a seus ideais. Perguntou-se às crianças por seus planos, sonhos, medos e vergonhas. As respostas são literais, há perda da noção de tempo e espaço: não sabem o dia em que estão, há quanto tempo estão na rua ("uns 19 anos"), a data do aniversário, sua idade: "14 - minha mãe me falou". Há uma desorientação nas referências básicas para uma construção histórica, que abrange não somente passado e futuro mas também o presente. A perda de referências denota desorientação quanto ao lugar a que pertencem. Quanto aos projetos usam as referências relativas aos modelos sociais vigentes, família e escola: "ter estudo, uma professora".

As autoras concluem que

tais crianças apresentam as mais variadas histórias de vida, sendo que, cada uma delas atribui à rua um significado particular. O aspecto comum é o fato de terem de contar com o próprio discurso para sobreviverem no espaço da rua. São meninos "de rua" porque não possuem a proteção do discurso familiar. (p. 60)

O trabalho aponta ainda como, apesar da exclusão e violência da rua, as crianças optam em manter-se nela, voltam a ela fugindo da família e instituições. Isso se deve à construção imaginária de uma rua que garante liberdade, autonomia e independência, não necessitando do controle de ninguém. Tornam o abandono uma conquista, criam um código que desvaloriza e contesta os preceitos jurídicos, familiares e educacionais da sociedade. Este código contrasta com a persistência neles mesmos dos modelos e regras da sociedade. A necessidade de vincular-se e pertencer ao grupo da rua como condição de sobrevivência promove uma dissociação entre o que fazem e dizem.

Podemos pensar que a mudança de ênfase do discurso familiar para o social tem conseqüência nas formas como as estruturas sociais são tomadas. As circunstâncias de vida dos meninos de rua favorecem que a estrutura social seja tomada como real e seus atos tornados simbólicos. Explicando melhor, tomamos Melman (1992) que, comentando Lacan, diz que, para o neurótico, as estruturas sociais são simbólicas e permitem, assim, condutas reais. Quando as estruturas sociais se tornam reais, são as condutas que se tornam simbólicas. Para o neurótico, as estruturas sociais exercem seu poder simbolicamente. Na distinção entre valor de uso e valor de troca, o caráter simbólico prima sobre o valor de uso. "Portanto, é esta relação com as estruturas sociais simbólicas que permite que nossas condutas sejam reais, isto é, que na apreensão do objeto, por exemplo, nossas condutas sejam completamente reais" (p. 43).

Abre-se aqui uma discussão com diversos aspectos: o sentido simbólico ou real do ato, e em especial do delito, e a forma de relação com o objeto, tomado em seu valor relacional ou em sua materialidade. Um complicador da discussão, que não podemos desenvolver aqui, refere-se a alguns autores, e cito em especial o trabalho de Calligaris (1991), que observa na delinqüência não um caráter específico, mas a sinalização de uma mudança no sintoma social dominante, que para Freud é neurótico, em sintoma social perverso, ou seja, no qual o saber paterno não é suposto, mas compartilhado. Ou seja, discute-se se a questão é circunscrita a um grupo ou é da sociedade em geral.

Retomando, hipotetizamos que a problemática dos meninos de rua é desencadeada pelo processo de desqualificação e desvalorização social da família destes jovens, famílias que têm seu lugar fálico na cultura ameaçado e por isto tornam-se mais vulneráveis ao enfraquecimento do significante pai na cultura contemporânea. Esta circunstância favorece a desorganização dos lugares na família e a presença da violência entre seus membros, propiciando a ruptura dos filhos com a família e a escola, levando-os para a rua. A partir de então, de forma enfática, passa a imperar a prevalência do discurso social sobre o familiar. No discurso social falta um sujeito do enunciado engajado com o filho, desejante, atravessado pela lei, de onde estas crianças poderiam extrair os significantes de sua filiação e sexuação. Diferente disto, a ruptura com a família faz surgir, com peso de real, a estrutura social, com um discurso específico para estas crianças, em detrimento do discurso dos pais. O discurso social, de dupla mão, culpado e segregador, vitimiza os meninos, justificando os seus atos pela pobreza, mas, concomitantemente, qualificando-os, a priori, como perigosos. No discurso social, constata-se a destituição destes meninos do lugar de criança e adolescente, o que justifica o seu abandono, o descaso e o medo, oferecendo-lhes como única possibilidade de nomeação a identidade de delinqüente.

Nota-se a conseqüência do enfraquecimento do significante pai na forma como a estrutura social é tomada: não mais como simbólica, mas como real, traduzido seu poder na expressão encarnada das instituições.

Do ângulo do impacto destas questões na subjetividadade destas crianças e adolescentes, nota-se a sua valorização da liberdade conquistada, imaginária na medida em que supõem estar liberados do assujeitamento ao Outro e à Lei, o que os torna carentes de história ou ideais. Nota-se também a premência do agir como um esforço vão em fazer-se por si mesmos, já que lhes faltam as insígnias paternas. Em seu discurso nota-se a falta de implicação e, em alguns, a estranheza frente à própria ação. A discussão passa a convergir para o sentido - real ou simbólico - do ato e a falta de implicação, desta vez destes meninos frente à própria ação; fenômeno geral mas intensificado nos meninos de rua, para quem o seu agir é dito delinqüencial e, por vezes, realmente assim se apresenta.

Mengarelli (1994) considera que os atos delinqüentes são tentativas de inscrição na ordem simbólica, de participação nos elementos fálicos da ordem social; são simbólicos de uma função subjetiva: falta a eles uma significação fálica determinada pelo nome-do-pai. A criança espera que o Outro lhe produza a marca simbólica. Se o pedido de marca simbólica é tomado literalmente, não opera o corte ou significação, não se eleva o objeto a significante, falha o laço social. Na falha do laço social o objeto perde seu caráter relacional e ganha materialidade, ofuscando a falta.

Desta forma, lembramos Dolto (1980) que afirma que, quando a criança não pode falar ou fala pelo sintoma, é porque não foi suficientemente falada pelo Outro. Ela diz: "no ponto em que a linguagem termina, é o comportamento que continua a falar, e quando se trata de crianças perturbadas, é a criança que pelos seus sintomas encarna e presentifica as conseqüências de um conflito vivo" (p. 13). Assim, pode-se dizer que o sujeito não se responsabiliza pelo que faz porque está ausente de seu ato. O ato é forjado para criar uma cena no real que encena o desejo e abre possibilidade de ser falado pelo Outro. Este parece ser o pedido dos meninos de rua.

Pode-se considerar que os processos subjetivos nos meninos de rua referem-se muito menos a uma estruturação subjetiva específica do que caracterizam-se como um sintoma social, ou seja, trazem questões que não lhes são específicas, mas que eles são encarregados de exprimir, fruto de um modo de produzir o laço social. O sintoma social, como o individual, afirma Souza (1991), é sustentado por uma fantasia, que denota o modo como os sujeitos controlam os ideais, buscando manter distante a castração. É social uma vez que, apesar da mesma fantasia, os sujeito ocupam vários lugares em sua estruturação. Estes vários lugares ficam mais evidentes quanto mais a delinqüência se generaliza e caem as grades que separam os meninos de rua dos de família. Vejam-se as pesquisas divulgadas nos jornais, onde se constata que os meninos que estão na rua têm família e, por outro lado, que há um número expressivo de jovens de classe média internos na FEBEM, em unidades encarregadas de infratores menores de idade.

A análise desta situação deve estar atenta ao discurso social presente nas entrelinhas e que baliza o modelo do percurso subjetivo que faz relação entre o desejo e os valores sociais e inaugura a responsabilização pelos atos e a cidadania. Cidadania empregada aqui no sentido atribuído por Mengarelli (1994): "o exercício da cidadania implica empenhar o nome sob a rubrica de um Pai que, longe de tornar estrangeiros aqueles que reconhece como filhos, põe-lhes em posição de reconhecer e ser reconhecido nos âmbitos de participação em sua cidade" (p. 131).

Finalizamos tomando Freud (1924) para afirmar que uma cultura que não proteja o ego narcísico da ameaça do desamparo original do sujeito é uma cultura falida.

Rosa, M. D. (1999). Street Boys Discourse and Social Ties. Psicologia USP, 10 (2), 205-217.

Abstract: The article reports a research on how the subjective constitution of children and adolescents who live on the streets, known as street kids, relate to the social ties, based on the specific psychoanalical hearing of children and adolescents. A process of social disqualification and depreciation of these children’s families, conducts them to break up with their families and schools, leading them to the streets. This rupture brings the social address about, which substitutes the parents address, from which they could take the meaning of their filiation and sexuality. This rupture also deprives them of the condition of being children and adolescents, justifying the abandonment, the neglect and the fear and offering them the only possibility of an identity as a delinquent.

Index terms: Psychoanalysis. Street boys. Family. Social processes. Juvenile delinquency.

2 Endereço para correspondência: Al. Joaquim Eugênio de Lima, 1041 - ap. 72. Jardim Paulista, São Paulo, SP – CEP 4403-000. E-mail: debieux@mt2net.com.br

3 Parte deste texto está presente no trabalho "O discurso e o ato na produção do laço social: observações sobre a delinqüência", apresentado e publicado na íntegra no I Congresso Internacional de Psicanálise e suas Conexões - Trata-se uma Criança (Rosa, 1998).

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  • 1
    Trabalho da Mesa "Psicanálise e problemas sociais contemporâneos", do Núcleo de Estudos e Pesquisa
    Psicanálise e Sociedade, apresentado no
    II Congresso Iberoamericano de Psicologia, Madrid, 1998.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Ago 2000
    • Data do Fascículo
      1999
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