Acessibilidade / Reportar erro

O Brincar e a Intervenção Mediacional na Formação Continuada de Professores de Educação Infantil

Play and mediational intervention training for caregivers of child education

Le jeu et l'intervention de médiation dans la formation continue de professeurs d'écoles maternelles

Resumos

Trata-se de um estudo exploratório que tem por objetivo conhecer os padrões mediacionais propostos pelo Programa MISC - "Mediational Intervention for Sensitizing Caregivers", em uma amostra de educadoras infantis, oriundas de instituições públicas voltadas para o atendimento à criança pequena. O instrumento utilizado para a coleta de dados foi a gravação em vídeo das interações das educadoras com as crianças, em situações de brinquedo. A análise dos dados forneceu indicações sobre o padrão mediacional de cada uma das educadoras, conforme sugerido pelo programa supra citado, além do reconhecimento de mediações boas e ruins exibidas pelas educadoras na sua prática diária com as crianças. A partir da análise dos resultados da pesquisa foi proposto para as educadoras deste estudo um programa de desenvolvimento profissional baseado na intervenção mediacional, com ênfase no papel das boas mediações para o desenvolvimento das crianças e nas contribuições do lúdico como recurso mediador nas interações educadora-criança.

Interação professor-aluno; Ensino pré-escolar; Recreação; Crianças; Mediação


This explorative work aims at studying the international standards proposed by the MISC Program in a sample of caregivers from public institutions that attend small children. A video camera was used to observe interactions between caregivers and children during playtime. Analysis of data indicated mediational standards of each caregiver as suggested by the program above. It also allowed us to recognize the good and bad mediations conducted by the caregivers in their daily practice with the children. From the analysis of the research results, a program for professional development was proposed for the caregivers. Grounded on mediational intervention, the program aimed at training children caregivers with an emphasis on the role of good mediations for child development and playful contributions as mediational resources in child-caregiver interactions.

Teacher student interaction; Preschool education; Recreation; Children; Mediation


Il s'agit d'une étude exploratoire ayant pour objectif de connaître les normes de médiation proposées par le programme MISC - Mediacional Intervention for Sensitizing Caregivers, dans un échantillon de professeurs de Maternelle originaires d'institutions publiques tournées vers la petite enfance. L'instrument utilisé pour recueillir les données a été l'enregistrement vidéo des interactions des éducateurs avec les enfants, en situation de jeu. L'analyse des données a fourni des indications sur la norme de médiation de chacune des éducatrices, comme suggérée par le programme cité ci-dessus, ainsi que les interventions bonnes et mauvaises montrées par les éducatrices dans leur pratique journalière avec les enfants. À partir de l'analyse des résultats de la recherche on a proposé aux éducatrices de cette étude un programme de développement professionnel basé sur l'intervention de médiation avec l'accent sur le rôle des bonnes interventions pour le développement des enfants et dans les contributions du ludique comme recours médiateur dans les interactions éducatrice-enfant.

Interaction professeur-élève; Enseignement préscolaire; Récréation; Enfants; Médiation


ARTIGOS ORIGINAIS

O Brincar e a Intervenção Mediacional na Formação Continuada de Professores de Educação Infantil

Play and mediational intervention training for caregivers of child education

Le jeu et l'intervention de médiation dans la formation continue de professeurs d'écoles maternelles

Celia Vectore

Faculdade de Psicologia Universidade Federal de Uberlândia

Endereço para correpondência Endereço para correspondência Rua: Delmira Cândida Rodrigues da Cunha, 1279 B. Santa Mônica, CEP 34408-208 - Uberlândia – MG. Endereço eletrônico: vectore@ufu.br

RESUMO

Trata-se de um estudo exploratório que tem por objetivo conhecer os padrões mediacionais propostos pelo Programa MISC - "Mediational Intervention for Sensitizing Caregivers", em uma amostra de educadoras infantis, oriundas de instituições públicas voltadas para o atendimento à criança pequena. O instrumento utilizado para a coleta de dados foi a gravação em vídeo das interações das educadoras com as crianças, em situações de brinquedo. A análise dos dados forneceu indicações sobre o padrão mediacional de cada uma das educadoras, conforme sugerido pelo programa supra citado, além do reconhecimento de mediações boas e ruins exibidas pelas educadoras na sua prática diária com as crianças. A partir da análise dos resultados da pesquisa foi proposto para as educadoras deste estudo um programa de desenvolvimento profissional baseado na intervenção mediacional, com ênfase no papel das boas mediações para o desenvolvimento das crianças e nas contribuições do lúdico como recurso mediador nas interações educadora-criança.

Descritores: Interação professor-aluno. Ensino pré-escolar. Recreação. Crianças. Mediação.

ABSTRACT

This explorative work aims at studying the international standards proposed by the MISC Program in a sample of caregivers from public institutions that attend small children. A video camera was used to observe interactions between caregivers and children during playtime. Analysis of data indicated mediational standards of each caregiver as suggested by the program above. It also allowed us to recognize the good and bad mediations conducted by the caregivers in their daily practice with the children. From the analysis of the research results, a program for professional development was proposed for the caregivers. Grounded on mediational intervention, the program aimed at training children caregivers with an emphasis on the role of good mediations for child development and playful contributions as mediational resources in child-caregiver interactions.

Index terms: Teacher student interaction. Preschool education. Recreation. Children. Mediation.

RÉSUMÉ

Il s'agit d'une étude exploratoire ayant pour objectif de connaître les normes de médiation proposées par le programme MISC - « Mediacional Intervention for Sensitizing Caregivers », dans un échantillon de professeurs de Maternelle originaires d'institutions publiques tournées vers la petite enfance. L'instrument utilisé pour recueillir les données a été l'enregistrement vidéo des interactions des éducateurs avec les enfants, en situation de jeu. L'analyse des données a fourni des indications sur la norme de médiation de chacune des éducatrices, comme suggérée par le programme cité ci-dessus, ainsi que les interventions bonnes et mauvaises montrées par les éducatrices dans leur pratique journalière avec les enfants. À partir de l'analyse des résultats de la recherche on a proposé aux éducatrices de cette étude un programme de développement professionnel basé sur l'intervention de médiation avec l'accent sur le rôle des bonnes interventions pour le développement des enfants et dans les contributions du ludique comme recours médiateur dans les interactions éducatrice-enfant.

Mots-clés: Interaction professeur-élève. Enseignement préscolaire. Récréation. Enfants. Médiation

Contribuições sobre a relevância do brincar e de suas manifestações para o adequado desenvolvimento e aprendizagem na infância têm mobilizado esforços dos mais diversos estudiosos e produzido uma ampla literatura internacional e nacional, quanto à pertinência de sua utilização em diferentes contextos educativos.

Fatores como a entrada da mulher no mercado de trabalho, alterações nas concepções de família e o ritmo frenético da vida nas grandes cidades contribuíram para realçar a importância do lúdico no contexto do desenvolvimento humano, na medida em que cada vez mais, nos dias atuais, o tempo e o espaço do brincar encontram-se ameaçados, acarretando conseqüências funestas para o desenvolvimento da criança, tais como o isolamento e a falta de solidariedade, que sinalizam uma diminuição exacerbada da dimensão humana, a qual floresce nas relações com o outro.

Assim, atrelada ao contexto social que se desenha nas grandes cidades, cresceu substancialmente a consciência da relevância de cuidados educacionais e de bem-estar da criança, antes dos sete anos, na maioria dos países. Essa consciência redundou em recomendações de iniciativas, projetos e procedimentos nesta área, assim como a multiplicação da literatura, materiais didáticos, preocupações com o preparo mais adequado e o aperfeiçoamento dos docentes, bem como a assistência permanente a estes, e em uma contínua busca de melhoria de qualidade e de generalização dos serviços pré-escolares. No Brasil, tal movimento teve o seu ápice com o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998), o qual estabelece, pelo menos teoricamente, metas capazes de fomentar um adequado desenvolvimento integral da criança, quando aponta para a necessidade de desenvolvimento dos profissionais, conforme recomenda a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), no seu título IX, art. 87, § 4° e reitera que, "até o fim da década, na Educação, somente serão admitidos professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em serviço".

A realidade que hoje nos cerca, entretanto, parece traduzir-se por obstáculos e desafios imensos, que se opõem ao cumprimento, na prática e dentro de pouco tempo, dos preceitos da lei aludidos acima. O quadro social do país é sabidamente preocupante. Dados produzidos pelo Ministério da Educação permitem concluir, segundo Dimenstein (1999), que as creches e pré-escolas brasileiras, especialmente as públicas, são depósitos humanos, onde cerca de 58% das instituições não dispõem de sistema sanitário adequado, 20% não têm energia elétrica e 73% não contam com um parque para brincadeiras ao ar livre, o que atinge mais da metade dos alunos (56%). Além disso, é gritante a falta de pessoal qualificado para o atendimento da clientela infantil, pois apenas 20% têm diploma de nível superior; no Nordeste, a proporção cai para 4,5%. No recente relatório da Situação da Infância e Adolescência Brasileiras, lançado pelo UNICEF em dezembro de 2003, os dados indicam que ainda há, no Brasil, 38,6% de crianças na faixa etária de 4 a 6 anos que estão fora da pré-escola; esse índice avança para 48,9% quando se dirige para os estratos menos favorecidos da população (p. 80). É interessante observar que, neste documento, não são incluídos indicadores educacionais para a faixa etária de 0 a 3 anos de idade, pois, embora seja reconhecida como um direito, o referido órgão acredita que a creche não é a única alternativa educacional nessa idade (p. 52).

Em meio ao quadro desalentador que ainda caracteriza a situação de um grande número de pré-escolas brasileiras, torna-se desafiador pensar em novas formas que possam contribuir para a formação mais adequada do educador infantil. Uma dessas alternativas pode ser representada pela adaptação do Programa Mediational Intervention for Sensitizing Caregivers ao contexto brasileiro, junto aos professores de educação infantil, iniciada neste trabalho através do conhecimento dos critérios mediacionais utilizados por professores de educação infantil.

O Programa de Intervenção Mediacional para um Educador mais Sensível (MISC) é, segundo Klein e Hundeide (1989, 1992), a primeira tentativa para definir, avaliar e modificar aquelas variáveis de comportamento dos adultos que se constituem em condições necessárias e suficientes para a constituição de uma adequada interação entre pais e filhos ou, ainda, entre educador e educando no seu sentido mais abrangente.

Os comportamentos que levam a uma boa mediação foram identificados por Feuerstein (1980) e descritos em sua teoria sobre a modificabilidade cognitiva, cujo ponto nevrálgico é o postulado de que "todo o ser humano é modificável" e, para isso, deve contar com um bom mediador.

Klein (1996a, 1996b) descreve cinco comportamentos básicos numa mediação de qualidade, ou seja, a focalização, a expansão, a afetividade/mediação do significado, a recompensa e a regulação do comportamento.

Um fator a ser enfatizado quando se considera a importância de boas mediações para o desenvolvimento infantil é a função que o brinquedo e as brincadeiras podem assumir como efetivo recurso mediacional, do qual o educador pode lançar mão em diferentes ocasiões, no exercício de suas funções, por meio de uma intervenção educativa reflexiva, conforme têm demonstrado estudos tanto ao nível nacional quanto internacional. A despeito de inúmeras controvérsias em relação às diferenciações entre jogo, brinquedo e brincadeira, neste trabalho o termo ‘brinquedo’ se aplica tanto às brincadeiras e jogos em geral, quanto a qualquer objeto utilizado com a função de brinquedo, conforme sugere Moya (1988).

Assim, "o educador pode desempenhar um importante papel no transcorrer das brincadeiras, se consegue discernir os momentos em que deve só observar, em que deve intervir na coordenação da brincadeira, ou em que deve se integrar como participante das mesmas" (Oliveira, Mello, Vitória, & Ferreira, 1992, p.102), de forma a tornar-se um eficiente mediador em suas interações com as crianças, oportunizando situações de brincadeiras e aprendizagens que estimulem "a vivência, a aquisição de novas competências, saberes e habilidades" (Wajskop, 1999, p. 13).

O brincar na Educação

Kishimoto (1990) aponta que a literatura educativa demonstra a importância do brinquedo, a partir da educação greco-romana, com Platão e Aristóteles. Essa valorização prossegue no Renascimento e explode no século XVIII, com a publicação de Emílio de J. J. Rousseau, cujas concepções acerca da educação de crianças giram em torno da especificidade da natureza infantil. No século XVII, alguns educadores perceberam a importância dos jogos na transmissão de conteúdos escolásticos de história, de moral e de filosofia, de forma a intensificar o uso de tais instrumentos no cotidiano das instituições escolares. Deve-se mencionar que, na Idade Média, o jogo era desvalorizado, devido a sua vinculação com a questão do vício e do jogo a dinheiro, o que o fez ser banido das escolas. Desse modo, apenas no século seguinte, o jogo entrou no campo da educação e, de lá para cá, houve o aparecimento de muitas teorias voltadas para a valorização da questão do brinquedo e da brincadeira na educação e no sistema escolar.

Em 1837, Friedrich Fröebel (1782-1852), filósofo reconhecido como o primeiro a formular uma teoria abrangente de educação infantil, com um método detalhado sobre a sua implementação, criou em Blankenburg, na Alemanha, uma pré-escola (jardim de infância) onde o brinquedo e a brincadeira eram o cerne do trabalho pedagógico. Dewey, Montessori e Decroly, entre outros, também contribuíram para o realce dado ao brinquedo, enquanto ação e objeto, no currículo pré-escolar. No Brasil, o movimento de valorização do brinquedo teve origem, segundo Kishimoto (1990), nas pioneiras unidades de jardins de infância instaladas no Rio de Janeiro (1875), São Paulo (1877) e Pará (1884) destinadas a educar crianças de três a seis anos, por intermédio de brinquedos oriundos da pedagogia fröebeliana.

Dessa forma, nas primeiras décadas do século XX, o brincar ainda era pouco explorado nas escolas, não havendo, portanto, a ação lúdica na sala de aula. Atualmente, observa Kishimoto (1999), o brincar está presente na escola ora com um significado extremamente diretivo, eliminando a liberdade que faz parte do processo lúdico, ora de uma forma aleatória, improvisada, sem a preocupação dos educadores, no sentido de compreender que nesse brincar há necessidade de objetos, de parcerias e de conteúdos, o que leva a uma atividade descomprometida do desenvolvimento da criança e, portanto, da sua aprendizagem. Por outro lado, ao se entender o brincar como um processo facilitador tanto do desenvolvimento infantil como da construção do conhecimento da criança, a escola deve se preparar para criar espaços de brincadeira, onde os objetos, os brinquedos, os materiais, as informações e as regras do brincar devem fazer parte da formação do profissional, de forma a capacitá-lo na utilização de tal recurso como instrumento de desenvolvimento da criança. Nesse sentido, Duarte (1988) lembra, na "Apresentação" que faz do livro Significado e Função do Brinquedo na Criança à edição brasileira, que a "presença do brinquedo ativo e espontâneo é sinal de saúde mental e sua ausência, um sintoma de doença física e/ou mental".

Entretanto, Spodek e Saracho (1998) observam que é difícil definir o que é a brincadeira e um método utilizado pelos estudiosos para defini-la é determinar quando ela não ocorre. Assim, a brincadeira não é trabalho, não é real, não é séria, não é produtiva (Schwartzman, 1979).

Bruner (1986) acredita que o ato de brincar permite ao ser humano condições ótimas para explorar e desenvolver habilidades mais complexas e aponta cinco funções fundamentais da brincadeira, que são:

1. redução das conseqüências relativas aos erros e fracassos, sendo uma atividade que se justifica por si mesma;

2. permissão da exploração, da intervenção e da fantasia;

3. imitação idealizada da vida

4. transformação do mundo, segundo os nossos desejos;

5. diversão.

Bruner defende a utilização dos jogos, porque eles refletem alguns ideais que prevalecem na sociedade adulta, sendo uma forma de socialização, uma preparação para a ocupação de um lugar na sociedade e o jogar com outras crianças pelo prazer proporcionado pelo jogo facilita a fluência da criatividade. O autor ainda observa que a competição exacerbada nos jogos reflete um valor de nossa sociedade e difere de outras culturas.

Assim, a despeito das dificuldades de definição e das controvérsias suscitadas pelos diferentes teóricos, sobre o papel da brincadeira na educação da criança pequena, os quais enfatizam ora a importância dos comportamentos imitados, ora os aspectos de enriquecimento cognitivo, ora a possibilidade de socialização e de solução de conflitos emocionais, o brincar constitui-se em fonte instigante de preocupações científicas e, felizmente, ao permear as ações humanas, está presente em todas as culturas conhecidas. Um exemplo pode ser dado, segundo Medeiros (1988), em relação à brincadeira da Amarelinha, identificada em diversas culturas, cujo traçado semelhante a uma basílica parece representar, através do avanço da pedrinha rumo "ao céu", a necessária superação das dificuldades inerentes à vida, num processo de elevação espiritual.

Atrelada à importância que se constitui o brincar dentro de diferentes contextos, como em casa, na escola e em instituições especialmente organizadas para esse fim (brinquedotecas), ganha realce a figura do educador, conforme foi mencionado, pois, ao exercer suas funções, pode atuar como mediador entre as situações de brinquedo e a criança.

Desse modo, o educador pode comportar-se como um bom ou mau mediador. É um bom mediador quando, ao compreender a cultura lúdica, é capaz de favorecer o desabrochar e o desenvolvimento das potencialidades de quem brinca, estimulando o recriar de situações e não apenas a repetição do já aprendido; ao contrário, assume o papel de um mau mediador quando, através de atitudes autoritárias, rígidas e maniqueístas, impede esse mesmo desenvolvimento. Vygotsky (1989) foi um dos precursores ao assinalar a importância da mediação para a aprendizagem e o desenvolvimento mental da criança, enfatizando que o mesmo comporta dois níveis de desenvolvimento, ou seja, o nível de desenvolvimento real, o qual é determinado pela solução independente de problemas e a zona de desenvolvimento proximal, onde a solução do problema é alcançada sob a ação de um mediador.

Mais recentemente, o programa denominado Mediational Intervention Sensitizing Caregivers (MISC) tem se preocupado em formar o bom mediador, e essa formação se dá através de atividades, pinçadas de sua própria prática, organizadas em sessões de desenvolvimento profissional, cujo número varia entre dez a doze, tendo como objetivo a reflexão constante dessa prática e suas possibilidades de superação, por meio dos recursos inerentes a uma mediação de qualidade. Assim, o programa só pode ser iniciado a partir da constatação do critério mediacional utilizado com maior freqüência pelo educador, a saber: a focalização, a expansão, a mediação do significado ou afetividade, a recompensa e a regulação do comportamento. Vale lembrar que, nem sempre, os educadores apresentam critérios mediacionais perfeitamente consolidados, não sendo incomum encontrarmos pessoas que apresentam padrões mediacionais seguramente de baixa qualidade, a ponto de pôr em risco o desenvolvimento das crianças. Entretanto, conforme assegurou Feuerstein, em entrevista concedida a Moraes (1999) em sua última visita ao Brasil, são esses educadores que mais se beneficiam com as propostas oriundas de programas enfatizando a importância da mediação.

Assim, é desejável que o adulto que está presente no momento da brincadeira assuma a figura de um bom mediador, participando dela e ajudando as crianças a brincarem, porém, sempre tendo como referencial que a fantasia que deve ser respeitada é a da criança. É freqüente o adulto assumir posturas autoritárias ou rígidas como, por exemplo, reprimindo brincadeiras de ladrão, de revólver etc, sem entender devidamente que, naquele momento, o que está em jogo não é o real, mas sim a sua representação através do brinquedo, ou seja, trata-se apenas de uma das linguagens, entre tantas outras, que a criança pode utilizar para representar esse real.

A situação estudada

O estudo foi realizado com dez educadoras infantis que trabalham com crianças de cinco a seis anos, sendo a média de 25 crianças por educadora, oriundas de cinco instituições públicas da cidade de Uberlândia, Estado de Minas Gerais. Em relação às idades das educadoras, estas variam de 24 a 50 anos. O grau de escolaridade varia do 2º grau incompleto até a pós-graduação lato-sensu. O tempo de trabalho em instituições infantis concentra-se em torno de 5 anos. A cidade tem cerca de 500.095 mil habitantes (conforme dados preliminares do Censo/2000). As instituições localizam-se em bairros não muito distantes do centro da cidade e o nível sócio-econômico da população atendida é, em sua grande maioria, baixo.

Inicialmente, a pesquisadora entrou em contato com as instituições pré-escolares, expondo as características do trabalho e pedindo sua colaboração, no sentido de obter a permissão para que as rotinas entre as educadoras e as crianças em situações lúdicas fossem filmadas, para posterior análise, considerando os critérios mediacionais. Vale ressaltar que ficou estabelecido junto às referidas instituições que, ao final da pesquisa, haveria um curso de capacitação para as educadoras participantes, cujo objetivo seria a exploração da intervenção mediacional nas ocasiões de jogos e brincadeiras. Dessa forma, foi prevista a utilização das filmagens realizadas, sob a forma de recortes dos episódios mediacionais, visando à ilustração e, principalmente, a reflexão da possibilidade de utilização de boas mediações, dentro dos contextos previamente assinalados. Por outro lado, é interessante observar que quando era explicada a necessidade de se filmar os educadores em suas rotinas, várias instituições se desculpavam e não permitiam o trabalho.

Os dados obtidos a partir das vídeo-gravações, para análise das situações de mediação da educadora, referiram-se ao envolvimento do adulto no brincar das crianças, de acordo com os critérios mediacionais. Foram realizadas 5 vídeo-gravações de cerca de 20 minutos, num total de aproximadamente uma hora e quarenta minutos de gravação para cada educadora. O tempo total de filmagens correspondeu a, aproximadamente, 18 horas. Foram analisadas as ações das educadoras, relativas à organização dos jogos e brincadeiras, bem como suas falas e gestos na interação com as crianças durante a situação lúdica. É importante mencionar que as rotinas observadas e registradas pelas vídeo-gravações foram somente em momentos nos quais as educadoras trabalham, ou deveriam trabalhar, mais participativamente com as crianças, sendo desconsiderados os momentos livres, tradicionalmente caracterizados como recreios.

Analisando os comportamentos mediacionais

Os dados obtidos por meio das filmagens, após observação minuciosa dos comportamentos das educadoras durante as situações lúdicas, foram categorizados e organizados de maneira a permitir a identificação dos comportamentos mediacionais descritos por Klein e Hundeide (1992). As categorias foram elaboradas, considerando a experiência da autora na área, bem como com o auxílio de quatro juízes já treinados no Programa Mediational Intervention Sensitizing Caregivers (MISC). A seguir, os comportamentos foram quantificados e alocados, considerando os critérios mediacionais que cada uma das educadoras estudadas havia utilizado. Vale ressaltar que a quantificação dos comportamentos se deu por meio das sessões gravadas, observando a ocorrência dos mesmos em cada período de aproximadamente 20 minutos. Como foi freqüente a ocorrência de comportamentos de não interação entre as educadoras e as crianças, optou-se, também, pela categorização dos comportamentos não mediacionais. Assim, tem-se que:

  • Focalização, neste estudo, indica a aproximação da educadora junto à(s) criança(s), bem como a sua participação nas atividades desenvolvidas por ela(s). Inclui todas as tentativas do mediador para assegurar que a(s) criança(s) focalize(m) a atenção em algo que deve ser percebido por ela(s).

  • Expansão, neste estudo, indica todo o comportamento da educadora, no sentido de ampliar a compreensão da criança sobre aquilo que está sendo apresentado. É verificado, por exemplo, quando o mediador explora as diferentes possibilidades das brincadeiras, adicionando novas experiências além das necessárias para o momento.

  • Mediação do Significado/Afetividade,neste estudo, inclui toda a energia emocional utilizada pela educadora durante a interação com a criança, levando-a a compreender o significado dos objetos, pessoas, relações e eventos ambientais. Nas brincadeiras é expresso, por exemplo, quando a educadora trabalha com a(s) criança(s) o significado de ganhar ou de perder no jogo.

  • Recompensa, neste estudo, ocorre quando a educadora expressa satisfação com o comportamento da(s) criança(s) e explica o porquê de estar satisfeita, facilitando o aflorar de sentimentos de autocontrole, de capacidade e sucesso, além de ampliar a sua disponibilidade para explorar ativamente o novo. Nas situações lúdicas, ela pode ser observada pelo interesse da educadora em relação à(s) atividades(s) desenvolvidas pelas crianças, pelos elogios às suas produções etc.

  • Regulação do Comportamento,neste trabalho, ocorre quando a educadora ajuda a criança a planejar antes de agir, de forma que ela se sensibilize para a necessidade de regular os seus "passos" a fim de atingir um objetivo. Nas situações lúdicas é expresso por meio das orientações e/ou direcionamentos das atividades, bem como da regulação de comportamentos, como: cuidado com os brinquedos (deixar em ordem, não estragar etc); respeitar as regras etc.

Categorização dos comportamentos não mediacionais apresentados pelas educadoras durante as atividades lúdicas

A educadora:

I. não participa da atividade e "observa" de longe;

II. faz outra atividade: conversa/ "bate-papo" com outras educadoras, arruma armários, varre a sala;

III. demonstra "enfado" enquanto as crianças brincam;

IV. não responde às solicitações das crianças.

Em virtude do pequeno número de educadoras da amostra considerada, os dados foram analisados considerando a freqüência de aparecimento dos comportamentos de mediação das mesmas, não considerando variáveis como idade, escolaridade, anos de experiência e outras que poderiam estar presentes num estudo mais extenso, com uma amostra quantitativamente representativa da população pesquisada.

A seguir, apresentaremos as freqüências dos comportamentos mediacionais (Tabela 1) e as freqüências dos comportamentos não mediacionais (Figura1) exibidos pelas educadoras ao longo das observações.


Com o objetivo de clarificar os comportamentos mediacionais exibidos ou não pelas participantes, traçaremos um breve perfil de cada educadora estudada.

Educadora 1: utiliza-se de pouquíssimos comportamentos mediacionais; em nenhum momento das observações recompensou ou expandiu as ações das crianças. A regulação do comportamento foi o critério mais freqüente, embora restrita às situações de chamar a atenção das crianças quando as mesmas emitem algum comportamento que julga inadequado. Considerando que esse critério tem como objetivo promover a independência das ações das crianças para que elas próprias se auto regulem e envolve certa atenção do mediador sobre a criança, é possível que, se bem trabalhado, a educadora possa enriquecê-lo e ampliá-lo para novos contextos mediacionais. Contudo, a educadora apresentou uma série de comportamentos não mediacionais, como a situação ilustrada abaixo:

... A educadora pediu para que todos sentassem no chão, em forma de círculo, a fim de brincarem de "corre-cotia".

Enquanto as crianças cantavam:

Corre, cotia, de noite e de dia...

A professora ficou sentada em uma cadeira, com uma expressão que denotava certo enfado; às vezes, chamava a atenção de algumas crianças que atrapalhavam a brincadeira, dizendo que elas não iriam ao parque no período da tarde...

Desse modo, em termos mediacionais, a educadora se comportou como uma "mediadora ruim", pois a literatura psicológica é farta de exemplos relacionados aos riscos afetivos e cognitivos, aos quais estão sujeitas as crianças que vivenciam situações, nas quais é perceptível o descaso do adulto.

Educadora 2: apresenta freqüências em todos os comportamentos mediacionais estudados neste trabalho. O critério mais utilizado foi a focalização; em todas as sessões a educadora aproximou-se das crianças e participou das atividades lúdicas. É digno de nota observar que, na entrevista inicial, a educadora aponta o fato de que quase não utiliza os jogos e brincadeiras, "porque as mães das crianças cobram tarefas, pois estão na alfabetização". Dessa forma, a professora retoma uma velha questão, que é a alfabetização dentro do ambiente pré-escolar, antecipando, assim, a etapa inicial do ensino fundamental, ou seja, a 1a série. A literatura sobre o referido tema é bastante consistente e, atualmente, o que os autores consideram é que a pré-escola pode e deve estimular as centenas de linguagens das crianças. Malaguzzi, famoso educador italiano e idealizador do premiado projeto "Zerosei", aponta que as duas orientações básicas comumente observadas nas instituições infantis, ou seja, ora constituindo-se predominantemente como assistenciais, ora predominantemente como transmissoras de informações escolásticas, enfatizando basicamente aspectos de uma escolarização precoce, são equivocadas, pois a instituição

... ou por pobreza de conteúdo ou por excesso de programação – sofre devido à falta de um espaço para a promoção das habilidades e recursos infantis, levando a um esvaziamento da profissão docente, ao nível do interesse e do significado...Nesses dois tipos de escola, continua, o elemento mais arriscado é o aborrecimento ou a ausência de intencionalidade a respeito dos problemas de aprendizagem, quer sejam os de habilidades fundamentais, quer sejam os de origem relacional ... (Malaguzzi, citado por Rabitti, 1994, p. 4).

Educadora 3: apresenta freqüências muito baixas e nulas em comportamentos relacionados ao seu envolvimento com as crianças em suas atividades lúdicas. Em relação aos comportamentos não mediacionais, chamou-nos a atenção o fato de a educadora freqüentemente não responder às solicitações das crianças, não dirigindo o seu olhar a elas e não as elogiando, conforme a descrição abaixo:

... A educadora distribui folhas para que as crianças desenhem, enquanto a TV permanece ligada; só depois de muito tempo parece se lembrar de desligar a TV. As crianças começam a desenhar e se entretêm por alguns minutos, mas quando elas acabam, o alvoroço começa. A educadora não dirige o olhar às crianças. Uma das crianças tenta mostrar seu desenho para a educadora (a criança fica segurando o desenho ao lado da educadora) porém, só depois de alguns instantes ela olha e não emite nenhum comentário.

Vale ressaltar, também, o fato de que esta educadora não possui formação adequada em educação infantil. Embora trabalhe na função há 5 anos, não participou de nenhum programa contínuo de capacitação. Assim, de cozinheira aparentemente competente, foi alçada à educadora de competência duvidosa! Compreender e conscientizar o educador de que se trata de uma figura de fundamental importância para o desenvolvimento da criança, quer seja estimulando-o, quando assume o papel de um bom mediador, quer seja comprometendo-o, quando o papel assumido é o de um mau mediador, ou seja, pouco envolvido e indiferente às necessidades infantis, deve ser um dos propósitos urgentes de programas de formação. É o caso, em especial, do Programa MISC, que, por ter como instrumento a pessoa do mediador, mostra-se bastante pertinente a essa tarefa, uma vez que mobilizará os recursos internos de cada participante na busca da melhor forma de mediação.

Educadora 4: surpreendeu-nos a pobreza do seu relacionamento com as crianças; apenas uma única vez tentou focalizar a atenção das crianças e as ajudou a brincar de corda, assim:

... quando percebeu que as crianças se aproximavam com a corda nas mãos, a educadora levantou-se da mureta na qual estava sentada e perguntou se elas queriam pular corda; então, explicou-lhes como deviam fazer e começou a bater a corda (aproximadamente por 5 minutos). A seguir, voltou a sentar-se na mureta e raramente dirigia o olhar para as crianças que brincavam no parque...

Foi possível observá-la fazendo o seguinte comentário com uma de suas colegas, perto das crianças: "...Graças a Deus, que hoje só tem essas crianças! Senão, eu já ‘tava’ doida lá no Juquiri; eles são muito custosos [sic[! ..."

Este comentário, talvez despretensioso, feito com uma colega, sugere o quanto essa educadora está desconfortável em sua função. Embora trabalhe há 9 anos, é evidente a sua inadequação para o trabalho com as crianças e, principalmente, o prejuízo que pode acarretar a elas, comportando-se como uma "mediadora ruim". Segundo Rutter (1981), ambientes desprovidos de envolvimento e onde falta "calor humano" são indicadores de alto risco para o desenvolvimento de comportamentos desviantes.

Assim, embora o Programa MISC possa ser aplicado visando o desenvolvimento profissional da referida educadora, não podemos deixar de mencionar a necessidade de competências para se educar crianças, não apenas cognitivas oriundas de estudos e capacitações, mas também de características pessoais e de personalidade. Vale mencionar que a educadora iniciou o seu trabalho como faxineira na creche, sendo promovida para a função de educadora sem nenhum outro investimento por parte da instituição, no sentido de garantir uma formação mínima para o exercício da nova função.

Por outro lado, é preciso apontar o fato de que as educadoras dessa instituição estavam com os salários atrasados, o que certamente contribuiu para a diminuição dos já tão parcos recursos profissionais apresentados por elas. Embora o trabalho não tivesse como objetivo a investigação do verdadeiro "caos" em que se encontra a educação infantil, a despeito dos incontáveis esforços dos pesquisadores e estudiosos em mostrar a sua importância, infelizmente, a prática das instituições parece não refletir tais avanços e um sintoma pode ser o descaso do poder público em relação a esse tipo de atendimento, manifestado pelo atraso no pagamento do educador. Assim, a criança que deveria estar no centro do processo educativo, recebendo serviços educativos de qualidade conforme propõe Formosinho (2000), passa a ser o elo mais fragilizado nesta injusta cadeia.

Educadora 5: A educadora apresenta todos os critérios mediacionais categorizados para este trabalho e, em freqüências relativamente constantes, atuando como boa mediadora, na maior parte das situações. Entretanto, acreditamos que a aplicação do programa MISC seja bastante pertinente, uma vez que explora novas possibilidades de mediação e, por conseguinte, de desenvolvimento infantil, através da utilização das diferentes formas de ludicidade, capazes de contemplar não apenas as brincadeiras dirigidas, mas também as que permitem uma representação do real, como as brincadeiras do faz-de-conta, praticamente inexploradas pela educadora.

Educadora 6: a mais idosa e uma das mais experientes de nossa amostra, demonstra muita facilidade na interação com as crianças bem como satisfação ao desenvolver as brincadeiras, explorando-as de forma adequada, segundo os critérios mediacionais. Todavia vale mencionar que, em todas as observações realizadas, o lúdico parece estar subordinado à ação e o direcionamento da educadora, não existindo espaço para as brincadeiras livres e os jogos do faz-de-conta tão importantes para a construção e representação do real pela criança.

Educadora 7: apresenta freqüências relativamente baixas nos critérios mediacionais estudados. De modo geral, nos episódios observados percebe-se certa pobreza em suas interações com as crianças, parece não haver nenhuma disponibilidade em se explorar o lúdico, utilizando-o como um mero passatempo, descontextualizado, com a função única de ocupar o tempo da criança, enquanto a educadora pode dedicar-se a alguma outra atividade, como por exemplo, arrumar os armários, conforme descrito abaixo:

... A educadora levantou-se e deixou as crianças brincando enquanto arrumava um armário que ficava na sala. As crianças ficaram jogando. Às vezes, alguma criança chamava a professora para mostrar o que estava fazendo. Ela dizia "que lindo" ou "muito bem", mas continuava arrumando o armário...

Embora elogie os trabalhos das crianças, não podemos dizer que se trate da recompensa, pois não houve uma real interação com a criança; pareceu-nos mais a verbalização de um clichê, utilizado mecanicamente. Maturana (1997) alerta para a importância da relação de jogo entre a criança e quem cuida dela (mãe, educador etc) como elemento fundamental para o desenvolvimento fisiológico e psíquico da criança. A relação de jogo é, segundo o autor, uma relação de proximidade corporal em mútua aceitação, num encontro em que o que se faz e vive vale por sua legitimidade imediata, num espaço de convivência e aceitação. Quando não é possível a existência de tal espaço, o que ocorre é a manipulação, fator causador de inúmeras doenças.

Desse modo, não é demais alertar para a importância da capacitação dos profissionais que cuidam efetivamente das crianças e, o Programa MISC pode ser mais uma luz nesse universo ainda sombrio no atendimento à criança pequena, na medida em que sensibilizará o educador na utilização de seus recursos internos para uma mediação de qualidade.

Educadora 8: observa-se o pouco envolvimento da educadora nas atividades desenvolvidas com as crianças; o descaso pareceu-nos tanto que, em uma das observações, a educadora foi flagrada dormindo no chão, enquanto as crianças estavam na sala sem nenhuma orientação e direcionamento, conforme a situação descrita:

... a educadora levou as crianças para o refeitório, uma sala maior do que as outras, com televisão, mesinhas e cadeiras. Lá ela distribuiu folhas com desenhos prontos, palitos de fósforo e uma tampa de refrigerante descartável com cola. Pediu que colassem palitos sobre o contorno do desenho e que, quando precisassem dela, que levantassem o dedo. Durante o episódio, a educadora ficou distante, sendo quase inexistente seu contato com as crianças. Houve inclusive situações em que as crianças ficaram até mais de um minuto com o dedo levantado, esperando para serem atendidas. Em nenhum momento, a educadora elogiou os trabalhinhos das crianças

Pareceu-nos que as atividades eram elaboradas no momento, sem nenhum planejamento ou cuidado e, embora houvéssemos dito, na ocasião do contato inicial, que o nosso interesse se dirigia para os jogos e brincadeiras no contexto institucional, não percebemos nenhum investimento na promoção de atividades lúdicas com as crianças.

Educadora 9: apresenta o maior tempo de exercício na função e utiliza, com maior freqüência, os critérios mediacionais ligados à mediação do significado ou afetividade e a regulação do comportamento, denotando sua preocupação em oferecer às crianças significações a respeito das experiências vivenciadas. Muito embora o entendimento da educadora sobre o lúdico demonstre, a nosso ver, uma visão equivocada, pois há uma ênfase gritante na relação brincadeira = jogo pedagógico, com conteúdos a serem transmitidos, numa ação totalmente direcionada pelo adulto, observa-se também uma inadequação das atividades em relação à faixa etária das crianças. O trecho abaixo mostra uma situação na qual é evidente a insatisfação das crianças com a atividade proposta pela professora, provavelmente por exigir abstrações, considerando que nessa idade o raciocínio infantil ocorre através do concreto. Em contrapartida, as crianças, ao demonstrarem suas insatisfações, mostram também as suas necessidades e aí, então, observa-se o clamor infantil pela brincadeira. Ei-lo:

... A professora continua a falar do livro: "Gente, só pra vocês entenderem e a gente terminar...". L. interrompe com a caixa do Jogo da Velha na mão e apontando para o que estava escrito na tampa: "Olha, tia, aqui diz só a partir dos sete anos" e ela responde: "Mas é que a gente já consegue, que bom, né?". E continua: "Quando a gente quiser saber sobre o mar, ou sobre os animais. Quando a gente quiser entender o que aconteceu bem antes da gente nascer, ou quando a gente quiser entender a vida dos insetos, como é o caso do mosquito, ou pra entender as sensações do gigante...". L. vai até a professora e tenta pegar o livro com a intenção de fechá-lo e fala para a professora: "Pode fechar o livro que tá chato!" A professora pergunta se eles não querem entender a história e ela responde que não, outras crianças respondem que não, também. A professora pergunta o que eles querem fazer, então. Eles respondem que querem brincar...

Educadora 10: apresenta freqüências muito baixas dos critérios ligados à expansão, mediação do significado e recompensa. Demonstra entender a brincadeira dentro da instituição apenas de uma perspectiva conteudística, ou seja, só é possível "brincar", na medida em que ocorre a transmissão de conteúdos escolásticos, como o prosaico ler, escrever e contar, descrito na situação abaixo, onde a criança deve saber relacionar cores com quantidades. Ei-la:

... Cada criança pegou as suas cores e algumas delas já começaram a falar quanto deu sua soma. A professora continua: "Então vamos somar assim, ó, o C. tirou o verde e o laranja. Quanto que dá o verde?". Ela continua: "O C. pegou o 6 e o 10, aí eu faço a pergunta pra ele, você sabe quanto dá 6 + 10? Ele vai pensar e falar quanto dá. Aí, ele vai pegar as pecinhas brancas e contar." C. responde que acha que vale 11. A professora explica: "Olhe, ele achou que vale 11, então vamos ajudá-lo a conferir". Ela coloca as duas peças seguidas no chão e fala para C. conferir. Ele vai pegando as peças brancas e colocando. A professora fala: "Ó gente, ajude o C. contar, ele falou que vale 11. Então, vamos ver quantas pedrinhas vai ter de pôr, se vai ser 11 ou outro valor. Vamos ver?" Ela diz isso com uma expressão e gestos de dúvida, além de bocejar. Os alunos vão contando, menos L. e T. , por isso a professora diz que na vez deles ninguém iria ajudar. Os alunos contaram até 16. Então, a professora corrige: "Olhe aqui, gente, o C. falou que era 11, só que foi 16. Então, você colocou quantos a mais que 11 para dar 16? Vamos contar? 11, 12, 13, 14, 15, 16. Então, cinco (a professora vai contando, apontando para os cubinhos.)

Embora a professora participe das atividades de jogos, não podemos dizer que tal participação seja como parceira ou boa mediadora, pois sua relação com as crianças é de orientadora, disciplinadora, ou seja, aquela que dá ordens. Além disso, as atividades propostas nos pareceram extremamente enfadonhas, desinteressantes, com uma repetição à exaustão e sem sentido, tão distantes da realidade das crianças e inadequadas ao nível de seu desenvolvimento que, em certo momento, a própria educadora boceja, num claro sinal de pouco envolvimento.

De um modo geral, é interessante observar que, na amostra estudada, o comportamento mediacional mais utilizado foi a regulação do comportamento, seguido da focalização. Considerando que a regulação do comportamento diz respeito às formas que a educadora utiliza para orientar e/ou direcionar a atividade da criança bem como o seu comportamento, pode-se explicar que a alta freqüência se justifica em virtude de as educadoras direcionarem, de forma contínua, as atividades das crianças, além de chamarem a atenção delas, quando apresentam comportamentos julgados inadequados.

Por outro lado, a focalização também é bastante utilizada, em virtude de contemplar aspectos ligados à aproximação das crianças e à sua participação em tais atividades. Acreditamos que, com o treinamento do Programa MISC, tal critério possa ser expandido, a fim de abarcar situações nas quais seja possível que se coloquem, efetivamente, como parceiras nas brincadeiras infantis, o que quase não aconteceu com as educadoras estudadas.

Comportamentos como a expansão, a mediação do significado e a recompensa tiveram freqüências relativamente baixas, o que talvez possa ser explicado pela natureza das atividades que foram desenvolvidas com as crianças, ou seja, extremamente direcionadas ou, ao contrário, sem nenhum direcionamento ou compromisso das educadoras em estar em interação com os pequenos, conforme se pode constatar em episódios onde a não mediação da educadora ficou evidente.

Desse modo, temos que o Programa MISC se constituirá numa eficiente e eficaz fonte de recursos para os educadores, contribuindo para o desenvolvimento da prática reflexiva dentro da instituição. Schön (1995) propõe que o desenvolvimento de uma prática reflexiva está relacionado: (1) ao modo como a criança aprende; (2) à interação interpessoal entre o educador e a criança (mediação) e (3) ao modo como o educador vive e trabalha na instituição.

Conclusões e considerações finais

À luz da pesquisa realizada, embora de proporções modestíssimas, e das tendências observadas na literatura pertinente, alguns pontos poderão ser ressaltados, servindo quer como matéria para reflexão para estudos adicionais, quer como propostas ou recomendações que tenham em vista, mais diretamente, os rumos dos programas de formação continuada para educadores infantis.

Um dos primeiros indicadores para a identificação de uma proposta de educação infantil é o reconhecimento de que ela se materializa a partir da organização do espaço, o qual pode ser representado tanto pela vertente da socialização, quanto da escolarização. No Brasil, parece haver uma ênfase exagerada na escolarização e a pré-escola, muitas vezes, é concebida como tendo a função de aquisição de conhecimentos sistemáticos visando à estimulação para o desenvolvimento precoce da inteligência infantil.

Essa imagem de infância se cristaliza em posturas absurdamente rígidas, as quais desconsideram as reais necessidades infantis, pois o objetivo é tornar a criança, cada vez mais, um adulto em miniatura! Esta postura reflete ideologias como as de que, quanto mais cedo a criança dominar habilidades como ler, escrever e contar, mais chances de sucesso ela terá, independente do ônus a ser pago por tamanha desfaçatez.

A globalização dos mercados e a consolidação da importância dos primeiros anos de vida para o desenvolvimento fizeram emergir, tanto no cenário nacional quanto no internacional, um novo tipo de preocupação, representada pela questão da qualidade do serviço prestado à infância. Assim, não basta nem sensibilizar a sociedade como um todo nem os governantes sobre a necessidade de instituições infantis, mas sim, exigir um serviço de qualidade passível de desenvolver todas as potencialidades infantis. Nesse sentido, são bastante oportunos os estudos sobre a promoção da qualidade na educação infantil, empreendidos por Formosinho (1996) em Portugal e por Pascal e Bertram (1999) na Inglaterra.

Contribuir para a formação do educador foi o objetivo perseguido durante este trabalho e um dos dados que nos chamou a atenção refere-se ao modo pelo qual o educador infantil se apropria do brincar, no seu dia a dia com as crianças. Em 50 observações, presenciamos apenas três episódios nos quais houve a manifestação do simbólico; na maioria das vezes, o que se tem são atividades extremamente repetitivas, enfadonhas e, muitas vezes, inadequadas à faixa etária das crianças envolvidas.

Um outro dado que nos pareceu extremamente preocupante é o número de educadoras de nossa amostra que se mostrou como "mediadoras ruins". Foi possível perceber que a improvisação, o descompromisso e a falta de vínculos significativos com as crianças são aspectos que gravitam no universo de 4 em cada 10 dessas "profissionais". É inconcebível que, em pleno terceiro milênio, os "depósitos" de crianças ainda sobrevivam em nossas cidades, sob os olhares omissos da sociedade que efetivamente paga pelos serviços das referidas educadoras.

Assim, capacitar o educador infantil, através de programas de desenvolvimento profissional, para que compreenda, por meio da prática reflexiva, a riqueza dos recursos lúdicos é uma das propostas que devem ser empreendidas a partir deste trabalho. Por outro lado, não se trata de propor apenas mais um treinamento, a que os professores são freqüentemente submetidos. Trata-se de utilizar o brinquedo como um efetivo recurso na formação do educador-mediador, capaz de fomentar o desenvolvimento das crianças, capaz de formar vínculos significativos com elas, enfim, capaz de torná-las mais inteligentes e, quiçá, felizes. Bomtempo (2000) cita estudos que indicam fortemente uma relação positiva entre crianças com alta predisposição à fantasia, e habilidades cognitivas e de competência social.

Uma das possibilidades para a consecução de tal objetivo é garantir, num primeiro momento, um espaço dentro das instituições para atividades de capacitação; sugere-se um período de cerca de três ou quatro horas semanais, para que o educador possa efetivamente refletir sobre a sua prática e, principalmente, sobre as possibilidades de mudança.

Além da pesquisa aqui apresentada ter detectado a fragilidade da utilização do lúdico em relação aos limites da pré-escola, mostrou, com relativa clareza, a necessidade de se empreender um trabalho sistemático, norteado por práticas pedagógicas adequadas à realidade da população atendida, com formas de avaliação cada vez mais precisas e objetivas. Sobretudo, com supervisão direta, realizada por profissionais especializados em educação infantil, de forma a tornar inadmissível que os avanços da ciência, fruto de trabalhos acadêmicos sérios, não alcancem ressonância ao nível da formação do educador infantil e garantindo que "o gostar de crianças" ainda seja o aspecto primordial e mais valorizado da "formação profissional" (Vectore, 1989).

Assim, o Programa de Intervenção Mediacional para um Educador mais Sensível (MISC) deve contemplar as seguintes etapas:

1.O que é mediação?

2. O lugar do lúdico na prática do educador.

3. Reflexão e elaboração feita pelos participantes de atividades mediacionais, envolvendo os critérios da focalização, da expansão, da mediação do significado, da recompensa e da regulação do comportamento.

4. Demonstração, feita pelos participantes, das possibilidades de mediação no seu trabalho.

5. Mediação em situações de "risco" ou conflito.

6. Identificação de possibilidades de mediação nas interações educadora-criança.

7. Acompanhamento dos educadores em suas práticas diárias (supervisão).

8. Organização de um vídeo de cada participante, demonstrando situações de mediação boas e de mediações ruins, para a reflexão global.

Vale ressaltar que o programa vem sendo aplicado de forma experimental nas educadoras infantis participantes do presente estudo, sob a forma de um curso de extensão e deverá, no final, ser avaliado em seus resultados, a fim de se verificar a pertinência e a abrangência da proposta, enquanto um programa mais geral de capacitação. Assim, a partir do presente estudo, novas investigações estão e estarão sendo empreendidas e, devidamente divulgadas, no sentido de tornar o Programa MISC um recurso acessível e eficiente para a prática docente em educação infantil.

De tudo o que foi dito, poderíamos sintetizar que resgatar o lúdico, o fantástico, enfim, a infância de cada educador é um desafio a ser enfrentado, quando o que se pretende é a formação holística desse profissional. Noffs (2000) aponta que conhecer o significado do brincar, para o educador, antecede conhecer novos repertórios, envolvendo brincadeiras e brinquedos. Acrescentaríamos que resgatar a dimensão humana, colocar-se no lugar do outro, compreendendo, com a mente e o coração, a importância do seu trabalho para a construção de um ser humano mais harmônico e integrado aos seus pares, deve ser o objetivo a ser perseguido por todos aqueles comprometidos com o fascinante período da educação infantil.

Recebido em 10.07.2001

Revisto em 22.03.2002

Aceito em 03.12.2003

  • Bomtempo, E. (2000). Brincar, fantasiar, criar e aprender. In V. B. Oliveira (Org.), O brincar e a criança do nascimento aos seis anos (pp. 127-149). Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Bruner, J. (1986). Juego, pensamiento y lenguaje. Perspectivas , 16(1), 79-86.
  • Dimenstein, G. (1999, 24 de outubro). Dados revelam que pré-escolas e creches são depósitos humanos. Folha de S. Paulo Cotidiano.
  • Duarte, I. (1988). Apresentação. In L. Lebovici & R. Diatkine, Significado e função do brinquedo na criança (3a ed.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.
  • Feuerstein, R. (1980). Instrumental enrichment. Baltimore, MD: University Park Press.
  • Formosinho, J. O. (Org.). (1996). Modelos curriculares para a educação de infância. Porto, Portugal: Porto.
  • Formosinho, J. O. (2000). Associação criança: Uma comunidade de apoio ao desenvolvimento profissional sustentado na educação de infância. In Anais, Congresso Internacional da Infância (pp. 1-14). Braga, Portugal: Universidade do Minho.
  • Kishimoto, T. M. (1990, junho). Teorias, pesquisas e organizações que valorizam o jogo na educação pré-escolar; o exemplo da brinquedoteca. Cadernos do EDM, FEUSP, 2(2).
  • Kishimoto, T. M. (1999). Brincadeiras na educação [Entrevista concedida a Luís Barco no programa de Televisão Terceiro Milênio - Rede Vida[. São Paulo.
  • Klein, P. S. (1996a). Early childhood education: Seventy-first yearbook of the National Society for the Study of Education . Chicago: University of Chicago Press.
  • Klein, P. S. (1996b). Early intervention: Cross-cultural experiences with a mendiational approach. New York: Garland.
  • Klein, P. S., & Hundeide, K. (1989). Training manual for the MISC (More Intelligent and Sensitive Child) program Sri Lanka: UNICEF.
  • Klein, P. S., & Hundeide, K.  (1992). Mediated learning experiences and at-risk children. In L. R. Williams & D. P. Fromberg (Eds.), Encliclopedia of early childhood education New York: Garland.
  • Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. (1996). Lei nº 9.394//96, de 20/12/96. Brasília, DF: Ministério da Educação.
  • Maturana, H. (1997). As bases biológicas do aprendizado. Dois Pontos, 2(16), 18-24.
  • Medeiros, E. B. (1988, agosto). Brincadeiras e brinquedos como manifestação cultural. In Anais do I Congresso Brasileiro: O Brinquedo na Educação. São Paulo: Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
  • Moraes, R. (1999, maio). Direito à inteligência. Isto É, (1545), 62-65.
  • Moya, I. (1988, agosto). O brinquedo como expressão da cultura. In Anais do I Congresso Brasileiro: O Brinquedo na Educação. São Paulo: Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
  • Noffs, N. A. (2000). A brinquedoteca na visão psicopedagógica. In V. B. Oliveira (Org.), O brincar e a criança do nascimento aos seis anos Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Oliveira, Z. M., Mello, A. M., Vitória, T., & Ferreira, M. C. R. (1992). Creches: Crianças, faz de conta & cia Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Pascal, C., &  Bertram, T. (1999). Desenvolvendo a qualidade em parcerias: Nove estudos de caso. Porto, Portugal: Porto.
  • Rabitti, G. (1994). Alla scoperta della dimensione perduta. Bologna, Italia: Editrice Bologna.
  • Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998). Brasília, DF: Ministério da Educação.
  • Rutter, M. (1981). Maternal deprivation reassessed London: Penguin Group.
  • Schön, D. A. (1995). Formar professores como profissionais reflexivos. In A. Nóvoa (Org.), Os professores e a sua formação Lisboa, Portugal: Publicaçőes Dom Quixote.
  • Schwartzman, H. B. (1979). Transformations: The antropology of play. New York: Plenun.
  • Spodek, B., & Saracho, O. N. (1998). Ensinando crianças de três a oito anos Porto Alegre, RS: ArtMed.
  • UNICEF. (2003). Situação da infância e adolescência brasileiras 2003 Brasília, DF: Autor.
  • Vectore, C. (1989). Professores, pais e pré-escola: Uma pesquisa exploratória em pré-escolas públicas e particulares. Dissertação de mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • Vygotsky, L. S. (1989). : .A formação social da mente< -.3pt'> (3a ed.). São Paulo: Martins Fontes.
  • Wajskop, G. (1999). 500 anos de Brasil: A formação continuada de professores... Meta de qualidade! Criança, (33), 12-15.
  • Endereço para correspondência
    Rua: Delmira Cândida Rodrigues da Cunha, 1279
    B. Santa Mônica, CEP 34408-208 - Uberlândia – MG.
    Endereço eletrônico:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Maio 2005
    • Data do Fascículo
      2003

    Histórico

    • Aceito
      03 Dez 2003
    • Revisado
      22 Mar 2002
    • Recebido
      10 Jul 2001
    Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco A, sala 202, Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, 05508-900 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revpsico@usp.br