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INVESTIGAÇÃO EM PSICANÁLISE NA UNIVERSIDADE

INVESTIGAÇÃO EM PSICANÁLISE NA UNIVERSIDADE

Gilberto Safra1 1 Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, São Paulo, SP – CEP 05508-900.

Instituto de Psicologia – USP

Este evento surge no momento em que o Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo reflete sobre novos rumos e novas possibilidades para o seu programa de pós-graduação. Nós, professores desse departamento, resolvemos estabelecer uma linha de pesquisa denominada "Investigações em Psicanálise," já que inúmeros trabalhos vinham sendo realizados nesse vértice teórico e metodológico.

A psicanálise esteve presente desde a fundação da Clínica Psicológica e do Departamento de Psicologia Clínica nessa Universidade. O Dr. Durval Marcondes, introdutor da Psicanálise no Brasil, foi um de nossos fundadores. Desde então psicanalistas sempre estiveram presentes no quadro de professores desse Departamento, contribuindo tanto nas atividades clínicas, quanto nos projetos de pesquisas.

Até mais ou menos o final da década de setenta, houve grande produção de trabalhos e de pesquisas de orientação psicanalítica. Se fizermos uma investigação na biblioteca, observaremos inúmeras dissertações e teses realizadas, nesse período, na área de concentração de psicologia clínica, pelo vértice psicanalítico. Freqüentemente, os seus autores afirmam que o trabalho foi feito sob orientação psicanalítica. No inicio dos anos oitenta surgem em maior número trabalhos que se utilizam claramente da metodologia psicanalítica.

É interessante observar este processo na produção de conhecimento com o uso do vértice psicanalítico na universidade e pensar no que ocorria paralelamente fora da universidade. Na academia havia uma oposição ao reconhecimento da psicanálise como um método legítimo na produção de conhecimento. Os professores-pesquisadores tinham a preocupação de que seus trabalhos pudessem ser reconhecidos como pesquisas científicas, utilizavam-se de metodologias que pudessem ter um maior reconhecimento e empregavam a teoria psicanalítica como referente na interpretação de seus dados. Por volta da mesma época, houve uma ação da Sociedade de Psicanálise contra os psicanalistas, pertencentes a sua instituição, que atuavam como professores nas universidades, a ameaça era a expulsão da Sociedade para aqueles que ensinassem psicanálise fora dos Institutos de Psicanálise. Não é difícil perceber que os professores-pesquisadores de linha psicanalítica realizavam seu trabalho no meio de forças antagônicas.

De qualquer forma, gradualmente, surgiram cada vez mais nos programas de pós-graduação trabalhos que realmente utilizavam não só a teoria psicanalítica, mas o método psicanalítico na produção de conhecimento dentro das universidades. Apareceram profissionais com sólida formação em psicanálise e competentes em metodologia e epistemologia em pesquisa que passaram a pesquisar, orientar trabalhos e a produzir textos de excelente qualidade, que facilitaram a legitimação da Psicanálise na produção de conhecimento pela academia. Paralelamente a Sociedade de Psicanálise deixou de ser a única instituição formadora de psicanalistas, o que relativizou o poder que tinha sobre os seus membros. Esses dois fenômenos permitiram que a psicanálise pudesse ocupar um lugar significativo dentro das universidades.

Como parte desse movimento ocorreu na PUC-SP em 1991 e 1992 o I e II Encontro Nacional de Pesquisa Acadêmica em Psicanálise. Nesses eventos houve a participação de grande número de profissionais vindos de diferentes partes do Brasil. Havia o interesse por parte de todos de realmente inserir a Psicanálise dentro da universidade, nos Programas de Pós-Graduação e conseguir o reconhecimento das agências de fomento à pesquisa. Desde aquela época muito já aconteceu e muito foi conseguido.

Hoje há inúmeras dissertações e teses em psicanálise já produzidas e defendidas em nosso meio, nos diferentes níveis de titulação (Mestrado, Doutorado, Livre-Docência). Nós já contamos com bom número de pesquisadores, uma massa crítica suficiente nessa área de pesquisa, que prestam assessoria para as agências de fomento. Houve uma mudança significativa nos últimos dez anos nesse campo de atividade. Esse já é um momento em que podemos nos debruçar sobre o que foi feito durante esse período nessa área de investigação e refletir um pouco mais sobre as características da pesquisa acadêmica em psicanálise.

Sabemos que, desde as suas origens, a psicanálise surge não só como terapêutica mas também como um método de investigação, inicialmente bastante subordinada ao projeto científico. No texto freudiano intitulado "Análise terminavel e interminável" está colocada uma perspectiva fundamental para se pensar a investigação em psicanálise. Nele vemos que o método psicanalítico é posicionado não na busca de um objetivo determinado ou de algo a ser concluído, mas como um procedimento processual. Trata-se de uma característica do processo psicanalítico diretamente relacionada às peculiaridades da subjetividade humana: a contínua abertura para o devir. Essa perspectiva pode ser encontrada nos trabalhos de Lacan, nas formulações de Bion ou nas de Winnicott. Temos aqui um princípio fundamental da investigação em Psicanálise: ela é um processo investigativo não conclusivo.

Nos seus textos, o psicanalista aborda sua prática clínica, refletindo e conceituando sobre ela. Encontramos nesses trabalhos a historicidade pela qual o analista apresenta um testemunho de seu percurso como clínico e como teórico. Desvela-se o processo da constituição da identidade profissional do analista. Ao mesmo tempo em que essa transformação contínua da identidade do analista assinala algo de seu conhecimento sobre a subjetividade humana e sobre a situação clínica.

O fato de serem trabalhos que não utilizam a metodologia tradicional, caracterizada pela dicotomia sujeito-objeto, controle de variáveis, não os torna menos rigorosos, pois eles são também feitos com rigor, em uma outra perspectiva. Neles o rigor é dado, principalmente, pela fidelidade aos princípios que norteiam a prática da investigação psicanalítica.

Um fator também importante é a colaboração que a psicanálise traz à universidade por meio de um outro modelo de fazer ciência. Nele o rigor é encontrado não pelo controle de variáveis, mas pela fidelidade a um paradigma, a um vértice epistemológico. Os trabalhos produzidos a partir desses princípios, surgem como textos que se articulam em um determinado estilo, característico de seu autor. É interessante encontrarmos trabalhos feitos dessa maneira em que a própria forma do texto é fiel ao estilo e ao tema tratado no trabalho. São trabalhos que possuem uma coerência interna e uma organicidade que apontam o rigor de seus autores.

Se a psicanálise traz uma contribuição com o seu paradigma para a produção de conhecimento na academia, por outro lado, a universidade também contribui para a formação dos psicanalistas. Algo importantíssimo!

Como orientadores da pós-graduação, atualmente, recebemos inúmeros profissionais advindos de instituições formadoras de psicanalistas. Há uma profunda diferença na maneira como os trabalhos são produzidos nessas duas instituições: na academia e nas instituições formadoras. O mais comum é que as instituições formadoras esperam que os seus membros apresentem trabalhos que demonstrem uma aprendizagem. Produzem-se trabalhos que mostram que o autor aprendeu um conjunto de conceitos e que possui o domínio de uma determinada técnica clínica. São textos que devolvem à instituição o que foi ensinado ao aluno. Evidentemente, esse procedimento tem importância do ponto de vista institucional, por outro lado traz um problema psicanalítico: é uma perspectiva educacional que obtura a identidade do analista que se deseja formar, por uma relação transferencial com a instituições formadoras de difícil resolução. A perspectiva na pós-graduação é outra: o pesquisador precisa investigar para além do conhecido, produzindo um trabalho que revele sua autoria e autonomia de pensamento. Observando-se os inúmeros trabalhos produzidos na pós-graduação pelos psicanalistas nota-se que, a academia auxilia o analista a superar a sua transferência com sua instituição de origem. O fato é que a função psicanalítica de alguém não está plenamente estabelecida enquanto o indivíduo não se torna, realmente, um investigador. O ethos da psicanálise demanda investigação sempre para mais além.

A psicanálise coopera com a universidade na medida em que apresenta novas modalidades do "fazer científico." Por outro lado, a universidade oferece aos psicanalistas a possibilidade de superar as suas transferências institucionais. Essa inter-relação gera frutos. Algo que podemos testemunhar nas bibliotecas das universidades. Hoje a investigação em psicanálise é um modo de produção de conhecimento legítimo, com uma grande quantidade de trabalhos produzidos nos diferentes níveis de titulação acadêmica. Tendo sido muitos deles realizados com o apoio das instituições de fomento à pesquisa.

Recebido em 03.09.2001

Aceito em 05.10.2001

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    Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, São Paulo, SP – CEP 05508-900.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Mar 2002
    • Data do Fascículo
      2001
    Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco A, sala 202, Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, 05508-900 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
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