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Famílias e Violência: Reflexões Sobre as Mães de Acari

Familles et Violence: Reflexions Sur les Meres D'acari

Families and Violence: Reflections on the Mothers of "Acary"

Resumos

Na década de 90 ganharam uma certa amplitude notícias que retratavam mulheres, especialmente mães, nas praças e ruas reivindicando justiça. O que uniria essas mulheres seria a maternidade e a violência que as tinham separado de seus filhos, mortos ou seqüestrados. Acredito que o fato de participar de movimentos tem levado as mulheres a redefinições e transformações em sua identidade de gênero, bem como tem possibilitado construir para a maternidade outras dimensões. Assim, a noção de experiência tornou-se central em meu estudo. Foi desse modo que pude perceber a construção de uma nova representação para a figura materna. Primeiro, a partir de jornais, depois, ao entrevistar essas mães. Minha análise se voltou para o protagonismo político da mulher das classes trabalhadoras a partir do lugar que tradicionalmente ocupam na família e que, em princípio, seria destituído de uma dimensão política. Dessa forma, este escrito visa resgatar a partir das falas e das imagens destacadas por essas mulheres, o modo como a violência é sentida ao se tornar parte de suas vidas. Utilizei, para tanto, as entrevistas e os recortes de jornais por elas mesmas selecionados para fazer parte de seus álbuns de recordação. A imagem de mulheres na luta, de mães em luta foi de onde parti; e busco, nesse texto, problematizar os impactos e contradições, as continuidades e rupturas, que essa representação traz em seu bojo.

Família; Maternidade; Violência; Movimentos sociais


Dans la décade des années 90 les informations sur les femmes qui défilaient ont gagné une centaine amplitude, spécialement les mères sur les places et dans les rues en demandant justice. Ce qui unirait ces femmes serait la maternité, et la violence qui les avait séparées de leurs enfants, morts ou séquestrés. Je crois que le fait d'avoir participé à ces mouvements a amené les femmes à des redéfinitions et des transformations dans leur identité de sexe, ainsi que la possibilité de construire d'autres dimensions pour la maternité. La notion expérimentale a été le centre de mon étude. Ce fut de cette manière que j'ai pu percevoir la construction d'une représentation nouvelle pour la figure maternelle. D'abord à partir de journaux, puis en interrogeant ces mères. Mon analyse s'est tournée vers le rôle politique principal de la femme des classes ouvrières à partir de la place qu'elle occupe dans la famille et qui, en principe, serait dénué de dimension politique. Ce travail a pour but de faire ressortir, par les dires et les images choisies par ces femmes, la façon dont la violence est sentie quand elle vient à faire partie de leurs vies. J'ai donc utilisé les entrevues et les coupures de journaux qu'elles avaient elles-mêmes sélectionnées dans leurs albums de souvenirs. Je suis partie de l'image de femmes en lutte, de mères en deuil ; et je cherche, dans ce texte, à mettre en question les impacts, les contradictions, les continuités et les ruptures que cette représentation apporte en elle-même.

Famille; Maternité; Violence; Mouvements sociaux


In the nineties, news which depict women, especially mothers, demonstrating for justice at squares and in the streets, reached reasonable repercussion. What joined this women was the violence that had tore them apart from their children, who had died or been kidnapped. I believe that by participating in these movements, women have been led to redefine and transform their gender identities as well as open new dimensions to maternity. Thus, this notion of experience became the core of my study. It was from this point of view that I could see the constructing of a new representation of motherhood. First from the newspapers and later by interviewing these mothers. My analysis turned to the leading role in political activity undertaken by working class women from their very traditional position in the family which is usually seen as been deprived of a political dimension. By means of these women's own words and selected images, this study aims to rescue the way in which violence is felt by them as it becomes part of their lives. For that purpose, I used interviews and newspapers' clippings selected by themselves that belonged to their memory albums. The image of women in fight, of mothers that are struggling, was where I started from; and I seek in this paper to question the impacts and contradictions, the continuities and ruptures that this representation brings in itself.

Family; Motherhood; Violence; Social movements


FAMÍLIAS E VIOLÊNCIA: REFLEXÕES SOBRE AS MÃES DE ACARI

Rita de Cássia Santos Freitas1 1 Professora Adjunta da Escola de Serviço Social/Universidade Federal Fluminense, Campus do Gragoatá, bloco E, Niterói. Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico: ritacsfreitas@uol.com.br

Universidade Federal Fluminense

Na década de 90 ganharam uma certa amplitude notícias que retratavam mulheres, especialmente mães, nas praças e ruas reivindicando justiça. O que uniria essas mulheres seria a maternidade e a violência que as tinham separado de seus filhos, mortos ou seqüestrados. Acredito que o fato de participar de movimentos tem levado as mulheres a redefinições e transformações em sua identidade de gênero, bem como tem possibilitado construir para a maternidade outras dimensões. Assim, a noção de experiência tornou-se central em meu estudo. Foi desse modo que pude perceber a construção de uma nova representação para a figura materna. Primeiro, a partir de jornais, depois, ao entrevistar essas mães. Minha análise se voltou para o protagonismo político da mulher das classes trabalhadoras a partir do lugar que tradicionalmente ocupam na família e que, em princípio, seria destituído de uma dimensão política. Dessa forma, este escrito visa resgatar a partir das falas e das imagens destacadas por essas mulheres, o modo como a violência é sentida ao se tornar parte de suas vidas. Utilizei, para tanto, as entrevistas e os recortes de jornais por elas mesmas selecionados para fazer parte de seus álbuns de recordação. A imagem de mulheres na luta, de mães em luta foi de onde parti; e busco, nesse texto, problematizar os impactos e contradições, as continuidades e rupturas, que essa representação traz em seu bojo.

Descritores: Família. Maternidade. Violência. Movimentos sociais.

"Então, ser mãe é...

eu acho que é construir assim, o mundo"

(Rosa2 2 Utilizarei nomes fictícios para preservar a fala das pessoas. – Mãe de Acari)

Em nossa sociedade, a violência tem sido um dos seus mais sofridos corolários. Na ampla gama de fatores que esta abarca, a prática de extermínios coletivos atingindo setores das classes trabalhadoras ocupou um lugar central nos noticiários brasileiros nos últimos tempos, chegando a constituir uma nova categoria: chacina, ausente dos discursos até inícios desta década. Minha tese se dedicou ao estudo de uma organização de mães que surgiu a partir de uma dessas chacinas: o desaparecimento de onze jovens que ficou conhecido como o "Caso Acari".3 3 O drama de Acari começou em julho de 1990, com o desaparecimento de onze pessoas, sendo três meninas e oito rapazes. Desses onze, oito eram menores de idade. Os "Onze de Acari", como ficaram conhecidos, desapareceram realmente em Magé, num sítio pertencente a avó de um dos desaparecidos. Estes são, em sua maioria, pertencentes a favela de Acari, ou de suas proximidades. Aparentemente, o grupo viajou para fugir de policiais que estavam tentando extorquir dinheiro de alguns deles que tinham envolvimento em assaltos e roubos de cargas de caminhão. Bandidos ou não, o fato concreto é que estes jovens foram retirados deste sítio numa noite de julho de 1990 por homens que se diziam policiais e nunca mais foram vistos (Freitas, 2000a).

Minha análise está centrada na cidade do Rio de Janeiro, mas devo ressaltar que essa realidade abrange toda a sociedade brasileira e, mesmo, internacional. O que inicialmente me chamou a atenção foi a recorrência de notícias que falavam sobre a participação de mulheres, especialmente mães fora de seus "contextos habituais". Eram mães que apareciam nas ruas, que invadiam os órgãos públicos, que conversavam com autoridades, que organizavam passeatas, que falavam na televisão, que ocupavam cargos públicos, que viajavam para outros países para conversarem com outras mães acerca de uma dura realidade que atingiu a todas: a violência contra seus filhos. Elas ocuparam as páginas dos jornais e os noticiários das televisões (algumas viraram novela ou motivo para documentários, outras, tema de músicas, bem como inspiração para poesias). Essas mães invadiram ruas e praças (internacionalmente) reivindicando justiça. É dessa realidade que, acredito, ganha ênfase uma "nova" figura para o imaginário materno: a imagem de mães que lutam. É dessa imagem que falarei aqui.

Como normalmente a imagem de mãe que possuímos está marcada pelas representações sociais da sociedade onde vivemos, creio que o que me motivou foi a percepção de que essas mulheres, de certa forma, negavam algumas facetas dessa imagem, embora enfatizassem outras. Ao conhecê-las, pude constatar que essa construção é realmente marcada por muitas ambigüidades. No dia-a-dia delas pude perceber as continuidades e rupturas que essas vivências - da violência e do seu processo organizativo - possibilitaram para suas vidas. Assim, vou falar de mães. Mas não vou falar de qualquer mãe. Essas mães têm classe, têm raça, e tiveram suas vidas marcadas por um acontecimento violento. Esse acontecimento fez com que se unissem. E foi a partir de seu cotidiano de mãe, dessa imagem socialmente construída que elas conseguiram estabelecer o "mote" para criar uma rede de solidariedade que congregasse a todas. Não busco estabelecer aqui o universo materno como destino único das mulheres; antes, busco apontar como essas mulheres se aproveitaram dessa categoria para daí criar laços e conquistar legitimidade para suas lutas. A imagem da mãe e das suas dores (a figura tradicional da mater dolorosa) funcionou como um agente eficaz nessa busca de solidariedade.

Desse modo, este texto se insere numa área de estudos que busca pesquisar/identificar o processo de transformações que incide sobre a família brasileira, especialmente no que se refere às suas classes empobrecidas. Por implicação, a constituição de uma nova identidade para as mulheres foi também alvo de problematizações. Uma identidade que não se sobrepõe sobre as outras, mas convive com elas. Uma identidade que repousa na busca de uma sociabilidade mais solidária e numa ampla rede de apoio mútuo (algo que nunca esteve longe da realidade de nossas classes trabalhadoras, sendo, na verdade, uma forma de sobrevivência fundamental em suas existências). A vivência da violência, fenômeno constitutivo da sociedade onde vivemos, foi um elemento central para o estabelecimento dessa "nova" figura materna.

Viver uma realidade nova traz mudanças para seus agentes. Assim, ao tratar da experiência associativa das Mães de Acari busquei analisar a forma como essas mulheres souberam transformar a maternidade - elemento que possui historicamente uma dimensão crucial na elaboração de uma imagem para as mulheres4 4 Badinter (1985), Costa (1989), entre outros. - em uma categoria fundamental para a legitimação de suas lutas. A maternidade, entendida enquanto um fenômeno processual e contraditório, possibilitou a incursão dessas mulheres no mundo público, a partir de um lugar que seria tradicionalmente atribuído à esfera privada. Nesse processo, as mulheres puderam reinventar a si mesmas e ao mundo à sua volta, transformando também os significados históricos da maternidade.

A aproximação: algumas questões metodológicas

As mulheres que se destacaram efetivamente como as Mães de Acari foram seis: Edméia (assassinada em 1993), Orquídea, Miosótis, Rosa, Cravo e Girassol. Foi a voz dessas mulheres que procurei ouvir. Além delas, existem outras cinco cujas participações ou foram incipientes ou nem existiram. Atualmente, o grupo passa por um momento de refluxo. Quando se pensa nas Mães de Acari, hoje, são as imagens de Rosa e Girassol que surgem. São prioritariamente delas os rostos que aparecem nas televisões e jornais; são delas as falas que escutamos nos documentários ou em palestras.

Meu primeiro contato com as Mães de Acari foi a partir de Girassol, 49 anos. Girassol trabalha no Centro Brasileiro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CBDDCA). Foi lá que nos conhecemos. Ela é uma mulher muito simpática e logo se mostrou disposta a ser entrevistada (o que para elas significa a possibilidade de poder continuar falando dos filhos desaparecidos). Foi através de Girassol que conheci Rosa, 49 anos. Rosa foi a primeira das mães que entrevistei; ela me colocou em contato com Orquídea, que me apresentou a Cravo e Miosótis. Orquídea, 50 anos é mãe de um bonito rapaz que vi andando a cavalo, numa das fotos que me mostrou. Aliás, a maioria delas tinha uma foto, um álbum, algo para me mostrar do filho que se perdeu. No mesmo dia em que fui na casa de Orquídea, conheci Cravo. Num sábado, depois do trabalho, conheci Miosótis, 44 anos. Ela é sozinha e trabalha de segunda a sábado; é a entrevistada mais difícil de contatar devido ao seu trabalho e à sua participação numa igreja evangélica, bem como sua timidez. Estava fechado, assim, o círculo em torno das cinco mulheres que efetivamente fizeram o nome "Mães de Acari" ser reconhecido mundialmente.

Acredito que essa é a frase que mais nos fala a respeito de Miosótis: "O que eu tenho que falar?" Ela não consegue imaginar que alguém tão distante de seu universo cultural possa querer ouvi-la e que ela tenha realmente algo a dizer. Não é coincidência o fato de que só consegui entrevistá-la uma única vez. Após a primeira entrevista, as dificuldades em marcar uma segunda foram imensas. Além de trabalhar bastante, mesmo nos momentos de folga, Miosótis ficava à volta com os afazeres da igreja evangélica da qual faz parte. Depois de muitos cancelamentos, percebi que ela não queria efetivamente falar num assunto que lhe trazia tão desagradáveis lembranças - e, por outro lado, sua inserção nessa igreja talvez esteja significando, hoje, um outro momento de sua vida. Respeitei sua vontade.

Inicialmente, uma questão logo se impôs: como falar de nossa própria história? Desses que são também os "nossos" tempos? Dessas mulheres, pobres e simples que, de repente, são retiradas de suas casas por um evento desse porte: o seqüestro e desaparecimento de seus filhos. Para poder falar delas, a fonte oral tornou-se uma necessidade metodológica. Uma necessidade e um prazer - devo dizer. É bem verdade que, em muitos momentos, as diferenças de vidas, de linguagem, a gravidade de suas denúncias, a dor que ainda sentem, causaram momentos de extrema tristeza e estranhamento. A cidade do Rio de Janeiro ganhou outras cores para mim; cores nem tão maravilhosas. Mas apesar disso, a troca de experiências sempre resultou riquíssima.

Neste momento surge a preocupação do que esperam com esse trabalho; bem como com um modo de aproximá-las dele, elas que por vezes estão muito distantes do mundo acadêmico. Transformar os seus relatos em frias transcrições é outro elemento perturbador. Como garantir a emoção? Como conseguir passar a mensagem que me foi confiada? Ir do mundo da palavra falada para a palavra escrita é sempre um difícil processo. Manter-me fiel às suas falas e ao mesmo tempo construir um afastamento que permitisse o trabalho de análise foi um exercício de vigilância constante, nem sempre concluído com êxito total, devo admitir.

Resgatar o nosso próprio tempo não é uma atividade fácil. O primeiro obstáculo que enfrentamos aparece na dificuldade que sentimos de nos afastar do cotidiano e desenvolver um sentido mais crítico e um certo tipo de "estranheza" que possibilita a pesquisa. Como afirma Bourdieu (1998), é importante nos afastarmos tanto do olhar do "estrangeiro" como do "nativo" para irmos além do senso comum. Em livro clássico, Thompson (1992) afirmava tempos atrás que as palavras faladas "insuflam vida na história", possibilitando o resgate de uma história contada a partir das próprias experiências vividas pelas pessoas. Dessa forma, a história oral penetra em áreas que de outro modo seriam inacessíveis, ajudando a transformar os ditos "objetos de estudo" em sujeitos, isso porque ela possibilita a abertura da história para outras vozes, já que as testemunhas podem ser convocadas também entre as classes subalternas, caracterizando, assim, o caráter "mais democrático", que lhe atribui o autor.

Dessa forma, é o cotidiano que surge como objeto de análise. A noção de experiência é central em meu estudo. Uma experiência que é histórica, que é vivida como contradição e fragmentadamente, mas que nos constitui enquanto sujeitos únicos, sempre em ininterrupta relação uns com os outros, a partir das diversas relações de poder, dos diversos campos de força e luta onde nos fazemos agentes de nossa própria história. Só podemos pensar a relação indivíduo-sociedade tendo como ponto de partida a relação - de mão dupla - que existe entre estes; trata-se de analisar a relação entre as posições sociais dos agentes, seus habitus5 5 Não vou me deter aqui em uma discussão mais aprofundada sobre a noção de habitus. (Cf., nesse sentido, Bourdieu, 1996). e as escolhas que esses agentes fazem. A experiência é decorrente de uma multiplicidade de fatores históricos, sociais e psicológicos que compõe a vida de cada indivíduo. Conhecer o dia-a-dia dessas mulheres, seus hábitos, sua cultura, de classe, mas também de gênero, etnia e idade nos ajuda a pensar como pôde surgir, nesse momento de suas vidas, um fenômeno como as "Mães de Acari" As participações de cada uma são diferenciadas e o modo como, hoje, me contam suas vidas e suas inserções como uma Mãe de Acari, é conseqüência dessa história vivida e também é o agente modelador dessa história.

Os indivíduos representam a realidade a partir das condições em que vivem e das relações que estabelecem uns com os outros. Devido ao seu caráter social, estudar as representações que cada ser individualmente utiliza nos fala da sociedade e da cultura onde essa pessoa está inserida6 6 Minayo (1995, p. 89) afirma que nas Ciências Sociais as representações sociais são definidas enquanto " categorias de pensamento que expressam a realidade, explicam-na, justificando-a ou questionando-a". . Nesse sentido, entendo que não se pode perder de vista que a significação da vida cultural de uma sociedade é dada tanto por sua base material como pelas idéias que produz. Mas não podemos esquecer que as representações sociais se expressam no plano individual - é o ser que é investigado. As idéias (e, portanto, também a linguagem) estão comprometidas com as condições de classe, sem que isso signifique uma "camisa de força", já que as classes (e os indivíduos singulares) são formadas (formados) na luta, na disputa que envolve elementos de conformismo e de mudanças. Bourdieu (1996) trabalha a noção de espaço social como um campo onde se manifestam relações de forças e de poder, portanto, um campo de lutas - o motor para mudanças estaria nessas lutas. É desse modo que relaciono a noção de espaço social com a de classes sociais. É nesse sentido também que devemos entender o argumento de Almeida (1997): já que o mundo social se organiza a partir de campos onde várias forças estão interagindo, as experiências de gênero devem ter sua participação objetiva tanto como uma força reprodutora, como força "produtora/inovadora".

Vale ressaltar que as narrativas dessas mulheres fornecem uma chave que nos permite atingir uma compreensão, ainda que limitada, da experiência de vida de mulheres e homens pertencentes às classes trabalhadoras, em nosso tempo. A partir de suas falas, que se voltam prioritariamente para a maternidade partida e a violência - mas que alcançam também outras dimensões, como a relação homem-mulher, o significado da família ou do mundo do trabalho - é a cidade do Rio de Janeiro de hoje, com suas ladeiras e encruzilhadas, que nos aparece em seus meandros, da forma como é (dramaticamente) vivida por elas.

Devo acrescentar ainda que ao me deparar com o chamado "Caso Acari", eu me aproximei deste quando uma história e uma imagem acerca dele já haviam sido construídas, seja por essas mulheres, seja pela mídia. Se foi a partir dos noticiários que a idéia de minha tese surgiu, estes se tornaram minha primeira fonte de pesquisa. A mídia possui, hoje, um papel essencial em nossa sociedade; isso é ainda mais verdadeiro no que se refere à construção das imagens desta tragédia (mas não apenas desse caso, devo ressaltar). Ao atuar na denúncia, a mídia atua igualmente como um agente fixador da memória, ao contar/produzir uma história.

A desqualificação do ser humano e de sua fala é comum num tempo regido prioritariamente pela máquina, pela ciência, pelas notícias curtas e rápidas que a mídia consente que cheguem até nós. Mas, contraditoriamente e demonstrando a ambigüidade que caracteriza a realidade, temos que reconhecer que essa mesma mídia foi um ator fundamental para a constituição e desenvolvimento das Mães de Acari. Os repórteres estiveram sempre presentes, ajudando a pensar estratégias, dando apoio e, mesmo nos órgãos mais conservadores, conseguindo abrir espaços para as vozes e a luta dessas mulheres. A mídia tornou-se, assim, um interlocutor fundamental. Extrapolando essa dimensão jornalística, em 1996, a novela "Explode Coração", da TV Globo, contava, em sua trama, a história de um menino que fora raptado. Também na novela, foi a figura da mãe a responsável por uma busca incansável pela criança. Essa busca veio culminar com sua participação junto às mães na Praça da Cinelândia.7 6 Minayo (1995, p. 89) afirma que nas Ciências Sociais as representações sociais são definidas enquanto " categorias de pensamento que expressam a realidade, explicam-na, justificando-a ou questionando-a". Acredito que o fato de ter perdido a filha em circunstancias também bastante traumáticas pode ter "facilitado" a "aproximação" de Glória Perez, autora da novela, com as Mães da Cinelândia. Sem dúvida, ela é outro nome ímpar quando pensamos em mães famosas, desde o assassinato de sua filha, Daniella Perez. As Mães de Acari participaram de muitas cenas na novela, onde puderam mostrar a todo o Brasil, as fotos de seus filhos desaparecidos. Durante o ano de 1996, as manchetes referindo-se a mães participando da novela Explode Coração, ou a crianças encontradas são muitas8 8 Cf. Freitas (2000a). A Revista Isto É, de 03 de abril de 1996, reforça essa iniciativa e enfatiza que a novela, além de encontrar crianças, inspirou movimento similar em São Paulo, as "Mães da Praça da Sé". , demonstrando o poder da mídia, principalmente em se tratando de uma instituição do porte de uma Rede Globo. O seriado "A Justiceira", realizado também pela TV Globo, enfocava, de novo, o seqüestro de uma criança e a luta de sua mãe para reavê-la. O interessante é que esses personagens, esses "justiceiros" modernos são sempre do sexo feminino; na maioria das vezes, são mães que tomam a si (e às quais são imputadas) o encargo de não apenas cuidar dos filhos em desenvolvimento, mas serem responsáveis até mesmo pela sua procura. Contudo, se elas partiram dessa imagem evocada pela mídia, elas souberam se aproveitar dessa imagem, agregando a ela novos significados.

A construção de uma solidariedade na dor foi a forma que essas mulheres encontraram para lidar com esse fato: o desaparecimento e a suspeita, nunca admitida, da morte de seus filhos. Quero crer que o envolvimento delas nessas lutas - a partir do que seria seu lugar na esfera privada - possibilitou, dentro de seus limites, a construção de uma nova identidade relacionada a suas práticas na esfera pública que gerou mudanças também na dimensão privada, dada a circulação nos diferentes espaços.

Mães e violência - imagens e práticas

As expressões que a violência pode tomar são múltiplas. A violência das chacinas e dos grupos de extermínio é parte central da discussão que trataremos aqui, bem como da vida dessas mulheres. Mas a violência perpassa seus cotidianos de várias formas.9 9 Seja nas relações familiares, na vizinhança, nas ruas onde circulam. Não vou, contudo, devido às proporções desse texto, fazer uma discussão aprofundada acerca dos significados da violência (Cf. nesse sentido, Freitas, 2000a, 2000b). Esta é hoje uma realidade globalizada e as pessoas têm necessidade de construir estratégias de enfrentamento a essa realidade, tais como a associação dessas mulheres, que podemos caracterizar enquanto um fenômeno internacional. Em 1994, em Paris, foi organizado pelas Madres de Plaza de Mayo10 10 Outro exemplo paradigmático quando falamos de mães em luta. As Madres de Plaza de Mayo se constitui em um grupo de mães que se reúne desde 1979 na Argentina, reivindicando os filhos desaparecidos durante a ditadura militar daquele país. Hoje, transformaram-se em uma referência internacional. o I Encontro Internacional de Mães que Lutam11 11 Após o qual não aconteceu nenhum outro. As dificuldades de se organizar um encontro desse porte foi a justificativa que me deu Hebe Bonafini, presidente das Madres, para não ter tido continuidade tal encontro. . Uma das resultantes desse encontro foi uma poesia belíssima onde a violência dos tempos atuais é enfatizada como uma dimensão fundante em suas vidas. Além da violência, é a maternidade a outra linha apontada para costurar essa união. Vejamos um fragmento dessa poesia:

Mujerès,

Poneos en pie de guerra,

por la paz;

y que nuestras armas

sean la solidariedad,

el amor, la esperanja.

Levantaos

madres, resignadas

a perder nuetros hyjos

en una batalha,

que no es la suya,

que no es la nuestra,

que es NADA.

? De quien son esas batallas?

? Por que esto pasa?

? Quien las provoca?

? Quien las aclama?

Mujerès insumisas

por la PAZ y la vida12 12 Essa poesia foi escrita por uma mãe espanhola (Madri, 20/03/1994) e ofertada às Mães de Acari durante o Encontro de Mães em Paris.

Para enfrentar a violência dos tempos atuais, é a figura da mãe que surge como responsável para instaurar uma "nova ordem" social. Porém, ao ressaltar valores como afeto, amor e solidariedade, enfatiza-se também que as armas usadas pelas mulheres não podem ser as mesmas que as dos homens. Já de início se estabelece uma leitura bastante dicotômica dos valores (e papéis) atribuídos a mulheres e homens. Essa dicotomia se fará presente de diversas formas, inclusive na fala das mães que entrevistei. Mas o que quero ressaltar no momento é meu entendimento de que, nesse encontro, uma nova expressão foi cunhada: mães que lutam.

A imagem das mulheres construída socialmente, segundo Higonnet (1991), abarca três ícones: a madona, a puta e a musa. Quando se fala em mães, a imagem da puta não aparece. Em nenhum jornal ou fala uma dimensão sexualizada é enfatizada. Nessa pesquisa dialogamos basicamente com duas figuras: a madona e a musa. Podemos dizer que a imagem da mãe (a madona) se divide em duas visões: a mãe sofredora, a mater dolorosa e - conseqüência dos tempos atuais - a imagem de uma mãe lutadora, uma mãe guerreira. Justapondo-se a essa imagem surge a figura da musa dos tempos modernos, uma imagem bastante enfatizada nos jornais. Uma imagem idealizada da mãe (e da mulher) como a responsável pela justiça e pela construção de uma sociedade mais igualitária, pois referenciada ao que seriam os "valores maternos".

Conheçamos melhor essas imagens. É difícil, em nossa sociedade, desvincular a imagem da mulher da figura materna. E de uma imagem bem precisa de mãe. Mãe é a que chora, que sofre, que tem o avental "todo sujo de ovo", que "padece no paraíso", a "rainha do lar", que se sacrifica pelos filhos, a compadecida que tudo perdoa; enfim, que os ama acima de tudo. Essas mulheres, protagonistas dessa história, tiveram seus filhos arrancados de si. Isso as impulsionou para a luta. O chamado mito do amor materno13 13 Acerca deste tema, já é clássico, hoje, o livro de Badinter,. (1985), Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno. Este livro é mais conhecido até pelo seu subtítulo do que pelo título propriamente. Neste, Badinter rebate o discurso acerca da propensão "natural" que haveria em toda mulher para a maternidade, tentando pensar como esse "desejo natural" foi sendo "construído" historicamente, ao passo de hoje, fazer-se presente em nosso dia-a-dia, muitas vezes como algo inquestionável para muitas pessoas, inclusive para as mulheres, protagonistas desse estudo. aparece como uma realidade naturalizada na fala de todas. Mas se existe essa representação mais abnegada da figura da mãe, Caetano Veloso, contraditoriamente, nos mostra um outro lado dessa imagem:

Minha mãe me deu ao mundo

de maneira singular

me dizendo a sentença

pra' eu sempre pedir licença

mas nunca deixar de entrar.

A mãe que impulsiona o filho para a luta (para nunca deixar de entrar onde deseja chegar) é a mesma mãe, que pede licença, mas invade, sempre que for preciso, as praças e as salas das autoridades. Esta é, assim, uma outra face dessa personagem. E suas faces são múltiplas. Início falando da figura da mãe sofredora.

A mater dolorosa

Como afirma Ariès (1981), foi no início do século XVIII, com o surgimento da escola, da preocupação com a privacidade e igualdade entre os filhos, da manutenção das crianças junto aos pais e o sentimento da família sendo valorizado pelas instituições sociais, principalmente a igreja, que começou a se desenhar o perfil de família que hoje conhecemos e aprendemos a pensar como universal, sem atentar para a sua construção social. O surgimento da família moderna é associado à separação entre o mundo privado e público. A valorização do casamento e da família é acompanhada da valorização das crianças. Ser mãe tornou-se um dos principais papéis pra as mulheres (assim como ser pai - e provedor material - se transformou no "destino" dos homens).

A definição mesma da maternidade já é ambígua. Esta, tanto pode ser entendida enquanto um momento datado, a gravidez; como uma ação em longo prazo, envolvendo a maternagem e a educação. Quando terminam os "deveres" de uma mãe? Quando coloca no mundo o embrião ou quando este se transforma num adulto educado e capaz de garantir sua própria sobrevivência? Como afirma Badinter (1985, p. 20), "a função materna, levada ao seu limite extremo, só terminaria quando a mãe tivesse, finalmente, dado à luz um adulto". Vários são os discursos que surgem ressaltando a maternidade na formatação da identidade feminina. Se a Igreja identifica na figura de Maria o ideal de mulher; para a medicina, igualmente, é a maternidade que define o que é ser mulher (Berriot-Salvadore, 1991; Nunes, 1991). Exaltando-se a maternidade, exalta-se também a responsabilidade das mães pelos seus filhos. A mulher passa não apenas a ser responsável pelo desempenho dos filhos, como também culpada pelos fracassos destes. E culpadas também, podemos dizer, pelo "meio social" em que os filhos são criados ou as amizades que possuem. A responsabilidade pela prole, tanto no momento do nascimento, como depois, constitui-se numa culpa raras vezes dividida com os maridos. Com o desaparecimento dos jovens de Acari o que se percebe é que, também nesse caso, foram as mães que se sentiram responsáveis. E alguns pais chegaram a verbalizar isso.

Importante será, inicialmente, nos debruçarmos sobre os significados da maternidade para essas mulheres. As mudanças nesses significados atingem todas as esferas da sua vida e vão transformando também os significados da própria relação familiar, que ganha novas cores. Ao falarmos das mães de baixa renda, algo que não se pode deixar de levar em conta é a questão objetiva da falta de condições para criar os filhos, o que acaba por tornar a maternidade, um privilégio de classe. Miosótis é clara nesse sentido, ser mãe é maravilhoso, mas é uma "barra" também, uma vez que tem que trabalhar fora e não possui companheiro para dividir despesas; ela é, como afirma "pai e mãe"; ou seja, responsável tanto pelo carinho, pelos cuidados (de filhos e netos) como pelo sustento da casa. A monoparentalidade e a feminização da pobreza estão longe de ser questões meramente retóricas em suas vidas. Miosótis é um bom exemplo nesse sentido. Tanto trabalho faz com que quase não tenha tempo para os folguedos da maternidade. A cara com que esta se mostra, prioritariamente, é a da responsabilidade, da busca por mais e mais trabalho para poder sustentar filhos e netos.

Além da responsabilidade, o medo é um elemento extremamente presente em suas falas. Orquídea nos diz que a mulher para ser mulher tem que ser mãe. Sua mãe acha isso, e ela por sua vez concorda com a mãe. Por isso ela não tem dúvida em afirmar que toda mulher tem que ser mãe um dia, e, assumindo a perspectiva da mater dolorosa, enfatiza que tem que ser com dor; "minha mãe que fala: a mulher que é mulher tem que ter a dor de um filho". Sua filha foi mãe aos quinze anos. Orquídea concorda que ela foi mãe muito nova, "mas o que quê vai se fazer, né? Está escrito, não adianta. A gente que é mulher tem que ser mãe um dia, né?" A filha não discorda da mãe, afirmando para mim a plenitude da maternidade e a fatalidade de um destino imutável.

A ligação mãe-filho seria, inclusive, mais intensa. E, na maioria das vezes, é definida a partir da dor, do sofrimento. Por exemplo, Orquídea diz que, "se meu filho não come, minha filha não come assim, tem algum problema, eu já fico, parece que aquilo é... parece que sou eu ou, ou até pior, entendeu?" Pode ser de difícil verbalização a definição do que é ser mãe. A única maneira que Orquídea e a filha encontraram para melhor me responder o que era tão maravilhoso assim na maternidade foi dizer que quando eu for mãe, eu vou saber. Assim, a experiência da maternidade é como se falasse por si mesma. A filha, aos 16 anos repete o discurso da sua mãe e mesmo que a menina atrapalhe hoje seus planos de trabalho e estudo e mesmo de namoro, a maternidade continua a ser a coisa "mais maravilhosa do mundo".

A maternidade já surgiria modificando a mulher. A mulher se torna uma outra pessoa, "completamente diferente" (Orquídea). Esta não consegue encontrar palavras para explicar, "é um dom que Deus nos dá, entendeu? É uma coisa que Deus, sei lá, que transforma a gente"; é uma coisa divina, portanto. Segundo Orquídea, "ver o filho mamando no seu seio assim é coisa muito gostosa". Ou "quando está crescendo, quando começar a falar, você leva para o colégio, para o jardim assim, é uma coisa maravilhosa". Dessa forma, uma coisa maravilhosa seria ver os filhos crescendo; nesse sentido, a maternidade encobre os vários anos que os filhos vivem, já que a maior alegria é vê-los crescer - algo que elas não tem mais como realizar.

Contudo, se eu pergunto a Orquídea o que é ser mãe, sua resposta mostra a contraditoriedade que a prática da maternidade abriga: "ser mãe é uma coisa, ai, é uma coisa muito gostosa." Mas nesse mesmo instante afirma que "às vezes, falo com meus filhos: Ai, se eu soubesse, eu não queria ser mãe nunca". Isso porque, apesar de toda beleza, ser mãe significa também "um trabalho horrível. É trabalho, é amor, é tudo, é tudo". A responsabilidade é grande, "qualquer coisa no filho, a gente está sofrendo". Qualquer problema que os filhos têm, é de certa forma, problema da mãe também. Mas a maternidade não se limita aos domínios da casa. A realidade além muros está presente, principalmente quando afirma que com a violência existente atualmente, a preocupação é ainda maior; assim, "ser mãe é preocupação, é dor, é amor, é tudo, entendeu?" Ser mãe é tudo. Essa é uma definição recorrente para essas mulheres.

Vale a pena ouvir a fala de Girassol. Segundo esta, "ser mãe. Deus me livre! Ser mãe é coisa mais linda desse mundo, mais linda". Ser mãe é a coisa mais maravilhosa, mais linda do mundo, mas sua definição começa com uma exclamação sintomática: "Deus me livre!" Girassol narra a felicidade que é chegar em casa e encontrar os filhos. Mas ao mesmo tempo, a responsabilidade surge como um sentimento pesado; afinal, não tem condições de proporcionar uma boa escola, uma boa casa, bons médicos, e também nenhum passeio, uma viagem, algo que trouxesse maior crescimento em suas vidas. Girassol chega a afirmar que seria uma pessoa muito frustrada se não fosse mãe. Embora admita que, se fosse começar a vida hoje, com a experiência acumulada que possui, ela não teria todos os filhos que teve. Talvez seja um pouco para remediar a dor da perda que Girassol se dedique ao movimento. Para ela, achar uma criança é como "ser mãe de novo"; "assim, como seu eu tivesse encontrado a minha filha".

Cravo, embora admita que nunca pensara em ser mãe, afirma que não tem dúvidas que foi bom ser mãe. E, se pudesse, diz que gostaria de ser mãe de novo, "ia ser a maior felicidade da minha vida". A felicidade viria do fato de poder cuidar novamente de uma criança. A dimensão do cuidar aparece constantemente em sua fala, para quem o cotidiano materno sempre significou um cuidado redobrado com os filhos que eram doentes, tendo que estar atenta a toda hora com médicos e remédios. O que chama atenção é a imagem não apenas da mãe sofredora, mas o fato de que, para além do papel de mãe, elas não conseguem se identificar com nenhum outro.

A morte, a dor, o luto são experiências indescritíveis, por isso, muitas vezes é necessário um grande esforço para contar o que seria "incontável". A sociedade em que vivemos expulsou a morte de nossas casas. Essas mulheres trazem senão a morte, pelo menos a ausência (de seus filhos que estão incomunicáveis) para perto de nós. Esse é um tipo de memória que normalmente quereríamos esquecer. Tal como elas, se pudessem esquecer. A contradição é manifesta: a vontade de querer que seja lembrado, mas ao mesmo tempo, a necessidade de esquecer como forma de continuação da vida.

Em torno da dor elas reconstruíram suas vidas. Não é por acaso que a figura da mater dolorosa é extremamente presente em suas falas. Rosa, por exemplo, diz que achava que tinha que ficar 24 horas por dia chorando porque sua filha havia desaparecido. Essa era uma cobrança que ela própria se fazia. Rosa diz que hoje entende isso, mas que, antigamente, não aceitava não: como uma mãe poderia rir sem saber como seu filho estava, sem saber se este estava vivo14 14 Iliane Martins, cuja filha foi morta num acidente de carro protagonizado pelo jogador Edmundo foi entrevistada por Vera Carneiro (cujo filho foi morto também em um acidente de carro, este protagonizado pelo ator Felipe Camargo) no Caderno de Domingo do JB de 05/04/98. Essa mesma discussão reaparece nesta entrevista. ? E pior, sabendo que os culpados pelo seu desaparecimento ou sua morte estavam impunes. Toda essa reflexão surge fazendo-nos pensar que a projeção alcançada por elas aparece como um atenuante para a dor que sentem. A dor passou a ser uma realidade eternamente presente em suas vidas e, por implicação, em suas falas. Miosótis chegou a somatizar a dor que ela imaginava que seu filho estivesse sentindo (ficou um mês sentindo dores). Cravo teve uma gravidez psicológica logo após o seqüestro. Em uma palestra15 15 Esta palestra fez parte de um curso ("O Social: questões contemporâneas"), promovido pelo Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Proteção Social, em 1999. O NPHPS funciona na Escola de Serviço Social/UFF. , Rosa conta que às vezes se pergunta (junto com Girassol) o que foi que elas fizeram com as próprias vidas. Dos vários caminhos que poderiam ter seguido, ela afirma ter escolhido o caminho da dor: "nós tínhamos tantos caminhos para escolher e escolhemos o caminho das dores. Porque estar dentro do Caso Acari é escolher o caminho das dores". Uma dor que só pode ser suportada por causa do amor de mãe.

A realidade do amor materno não é passível de dúvidas para elas. Este aparece em suas falas, não como um mito, mas como um destino; ele tem que ser necessariamente compartilhado por todas as mulheres. Não podemos esquecer que é esse amor que explicaria a solidariedade entre estas - um tipo de solidariedade que inclusive pareceria escapar aos laços de classe. Desde o desaparecimento de seus filhos, a maternidade tornou-se o horizonte a partir do qual essas mulheres organizaram suas vidas. Vale a pena pensarmos que as mulheres foram/são preparadas para um tipo de comportamento materno que não se aproxima do que seria esperado pelo comportamento paterno. Isso é explicado muitas vezes, em suas falas, a partir de uma questão natural, biológica: tem relação com o fato dos filhos saírem literalmente "de dentro" de suas mães. O parto caracteriza esse momento único. Contudo, algo a que elas não se referem é que, mesmo dentro do grupo, existem mães que são mães também por afinidade, como é o caso de Girassol que cuida de uma sobrinha como se fosse sua filha, bem como mães que geraram seus filhos e nem por isso participaram do movimento.

Há o reconhecimento de um certo papel de mãe; assim, as práticas das outras mulheres que escapam a essa imagem não são consideradas como relevantes. Nesse momento, a explicação desliza de uma visão naturalizante do amor de mãe e passa a ser enfatizada sua dimensão social. Girassol, por exemplo, ao tentar entender a não participação de uma mãe, justifica afirmando que esta não criou o filho. Nesse caso, o amor materno não viria da gravidez em si, mas da prática, do dia-a-dia de amor e cuidados compartilhados.16 16 Outras explicações para a não participação dessas mães elas buscam na inocência de seus filhos, ou no fato dessas mulheres estarem vivendo outras relações. Qualquer aprofundamento nesse sentido, ver Freitas (2000a).

O que prova que, apesar de enfatizarem o momento (e a dor) do parto como um momento sublime para a mulher e que esta só seria completa com a maternidade, nota-se que o dito "amor materno" surge também a partir das práticas de acolhimento e socialização das crianças. Não basta, portanto, parir. A maternidade se estabelece na criação. Apesar do momento "mágico" do parto, é no cotidiano vivido pelas mulheres, que essa "representação" pode adquirir consistência e tornar-se parte de suas vidas a ponto de fazer com que elas partam para a luta. A maternidade atravessa o dia-a-dia das mulheres desde a infância. Rosa (assim como Girassol) lembra que quando era criança e brincava com os amiguinhos, ela sempre ocupava o papel de mãe, e na descrição desse papel da infância, encontramos também uma definição de maternidade: "eu sempre fui a protetora, a que protegia, a que mandava, a que distribuía, a que fazia comidinha: eu nasci para ser mãe" - é o que me confirma. Não é a toa que para ela ser mulher é algo a ser coroado com a maternidade:

a gente reclama, da menstruação. A gente reclama da, da má divisão, que a natureza é ingrata conosco. Mas, ela é soberana quando a gente abre as pernas e bota um filho no mundo. Eu acho. Não tem momento maior. É um momento muito, muito grande. Muito grande, muito único, muito, muito, muito nosso mesmo.

Um aspecto central na obra de Del Priore (1995) é exatamente sua ênfase que o lugar materno não é (nem nunca foi) um lugar social desprovido de poder.17 17 Ver neste sentido também o livro de Rocha-Coutinho (1994), Tecendo por Trás dos Panos. A maternidade, hoje, continua sendo uma maneira de construir uma imagem para as mulheres e, por implicação, continua definindo um espaço e um poder intimamente associado a ela.18 18 Segundo Bock (1991), a maternidade teve um importante papel nas teorias dos primeiros movimentos de mulheres. Ser uma Mãe de Acari, apesar do aspecto da dor (sempre muito enfatizado), também possibilitou a essas mulheres uma fonte de poder e identidade.

Podemos nos perguntar que expectativas estão sendo geradas a partir dessa organização de mães. Elas, com suas práticas trazem para o debate político questões que podem subsidiar a formatação de um novo padrão de cidadania, novas formas de sociabilidade. Entendo que das experiências (sociais, históricas, singulares) que elas vêm acumulando pode estar sendo gerada uma nova maternagem, um novo modelo de mãe e, por implicação, uma outra imagem, uma nova prática social para as mulheres - que terá repercussões na família, nas relações de afeto e vizinhança.19 19 Essas reflexões sem dúvida se aproximam daquilo que Giddens (1993) aponta como transformações na intimidade. Chegamos, assim, a imagem das mães em luta.

A dimensão da luta

Como ser mãe é tudo e os filhos merecem tudo, eles merecem até que suas mães invadam as ruas. E aqui se delineia uma outra dimensão para a atividade materna: a luta. Uma dimensão que nunca esteve propriamente ausente20 20 Cf., por exemplo, Farge (1991) para se ter a idéia da internacionalidade e da longa duração desses fenômenos. Até nos mitos encontramos várias imagens de mães lutadoras, como na história de Demeter e Perséfone. Em tempos mais recentes podemos destacar as Madres da Argentina, mas também as mães aqui no Brasil lutando por seus filhos durante a ditadura militar. Outros exemplos bem recentes seriam as Mães da Cinelândia, mas também os vários movimentos que tem surgido a partir da figura materna como a AFAVI (Associação de Familiares e Amigos das Vítimas de Violência) e o Movimento Pela Vida. Vale ressaltar que existem também algumas instituições formadas por pais, como a TAMIM (Tributo a Michele de Moraes), criada pelo pai da jovem assassinada na porta da casa de uma amiga. , mas que ganha destaque nesses nossos tempos. Girassol, em sua definição acerca da violência, afirmou que esta é "o fim. Na hora da definição da maternidade, tanto na fala de Girassol como das outras mães, aparece a imagem que mãe é "tudo". Se a violência é o "fim", somente a mãe que tudo abarca pode enfrentá-la, pode impedir o "fim" Rosa conta que às vezes as pessoas perguntam o que as levam (as Mães de Acari) a denunciar. Ela não tem dúvidas que é o amor de mãe. É deste amor que nasceria a força para a participação; esta nasceria da mistura da mãe com a cidadã.

A partir das inúmeras representações existentes socialmente elas foram construindo as suas próprias, que articulam a cultura onde se inserem, mas também as experiências vividas cotidianamente e que vão se alterando durante suas vidas. As experiências que vivemos só podem ser pensadas (e sentidas) a partir do lugar que ocupamos - e este lugar muda constantemente ao longo de nossa existência. Falando da maternidade, elas falam também da experiência feminina, falam sobre o que é ser mulher, falam sobre suas experiências de gênero e classe. A ambigüidade da condição feminina é estabelecida na fala de Rosa quando esta, para definir o que é ser mulher, afirma que apesar da fama de indefesa, a mulher é muito grande, "enorme"; "nós somos enormes". Enormes não apenas no nascimento (ou seja, como mãe), mas também no sentimento, na inteligência e na intuição. Em sua definição, a mulher é "a flor". Mas não se trata de qualquer flor, isso ela faz questão de realçar, trata-se de uma flor que resiste às adversidades da vida. Ela nega peremptoriamente a fragilidade feminina: "a gente agüenta as ‘porradas'". Afinal, as mulheres são/devem ser lutadoras, guerreiras.

Referindo-se ao movimento, Rosa afirma que é como se a dor sentida tivesse criado uma ferida que, com o passar do tempo, amenizou, mas que ainda dói; "ela incomoda, mas ela já não destrói, como destruía antigamente". Essa ausência será sempre uma ferida que a qualquer momento pode sangrar. O fato de estar fazendo "algo" é enfatizado, estar "nas ruas", em seu entender, contribuiu para essa "cicatrização". Para Rosa, uma das coisas que têm a favor delas é que se tornaram as presenças vivas de uma história. É a elas que cabe resgatar essa memória: "nós somos presença viva. Nós somos testemunha, testemunha não do que aconteceu. Mas somos presença viva de um acontecido. Nós temos na pele isso". E o contato com as pessoas passa a não ser uma coisa tão dolorida porque elas conseguem mobilizar as pessoas: "a gente chora. Daqui a pouco a gente está enxugando a lágrima e está rindo, sabe? Está fazendo rir. A gente consegue mobilizar e sensibilizar". A mesma preocupação que encontramos nas Madres de Plaza de Mayo encontramos em Girassol e Rosa: fazer com que a memória se reproduza e, nesse sentido, ganhar os jovens para defenderem a bandeira delas é crucial. A juventude é sempre vista como portadora de uma dimensão positiva (significa o futuro, um futuro do qual elas foram roubadas).

Rosa conta que, após o seqüestro, repentinamente voltaram à sua cabeça cenas e imagens que ela mesma já havia esquecido: ela se viu grávida da filha desaparecida, viu a filha ainda pequena, aprendendo a andar, "imagens que já tinham adormecido na minha mente" Rosa confirma que a mesma sensação foi sentida por outras mães. Esse sentimento seria a prova da estreita relação que une mãe e filha, mas que também une todas as mulheres marcadas pelo laço da maternidade. Para Rosa é como se fizessem uma "reciclagem" Uma reciclagem na própria memória, em nosso inconsciente, trazendo à tona imagens que estavam perdidas, mas que, num relance, são recuperadas e fazem a perda sentida doer, talvez, um pouco menos. Nessas memórias esquecidas e trazidas à consciência, é a filha que ela traz de volta; uma filha idealizada, uma filha do jeito e na idade em que estavam mais próximas antes das brigas da juventude: "hoje eu tenho a imagem da minha filha pequeninha, com o pijaminha amarelinho. Ela de bracinho aberto assim, quase sem cabelo com uns cabinhos (...). Eu tenho a imagem dela nítida assim, sabe? Nítida, nítida, e eu não tinha mais essa imagem". Dessa forma, dá-se o resgate de uma imagem a mais idealizada.

Todas as mães afirmam que a vivência da maternidade e da tragédia, ou seja, de uma maternidade estraçalhada gera uma solidariedade e uma união muito forte entre elas - essa solidariedade seria combustível para a luta. Em relação aos outros movimentos, inclusive de mães das camadas média, Girassol afirma que tem clareza que elas são diferentes, que vivem uma realidade, principalmente de classe, bastante diferenciada, mas ainda assim afirma que "nós tanto estamos nos movimentos delas, como elas estão no movimento da gente", é o que afirma referindo-se a essas mães vindas das camadas médias com as quais tem contato. Elas, enquanto Mães de Acari sentem a diferença de poder aquisitivo, mas isso não ficaria tão visível, posto que elas aprenderam muito umas com as outras. As Mães de Acari tem uma história e um saber a ser repassado: "tem grupos aí hoje que aprenderam muito com a gente. Muito com as nossas falas, com as nossas reuniões, entendeu?" Como afirma Rosa, a dor das outras mães é a mesma que a delas. É isso que faz nascer uma grande solidariedade entre elas, porque todas sabem o que é perder um filho. Essa "irmandade21 21 O que nos remete à antiga discussão acerca da sororidade que marcou o início do movimento de mulheres. " de sentimentos é reclamada por todas as mães.

Contudo, a ambivalência também aqui se faz presente. Se junto àquele filho perdido, se afirma que se perdem os projetos de suas mães, vemos que novos projetos são delineados. A vida de Hebe Bonafini, presidente das Madres de Plaza de Mayo se parece com a de quase todas as mães, aqui, de Acari: "eu era uma dona de casa e mal fui à escola (...) Minha vida mudou, mudaram meus valores. Essa luta me deu um sentido de solidariedade impressionante (...) aconteceu um milagre, os filhos mortos pariram as mães" (JB, 06/05/92). Dessa forma, da mãe, nasceu a cidadã - essa é uma imagem que volta sempre quando discutimos essas questões. Rosa, falando de Orquídea, se confunde (caindo, quem sabe, num "ato falho") e afirma que esta (Orquídea) procura sua mãe; depois se corrige: procura seu filho. Filhos que, na verdade, estão gerando suas mães. A esperança de reencontrar o filho talvez não exista mais para muitas dessas mulheres, contudo, permanece a luta, nem que seja pelos outros filhos, pelos filhos de todo mundo, para que isso "não volte nunca mais a acontecer". O discurso efetivamente não é mais o de uma "pacata dona de casa". Os temas já supõem um conteúdo político e a repetição de alguns "slogans", como a socialização da maternidade e a visão de nascimento a partir do filho. A partir da perda dos filhos, elas reconstruíram novos significados para suas próprias vidas.

Segundo Rosa, é o amor de mãe o que as impulsiona e que cimenta essas relações. Esse amor não é em nenhum momento questionado. E se a todo o momento existe a referência a uma "nova" figura de mãe; desse amor não se questionam as várias formas que este pode assumir. Esse amor é naturalizado e inquestionável para elas. É esse amor que justifica: "não existe amor de mãe maior, que os amores de mãe são iguais. Mãe ama de um jeito só, não pode dizer que eu amo mais meu filho do que a tua mãe te ama, não existe isso". A participação nasce dessa mistura. Do amor de mãe, das suas dores nasce o lema/mote/a motivação para a ação/a luta. É exatamente isso que essa fala de Hebe Bonafini reafirma, mostrando que da dor nasce a vontade de transformar a dor em luta; das tragédias vividas por essas mães é que nasceram as cidadãs - é como se os próprios filhos parissem suas mães, novas mães-cidadãs.

Claro que este é um processo contraditório. A cidadania não é obtida de uma vez para sempre, e nem a sua posse significa mudanças em todas as esferas da vida. Normalmente, a mãe-cidadã continua convivendo com a esposa-escrava, a mulher oprimida, e mesmo com outros tipos de mães tradicionais: a mãe autoritária, a mãe boazinha, a mãe vítima. Aqui se estabelece uma contradição na vida dessas mulheres. Elas obtiveram, a partir de todo o movimento que protagonizam um grande aprendizado. Hoje, sabem mais dos seus direitos do que sabiam há pouco tempo atrás. Contudo, sofrem a limitação (de classe, gênero, etnia) de não poder exercê-los em sua plenitude. Rosa e Girassol são enfáticas ao falarem do modo como transformaram a dor em ação.

A solidariedade das mães nasceria dessa dor partilhada e que se torna combustível para a luta política. Essa união é celebrada por todas as mães. Não vou me deter aqui num estudo exaustivo do substrato teórico que permeia o discurso acerca da solidariedade, hoje abundante em nossos movimentos coletivos.22 22 Uma interessante ajuda nesse sentido é a tese do professor Góis (1999), Vestígios da força das palavras: Escritos sobre a Aids, especialmente seu quarto capítulo (A reconstrução do Outro e os dilemas da solidariedade). Quero, contudo, pontuar uma questão. Efetivamente, a solidariedade aparece como pano de fundo de muitos discursos hoje. Ao apelar para valores universalizantes e humanitários esta noção consegue "amarrar" as mais diferentes coletividades. No entanto, vale ressaltar que apesar de sua perspectiva englobante, esse discurso surge historicamente a partir de grupos organizados. Se a solidariedade é vista como um sentimento universal, na prática, ela precisa ser "ativada". Foi utilizando a categoria "mãe" e tudo que ela acarreta em termos de significados sociais, bem como utilizando um saber-fazer que lhe é próximo que essas mulheres construíram os seus discursos, que não podiam estar alheios às discussões que então se realizavam na sociedade. Por isso, elas partiram de uma conclamação às mães, não a uma humanidade indiferenciada. Ao invés da universal, a solidariedade aparece demarcando o pertencimento ou não pertencimento a um grupo (e a uma agenda de interesses específica, ainda que preocupada com o "todo social"). Ela é vista como a única forma de garantia de um futuro melhor, de uma união que se afasta dos valores mais individualistas e repousa numa visão de sociedade (e de futuro) onde os diferentes sujeitos sociais possam ser respeitados.

Por um lado, a violência que nos circunda, a perda de valores com a qual convivemos, assim como a descrença em nossas instituições formais contribuiu para essa busca de alternativas. Por outro lado, as raízes religiosas, bem como essa cultura de redes de apoio mútuo e de proteção social, assim como a crença em ideais humanitários (como o apelo à maternidade), pode ser entendida como um importante terreno para a disseminação dessa tão alentada solidariedade. Bem como explica porque foi tão bem assimilada. Nesse sentido, a coletividade ganha importância. A união que se estabelece como uma força ajuda a confiar nos caminhos futuros; é desse modo, que a solidariedade23 23 Não preciso enfatizar que não desconheço os significados contraditórios que a noção de solidariedade pode abarcar. Mas mesmo que seus usos sejam variados, acredito que não se possam descartar suas potencialidades transformadoras. se coloca como alternativa à barbárie (Góis, 1999). As palavras ajudam a conformar nossas ações; não estamos imunes aos seus conteúdos. O fato é que essa preocupação com a solidariedade surge num momento de vital importância enquanto alternativa para a paisagem devastadora que a alternativa neoliberal nos coloca enquanto proposta de sociedade. Falar em solidariedade, falar na união de mães, numa luta contra a impunidade significa um trabalho em aberto para a reconstrução de valores, tão caros para a continuidade da vida em sociedade. Talvez seja esse o viés que devamos perseguir para o entendimento desse movimento.

O associativismo feminino é uma prática de longa duração. Na nossa história, as mulheres sempre estiveram presentes, se reunindo aqui e ali para poderem trocar (confidências, bens simbólicos ou econômicos) ou para reivindicar bens. Faz parte de nossa cultura esse "caminhar conjunto". Para as Mães de Acari, o discurso da cidadania é fluido, assim como o dos direitos humanos. É um símbolo que as unifica entre si e a outras pessoas, mas para muitas dessas mulheres é difícil estabelecer uma reflexão sobre essas questões. Elas aparecem mais como um pano de fundo para a unidade do grupo.

Concluindo, não se pode falar de mães sem falar nos pais. Se a tendência atual, como foi salientado por Scavone (1995) é uma escolha mais reflexiva das mulheres em relação à gravidez e ao número de filhos, resultando numa maior exigência da participação paterna, essa é uma constatação que passa bem ao largo da discussão dessas mulheres. Em todas as falas, apesar do reconhecimento da importância da figura paterna, elas não têm dúvidas em assinalar o papel predominante da mãe. Voltemos à definição de maternidade exposta por Rosa; esta é enfática ao afirmar que "ser mãe, ser mãe é uma Lou-cu-ra", a coisa mais maravilhosa do mundo. O parto é visto como um momento difícil e único. E é um momento do qual, na opinião de Rosa, o pai não participa. Apesar de poder abrigar sentimentos contraditórios, é um momento único e indivisível. Sendo um momento sem divisão, o pai acaba, nesse momento, sendo um coadjuvante. Contudo, Rosa vai além. Para ela "não tem divisão nem no nascimento, nem na perda. Esse momento não tem divisão". A dor do pai, por isso é diferente da dor de uma mãe. O elo entre o filho e a mãe seria, então, muito forte e é só deles. Dessa forma tanto a dor da perda como do nascimento é visto como um sentimento essencialmente feminino. Esse tipo de argumentação parece ser uma maneira delas lidarem com a não participação dos pais, uma forma de justificar essa ausência. Uma justificação que sempre se dá nos limites da natureza, não da socialização/educação diferenciada que recebem homens e mulheres e que elas reproduzem.

Para explicar a ausência dos "Pais de Acari", Miosótis afirma que o motivo é o fato das mães serem mais unidas. Ela e Cravo refletem que os pais não gostavam de aparecer, e concordam com Orquídea quando esta afirmava que essas questões são "coisas de mãe". Cravo explica porquê: "mãe conversa, uma dá opinião, a outra dá outra. Então, os pais ficam afastados, só fica de longe, não querem se meter nesse negócio". Curiosamente, a capacidade de conversar, trocar, aprender e de se solidarizar aparece como uma prática essencialmente feminina; ou, em outras palavras, um negócio "de mulher", como se não pudesse existir entre os homens em si e nem entre estes e as mulheres a mesma solidariedade que estas possuiriam. Não é que não sofram, eles sofreriam, mas não se envolveriam. Segundo Miosótis, eles sofrem calados; "a gente sofre calado, e sofre também agindo, né?" Na hora do sofrimento a fala e a ação pertencem à mulher.

A educação recebida por homens e mulheres é diferenciada. Normalmente é atribuída às mulheres a possibilidade do choro, do grito. Essas seriam práticas "naturalmente" aceitas. O mesmo não ocorre com os homens; preocupados com o mundo público, sentindo-se responsáveis (e sendo cobrados) pelo sustento da família. Essas questões não aparecem no discurso das Mães de Acari, que buscam justificar a maior participação das mulheres a partir da dimensão biológica: "saiu da gente, eu acho que foi gerada com a gente (e, portanto), é um ser nosso, mais nosso do que do pai, entendeu?" (Girassol). É uma visão bem tradicional de pai que está presente em suas falas. Girassol faz bem essa diferenciação: mãe é tudo, principalmente amor ("a coisa mais linda que existe no mundo"). Agora o papel do pai é mais de apoio, de ajuda, principalmente financeira: "ser pai, eu acho que é ajudar a criar. Só".24 24 Mas talvez os desaparecidos de Acari não sejam assim tão órfãos de pai. O tenente-coronel Walmir Alves Brum é uma figura respeitada e apontado por todas como "um pai para essas crianças"; um pai responsável e que estaria envolvido com a busca dos desaparecidos. Brum ocupa o papel da lei tanto prática como simbolicamente para essas mulheres - seria o que de melhor existiria atualmente na polícia, uma polícia tão desacreditada por elas. Ele é, para Rosa, a salvação da Polícia Militar (e da própria instituição policial, por extensão). Rosa e Girassol, bem como Nobre (autor do único livro sobre as Mães de Acari) citam outros policiais a se envolverem com o caso, mas Brum é o único nome citado por todas.

À guisa de conclusão

Devemos pensar a família como um processo de articulação de diferentes trajetórias de vida, que se constrói a partir de várias relações, como classe, gênero, etnia, idade; ou seja, um fenômeno em constante transformação. Ao olhar para as mulheres protagonistas desta história não podemos perder de vista o contexto socio-cultural em que se inserem, com suas práticas e hábitos específicos. Isso significa a necessidade de construção de um olhar que busque compreendê-las a partir de sua própria lógica cultural. A família nuclear burguesa estabelece um ideal-tipo dificilmente seguido pelos grupos populares. Uma das mudanças que vem ocorrendo na sociedade, é o que Giddens (1993) chama de "transformações da intimidade" e que vem configurando um novo sujeito, historicamente situado. A imagem desse sujeito é a de um ser em transição, seja na família, nas relações de trabalho, ou nas relações entre os sexos. Concordo com Sarti (1995), quando esta afirma, em relação à análise das famílias hoje, que é terrível, mas "já não sabemos tão claramente o que somos" (p. 39). Para esta autora, a afirmação da individualidade é o que sintetiza o sentido das mudanças atuais.

Muitos foram os caminhos percorridos pelas Mães de Acari. Nesse caminhar, elas foram vivendo outras realidades, vivendo novos valores. Tentei mostrar imagens de mulheres nas ruas. Não porque considerasse esse fato algo extraordinário, mas porque tal fenômeno ultimamente vem sendo bastante enfatizado. Por isso, quis me debruçar sobre esse assunto. Retratei, dessa forma, imagens de uma época. Nesta, uma "nova" figura de mãe é o que vejo surgir. Da figura tradicional ainda encontramos seus grandes traços: a imagem de uma mãe sofredora, responsável pelos filhos, abnegada e altruísta ainda persiste. De novo, temos a figura de uma mãe lutadora sendo realçada. Se as mulheres estiveram sempre nas ruas, lutando, essa imagem, no entanto, nunca foi muito enfatizada para a construção de um modelo feminino. Essa é uma das diferenças que nossos tempos vêem trazendo e que busquei retratar. Ao me debruçar sobre esses fatos deparei-me com uma realidade que ainda não percebera: a formação de redes. Acredito que o modo como essas mulheres se articularam suscitou a formação de uma rede de solidariedades e reciprocidades que aponta para a formação de uma agenda de valores comuns - valores que determinam um padrão de sociabilidade e de costumes que tem como substrato idéias e referências acerca da solidariedade e dos direitos humanos. Tais valores não são muitas vezes verbalizados com toda força argumentativa; mas eles podem ser buscados aqui e ali ao fazerem referências aos seus cotidianos.

Uma existência (de longa duração) as levam a ver com extrema naturalidade a socialização dessas formas de redes de proteção social aos seus. É comum o intercâmbio e a troca de favores, bem como a "circulação de (suas) crianças". Nesse sentido, a noção de Fonseca (1990) foi fundamental para que pudesse entender o cotidiano dessas mulheres pobres, mas também para ver como isso perpassa igualmente o dia-a-dia das mulheres de nossas camadas médias urbanas. É essa vivência e (con)vivência que possibilita suas incursões no mundo público. É importante enfatizar que as mulheres foram/são vistas como as protagonistas desses movimentos. E fazem isso a partir da dimensão materna. São como mães e a partir do que esse papel suscita que elas se lançaram às ruas. Mesmo no espaço público, é a imagem da mãe, daquela que cuida, que organiza, que é priorizada. E isso aparece também em seus discursos. Se a dimensão materna é enfatizada e naturalizada, podemos ver, em suas vidas, a dimensão socializadora desse amor.

Nós conhecemos (a exceção de Edméia) as mulheres que ousaram entrar na luta. Esta entrada (nem sua continuidade) não estava dada a priori. Foram os acontecimentos e suas próprias reações que desencadearam o processo. Não foi uma dimensão naturalizante que as empurrou para a vida pública. Foi a maneira, o processo como souberam se utilizar de um saber comum e partilhado socialmente que possibilitou essa união. A utilização "política" desse amor foi um instrumento fundamental para suas lutas. Busquei mostrar como o chamado mito do amor materno. pôde desembocar num fenômeno como as Mães de Acari. É da vivência, do cotidiano que esse amor vai se construindo e assumindo formas as mais variadas. Uma dessas formas é que me inspirou nesse trabalho. A maternidade é uma representação de destaque em nossa sociedade. A noção de uma solidariedade de interesses unindo todas as mães, em nome dos filhos, é uma importante representação construída por essas mulheres. Em nome dos filhos elas se aventuraram a sair nas ruas.

A imagem da mãe sofredora ainda é profundamente presente em nosso imaginário. Foi dessa imagem que essas mulheres partiram25 25 Na maioria das fotos em que aparecem nos jornais, elas estão carregando uma foto, uma imagem, algo que fale desse filho desaparecido. As imagens remontam a uma certa Pietá moderna, que continua trazendo em seus braços, o filho morto ou desaparecido. para, pouco a pouco, irem construindo uma outra - que não exclui a primeira, mas convive com esta. Essa "outra" imagem é a da mãe que luta, a mãe corajosa que enfrenta a polícia e a sociedade para saber onde estão e o que aconteceu com seus filhos. É desse modo que a dimensão da musa retorna ao universo da mulher. Como último exemplo, vou me apropriar das palavras da jornalista Paula Máiran:

O dom de transformar pesadelos em sonhos está mudando a cara da cidade. As responsáveis por essa proeza são mulheres cariocas que, após a morte de seus filhos, pais e irmãos, em brutais assassinatos, partiram da revolta inicial para uma guerra sem sangue ou perdedores. Engajadas em movimentos que pregam a paz como arma mais eficaz contra a violência, algumas já incomodam o mundo do crime, enfrentam ameaças de morte e não desistem do seu objetivo: provar que Justiça não é sinônimo de vingança. (JB, 07/08/94)

É preciso ser muito forte para corresponder a essa imagem. Não se pode negar que o dom de "transformar pesadelos em sonhos" é uma arte deveras difícil. Converter a dor em ações constitui um difícil aprendizado de solidariedade. Esta reportagem traz imagens de mães no espaço público, mostra seus rostos crispados, seus braços levantados, mas mostram também as lágrimas, os quartos dos filhos, as casas desarrumadas. Interessante é ressaltar que mesmo mostrando imagens de mulheres nos espaços públicos, nas ruas, passeatas, lugares onde até pouco tempo atrás, essas figuras pareceriam "fora de lugar"; ainda assim, mesmo fora da casa, a "missão" imposta à mulher continua sendo a de organizar, ordenando a desordem, com carinho, com paz. Mostram uma revolta "dentro de uma certa ordem", afinal são mães lutando contra a violência. Essa reportagem, escrita por uma mulher, nos dá bem uma noção do que estou falando aqui. Essas mulheres quereriam, em seu entender, "pacificar o Rio", organizar, portanto, a cidade e seus moradores. E, nesse sentido, trata-se de uma imagem bem tradicional da figura materna, ainda que pintada em outras cores.

Mas a realidade não é tão fácil de ser captada. Não existe uma figura única de mãe (assim como de mulher). Essas mulheres vão, pouco a pouco, construindo uma memória comum, uma comunidade de interesses que se articula num grupo que hoje se relaciona com grupos do mundo inteiro, formando uma rede de interesses comuns. São valores que podem então ser restaurados. Talvez seja uma de suas contribuições mais importantes: o estabelecimento interclasses de uma rede de interesses e valores comuns que questionam a violência e a brutalidade desse mundo. Dessa forma elas podem ser vistas como participantes das lutas contra as diversas formas de desproteção social em que se apóiam os princípios neoliberais que vêm predominando em nossa sociedade e naturaliza tanto a miséria quanto o genocídio social com o qual temos convivido. Se podemos dizer que, atualmente, convivemos com a fragilização das práticas coletivas, esses tipos de movimentos assentados em valores éticos podem apontar para formas diferenciadas de inserção social que se contraponham a esta naturalização e sinalizam para a reinvenção do coletivo. A partir dos fluxos e refluxos comuns a todos os movimentos sociais, elas seguem em frente. Em nome dos filhos elas se modificaram e ao mundo a sua volta, tornando-o talvez um pouco melhor. Se a transformação não foi tão grande, se não atingiu a todas indistintamente, se perpassa o grupo hoje muitos discursos divergentes, nada disso desmerece o alcance do que fizeram.

Entendo que a construção de uma nova identidade de gênero se dá a partir de uma vivência política, social e coletiva. É da experiência vivida que pode surgir a possibilidade de transformação, que inclui uma visão diferenciada da maternidade, surgindo daí, o que Schmukler chama de uma "maternidade social". O fato de participar de movimentos pode levar as mulheres a re-definições e transformações em suas identidades de gênero. Ao ocupar os espaços públicos, como nesses movimentos, o papel de mãe ganha novas cores (Schmukler, 1995). Ao largo desses tipos de participação, as mulheres vão realizando reflexões e questionamentos a respeito de seus cotidianos de mãe e assim, outorgando um outro cariz ao exercício da maternidade. A maternagem, a preocupação em cuidar do outro, faz parte de nossa socialização. Nós vivemos uma divisão de tarefas que determina para as mulheres a responsabilidade de cuidar de seus filhos e do bem estar da família. Assim, a noção de uma maternidade social, incorpora os elementos de cuidados para com o outro, que faz parte da maternidade tradicional, mas a amplia.26 26 Aproveito este espaço para agradecer o apoio dado pelo CNPq e o Programa de Iniciação Científica da Uff pela concessão de bolsas de pesquisa. À Faperj agradeço o apoio financeiro, item fundamental ao bom desempenho de nossas pesquisas. Um agradecimento especial vai para todos os participantes do Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Proteção Social (NPHPS) e do Centro de Referência Documental (CRD) - ambos vinculados ao Departamento de Serviço Social de Niterói da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense - que se transformou em um espaço bastante agradável e propício ao diálogo e ao bom desempenho acadêmico.

Freitas, R. C. S. (2002). Families and Violence: Reflections on the Mothers of "Acary". Psicologia USP, 13 (2), 69-103.

Abstract: In the nineties, news which depict women, especially mothers, demonstrating for justice at squares and in the streets, reached reasonable repercussion. What joined this women was the violence that had tore them apart from their children, who had died or been kidnapped. I believe that by participating in these movements, women have been led to redefine and transform their gender identities as well as open new dimensions to maternity. Thus, this notion of experience became the core of my study. It was from this point of view that I could see the constructing of a new representation of motherhood. First from the newspapers and later by interviewing these mothers. My analysis turned to the leading role in political activity undertaken by working class women from their very traditional position in the family which is usually seen as been deprived of a political dimension. By means of these women's own words and selected images, this study aims to rescue the way in which violence is felt by them as it becomes part of their lives. For that purpose, I used interviews and newspapers' clippings selected by themselves that belonged to their memory albums. The image of women in fight, of mothers that are struggling, was where I started from; and I seek in this paper to question the impacts and contradictions, the continuities and ruptures that this representation brings in itself.

Index terms: Family. Motherhood. Violence. Social movements.

Freitas, R. C. S. (2002). Familles et Violence : Reflexions Sur les Meres D'acari. Psicologia USP, 13 (2), 69-103.

Résumé : Dans la décade des années 90 les informations sur les femmes qui défilaient ont gagné une centaine amplitude, spécialement les mères sur les places et dans les rues en demandant justice. Ce qui unirait ces femmes serait la maternité, et la violence qui les avait séparées de leurs enfants, morts ou séquestrés. Je crois que le fait d'avoir participé à ces mouvements a amené les femmes à des redéfinitions et des transformations dans leur identité de sexe, ainsi que la possibilité de construire d'autres dimensions pour la maternité. La notion expérimentale a été le centre de mon étude. Ce fut de cette manière que j'ai pu percevoir la construction d'une représentation nouvelle pour la figure maternelle. D'abord à partir de journaux, puis en interrogeant ces mères. Mon analyse s'est tournée vers le rôle politique principal de la femme des classes ouvrières à partir de la place qu'elle occupe dans la famille et qui, en principe, serait dénué de dimension politique. Ce travail a pour but de faire ressortir, par les dires et les images choisies par ces femmes, la façon dont la violence est sentie quand elle vient à faire partie de leurs vies. J'ai donc utilisé les entrevues et les coupures de journaux qu'elles avaient elles-mêmes sélectionnées dans leurs albums de souvenirs. Je suis partie de l'image de femmes en lutte, de mères en deuil ; et je cherche, dans ce texte, à mettre en question les impacts, les contradictions, les continuités et les ruptures que cette représentation apporte en elle-même.

Mots-clés : Famille. Maternité. Violence. Mouvements sociaux.

Recebido em 23.05.2002

Aceito em 12.07.2002

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  • 1
    Professora Adjunta da Escola de Serviço Social/Universidade Federal Fluminense, Campus do Gragoatá, bloco E, Niterói. Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico:
  • 2
    Utilizarei nomes fictícios para preservar a fala das pessoas.
  • 3
    O drama de Acari começou em julho de 1990, com o desaparecimento de onze pessoas, sendo três meninas e oito rapazes. Desses onze, oito eram menores de idade. Os "Onze de Acari", como ficaram conhecidos, desapareceram realmente em Magé, num sítio pertencente a avó de um dos desaparecidos. Estes são, em sua maioria, pertencentes a favela de Acari, ou de suas proximidades. Aparentemente, o grupo viajou para fugir de policiais que estavam tentando extorquir dinheiro de alguns deles que tinham envolvimento em assaltos e roubos de cargas de caminhão. Bandidos ou não, o fato concreto é que estes jovens foram retirados deste sítio numa noite de julho de 1990 por homens que se diziam policiais e nunca mais foram vistos (Freitas, 2000a).
  • 4
    Badinter (1985), Costa (1989), entre outros.
  • 5
    Não vou me deter aqui em uma discussão mais aprofundada sobre a noção de habitus. (Cf., nesse sentido, Bourdieu, 1996).
  • 6
    Minayo (1995, p. 89) afirma que nas Ciências Sociais as representações sociais são definidas enquanto "
    categorias de pensamento que expressam a realidade, explicam-na, justificando-a ou questionando-a".
  • 7
    A história das Mães da Cinelândia se mistura com a história do Centro Brasileiro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CBDDCA), que constitui a sede onde estas mães se encontram e se articulam; e onde possuem assessoria jurídica para a busca de seus filhos. O CBDDCA é responsável também juridicamente pelo Caso Acari e outros. O que quero destacar é que essas mulheres escolheram um local para suas reivindicações que pode ser considerado o "postal político" (e também cultural) do Rio de Janeiro: a Praça da Cinelândia. É ali que elas se sentaram, em silêncio. Mas com suas presenças mudas buscaram se fazer ouvidas. E foi assim que atingiram a mídia. É verdade que o movimento passa por "altos e baixos", com a participação das mães variando muito, afinal, para muitas é muito difícil sair de onde moram (geralmente muito longe) para vir ao centro do Rio. Isso sem contar com a falta de apoio de familiares e a cobrança de maridos e filhos, e o fato de que também têm que trabalhar. O grau das dificuldades vivido por essas mulheres faz parte de seus cotidianos de classe e gênero. Mas o importante foi o gesto, o fato de ocuparem as ruas e as praças. Não apenas no sentido "concreto" do termo, mas simbolicamente falando também; elas não estão apenas na praça, elas nem estão em qualquer praça. Elas ocupam um espaço simbolicamente identificado com o poder. É esse o espaço que invadem (e incomodam) com sua dor. Ali, se sentam com cartazes, que trazem os retratos e os dados dos seus filhos, bem como a data e o local em que estes desapareceram. Sentam-se nas escadarias da Câmara de Vereadores e é ali, quietas, que fazem a sua manifestação. Ou melhor, faziam, pois o movimento hoje passa por um período de refluxo, existente em qualquer movimento
  • 8
    Cf. Freitas (2000a). A
    Revista Isto É, de 03 de abril de 1996, reforça essa iniciativa e enfatiza que a novela, além de encontrar crianças, inspirou movimento similar em São Paulo, as "Mães da Praça da Sé".
  • 9
    Seja nas relações familiares, na vizinhança, nas ruas onde circulam. Não vou, contudo, devido às proporções desse texto, fazer uma discussão aprofundada acerca dos significados da violência (Cf. nesse sentido, Freitas, 2000a, 2000b).
  • 10
    Outro exemplo paradigmático quando falamos de mães em luta. As Madres de Plaza de Mayo se constitui em um grupo de mães que se reúne desde 1979 na Argentina, reivindicando os filhos desaparecidos durante a ditadura militar daquele país. Hoje, transformaram-se em uma referência internacional.
  • 11
    Após o qual não aconteceu nenhum outro. As dificuldades de se organizar um encontro desse porte foi a justificativa que me deu Hebe Bonafini, presidente das Madres, para não ter tido continuidade tal encontro.
  • 12
    Essa poesia foi escrita por uma mãe espanhola (Madri, 20/03/1994) e ofertada às Mães de Acari durante o Encontro de Mães em Paris.
  • 13
    Acerca deste tema, já é clássico, hoje, o livro de Badinter,. (1985), Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno. Este livro é mais conhecido até pelo seu subtítulo do que pelo título propriamente. Neste, Badinter rebate o discurso acerca da propensão "natural" que haveria em toda mulher para a maternidade, tentando pensar como esse "desejo natural" foi sendo "construído" historicamente, ao passo de hoje, fazer-se presente em nosso dia-a-dia, muitas vezes como algo inquestionável para muitas pessoas, inclusive para as mulheres, protagonistas desse estudo.
  • 14
    Iliane Martins, cuja filha foi morta num acidente de carro protagonizado pelo jogador Edmundo foi entrevistada por Vera Carneiro (cujo filho foi morto também em um acidente de carro, este protagonizado pelo ator Felipe Camargo) no Caderno de Domingo do JB de 05/04/98. Essa mesma discussão reaparece nesta entrevista.
  • 15
    Esta palestra fez parte de um curso ("O Social: questões contemporâneas"), promovido pelo Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Proteção Social, em 1999. O NPHPS funciona na Escola de Serviço Social/UFF.
  • 16
    Outras explicações para a não participação dessas mães elas buscam na inocência de seus filhos, ou no fato dessas mulheres estarem vivendo outras relações. Qualquer aprofundamento nesse sentido, ver Freitas (2000a).
  • 17
    Ver neste sentido também o livro de Rocha-Coutinho (1994),
    Tecendo por Trás dos Panos.
  • 18
    Segundo Bock (1991), a maternidade teve um importante papel nas teorias dos primeiros movimentos de mulheres.
  • 19
    Essas reflexões sem dúvida se aproximam daquilo que Giddens (1993) aponta como transformações na intimidade.
  • 20
    Cf., por exemplo, Farge (1991) para se ter a idéia da internacionalidade e da longa duração desses fenômenos. Até nos mitos encontramos várias imagens de mães lutadoras, como na história de Demeter e Perséfone. Em tempos mais recentes podemos destacar as Madres da Argentina, mas também as mães aqui no Brasil lutando por seus filhos durante a ditadura militar. Outros exemplos bem recentes seriam as Mães da Cinelândia, mas também os vários movimentos que tem surgido a partir da figura materna como a AFAVI (Associação de Familiares e Amigos das Vítimas de Violência) e o Movimento Pela Vida. Vale ressaltar que existem também algumas instituições formadas por pais, como a TAMIM (Tributo a Michele de Moraes), criada pelo pai da jovem assassinada na porta da casa de uma amiga.
  • 21
    O que nos remete à antiga discussão acerca da sororidade que marcou o início do movimento de mulheres.
  • 22
    Uma interessante ajuda nesse sentido é a tese do professor Góis (1999),
    Vestígios da força das palavras: Escritos sobre a Aids, especialmente seu quarto capítulo (A reconstrução do Outro e os dilemas da solidariedade).
  • 23
    Não preciso enfatizar que não desconheço os significados contraditórios que a noção de solidariedade pode abarcar. Mas mesmo que seus usos sejam variados, acredito que não se possam descartar suas potencialidades transformadoras.
  • 24
    Mas talvez os desaparecidos de Acari não sejam assim tão órfãos de pai. O tenente-coronel Walmir Alves Brum é uma figura respeitada e apontado por todas como "um pai para essas crianças"; um pai responsável e que estaria envolvido com a busca dos desaparecidos. Brum ocupa o papel da lei tanto prática como simbolicamente para essas mulheres - seria o que de melhor existiria atualmente na polícia, uma polícia tão desacreditada por elas. Ele é, para Rosa, a salvação da Polícia Militar (e da própria instituição policial, por extensão). Rosa e Girassol, bem como Nobre (autor do único livro sobre as Mães de Acari) citam outros policiais a se envolverem com o caso, mas Brum é o único nome citado por
    todas.
  • 25
    Na maioria das fotos em que aparecem nos jornais, elas estão carregando uma foto, uma imagem, algo que fale desse filho desaparecido. As imagens remontam a uma certa Pietá moderna, que continua trazendo em seus braços, o filho morto ou desaparecido.
  • 26
    Aproveito este espaço para agradecer o apoio dado pelo CNPq e o Programa de Iniciação Científica da Uff pela concessão de bolsas de pesquisa. À Faperj agradeço o apoio financeiro, item fundamental ao bom desempenho de nossas pesquisas. Um agradecimento especial vai para todos os participantes do Núcleo de Pesquisa Histórica sobre Proteção Social (NPHPS) e do Centro de Referência Documental (CRD) - ambos vinculados ao Departamento de Serviço Social de Niterói da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense - que se transformou em um espaço bastante agradável e propício ao diálogo e ao bom desempenho acadêmico.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jan 2003
    • Data do Fascículo
      2002

    Histórico

    • Aceito
      12 Jul 2002
    • Recebido
      23 Maio 2002
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