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Remissão

REMISSÃO

Conto de Dante Moreira Leite

Maria Antônia já não era surpresa. Fazia oito meses que nos encontrávamos ali, duas vezes por semana. Na primeira noite em que fiquei na janela, olhando o movimento dos carros lá embaixo, enquanto Maria Antônia folheava um "New Yorker" que eu trouxera, sabia muito bem o que acontecera: repetir no adultério o ritmo perfeito, pecado mortal do casamento.

Antes de Maria Antônia, eu tivera apenas os adultérios virtuais – como todo mundo. Apesar do ridículo, vivi os episódios gratuitos da mão aquecida na outra mão, dos olhares de conivência, do beijo apressado no escuro do táxi. Chegara ao pecado de dormir com Raquel pensando nas amantes virtuais e passageiras. Seria pecado? Se Raquel fizesse o mesmo, ali estariam os quatro indispensáveis para a felicidade carnal dos seres humanos: os dois ausentes que se amam através de corpos desconhecidos.

Maria Antônia devia ter sido apenas isso. Mas houve um momento equívoco, que eu aceitei como convite para entendimento. A reunião chegara ao fim, exatamente como as outras daqueles dias. Depois do exame de todas as sugestões, chegávamos à conclusão que todos conheciam: nada a fazer. Nessa noite, lancei uma idéia que me atormentava há muito tempo:

- Será que não aprendemos? Tudo isto é muito bonito, as idéias se ajustam perfeitamente à realidade. E daí? Adianta analisar e fazer auto-crítica, quando não podemos conseguir mais nada sozinhos? Ou vocês pretendem fundar uma revista para repetir o que todo mundo sabe?

Decerto houve resposta, mas não me lembro dela. Já não conseguia pensar em programas, nem me interessei pela discussão. Só conseguia olhar para Maria Antônia. Quando a levei para casa, houve um silêncio maior do que o usual. E não precisamos de palavras para entender que desejámos a mesma coisa. E foi tudo como sempre: o encontro de corpos que se esperam tem muito do encontro animal, grotesco e selvagem.

Depois, era melhor não falar de nós, fingir que não sabíamos o que nos esperava. Vivemos uma convenção muda que conseguimos não romper: evitar a palavra amor, evitar os símbolos convencionais dos namorados. Não dei perfumes, não recebi gravatas, nem isqueiros. Nunca fizemos planos para o futuro: obscuramente, sabíamos muito bem que não haveria futuro comum para nós, e que o passado pouco importava. Nunca perguntei como tinha sido o seu marido, nem o que tinham dito os que vieram depois. Maria Antônia também não perguntava. Nosso mundo era mais amplo do que tudo isso: era o mundo real que a gente sofria, discutia, examinava. Naqueles meses, não havia muito que fazer: amigos presos, outros no exílio, outros escondidos. Eu me envergonhava de estar ali, sem interrogatório, sem a ameaça de porão de navio.

- O que é que você queria? Que prendessem todo mundo?

- Não. Queria apenas não saber que a liberdade também nos emporcalha, queria não sentir que andar na rua é um privilégio, igual ao do dinheiro que a gente sabe que não merece e que está sendo roubado dos outros.

O sarcasmo de Maria Antônia não demorava:

- E agora você tem outro crime: trocou a subversão pela corrupção.

Seria isso? Maria Antônia não conhecia os sinais do pecado. O sexo parecia natural como o dia, a noite, a chuva ou a brisa. Seria mais moderna do que eu? Muitas vezes pensei que a coisa mais moderna do homem é o sexo sem angústia. Em mim, o sexo foi sempre um tormento, o pecado original renovado em cada ato, maldição que não conseguimos eliminar ou esquecer.

Mas decerto isso era minha fantasia para dar um gosto mais dramático a uma coisa tão simples: eu estava numa aventura extra-conjugal, como meu avô, meu pai, meus irmãos, meus amigos mais velhos.

Lembrava o ar cínico do Almiro, ainda disposto nos seus sessenta anos:

- Vamos para a pirataria?

- Não, não vou. Depois, não poderia olhar para minha mulher.

- E você está certo. A gente só entra nesse caminho depois de dez anos de casado.

Agora eu caíra nessa vulgaridade imensa, disfarçada por umas tinturas intelectuais, uns vagos conflitos religiosos. Impossível não saber que aquilo era errado, contra tudo que eu aceitava. E se eu contasse tudo a Raquel, tivesse a lealdade mínima que eu gostaria de receber?

Isso nem me ocorreu, ou se ocorreu foi logo afastado. O amor – e sozinho eu ainda era capaz de empregar a palavra maldita – cria uma outra categoria, uma realidade que escapa ao julgamento do cotidiano. E depois, sempre tive a delicadeza de não perguntar a Raquel se ela estava apaixonada por outro. Às vezes desconfiei, às vezes tive quase a certeza de que eu era apenas o objeto accessível e cômodo para a sua expressão de amor. E nós dois entendíamos a piada de Bernard Shaw: o casamento é tão popular porque reúne um máximo de tentação a um máximo de oportunidade.

Apesar de mergulhar nesse domínio dúbio da consciência, eu já não tinha dúvida. Não esperava o amor de confidência, da longa confissão em que os amantes se entregam com palavras, revelam sua infância e seus segredos. Olhei distraído para as fotografias de Maria Antônia menina, e me surpreendi de não ter a angústia diante daquele passado que não me pertencia, que eu nunca poderia tocar com minhas mãos e minha voz. E por isso pensei que Maria Antônia era o amor de maturidade: o doloroso desejo de proximidade, aparentemente insaciável. O que me empurrava para ela era a harmonia de corpo, de odor, de tato, de gosto. A sua mão em meu braço despertava as imagens que antes dela eu só conhecera em instantes fugidios de sonho. Decerto foi a partir dessas imagens e desse abandono onírico que os teólogos medievais chegaram à sua descrição do demônio.

Mas agora eu começava a ter pressa de ir para casa. Começava a pensar demais no meu papel, naquilo que eu roubava de Maria Antônia: o direito de sair, conversar com gente de sua idade, ter esse riso que os homens maduros perderam para sempre.

Continuei a ver os carros e os homens reduzidos pela altura. Quando me virei, Maria Antônia olhava para mim:

- Que é isso, Eduardo? Sabe que você hoje está com cara de puxar angústia?

- Já passei desse tempo. Quando eu era aluno da Faculdade de Direito, a gente ia para o "Ponto Chic", pedia um chope com batatinha e conversava até as duas. Já meio de porre, eu costumava dizer besteiras. Isso que a sua geração chama de puxar angústia. E você?

- Para mim, angústia se cura no trem, no automóvel, no avião. Uma coisa de movimento na base do sem destino. E que história é essa de geração que você descobriu agora?

- É o que sinto. Nós, por exemplo: vemos as coisas de um jeito diferente, esperamos coisas diferentes, lembramos coisas diferentes. Você não lembra a guerra, a ameaça de Hitler. E eu devo parecer documento histórico para você.

- Imagine. Todo namorado novo é uma espécie de documento cifrado. A mulher decifra e às vezes se ajusta, às vezes se chateia. Às vezes também não decifra, e passa adiante. Assim como devolução ao remetente.

- Acontece que o homem também faz isso.

- É diferente. Em cada namorada o homem descobre o novo eu, pensa que revela alguma coisa. Em cada namorado a moça precisa ajustar-se, ver o que se espera dela. Com um aprende a comer cabrito num restaurante do Brás, com outro aprende a gostar de Felini. Você nunca viu como é que os namorados conversam? O rapaz conta vantagens e a moça escuta. Nenhum homem é capaz de ouvir realmente a mulher, de procurar saber quem ela é. E isso não o interessa: quer apenas um espelho, e quanto mais deformado, melhor.

- Se o brinquedo é esse, dize-me, espelho meu, existe alguém mais belo do que eu?

- Será que comigo dá certo? Conte a coisa mais importante que você já fez.

- Serve imoralidade?

- Só coisa bonita e dignificante.

- Nada a declarar.

- Está vendo o que acontece? Você tem mania de ser personagem de um romance moderno: o anti-herói incoerente, o que perde todas as batalhas? Posso saber por quê?

- E você acha que eu sei? Sei apenas que os heróis me parecem ridículos, e talvez seja esse o meu maior medo. Quer fumar?

Ficamos quietos novamente, até que eu disse:

- Hoje estamos tão mudos que me lembrei do brinquedo de minha primeira namorada: contar os pensamentos.

- Brinquedo chic. É a história do Sartre com a Simone.

- Acho que era também coisa da geração: procurar a transparência pelas palavras. Você sabe brincar disso?

- Acho que sei. Quem começa?

- Posso ser eu. Ali na janela, pensei que nós chegamos ao fim. Que você enjoou de mim.

- Eu olhava os seus cabelos brancos e pensava na história do velho que tinha duas namoradas e ficou sem nem um fio de cabelo. A namorada mais moça arrancava os cabelos brancos, a mais velha os cabelos pretos. Pensei que não gostaria de conhecer você com cabelos pretos, e muito menos careca.

- Pensei como conheci você. Sabe que me pareceu? Uma menina assustada, em busca de uma pessoa que ainda não conhece e que vai mudar o seu destino. Isso me pareceu plágio do Castelo do Kafka e pensei que se a gente se separar essa vai ser a imagem mais bonita que tenho de você.

- Pensei o que seria viver com você. Seria bom levantar de manhã, ver você dormindo a meu lado, depois ir até a porta, dizer adeus. Depois, você voltaria à noite, contaria o que tinha feito. Ou, então, eu encontraria você na cidade, a gente ia comer um sanduíche barato na "Salada Paulista", depois ia bestar de braço dado por aí, sem pensar em hora. É sua vez.

- Pensei em voltar para casa, olhar no espelho, fazer a barba agora de noite, que as crianças amanhã têm exame muito cedo e eu vou morrer de preguiça.

- Está vendo? Esse brinquedo nunca dá muito certo.

- E acho que não é só esse.

- Você é que sabe, Eduardo.

Saí de lá como tinha entrado: em silêncio e sem saber direito o que fazia. Ao contrário do que ocorreu nos outros namoros – em que namorada não era apenas um eufemismo – nenhum de nós tinha lágrimas nos olhos. Pelo menos nisso eu tinha aderido à nova geração.

Em casa, Raquel acordou quando coloquei a roupa na cadeira.

- É cedo ainda. A reunião esteve boa ou o pessoal já desistiu? Tem aí um recado do Joaquim: você precisa levar a segunda prova do livro. Marquei uma palavra que me parece esquisita na página 110: acho que é remissão.

Fui para o escritório e abri o dicionário: Remissão, s. f. Ação ou efeito de remitir; indulgência; perdão; liberação graciosa de ônus ou dívida; renúncia de direitos creditórios; desânimo; frouxidão; falta de rigor; remitência; diminuição de intensidade; ação de remeter.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Mar 2001
  • Data do Fascículo
    2000
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