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Vergonha

PONTO DE VISTA

Vergonha

Anna Veronica Mautner

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Psicanalista, Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo -8211; SBPSP. Endereço eletrônico: amautner@uol.com.br

Comunicar por escrito é submeter-se a muitas variáveis intervenientes, como por exemplo, o público a que se destina, a finalidade, o tipo do veículo e outras mais. Numa revista acadêmica, por exemplo, a apresentação de um texto pede ou a prova de uma hipótese, ou a dedução de uma conclusão, ou a justificativa da oportunidade do tema. Não importa como ou por quê, mas o texto vem sempre acompanhado de bibliografia, comentada ou não, e de pelo menos alguma menção à oportunidade do tema.

Um mesmo conteúdo pode ser exposto na forma de jornalismo científico ou cultural, pode aparecer em revistas acadêmicas, pode ser apresentado em conferências e mesas redondas. No caso do jornalismo, apresenta-se e ilustra-se o fato, o tema, a hipótese, sem a obrigação de provar, deduzir ou concluir o tema ou a hipótese. Basta chamar a atenção para o fato. Pode ainda, o mesmo tema, transformar-se num misto dos dois anteriores, na forma de um ensaio ou mesmo de uma crônica.

Sem pretender aqui mais do que comentar, gostaria de chamar a atenção para a importância da divulgação de hipóteses que podem levar o leitor a refletir sobre o tema, a perceber mais detalhes, ou mesmo, para fazer o pesquisador atentar para o que ocorre no mundo fora do olhar da ciência.

Localizando-me à margem de qualquer pretensão científica, venho observando, neste passeio pela vida, e por aí e encontrando preciosidades que gostaria muito que tivessem outros destinos além do meu prazer de descobrir - que fossem melhor pesquisados e que fossem melhor divulgados.

Quisera ter, no mundo, "um lugar" donde pudesse, às vezes, lançar sementes em direção à academia e também ao mesmo tempo para a mídia. Não tenho a pretensão de oficializar este lugar, de ter cargo ou função oficial donde exercer este trabalho. Quisera isto sim ver pesquisado e divulgado um pouco do que percebo interessante neste meu caminhar pelo mundo e pela vida. Pretensão e água benta todo mundo toma o quanto quer. O lugar que mais me parece assemelhar-se a este meu desejo é a posição do professor que recebe mestrandos e doutorandos para os quais podem ser lançados temas e idéias, ou do diretor de instituição que, no ato de distribuir suas verbas, implementa e promove.

Pediram-me e eu adorei que o tivessem feito, um texto, diria brincando "quase científico". Pediram-me um artigo de interesse científico, no qual estariam dispensadas provas, bibliografias, notas de rodapé e citações. Entendi que podia apresentar uma idéia. Acrescento que gostaria que fosse pesquisada e divulgada, e ainda que se transformasse em muitas teses, das quais brotassem muitas outras idéias.

Este meu tema nasceu de uma consulta a uma velha Enciclopédia Britânica. Não me lembro por quê, mas quis ver o que se falava sobre "vergonha". Fiquei pasma. Descobri, depois de muito folhear, que este assunto não aparecia, nem na micropédia, nem na macropédia. Como será que Freud explicaria esta ausência? Não pode ser a idade da enciclopédia a razão. Shame/vergonha pode até estar caindo em desuso, mas não é novidade. Esta falta me levou a divagar. E sem recorrer a qualquer outra bibliografia, vou fazer um "vol d'oiseau" sobre o assunto.

Se você puder escolher entre sentir vergonha ou sentir culpa, o que escolheria?

Ainda não respondeu?

Então respondo eu. Sem qualquer dúvida, sem qualquer titubear, prefiro sentir culpa.

(Você pode estar se perguntando por que enfiei o conceito de culpa aí. Por serem duas instâncias psíquicas que podem aparecer em resposta a erros. Só isso.)

Quando digo que errei, digo que conheço o "certo" mas não quis, não pude ou não consegui fazer "certo". Posso procurar explicações para diminuir minha culpa, examinar as circunstâncias que me levaram ao erro, pecado, crime ou transgressão. Dizendo-me culpada, estou afirmando que seria capaz de acertar. Estou dizendo ainda que posso treinar-me errar menos. Enfim, coloco-me como alguém capaz.

Sentir culpa pressupõe o conhecimento das causas do erro. Parece-me até que é da letra da lei que desconhecer a regra atenua, mas não isenta de culpa.

Encaramos a culpa como resultante de uma falha na relação entre o culpado e regras do mundo. Culpa fala erro, não de incapacidade. Em relação a ela cabe julgamento, perdão ou mesmo absolvição. A culpa pode desaparecer sem deixar nódoa ou marca se tivermos pago por ela.

E a vergonha?

Esta tem a ver com incapacidade de algum tipo. É diretamente referida à auto-estima. Como é que você imagina que você mesmo deveria ser para ser digno de seu próprio amor e aprovação?

Você pode perfeitamente "morrer de vergonha" de certos atos, fatos, circunstâncias das quais ninguém jamais te culparia. Quando nos envergonhamos, o olhar do outro somado ao nosso desprezo por nós mesmos, torna viver o momento insuportável. Todos existem, todos estão ali, mas o envergonhado gostaria de desaparecer para que a falha que o envergonha não seja percebida. Tem a ver, a vergonha, com uma depreciação fatal, instantânea de nós mesmos. Quando alguém enrubesce, aquele que o vê enrubescido pode nem saber por quê, mas sente, o envergonhado, que está inadequado, que mostrou-se inapto, atrasado, estabanado, ou simplesmente errado. Escorregar e cair no meio da rua deixa qualquer um envergonhado. Para isto não há nem condenação, nem perdão. Portanto, não há absolvição.

Já houve tempo em que a área genital do corpo humano era chamada de "vergonhas". A pessoa pilhada nua, até hoje, cobre com as mãos seus genitais como último recurso para evitar a vergonha total. Muitas situações constrangedoras são regradas por leis e mandamentos cuja função é nos proteger de passar vergonha. Roubar nos torna culpados, ser pilhado roubando nos faz morrer de vergonha – além da culpa. Eu imagino que o reflexo de cobrir os genitais, quando pilhado em nudez, tenha a ver com o perigo do outro conhecer o nosso desejo sexual ou a ausência dele. Uma ereção diante de uma mulher-tabu (mãe, irmã, filha) é para ser escondida. De qualquer forma não nos convém sermos traídos por atos-reflexos. Estes traem desejos, inaptidões. Mostram o que não queremos, por mil motivos, mostrar. É proibido desnudar-se em muitos lugares. Mas em outros é permitido. "Pode se despir, sou médico", diz-se nos consultórios. Dissimulamos a pobreza ou a carência em certas circunstâncias, mas quando queremos um empréstimo ou uma ajuda apresentamos a carência.

Vergonha é paralisante, pode impedir nossa participação em certos eventos. Vergonha do próprio corpo pode nos impedir de freqüentar lugares esportivos. A vergonha é inesperada, desconcertante. O gago fica mais gago por vergonha de ter gaguejado. Quem enrubesce fica mais vermelho de vergonha de ter enrubescido. Quem sua nas mãos sua mais de medo que percebam o seu suor. Todos queremos funcionar bem. Disfunções que não são culpa de ninguém, mexem com a nossa auto-estima. Uma espinha na ponta do nariz é razão para não sair de casa. Não saber que talher usar num banquete constrange quem acha que devia saber. Muitos tem vergonha de pedir orientação no trânsito e ficam perdidos pelas ruas.

Narcisismo e vergonha caminham em paralelo. Quanto maior a vaidade maior o medo da vergonha.

A culpa desencadeia uma série de reações pessoais e sociais. Até uma conversa pode diminuir o efeito de certas culpas. Um julgamento pode absolver ou condenar. As leis, os estatutos, falam dos erros pelos quais nos culpam mesmo que não nos sintamos culpados, e falam também de castigos. Aceitam-se os veredictos. Já para a vergonha o mundo dá poucos remédios, que no final resume-se a umas poucas medidas: da vergonha só nos livramos aceitando-nos com nossos defeitos, o que significa aceitar-se sem esconder as próprias faltas, falhas ou carências. O remédio fica em torno de fortificar a auto-estima a ponto de nos permitir suportar o olhar do outro sem nos sentirmos na obrigação de dissimular o erro. A vergonha tem um parente além do narcisismo: é prima irmã da hipocrisia. No que tange às situações de culpa, a hipocrisia não basta. É preciso ocultar o delito. Para a vergonha ocultação não é suficiente.

Existem culpados que se envergonham até de ocultar o mal feito, e o exibem, mesmo que isto redunde em exclusão ou prisão. Será que isto tem a ver com o dito popular que o criminoso sempre volta ao local do crime? Seria para não confessar sua vergonha de si mesmo? Ou seria um desejo secreto de ser pilhado e assim sobrecarregar-se com a vergonha além da culpa?

P.S.: Será que a Enciclopédia Britânica vai ter que colocar um dia o verbete "vergonha"? Afinal, se o narcisismo e a vaidade andam em trilhos paralelos à vergonha, podemos prever o recrudescimento da vergonha como sentimento importante de controle social neste mundo, que dizem tantos autores, é a era da vaidade e do narcisismo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jun 2004
  • Data do Fascículo
    2003
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