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A herança de Luíz Carlos Nogueira

HOMENAGENS AO PROF. LUIZ CARLOS NOGUEIRA, EM SUA MISSA DE SÉTIMO DIA, NA IGREJA DE SÃO GABRIEL, SÃO PAULO, EM 21 DE OUTUBRO DE 2003

A herança de Luíz Carlos Nogueira

Antonio Quinet1 1 Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Foruns do Campo Lacaniano - Brasil, Fórum Rio de Janeiro. 2 As citações de Luiz Carlos foram extraídas de sua entrevista a Sílmia Sobreira, publicada, originalmente, em Stylus: Revista de Psicanálise. Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano, n. 6, pp. 199-211, abril de 2003, que faz parte desse volume (pp. 109-123).

Representante da Comunidade Psicanalítica

Sinto-me muito honrado e emocionado pelo convite da família de meu querido colega e amigo Luiz Carlos Nogueira para estar aqui representando a comunidade psicanalítica.

Luiz Carlos Nogueira, em 1974, recém doutor com tese sobre o Inconsciente Freudiano, dirigiu seu interesse pela obra do psicanalista francês Jacques Lacan, cujo estudo, elaboração e transmissão iria constituir o centro de sua vida profissional. Daí tornou-se um pioneiro na história do lacanismo no Brasil tendo fundado com alguns colegas a primeira instituição de psicanálise para a transmissão do ensino de Lacan no Brasil chamada Centro de Estudos Freudianos.

Luiz Carlos navegava nos mares revoltos da psicanálise situada entre dois litorais: o da universidade e o da instituição psicanalítica. Desbravador brasileiro em mares lacanianos nunca dantes navegados, Luiz Carlos formou vários marinheiros e navegantes que hoje estão a remar, a velejar e a conduzir inúmeras embarcações desfazendo sintomas, aliviando angústias, desatando inibições e resgatando vidas.

Sempre a favor da forma democrática de distribuição do poder, Luiz Carlos Nogueria ocupou legitimamente inúmeros cargos de responsabilidade nas instituições por que passou, sendo os últimos o de Diretor do Fórum do Campo lacaniano de São Paulo e o de representante do Brasil na Comissão Epistêmica Internacional da Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano. Levado naturalmente ao lugar de liderança por suas qualidades de prudência e sapiência no manejo das transferências a ele dirigidas, Nogueira nunca se confundiu com a função que ocupava. Tampouco deixou de problematizar o papel do líder sendo extremamente severo - père sevére - e perseverante contra os efeitos políticos de alienação, ditadura e ortodoxia.

Luiz Carlos teve uma presença marcante em diversos momentos cruciais do movimento psicanalítico no Brasil. Presença forte, muitas vezes de poucas palavras. Mas essas poucas palavras eram palvras certas que atingiam o alvo do problema. Palavras lançadas aos poucos, como pérolas, que iluminavam a obscuridade, clareavam as sombras, desfaziam as névoas. Com ele não havia espaço para palavras vãs ou gestos sentimentalóides. Outras vezes sua resposta era o silêncio - um silêncio sem as palavras mas não sem a linguagem pois seu silêncio falava alto, calava fundo. Silêncio da presença do real que apontava a todos uma direção ética. Não jogava palavras ao vento. Tampouco fazia barulho por nada. Não tergiversava. Ao embate e à afronta, preferia um ato eloqüente, como o de retirada silenciosa para marcar uma posição de discordância. Ele bem conhecia o valor áureo do silêncio e a função de um ato. Tanto que deles fez ofício com sua refinada escuta: psicanalista, para tantos e tantos analisantes de várias gerações. Como se cada um deles lhe tivesse dito, como Riobaldo, "me escutando com devoção assim é que aos poucos vou indo aprendendo a contar corrigido".

Nesses últimos anos, vinha participando intensamente do Campo Lacaniano sendo, para todos nós, uma referência teórica, ética e institucional. Seu papel na crise que abalou nossa comunidade em 1998 foi de fundamental importância. Serei eternamente grato a ele e a Helena Bicalho pela presença e apoio, em junho daquele ano no Rio de Janeiro, quando houve uma intervenção institucional, vinda da França, desproposital para qualquer instituição democrática.

Ele sempre combateu a mistificação do poder, a criação dos ídolos de pés de barro e a transferência alienante e cega a líderes carismáticos e manipuladores. Sempre lembrava o que nos ensina a Psicanálise: a singularidade faz objeção à massa, a diferença de cada um se contrapõe à homogeneização do grupo.

Contra o infantilismo, o servilismo e a dependência do outro, Luiz Carlos apregoava a posição subversiva lacaniana de que o analista se autoriza por si mesmo e não a partir de uma posição de prestígio ou de carreira institucional. É essa independência que permite, nos ensina ele, "a liberdade de crítica necessária à toda investigação e pesquisa rigorosa à altura da importância da Psicanálise".2 1 Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Foruns do Campo Lacaniano - Brasil, Fórum Rio de Janeiro. 2 As citações de Luiz Carlos foram extraídas de sua entrevista a Sílmia Sobreira, publicada, originalmente, em Stylus: Revista de Psicanálise. Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano, n. 6, pp. 199-211, abril de 2003, que faz parte desse volume (pp. 109-123).

Quanto ao saber psicanalítico, o intelectual Luiz Carlos Nogueira sempre soube manter uma posição lúcida, racional e crítica jamais aderindo a modismos ou palavras de ordem vindas de América, França ou Navarra. Promovia a desidealização permanente e o combate sem tréguas a todo culto da personalidade. Luiz Carlos nos apontava uma posição ética em relação a todos os mestres, inclusive a Freud e a Lacan, suas principais referências teóricas e clínicas. Indicava que respeitar nossos mestres não significa repeti-los ou imitá-los e sim criticá-los para melhor avaliar seus avanços. Dentro da perspectiva de uma crítica da razão psicanalítica, Nogueira postulava: façamos com Lacan, o que ele fez com Freud.

Seu entusiasmo nesses últimos tempos, passadas as tempestades institucionais, indicavam a bonança de novos ventos com a solidificação do Fórum de São Paulo fazendo-o apostar, como disse em entrevista recente, que "a partir daí poderemos dar continuidade ao movimento lacaniano começado em 1975".

Seu interesse pela racionalidade da Psicanálise o fez dedicar-se com afinco ao estudo e desenvolvimento da lógica do inconsciente, cuja produção iria nos apresentar em breve num congresso em Salvador. Esse interesse se aliou a sua dedicação permanente à transmissão, missão que atravessou sua vida inteira. E nos deixou um ensinamento: quanto mais se transmite mais se aprende. O saber? Quanto mais se partilha mais se ganha. Daí sua generosidade que se conjugava com a ausência de vaidade ou infatuação. A criação? Não tinha razão se não fosse passada adiante, pois não admitia a propriedade de um objeto intelectual. "De nada adianta ter boas idéias, disse ele, se não as divulgo, se não as transmito aos outros". Essa posição o fazia preocupar-se com a ampliação do alcance da Psicanálise para que um número maior de pessoas pudesse usufruir de "seus efeitos extraordinários". Do meu ponto de vista, de amigo e colega poderia resumir: eis uma vida dedicada a uma causa - a causa do desejo, a causa psicanalítica e à liberdade.

"Um homem de desejo", diz Lacan, de "um desejo que ele acompanhou pelos caminhos nos quais o desejo se mira no sentir, na maestria, no saber, mas do qual soube desvendar, como um iniciado nos antigos mistérios, seu significado ímpar." (Escritos, p. 648)

Racionalidade e generosidade - eis os bens que, como herança, Luis Carlos Nogueira nos deixa.

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    Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Foruns do Campo Lacaniano - Brasil, Fórum Rio de Janeiro.
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    As citações de Luiz Carlos foram extraídas de sua entrevista a Sílmia Sobreira, publicada, originalmente, em Stylus: Revista de Psicanálise. Rio de Janeiro: Associação Fóruns do Campo Lacaniano, n. 6, pp. 199-211, abril de 2003, que faz parte desse volume (pp. 109-123).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
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