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A escrita e o sujeito: uma leitura à luz de Lacan

The writing and the subject: a reading from a Lacanian point of view

L'écriture et le sujet: une lecture après Lacan

Resumos

O texto procura analisar a relação do homem com a escrita. Nesse trajeto escolhemos Lacan como interlocutor. Suas investigações sobre o traço reforçam a nossa idéia. Esta toma a escrita como um dos possíveis constituintes do homem. Se a leitura e análise de Lacan não nos parecem fáceis, elas são, no entanto, instigantes e abrem um viés importante nas discussões sobre o papel da escrita. Ele transcende as abordagens meramente instrumentais, que a vêem como uma forma de comunicar-se ou de inserir-se no mercado de trabalho, e a relaciona ao desejo e ao gozo

Escrita; Sujeito; Linguagem; Corpo; Lacan, Jacques, 1901-1981


The text tries to analyze the relationship between man and writing. On this course we have chosen Lacan as interlocutor. His investigations about the stroke reinforce our idea, which takes the writing as one of the possible constituents of man. If Lacan's reading and analysis do not sound easy to us, they are, however, instigative and they open an important bias on the discussions about the part of writing. He transcends the merely instrumental accostings that see it as a way to communicate and introduce them in the labor market and connects it to desire and pleasure

Writing; Subject; Linguage; Body; Lacan, Jacques, 1901-1981


Le texte cherche à analyser le rapport de l'homme avec son écriture. Pour ce parcours nous avons choisi Lacan comme interlocuteur. Ses recherches sur le trait renforcent cet idée. Celle-ci envisage l'écriture comme un des probables éléments constituants de l'homme. Si la lecture et l'analyse de Lacan ne nous semblent pas faciles, elles sont, par contre, de nature stimulante et prennent in biais important dans les discussions sur le rôle de l'écriture. Ce biais dépasse les aproches simplement instrumentales qui la considérent comme une façon de communiquer où de s'enserrer dans le marché de travail la rattachant plutôt au désir et la jouissance

Écriture; Sujet; Langage; Corps; Lacan, Jacques, 1901-1981


ARTIGOS ORIGINAIS : PRODUÇÃO DOS ALUNOS NO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO DO PROF. LUIZ CARLOS NOGUEIRA, EM 2002

A escrita e o sujeito: uma leitura à luz de Lacan

The writing and the subject: a reading from a Lacanian point of view

L'écriture et le sujet : une lecture après Lacan

Conceição Aparecida Bento1 1 Doutoranda e membro do Laboratório do Manuscrito Literário da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP. Endereço eletrônico: cabento@usp.br

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP

RESUMO

O texto procura analisar a relação do homem com a escrita. Nesse trajeto escolhemos Lacan como interlocutor. Suas investigações sobre o traço reforçam a nossa idéia. Esta toma a escrita como um dos possíveis constituintes do homem. Se a leitura e análise de Lacan não nos parecem fáceis, elas são, no entanto, instigantes e abrem um viés importante nas discussões sobre o papel da escrita. Ele transcende as abordagens meramente instrumentais, que a vêem como uma forma de comunicar-se ou de inserir-se no mercado de trabalho, e a relaciona ao desejo e ao gozo.

Descritores: Escrita. Sujeito. Linguagem. Corpo. Lacan, Jacques, 1901-1981

ABSTRACT

The text tries to analyze the relationship between man and writing. On this course we have chosen Lacan as interlocutor. His investigations about the stroke reinforce our idea, which takes the writing as one of the possible constituents of man. If Lacan's reading and analysis do not sound easy to us, they are, however, instigative and they open an important bias on the discussions about the part of writing. He transcends the merely instrumental accostings that see it as a way to communicate and introduce them in the labor market and connects it to desire and pleasure.

Index terms: Writing. Subject. Linguage. Body. Lacan, Jacques, 1901-1981.

RÉSUMÉ

Le texte cherche à analyser le rapport de l'homme avec son écriture. Pour ce parcours nous avons choisi Lacan comme interlocuteur. Ses recherches sur le trait renforcent cet idée. Celle-ci envisage l'écriture comme un des probables éléments constituants de l'homme. Si la lecture et l'analyse de Lacan ne nous semblent pas faciles, elles sont, par contre, de nature stimulante et prennent in biais important dans les discussions sur le rôle de l'écriture. Ce biais dépasse les aproches simplement instrumentales qui la considérent comme une façon de communiquer où de s'enserrer dans le marché de travail la rattachant plutôt au désir et la jouissance.

Mots clés: Écriture. Sujet. Langage. Corps. Lacan, Jacques, 1901-1981.

Homem e linguagem

A questão é: qual o papel da linguagem na vida do homem? Um instrumento de comunicação? A transmissão de uma mensagem a um suposto receptor, como nos parecia informar a teoria da comunicação? Fácil seria se a realidade se conformasse a esquemas, se pudéssemos reduzí-la a uns poucos conceitos. O próprio conceito de realidade não é imune a problematizações e não só por que a multiplicidade de definições é grande, mas também por que a nossa relação com o mundo não é homogênea. Pensá-lo sem o filtro do sujeito é difícil, pensar o mundo e o pensamento sem a linguagem também é tarefa das mais complexas. É possível existir o pensamento sem a linguagem? Ele não seria, então, uma massa homogênea de sensações, uma nebulosa indecomponível, que nos inquietaria sem se deixar nomear?

Se pensar é um índice de linguagem, entre nós e o pensamento se interporia um outro, sem o qual nada se poderia dizer e pensar; se, entre os seres, para ficarmos com uma concepção clássica, o homem se define como um ser do pensamento e, quiçá, da linguagem, então, é impossível desvincular o homem da linguagem. Homem e linguagem andariam juntos.

Benveniste (1995), no ensaio intitulado A Comunicação Animal e a Linguagem Humana, aponta a dimensão social da comunicação e, embora diferenciando a comunicação das abelhas da linguagem humana, afirma ser a comunicação um elemento presente em animais que vivem em sociedade: essa seria uma marca da comunicação; mas não bastaria para definir a linguagem - algo iria além.

No caso de Benveniste, o além é a interação, a resposta como marca do diálogo entre os homens. A resposta, a capacidade de refazer a mensagem, de reorganizá-la e devolvê-la ao outro depois de reprocessá-la. Marca da linguagem humana é a não fixidez, a plasticidade. As abelhas, segundo o experimento de Karl von Frisch2 1 Doutoranda e membro do Laboratório do Manuscrito Literário da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP. Endereço eletrônico: cabento@usp.br , possuem um meio complexo para transmitir a mensagem: a distância e direção de localização do alimento, mas só executam os seus bailados para esse fim. Dizem que há comida, néctar ou pólen, para lá ou para cá, mas fora isso não articulam mais nada. Não há resposta e nem simbolização; a apreensão da mensagem é concreta. Vista a dança transmissora da mensagem por uma abelha, é necessário que essa vá até o alimento para informar a uma nova abelha o local onde ele se encontra. Não há memória da mensagem, a retenção leva a uma ação, à execução de um ato e se esgota aí. A capacidade abstrata do símbolo, ou seja, estar no lugar de outra coisa, representá-la na sua ausência, trazer e construir o pensamento para o outro: essas são propriedades humanas.

O nosso interesse recai sobre a linguagem. A ela aliamos o humano, o que talvez seja mesmo uma tautologia, pois pensá-lo sem ela seria impossível. A linguagem é condição da nossa cultura, é a forma de tomarmos consciência de nós e dos outros. O nosso mundo organiza-se a partir dela. Por isso, falar de uma linguagem natural exige cuidado, pois tangencia-se com uma impropriedade. A linguagem é intrínseca à cultura humana, portanto, se concebemos o homem como inscrito numa cultura, a linguagem pode então ser vista como natural; mas, por sua vez, é interessante deixar claro não ser um dado da natureza; ela, natural ao homem, é um construto, um item da cultura. É um dos elementos que nos definem, mas não é uma dádiva da natureza para com o homem. Não é um dado, mas um fazer atualizado a cada realização. Se, ao nascer, o homem já encontra a linguagem, já se depara com traços dentre os quais se inscreve, isso só é possível porque outros homens, antes dele, produziram-nos. Ele, desde o seu nascimento, os atualiza e os renova na repetição.

Nesse nosso trajeto escolhemos um autor, Jacques Lacan. Interessa-nos saber como ele articula a escrita e o sujeito. De início é necessário dizer que pouco conhecemos da teoria de Lacan, e o pouco que conhecemos nos leva a afirmar a sua complexidade. Esta advém de vertentes múltiplas. O traço oral, talvez, seja o primeiro deles - os seus Seminários, textos orais elaborados no calor da hora, por mais que existisse uma preparação, trazem as interferências da platéia, muitas vezes suprimidas, trazem a adequação a um público que não visualizamos, os hiatos da fala, os saltos das articulações preenchidas no escrito. As referências filosóficas constantes, tomadas quase sempre como já sabidas, são, também, muitas vezes um ruído. Ademais, os conceitos freudianos, pressupostos e urdidos à obra lacaniana, nem sempre são acessíveis. Assim, ler Lacan não é das tarefas mais fáceis. Se a recepção a seu pensamento é difícil pelas inovações realizadas, o é também por exigir uma leitura distante da aprendida na academia. Exige-se uma nova concepção de texto e dos manejos do pensamento. Proferir a clareza de Lacan, a transparência de seu pensamento é, parece-nos, uma insensatez. Mas, contígua a essa dificuldade, há uma riqueza e atrativos que nos fazem insistir, nos fazem deter o olhar sobre a letra de seus textos, enredá-los com as suas também intrincadas referências; nos fazem revisitar a filosofia e retomar os lingüistas, em procurar, no que nos interessa, os seus interlocutores. Eles são muitos - não só os filósofos, mas ainda romancistas contemporâneos ou não. Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, Descartes, Kant, Hegel, Marx, Poe, Balzac, Heidegger, Jakobson, Saussure, Benveniste, Merleau-Ponty, Wittgenstein., Lévi-Strauss são referências em seus Seminários. As aproximações com esses autores são as mais variadas. Ora articulam-se ao texto, auxiliando a formação da teoria ora servem apenas como ilustrações nem sempre claras. Por vezes, Lacan cita a obra e, como um romancista, deixa as possíveis articulações ao seu leitor. A ele cabe tecer a rede, procurar a obra mencionada e atrelá-la à idéia em jogo.

A falta e o desejo: móbile da filosofia e do homem

A insatisfação humana sempre esteve presente entre filósofos. Algo há em nós que não se preenche. Algo não está onde esperava estar. As indagações filosóficas não raro apontavam para um além, um transcendente, um ultrapassar da physis. Estamos sempre na expectativa de preencher essa ausência e enganamos a nós mesmos ao acreditar ser possível encontrar a presença marcada por ela. A definição de filosofia nos mostra essa falta. O amor à sabedoria transveste-se, metamorfoseia-se em desejo, carência. Amo o que tenho, o elemento de minha posse. Não amo; desejo, careço da sabedoria; é esse o motor da procura. Existe um espaço para o possível preenchimento. Não temos o saber, aspiramos a ele. A idéia desse percurso de busca, de desejo parece ser um dos móbiles do pensamento e quiçá da filosofia3 3 Nas referências filosóficas ao desejo, Aristóteles é um ponto de parada obrigatório."O Primeiro Motor, sendo imóvel e ato puro, nada deseja, pois nada lhe falta - ou como dizem os antigos e repete Aristóteles: só o deus é feliz - mas é desejado por todos os seres do universo que se fatigam e se esforçam no movimento. Aristóteles diz que o divino é Desejável. O desejante - os seres do mundo - deseja o desejável. Mover-se para atualizar todas as potências é desejar o imóvel e por isso o devir é desejo." (Chaui, 2002, p. 405) . Ela se distancia, é certo, da concepção de sistemas, muitas vezes ensejada. Mas se houve filósofos que os tematizaram e os ensejaram, as diversas abordagens teóricas, inclusive daqueles que os defenderam, só foi possível porque os sistemas mostram-se insuficientes. Reflitamos. O cartesianismo é a aspiração de uma certeza, de um novo ponto de Arquimedes. O caminho é a dúvida, o descompasso entre o desejado e o existente. Embora se possa julgar o alcance de tal certeza - o cogito - o que se vê no instante seguinte é um novo sujeito para quem essa certeza não é de todo aceita. Uma nova busca se realiza. O amor à verdade, o agarrar e permanecer no primeiro rostinho bonito4 4 A expressão é utilizada por Lacan (1969-1970/1992) ao referir-se aos analistas no capítulo "A Impotência da Verdade" do Seminário 17. que nos aparece, seria a extirpação da vida, do movimento.

Várias são as abordagens filosóficas sobre essa hiância. Kant, no século XVIII, em meio a certezas e a investigações dos modernos, questiona os limites do conhecimento. A representação já havia se posto pelo cogito cartesiano. A certeza é a das idéias que ele representa. A inquietação de Kant insere-se nesse prisma. A lógica, a razão, elas não podiam faltar na abordagem desse metódico alemão, levam o pensamento a conformar-se a seus limites, a abdicar de toda metafísica, de todos os aléns, pelo menos como objeto de conhecimento. Podemos, na perspectiva kantiana, pensar Deus, a liberdade e a liberdade da alma, mas conhecê-los nos é vedado. Nós os nomeamos, desejamos conhecê-los, mas sabemos das dificuldades. Esses objetos, eles mesmos construtos dos homens, não se deixam investigar; nós os aprisionamos pelas palavras, mas elas também têm os seus limites. No mundo dos fenômenos, do aparecer para nós, o âmago, o em si, está fora de nossa percepção. Da Coisa em si, nada sabemos.

O conceito da Coisa kantiana é urdido ao pensamento de Lacan. No Seminário 7 (Lacan, 1959-1960/1997), a Coisa kantiana e seus contornos ressoam. Estamos à sua espreita, mas só conseguimos nomeá-la por meio dessa imprecisão - Das Ding - não logramos caracterizá-la. Podemos falar da nossa busca por ela, do nosso desejo de encontrá-la, de repetir algo da sua alçada não certamente definido. Das Ding5 5 " Das Ding é o que - no ponto inicial da organização do mundo no psiquismo, lógica e cronologicamente - se apresenta, e se isola, como o termo de estranho em torno do qual gira todo o movimento da Vorstellung que Freud nos mostra governado por um princípio regulador, o dito princípio do prazer vinculado ao funcionamento neurônico.É em torno desse das Ding que roda todo esse processo adaptativo, tão particular no homem visto que o processo simbólico mostra-se aí inextrincavelmente tramado. (...) Das Ding deve, com efeito, ser identificado com o Wiederzufinden, a tendência de reencontrar, que, para Freud, funda a orientação do sujeito humano em direção ao objeto. (...) esse objeto ,pois trata trata-se de reencontrar, nós o qualificamos de objeto perdido. Mas esse objeto, em suma, nunca foi perdido, apesar de tratar-se essencialmente de reencontrá-lo." (Lacan, 1959-1960/1997, p. 76) situa-se no espaço da impossibilidade do conhecimento.. Ele é a marca da ausência, um dos traços definidores do sujeito. Pois se A Coisa, marca primeira do sujeito, traço perpassador e constituinte, é para nós um conceito pouco determinado em que a ausência diz mais que a presença, embora nos deixe a idéia de uma marca primeira que incitará o Homem a ansiar pelo seu reencontro, no Seminário 17 encontramos uma outra idéia que nos permitirá aproximar dessa hiância, das suas concepções e desejo.

No Seminário 17, (1969-1970/1992) a referência filosófica preponderante é Hegel. A Fenomenolofia do Espírito é citação constante. O núcleo da análise é a dialética do senhor e do escravo. Lacan insiste em que o saber encontra-se do lado do escravo6 6 A análise do saber associado ao escravo, no Seminário XVII, inicia -se com uma referência ao Menon. No Diálogo homônimo, Sócrates indaga o escravo Menon sobre as verdades matemáticas. O seu intuito é mostrar que ele possuía um saber que desconhecia. A indagação busca comprovar a maiêutica socrática. Lacan afirma:"Reportem-me ao Menon, ao momento em que se trata da raiz de 2 e seu incomensurável. Alguém diz - Porém vejamo s, o escravo, mas que venha, o pequenino, vocês vêem, ele sabe. Faz-se-lhe perguntas, perguntas de senhor, de mestre, obviamente, e o escravo responde com naturalidade às perguntas o que as perguntas já ditam como respostas. Acha-se aí uma forma de derrisão. É um modo de escarnecer do personagem que está lá virando no espeto. A finalidade é mostrar que o escravo sabe, mas, ao confessar isto apenas por esse viés de derrisão, o que se oculta é que se trata exclusivamente de arrebatar do escravo sua função no plano do saber (Lacan, 1969-1970/1992). e, por este e outros motivos, o escravo e senhor se encontram numa correlação: um só se diz a partir do outro. A idéia aparecerá em vários trechos do Seminário. Neles é sempre uma relação deficitária que se apresenta - para um dos lados falta algo e este é encontrado na dependência desse outro. À dialética do senhor e do escravo, a Fenomenologia ajunta concepções que mostram a singularidade do pensamento hegeliano: a trajetória do pensamento, as mudanças e as alterações, como constantes formas de superação, exemplificam-nas. A consciência, primeiro estágio do espírito rumo ao Absoluto, pode permanecer em meio a ordem caótica dos objetos sensíveis que, sem articulação, denunciam uma massa amorfa. Mas, ao se perceber como aquela que dá forma a essa disformidade, a consciência passa a ser consciência de si; é ela que amarra, e dá consistência à disformidade dos objetos. Os objetos do mundo são então visados por essa consciência. Ela é uma consciência que deseja e, por conseguinte, que aspira ao reconhecimento do outro7 7 "A consciência-de-si é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido." (Hegel, 2001, p. 126) . O trajeto é a busca do espírito de encontrar a si mesmo, mas agora não mais na indeterminação, no embaralhamento ante as coisas, mas na concretude da reflexão filosófica. A concepção hegeliana é embasada pela idéia de progresso, da passagem da abstração da consciência em meio às coisas à determinação do encontro do espírito consigo mesmo.

Lacan lê a Fenomenologia a partir de Kojève e, embora oscile entre os elogios e as críticas endereçadas a Hegel, sofre do filósofo influências que ultrapassam a simples referência à dialética do senhor e do escravo8 8 Vários trechos do Seminário 17 anunciam essa oscilação. Eis alguns exemplos: "Se houvesse sido possível que no começo do século passado, na época da batalha de Jena, esse extraordinário embuste que se chama Fenomenologia do espírito subjugasse alguém, o golpe teria dado certo"(Lacan, 1969-1970/1992, p. 163). "Eu, por exemplo, poderia muito bem jamais ter encontrado Kojève. Se nunca o houvesse encontrado, é bem provável que, como todos os franceses educados durante certo período, talvez não tivesse desconfiado de que a Fenomenologia do espírito era alguma coisa"(Lacan, 1969-1970/1992, p. 165). . Se um certamente dedica o seu discurso à filosofia e à busca da verdade de um Absoluto impossível; o outro o dedica a denunciar a impossibilidade da verdade, mas ao fazê-lo se aproxima daquele. Encontramos, seja em Kant ou Hegel, um movimento de insatisfação. Considerados pensadores dos sistemas, ambos aspiram a uma verdade cara à filosofia e que Lacan denuncia como inalcansável. As suas concepções suportam um espaço para a realização, um rateamento, para usar uma terminologia lacaniana..

Como Hegel, Lacan elege o desejo como suporte da sua psicanálise. Esse será para o psicanalista a busca de um reencontro impossível. Para Lacan, não há Absoluto, não há o sujeito pleno; há o sujeito que salta incessantemente de um a outro móbile. Fica, no entanto, o movimento, a procura como elemento que o aproxima do filósofo. O sujeito lacaniano é evanescente, escorrega, oscila, nunca está completo. Há sempre um mais, ainda9 9 Uma imagem ilustrativa utilizada por Lacan, no Seminário 20 (1975/1985), é o paradoxo de Zenon. Aquiles jamais alcançará a tartaruga. .

O significante: a impossibilidade do um

Lacan transpõe essas questões, à primeira vista de interesse apenas filosófico, para a sua obra. Sua teoria se articula a esses elementos. A linguagem, a palavra, a referência ao outro, a hiância, o desejo perpassam-na. Afastemo-lo, no entanto, dos sistemas, de uma absolutização do saber. Em uma obra que é um grande intertexto, Lacan apropria-se de vários outros textos e tece a sua singularidade. Sua obra, já dissemos a dificuldade de acompanhá-la, é ela uma mostra dos conceitos que trabalha, a alteridade é um exemplo. O pensamento de Lacan, às vezes mais outras menos, exercita-se e resolve-se na remissão a outros textos, farrapos de texto, para usarmos a imagem de Barthes ao falar sobre o intertexto. Puxa fios e os tece aos seus, realizando uma apropriação em que é difícil, afora nos momentos em que a explicita, dizer o que é seu e o que é do outro.

Um dos fios articula Lacan às investigações sobre a linguagem. Essas investigações tiveram como esteio a figura de Ferdinand Saussure. Devemos a esse genebrino a eleição da linguagem como objeto de investigação, mais especificamente a língua. Ele, como Lacan, possui sua obra mais importante - Curso de Lingüística Geral - editada a partir das anotações dos seus alunos nos três10 10 Os cursos foram ministrados em 1906-1907, 1908-1909 e 1910-1911. Bally e Sechehaye (1971) salientam o método de trabalho de Saussure, que destruía seus rascunhos:"Todos quantos tiveram o privilégio de acompanhar tão fecundo ensino deploraram que dele não tivesse surgido um livro. Após a morte do mestre, esperávamos encontrar-lhe nos manuscritos, cortesmente postos à nossa disposição por Mme de Saussure, a imagem fiel ou pelo menos suficientemente fiel de suas geniais lições; entrevíamos a possibilidade de uma publicação fundada num simples arranjo de anotações pessoais de Ferdinad Saussure, combinadas com as notas de estudantes. Grande foi a decepção; não encontramos quase nada que correspondesse aos cadernos de seus discípulos; F. de Saussure ia destruindo os borradores provisórios em que traçava, a cada dia, o esboço de sua exposição! As gavetas de sua secretária não nos proporcionaram mais que esboços assaz antigos, certamente não destituídos de valor, mas que era impossível utilizar e combinar com a matéria dos três cursos." (p. 4) cursos dados na Universidade de Genebra (Saussure, 1972). Lacan se apropria do algoritmo saussuriano, mas sua apropriação, como todas, guarda caracteres de deformação.

O algoritmo criado pelo suiço procura dar conta de uma unidade: a do signo lingüístico. É a união do significado - conceito - e do significante -materialidade acústica - que perfará esse signo. No algoritmo de Saussure, a barra separa a significação do significante e indica a superioridade do significado, do conceito sobre a materialidade.

Ao signo, Saussure atribui dois princípios: a arbitrariedade e a linearidade. Quanto ao primeiro, ele nos afirma não existir nenhum vínculo natural entre significado e significante. O liame entre eles é fruto da convenção e não da natureza. Saussure dirá que essa ligação é imotivada. O segundo princípio afirma a impossibilidade de pensar o significante sem a temporalidade:

O significante, sendo de natureza auditiva, desenvolve-se no tempo, unicamente, e tem as características que toma do tempo: a)representa uma extensão, e b) essa extensão é mensurável numa só dimensão: é uma linha. (...) Esse caráter aparece imediatamente quando os representamos pela escrita e substituímos a sucessão do tempo pela linha espacial dos signos gráficos. (Saussure, 1972, p. 84)

O valor do signo, dirá Saussure, deve ser buscado no interior do sistema da língua e, dessa forma, ele se constitui a partir da presença dos outros signos, ou seja, da diferença.

Lacan inverte o algoritmo de Saussure. Coloca o significante acima do significado. Roudinesco, na sua detalhada biografia do psicanalista, afirma ser de Michel Foucault a primeira referência a uma filosofia engendrada a partir do Curso de Lingüista Geral. A referência foi realizada na aula inaugural no Collège de France11 11 Roudinesco (1994, p. 274) cita Merleau-Ponty: "A teoria do signo, tal como a lingüística a elabora, implica talvez uma teoria do sentido histórico que vai além da alternativa das coisas e da consciência[...]. Existe aí uma racionalidade na contingência, uma lógica vivida, uma autoconstituição de que temos precisamente necessidade para compreender, em história, a união da contingência do sentido, e Saussure bem poderia ter esboçado uma nova filosofia da História." . Segundo a autora, Lacan entendera o recado e passara a teorizar de modo lógico o vínculo entre o sujeito e o significante. A essa idéia de Roudinesco deve-se, no entanto, acrescentar as múltiplas referências a Saussure realizadas por Benveniste (1995), por exemplo. Os seus artigos no início da década de 50 estão repletos de alusões ao genebrino. Sabemos, pela própria Roudinesco, que Lacan participou em 1951 de um grupo de estudo que reunia Benveniste, Guilbaud e Lévi-Strauss. Dado ser Saussure referência pilar nos estudos lingüísticos seria difícil não passar por ele. O certo é que Lacan, a partir de 1954, enfatiza a noção de significante e a mesclará às suas análises da linguagem, aos estudos de Jakobson e ao estruturalismo de Lévi-Strauss.

O significante lacaniano guarda com Saussure o seu caráter de marca, de traço e de inscrição em uma temporalidade. Há ainda uma intersecção com uma estrutura, um sistema que o suportaria. No Seminário 20 (Lacan, 1975/1985), chama atenção a tese lacaniana que afirma existir não o, mas sim um significante. O que poderia sugerir um torneio lingüístico, um volteio retórico ou barroco, indica, ao contrário, uma tomada de posição. O o não existe. Pensá-lo seria instaurar numa definição inexistente e paralisante. O significante comunga com a indefinição do artigo um. O uso do artigo definido ontologiza, dá um caráter de ser, de definição, fecha o círculo. Dizer que há é afirmar que pode haver um outro, ainda um terceiro ou um quarto. Vejamos como Lacan o afirma:

O que é o significante?

O significante - tal como o promovem os ritos de uma tradição lingüística que não é excepcionalmente saussurena, mas remonta até os estóicos de onde ela se reflete em Santo Agostinho - deve ser estruturado em termos topológicos. Com efeito, o significante é primeiro aquilo que tem efeito de significado, e importa não elidir que entre os dois há algo de barrado a atravessar.

Essa maneira de topologizar o que é da linguagem é ilustrada de maneira mais admirável pela fonologia, no que encarna o significante no fonema. Mas o significante não pode limitar-se de modo algum a esse suporte fonemático. De novo - o que é um significante? (...)

Um12 12 Grifo meu. , posto antes do termo e com uso de artigo indeterminado. Ele já supõe que o significante pode ser coletivizado, que se pode fazer um coleção, falar dele como algo que se totaliza. Ora, o lingüista seguramente teria muita dificuldade, parece-me, em fundamentar essa coleção, em fundá-la sobre um o13 13 Grifo do texto. , pois não há predicado que o permita. (Lacan, 1975/1985, p. 29)

A Impossibilidade desse um, Lacan o aliará, em diferentes textos, a uma outra: a da relação sexual.

O significante não é feito para relações sexuais. Desde que o ser humano é falante, está ferrado, acabou-se essa coisa perfeita, harmoniosa, da copulação, aliás impossível de situar em qualquer lugar da natureza. (Lacan, 1969-1970/1992, p. 31)

O traço, a fratura, o sujeito

A referência ao significante, ele uma materialidade psíquica , auditiva ou da escrita em Saussure e não muito diferente em Lacan, leva-nos a pensar a ênfase dada por Lacan a um léxico que se aproxima da marca, do traço. Essa ênfase e o modo como ela se esparge na obra do psicanalista levam-me a entendê-los como uma escrita. No corpo físico e psíquico, o sujeito seria um ser escrito. Como um suporte vivo, traria em si as marcas que possibilitam a sua leitura. A ilação sustenta-se por dois vieses. Um é dado pelas escolhas lexicais próximas à escrita - marca, traço -; outro pelo teor das abordagens.

O traço funciona como eixo estruturador na obra lacaniana. Há no sujeito um traço, uma marca desencadeadora do seu processo constitutivo. Interessante, no entanto, são as várias referências à marca no texto lacaniano. No Seminário 17, há alusão ao flagelo ao corpo redundante em ismos como o sadismo e o masoquismo. As chamadas anomalias seriam marcas no corpo, traços do gozo:

Se há algo que a experiência analítica nos ensina, é justamente o que se refere ao mundo da fantasia. Na verdade, se não aparece que ele tenha sido abordado antes da análise, é que não se sabia em absoluto como se safar disso a não ser recorrendo à extravagância, à anomalia, de onde partem esses termos, essas adscrições de nomes próprios que nos fazem chamar isso de masoquismo, aquilo de sadismo. Quando colocamos esses ismos, estamos no plano da zoologia. Mas, mesmo assim, há algo de completamente radical - é a associação, no que está na base, na própria raiz da fantasia, dessa glória, se é que me posso me exprimir assim, da marca.

Falo da marca sobre a pele, onde se inspira, nessa fantasia, o que nada mais é que um sujeito que se identifica com um objeto de gozo. Na prática erótica que estou evocando, a flagelação (...), o gozar assume a própria ambigüidade pela qual é no seu plano, e em nenhum outro, que se percebe a equivalência entre o gesto que marca o corpo, objeto de gozo. Gozo de quem? Será aquele que porta o que chamei de glória da marca? É seguro que isto queira dizer gozo do Outro? Claro, é uma das vias de entrada do Outro em seu mundo, e ela, certamente, não é refutável. (Lacan, 1969-1970/1992, p. 47)

O fragmento indica, além da relação da marca com a fantasia e com o corpo, a relação com um Outro. A marca traz essa alteridade sem a qual essa não se diria. Traz a remissão a outras marcas, elas sintetizadoras desse Outro que poderíamos chamar de linguagem. Se o corpo é, no trecho, correlato de celulose, local de inscrição do Outro no sujeito, suporte para a linguagem, há outros em que novas articulações são realizadas. O traço unário é um exemplo. Sigamos Lacan:

O gozo é exatamente correlativo à forma primeira da entrada em ação do que chama a marca, o traço unário, que é marca para a morte, se quiserem dar-lhe seu sentido. (...) É a partir da clivagem, da separação entre o gozo e o corpo doravante mortificado, a partir do momento em que há jogo de inscrições, marca do traço unário, que a questão se coloca. (...) Na medida em que a linguagem, tudo o que instaura a ordem do discurso, deixa as coisas numa hiância, é que, em suma, podemos estar certos de que, seguindo seu fio, nunca faremos outra coisa senão seguir um contorno. (Lacan, 1969-1970/1992, p. 169)

Em nós, o traço unário é, talvez, sem a legibilidade do flagelo no corpo, a primeira marca do outro. A partir dele nos reconhecemos, mas isso só é possível porque atualiza em nós algo que nos ultrapassa: inscreve em nós a diferença e uma ausência. Ausência porque o que assinala o traço unário não está lá onde acreditar-se-ia dever estar, ele marca uma falta, uma ausência. Diferença porque o traço dessa ausência nos lança numa rede, na qual o traço ganha ares da lingüística saussuriana, em que um elemento se afirma na sua diferença. O traço opõe-se a outro e, assim, se diz enquanto diferença14 14 Para melhor compreensão do termo diferença, vale citar Saussure (1972, p. 139): "na Língua só existem diferenças. E mais ainda: uma diferença supõe em geral termos positivos entre os quais ela se estabelece; mas na língua há apenas diferenças sem termos positivos. Quer se considere o significado, quer o significante, a língua não comporta nem idéias nem sons preexistentes ao sistema lingüístico, mas somente diferenças conceituais e diferenças fônicas resultantes desse sistema." .

A tentativa de recuperar o traço unário e seu objeto para sempre perdido é a repetição. A repetição, Lacan (1969-1970/1992) o diz, nunca é a mesma; "o fato de que se repita - repete-se não sendo nunca o mesmo - é precisamente a própria ordem, aquela onde toda a questão, que é a linguagem, esteja presente e já ali, já eficaz." A repetição é uma tentativa para sempre malograda. Há um ainda que não está no encontrado e que marca uma falta em nós. O que deseja essa repetição? Deseja um gozo15 15 No Seminário 17, o gozo nos é assim apresentado: "Já disse sobre ele o suficiente para quesaibam que o gozo é o tonel de Danaides, e que uma vez que ali se entra não se sabe aonde vai dar. Começa com as cócegas e termina com a labareda de gasolina. Tudo isso é sempre o gozo"(Lacan, 1969-1970/1992, p. 68). , deseja um retorno a ele. Mas a repetição, busca do gozo, assinala sempre uma perda.

Na repetição está uma deficiência, um espaço de falta: algo nos escapou e partimos ao seu encalço. O desejo, a atualização dessa falta, nos leva marca a marca a procurar o perdido. É ele o móbile do nosso ser. Se algo nos arrasta é o desejo. Relembremos a busca de filósofos antes de Lacan, o que sabiam eles? Que algo faltava, e, muitas vezes, nem eles sabiam em que consistia essa falta. No trajeto do desejo, tece-se a rede de traços, de inscrições associados ao sujeito e que permitem a leitura. A rede formada a partir dos traços, que deixam em nós as marcas, os vestígios da escrita, colocam a anterioridade do significante. O percurso, assim, inverte a fórmula saussureana, que fazia ver o significante como submetido ao significado. Não é este que antecede aquele, mas aquele é preponderante. O significante funcionará como preponderante na obra lacaniana.

Essa supremacia aliada à perda e à falta reitera a idéia de sujeito como não totalidade. O sujeito está sempre em trânsito. Um além é sempre possível. Há nele um deslizamento contínuo, sempre um espaço para preencher. O mito de Sísifo é um bom exemplo. Deve-se recomeçar a busca, para se ter a ilusão, a pretensão de encher o tonel.

Poderíamos ficar no traço, na marca. Mas a investigação progride e alcança o saber como meio de gozo. Título de um capítulo do Seminário 17 dedicado aos discursos, a análise do saber como gozo identifica a escrita como marca do saber, e nela assinala a escrita lógica.

O saber está, em certo nível, dominado, articulado por necessidades da escrita, o que culmina em nossos dias em um certo tipo de lógica. Ora, esse saber, ao qual podemos dar o suporte de uma experiência que a da lógica moderna, que é em si, e sobretudo, manejo da escrita, esse tipo de saber, é ele que está em jogo quando se trata de medir na clínica analítica a incidência da repetição.

Esse saber mostra aqui sua raiz porquanto na repetição, e sob a forma do traço unário, para começar, ele vem a ser meio de gozo - do gozo precisamente na medida em que ultrapassa os limites impostos, sob o termo prazer, ás tensões usuais da vida. (Lacan, 1969-1970/1992, p. 46)

Esse prazer oriundo da escrita, dessa repetição que não se esgota em um único traço, marca um lugar no espaço e no tempo, ou melhor, assina uma inscrição: desdobra-se, por exemplo, na pureza da escrita lógico-matemática. Indago se essa linguagem não seria uma tentativa de cercear a realidade, de empacotá-la no previsível. Diante da língua o homem muitas vezes se perguntou se estaria diante de uma marca, a palavra, natural por vínculo intrínseco à coisa. Depois os homens tiveram uma relação naturalizante com a língua, como se por tão natural ela não pudesse oferecer problema.

A escrita e o sujeito

As reflexões de Lacan parecem indicar o traço como um dos eixos constituintes do sujeito. A homologia que encontramos entre essas marcas e a escrita autoriza a idéia da escrita, da materialidade do traço, como um dos elementos constituintes do homem. Lacan em mais de um momento explicitou isso16 16 "Com que goza a ostra ou o castor, ninguém jamais saberá nada disso porque, faltando significante, não há distância entre o gozo e o corpo. A ostra e o castor estão no mesmo nível da planta que, afinal, talvez tenha também um gozo, nesse plano" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 168). . A escrita teria assim um papel ontológico, pois seria uma das marcas do seu ser. Sem ela o homem não se diria enquanto homem. A objeção poderia insinuar indagações sobre as chamadas sociedades ágrafas ou indicar uma postura de supremacia das sociedades letradas. Aqui se faz necessária uma explicação.

A escrita é entendida no seu sentido abrangente. Não é apenas o traço sobre o papel, as marcas do alfabeto deixadas sobre o suporte. A escrita é o que indica uma diferença. Como linguagem que é, rompe o continuum do mundo e estabelece uma marca que singulariza o que antes era indissociado. O arado que corta a plantação, os traços nas gamelas exemplificariam essas marcas. Reduzir a escrita às marcas fonéticas é operar uma violência, e desclassificar a história do homem. Jacques Derrida, em Gramatologia, explicita nosso posicionamento. Nessa obra, ele critica as afirmações de Lévi-Strauss em Lição de Escritura.

Como se recusará aos Nhanbiquaras o acesso à escritura em geral, senão for determinando essa segundo um modelo? Perguntar-nos-emos (...) até que ponto é legítimo não denominar escritura esses "pontilhados" e "ziguezagues" sobre as cabaças, tão brevemente evocadas em Tristes Trópicos? (Derrida, 1999, p. 136)

Se nossa investigação sobre o caráter formador do traço expande o conceito de escritura para além do elemento fonético, pensemos como isso ocorre na relação do sujeito com as escritas alfabéticas. Fazemos eco aqui à pergunta que abriu esse ensaio. Debruçar-se-á o homem sobre a escrita apenas com o intuito de comunicar algo? O objetivo é apenas transmitir uma mensagem? As investigações de Lacan autorizam-nos a outros vôos. Como elemento constitutivo de seu ser, a escrita guarda uma proximidade com o sujeito que a mera instrumentalização das sociedades globalizadas, por exemplo, não resolvem. A idéia da escrita apenas como memória dos homens também não. A escrita não se resolve nessa função prática apenas, nessa referência aos meandros da pragmática do mercado.

A escrita, como linguagem, é uma das formas do sujeito exercitar a sua subjetividade por meio da alteridade. À semelhança de um espelho, a escrita permite ao homem pensar, mirar a sua fratura. Ela é o outro desse si, que se interpõe entre ele e o mundo. Não há, exceto como quimera, a possibilidade de uma suposta totalidade por meio da escrita. Ela indica uma opacidade, um outro que deixa inviável a completude. Mas como opacidade, resistência a um desejo de unicidade, ela nos conclama à repetição. Ela nos atrai de formas diversas. Atrai-nos a escrever textos ficcionais, atrai-nos a escrever sobre nós, como se as outras escritas não o fizessem. No ato reiterado de escrever, na repetição não há a unicidade, mas há certamente um gozo, um prazer fascinante e difícil de discernir . Assim, a escrita repete a repetição como forma de busca incessante, sinaliza o gozo perdido, mas ansiado.

Conclusão

Iniciamos esse ensaio com uma referência a Benveniste. O texto do lingüista sustentou a hipótese da inexistência do pensamento sem a linguagem; o nosso giro com Lacan buscou reforçar essa idéia. Por outros caminhos, com outros argumentos, ele nos levou à concepção do traço como elemento constituinte do humano: o traço no corpo, o traço inscrito e escrito no ser, o traço na coletividade, no contexto.

Não há a mínima realidade pré-discursiva, pela simples razão de que o que faz coletividade, e que chamei de os homens, as mulheres e as crianças, isto não quer dizer nada como realidade pré-discursiva. Os homens, as mulheres e as crianças, não são mais que significantes. (Lacan, 1975/1985, p. 46)

Vê-se, assim, uma nova visada. O discurso faz-no tomar o significante num outro prisma: os dos grupos, o dos liames. Ele pressupõe um contexto, uma relação entre os termos. Aqui a lingüística saussuriana não reina sozinha, pois os ideais da teoria do discurso encontram lugar. De novo, o significante dissolve e une.

Num outro viés, Lacan escapole dos marcos de Saussure. Enquanto para esse a escrita é uma espécie de simulacro, de falsidade, uma realidade menor, Lacan a alia ao corpo, à organização do sujeito. Lacan lê o sujeito como uma escrita. A idéia, além da beleza que possui, nos permite estender a busca do sujeito como uma leitura. No início dos seus seminários, Lacan já nos apontava o caminho. O primeiro texto do Seminário 1 - Os Escritos Técnicos de Freud (Lacan, 1953-1954/1986) - apresenta-nos a leitura e a escrita. Aqui, mais acadêmico e claro nas suas falas, ele retoma Freud e as alusões à escrita e leitura. No primeiro capítulo, na introdução aos comentários dos textos técnicos de Freud, o processo analítico é visto como uma leitura, como uma tradução e uma reescrita da história do sujeito. Sem dúvida, estamos distantes do Lacan dos últimos seminários. No entanto, se Lacan não é Freud e se não vai buscar um método que se poderia dizer semiótico, o psicanalista francês, num outro movimento, entrelaça a escrita e a leitura ao sujeito. Talvez seja essa uma boa forma de entender os matemas e os nós. Não seriam eles esse traço inscrito no sujeito e difícil de precisar? Buscariam tratar sem retratar, mostrar sem representar o que em nós é a linguagem? Não estariam eles na obra lacaniana para mostrar o impossível? Como se as impossibilidades da lógica binária, o que se deve calar no famoso trecho de Wittgeistein, Lacan os dissesse ou procurasse fazê-lo por meio de suas inscrições. É certo também que, como disse Miller (1992), ele não se furtou à fala. Semanalmente fazia os seus seminários, expunha seu meio de gozo, mas também se expunha. Deixou o seu legado para que a escritura e leitura do sujeito continuasse.

Recebido em 09.09.2004

Aceito em 17.11.2004

  • Bally, C., & Sechehave, A. (1971). Prefácio à primeira edição de curso de lingüística geral. In F. Saussure, Curso de lingüística geral . São Paulo: Cultrix.
  • Benveniste, E. (1995) Problemas de Língüística Geral Campinas: Pontes.
  • Chaui, M. (2002). Introdução à história da filosofia. Dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Cia das Letras.
  • Derrida, J. (1999) Gramatologia. São Paulo: Perspectiva.
  • Hegel. (2001). A fenomenologia do espírito. Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Kauffman, P. (1996). Dicionário enciclopédico de psicanálise Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Lacan, J. (1985). O seminário. Livro 20: Mais, ainda Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1975)
  • Lacan, J. (1986). O seminário. Livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1953-1954)
  • Lacan, J. (1992). O seminário. Livro 17: O avesso da psicanálise Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970)
  • Lacan, J. (1997). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-1960)
  • Miller, J. (1992). Percurso de Lacan: Introdução Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Roudinesco, E. (1994). Jacques Lacan: Esboço de uma vida, História de um sistema de pensamento. São Paulo: Cia. das Letras.
  • Saussure, F. (1972). Curso de lingúística geral. São Paulo: Cultrix.
  • 1
    Doutoranda e membro do Laboratório do Manuscrito Literário da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP. Endereço eletrônico:
  • 2
    O experimento é apresentado e discutido no texto de Benveniste (1995. pp. 60-67).
  • 3
    Nas referências filosóficas ao desejo, Aristóteles é um ponto de parada obrigatório."O Primeiro Motor, sendo imóvel e ato puro, nada deseja, pois nada lhe falta - ou como dizem os antigos e repete Aristóteles: só o deus é feliz - mas é desejado por todos os seres do universo que se fatigam e se esforçam no movimento. Aristóteles diz que o divino é Desejável. O desejante - os seres do mundo - deseja o desejável. Mover-se para atualizar todas as potências é desejar o imóvel e por isso o devir é desejo." (Chaui, 2002, p. 405)
  • 4
    A expressão é utilizada por Lacan (1969-1970/1992) ao referir-se aos analistas no capítulo "A Impotência da Verdade" do Seminário 17.
  • 5
    "
    Das Ding é o que - no ponto inicial da organização do mundo no psiquismo, lógica e cronologicamente - se apresenta, e se isola, como o termo de estranho em torno do qual gira todo o movimento da
    Vorstellung que Freud nos mostra governado por um princípio regulador, o dito princípio do prazer vinculado ao funcionamento neurônico.É em torno desse das Ding que roda todo esse processo adaptativo, tão particular no homem visto que o processo simbólico mostra-se aí inextrincavelmente tramado. (...)
    Das Ding deve, com efeito, ser identificado com o
    Wiederzufinden, a tendência de reencontrar, que, para Freud, funda a orientação do sujeito humano em direção ao objeto. (...) esse objeto ,pois trata trata-se de reencontrar, nós o qualificamos de objeto perdido. Mas esse objeto, em suma, nunca foi perdido, apesar de tratar-se essencialmente de reencontrá-lo." (Lacan, 1959-1960/1997, p. 76)
  • 6
    A análise do saber associado ao escravo, no Seminário XVII, inicia -se com uma referência ao
    Menon. No
    Diálogo homônimo, Sócrates indaga o escravo Menon sobre as verdades matemáticas. O seu intuito é mostrar que ele possuía um saber que desconhecia. A indagação busca comprovar a maiêutica socrática. Lacan afirma:"Reportem-me ao
    Menon, ao momento em que se trata da raiz de 2 e seu incomensurável. Alguém diz - Porém vejamo s, o escravo, mas que venha, o pequenino, vocês vêem, ele sabe. Faz-se-lhe perguntas, perguntas de senhor, de mestre, obviamente, e o escravo responde com naturalidade às perguntas o que as perguntas já ditam como respostas. Acha-se aí uma forma de derrisão. É um modo de escarnecer do personagem que está lá virando no espeto. A finalidade é mostrar que o escravo sabe, mas, ao confessar isto apenas por esse viés de derrisão, o que se oculta é que se trata exclusivamente de arrebatar do escravo sua função no plano do saber (Lacan, 1969-1970/1992).
  • 7
    "A consciência-de-si é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido." (Hegel, 2001, p. 126)
  • 8
    Vários trechos do Seminário 17 anunciam essa oscilação. Eis alguns exemplos: "Se houvesse sido possível que no começo do século passado, na época da batalha de Jena, esse extraordinário embuste que se chama
    Fenomenologia do espírito subjugasse alguém, o golpe teria dado certo"(Lacan, 1969-1970/1992, p. 163). "Eu, por exemplo, poderia muito bem jamais ter encontrado Kojève. Se nunca o houvesse encontrado, é bem provável que, como todos os franceses educados durante certo período, talvez não tivesse desconfiado de que a
    Fenomenologia do espírito era alguma coisa"(Lacan, 1969-1970/1992, p. 165).
  • 9
    Uma imagem ilustrativa utilizada por Lacan, no Seminário 20 (1975/1985), é o paradoxo de Zenon. Aquiles jamais alcançará a tartaruga.
  • 10
    Os cursos foram ministrados em 1906-1907, 1908-1909 e 1910-1911. Bally e Sechehaye (1971) salientam o método de trabalho de Saussure, que destruía seus rascunhos:"Todos quantos tiveram o privilégio de acompanhar tão fecundo ensino deploraram que dele não tivesse surgido um livro. Após a morte do mestre, esperávamos encontrar-lhe nos manuscritos, cortesmente postos à nossa disposição por Mme de Saussure, a imagem fiel ou pelo menos suficientemente fiel de suas geniais lições; entrevíamos a possibilidade de uma publicação fundada num simples arranjo de anotações pessoais de Ferdinad Saussure, combinadas com as notas de estudantes. Grande foi a decepção; não encontramos quase nada que correspondesse aos cadernos de seus discípulos; F. de Saussure ia destruindo os borradores provisórios em que traçava, a cada dia, o esboço de sua exposição! As gavetas de sua secretária não nos proporcionaram mais que esboços assaz antigos, certamente não destituídos de valor, mas que era impossível utilizar e combinar com a matéria dos três cursos." (p. 4)
  • 11
    Roudinesco (1994, p. 274) cita Merleau-Ponty: "A teoria do signo, tal como a lingüística a elabora, implica talvez uma teoria do sentido histórico que vai além da alternativa das coisas e da consciência[...]. Existe aí uma racionalidade na contingência, uma lógica vivida, uma autoconstituição de que temos precisamente necessidade para compreender, em história, a união da contingência do sentido, e Saussure bem poderia ter esboçado uma nova filosofia da História."
  • 12
    Grifo meu.
  • 13
    Grifo do texto.
  • 14
    Para melhor compreensão do termo
    diferença, vale citar Saussure (1972, p. 139): "na Língua só existem diferenças. E mais ainda: uma diferença supõe em geral termos positivos entre os quais ela se estabelece; mas na língua há apenas diferenças sem termos positivos. Quer se considere o significado, quer o significante, a língua não comporta nem idéias nem sons preexistentes ao sistema lingüístico, mas somente diferenças conceituais e diferenças fônicas resultantes desse sistema."
  • 15
    No Seminário 17, o gozo nos é assim apresentado: "Já disse sobre ele o suficiente para quesaibam que o gozo é o tonel de Danaides, e que uma vez que ali se entra não se sabe aonde vai dar. Começa com as cócegas e termina com a labareda de gasolina. Tudo isso é sempre o gozo"(Lacan, 1969-1970/1992, p. 68).
  • 16
    "Com que goza a ostra ou o castor, ninguém jamais saberá nada disso porque, faltando significante, não há distância entre o gozo e o corpo. A ostra e o castor estão no mesmo nível da planta que, afinal, talvez tenha também um gozo, nesse plano" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 168).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2004

    Histórico

    • Recebido
      09 Set 2004
    • Aceito
      17 Nov 2004
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