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A escola na mídia: sobre "populares" e "nerds"

L'école dans la média: sur "populaires" and "nerds"

The school in the midia: about "populars" and "nerds"

Resumos

O presente artigo propõe-se a analisar uma matéria sobre a escola, publicada em revista semanal não especializada, de circulação nacional. Após a descrição dos dados informativos da reportagem, é feita uma análise atentando-se à realidade da submissão da mídia à ideologia dominante. Fundamentada na produção das relações que se estabelecem no ambiente escolar, e tendo como pano de fundo a desigualdade e barbárie presentes na escola, a discussão visa a apontar a natureza das concepções dos discursos tanto dos jornalistas, como dos educadores, alunos e profissionais de Psicologia.

Ambiente escolar; Psicologia escolar; Meios de comunicação de massa


Cet article se propose d'analyser un texte sur les établissements d'enseignement publié dans un magazine hebdomadaire non spécialisé de circulation nationale au Brésil. Après la description des données informatifs de ce texte, l'analyse se fait en tenant compte de la soumission du média à l'idéologie dominante. Appuyée sur la production des relations établies dans l'environnement scolaire et ayant comme toile de fond l'inégalité et la barbarie que l'on trouve dans cette ambiance, le raisonnement a pour but de signaler la nature des conceptions dans les discours des journalistes, des éducateurs, des élèves et des proféssionnels en Psychologie.

Environnement scolaire; Psychologie scolaire; Les medias


This article aims to analyse a material about school, published in a nonspecialized weekly revue, with national circulation in Brazil. After a description presented by the article with informative data, an analysis has been done taking in account the submission of the media to the dominant ideology. Based on the production of the established relationship in the school environment and considering as back &– cloth the inequalty and barbarism present in the school, the discussion aims to point out the nature of the conceptions present in the speech of journalists, educators, students and professionals of Psychology.

Scholar environment; Scholar Psychology; Media


DOSSIÊ: PSICOLOGIA E IDEOLOGIA - O PRECONCEITO RACIAL

A escola na mídia: sobre "populares" e "nerds"

The school in the midia: about "populars" and "nerds"

L'école dans la média: sur "populaires" and "nerds"

Roseli Fernandes Lins Caldas1 1 Docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Paulista (UNIP). Mestre e Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia - USP (IPUSP). Endereço para correspondência: Av. Miguel Stéfano 380. Apto. 54 - Saúde - CEP 04301-000 - São Paulo, SP. Fone (11) 5071-8176 (residencial) (11) 2577-8861 (fax) e (11) 9162-8682 (celular). Endereço eletrônico: roseli.caldas@uol.com.br e rocaldas@mackenzie.com..br

Universidade Presbiteriana Mackenzie

RESUMO

O presente artigo propõe-se a analisar uma matéria sobre a escola, publicada em revista semanal não especializada, de circulação nacional. Após a descrição dos dados informativos da reportagem, é feita uma análise atentando-se à realidade da submissão da mídia à ideologia dominante. Fundamentada na produção das relações que se estabelecem no ambiente escolar, e tendo como pano de fundo a desigualdade e barbárie presentes na escola, a discussão visa a apontar a natureza das concepções dos discursos tanto dos jornalistas, como dos educadores, alunos e profissionais de Psicologia.

Palavras-chave: Ambiente escolar. Psicologia escolar. Meios de comunicação de massa.

ABSTRACT

This article aims to analyse a material about school, published in a nonspecialized weekly revue, with national circulation in Brazil. After a description presented by the article with informative data, an analysis has been done taking in account the submission of the media to the dominant ideology. Based on the production of the established relationship in the school environment and considering as back &– cloth the inequalty and barbarism present in the school, the discussion aims to point out the nature of the conceptions present in the speech of journalists, educators, students and professionals of Psychology.

Keywords: Scholar environment. Scholar Psychology. Media.

RÉSUMÉ

Cetarticle se propose d'analyser un texte sur les établissements d'enseignement publié dans un magazine hebdomadaire non spécialisé de circulation nationale au Brésil. Après la description des données informatifs de ce texte, l'analyse se fait en tenant compte de la soumission du média à l'idéologie dominante. Appuyée sur la production des relations établies dans l'environnement scolaire et ayant comme toile de fond l'inégalité et la barbarie que l'on trouve dans cette ambiance, le raisonnement a pour but de signaler la nature des conceptions dans les discours des journalistes, des éducateurs, des élèves et des proféssionnels en Psychologie.

Mots-clés: Environnement scolaire. Psychologie scolaire. Les medias.

"Temos o direito de sermos iguais quando

a diferença nos inferioriza; temos o direito

de sermos diferentes quando a igualdade

nos descaracteriza."

Boaventura Souza Santos

As discussões desenvolvidas no presente artigo têm como objetivo trazer à tona a necessidade constante de um olhar crítico às matérias divulgadas pela mídia, a respeito da escola.

Não o olhar crítico que indica discordâncias ou preferências, mas o que procura as raízes, as origens e mobiliza à ação transformadora. A crítica que busca revelar as gêneses não acidentais dos processos, para interferir em seus rumos.

Esse artigo diz respeito a aprendizagens que ocorrem na escola. Não a aprendizagem de lições sobre letras e números, mas a lições sobre o convívio social. Propõe-se a analisar criticamente, a partir de alguns dos conceitos do materialismo histórico, uma matéria publicada em revista não especializada de circulação nacional, veiculada no mês de junho de 2003.

Vamos ouvir algumas vozes sobre o que ocorre na escola. Vozes de educadores, psicólogas e alunos que, veiculadas pelas vozes de jornalistas da mídia impressa, devem ser não só ouvidas e entendidas, mas geradoras de uma reflexão que nos ponha de frente com as contradições e complementaridades de uma sociedade caracterizada por injustiça e desumanização.

"A divisão de Classes"

A matéria intitulada "A divisão das classes" foi publicada na revista Veja, em 2 de junho de 2003, e propõe-se a revelar o que chama de "hierarquia de classes", existente nas escolas de classe média no Brasil, em especial no Ensino Fundamental II &– 5 a a 8 a séries.

Por "classes" a reportagem entende três categorias em que os alunos se dividem: populares, excluídos e normais. Os populares e os excluídos são os alvos de atenção da matéria.

Os territórios de cada um destes grupos é claramente demarcado na escola. Até o espaço do recreio é dividido de acordo com o "status" dos alunos.

Aos populares são atribuídas várias características, tais como:

• Estão no topo da pirâmide.

• São habilidosos nos esportes e líderes.

• É reservado a êles o melhor lugar no pátio durante o recreio e são sempre rodeados por um séqüito de amigos e admiradores.

• O que eles usam vira moda, o que fazem vira "notícia". Todo mundo quer imitar seu jeito de se vestir e de conquistar o sexo oposto.

• Adotam atitudes "adultas": "ficam" com o máximo de colegas, desprezam tudo o que soe infantil e, dependendo da idade, bebem e fumam.

• Usam roupas de grife e celular último tipo, que toca a toda hora. São bonitos, quase bonitos ou tidos como bonitos...

• Lançam moda, inventam comportamentos, expõem-se, dando a impressão de extroversão, segurança e autoconfiança.

• Sentam-se no fundo da sala, são espirituosos e têm sempre as tiradas mais engraçadas da classe.

• Ser amigo deles dá status. Namorá-los também. Um aluno "normal" pode ser "promovido" à categoria de popular pela simples, embora eventual, proximidade afetiva.

• Não costumam conversar com os excluídos, nem sequer cumprimentá-los.

• São sempre convidados para as festas de aniversário.

• Gozam de privilégios especiais como pagar meio ingresso em algumas festas. Raramente enfrentam a fila da lanchonete &– sempre haverá quem se disponha a ceder lugar a eles, ou a ficar na fila em seu lugar.

Seguem-se dois depoimentos de alunos "populares":

Para ser popular, você precisa de três coisas: conhecer todo mundo, ter bom humor e atitude. E ter atitude significa não ter medo de fazer o que você está a fim de fazer. Um tempo atrás, eu pintei meu cabelo de vermelho nas pontas. Logo depois, começou a aparecer um monte de meninas com o cabelo igual. Essa é uma diferença entre as populares e as outras garotas: a popular faz o que está a fim e não tem medo do que vão comentar. (Paula, 13 anos, 7 a série)

Pense numa selva: o popular é o último da cadeia alimentar. É o leão, o mais forte de todos. Faz o que quiser, ninguém mexe com ele. Na gincana do meu colégio, uns meninos dançaram vestidos de mulher. Como a maioria não era popular, todo mundo zoou. Se eu fosse dançar, iriam até bater palma, porque eu sou popular e eles não podem me rebaixar. Popular tem muitos amigos, mas só uns são de verdade. Tem gente que fala:"Ele é popular, vou ficar na cola dele" e aquele outro que pensa que nem nos reinos antigos, vou chegar nele, jogar ele para fora e ficar no poder. O lado bom de ser popular é que todo mundo te conhece e te acha simpático. O ruim é que tudo o que você faz ficam sabendo. Imagine que eu dou uma cantada numa menina e ela não aceita. Era para ser secreto. Como eu sou popular, as pessoas vão saber e podem me rebaixar. E para sair do chão não é fácil. (Vitor, 11 anos)

Da categoria oposta, os excluídos, também denominados "nerds", são apresentadas as seguintes características:

• Ficam sozinhos durante o recreio ou na companhia de poucos amigos. Podem também se isolar na biblioteca para ler gibis e navegar na internet.

• São &– ou sentem-se &– discriminados por terem características que dificultam sua interação com os colegas, precisando enfrentar verdadeiras batalhas para serem aceitos.

• São tímidos, desajeitados ou solitários, resignando-se à solidão de um cantinho da biblioteca, chegando até a descreverem-se como invisíveis na sala de aula.

• Têm parco currículo sentimental. (Em geral, nunca beijaram ninguém, nem receberam propostas para "ficar" ou "namorar").

• Preferem jogos solitários, como os de cartas e de computador a brincadeiras em grupo.

• Apresentam baixo desempenho nos esportes. (São os últimos a serem escolhidos nos jogos)

• Em geral, tiram boas notas, sentam-se nas primeiras fileiras e, quando a classe se divide em grupos, são sempre aqueles que sobram.

• Recebem poucos convites para festas.

• Em casa, freqüentemente criticam um determinado aluno &– quase sempre popular &– a quem atribuem a culpa por seu isolamento na escola.

O depoimento de uma aluna considerada excluída esclarece melhor:

Teve uma época em que eu tentei ser popular. Comprava as grifes que as populares usavam e fazia escova no cabelo dia sim, dia não, porque todas elas na minha escola têm cabelo liso. Mas ninguém falava comigo no recreio, nem me chamava para nada. Eu sou muito tímida &– e achava que devia ser muito chata também. No ano passado, fiz uma festa de aniversário e chamei todo mundo da sala. Não foi ninguém. As pessoas simplesmente ignoraram o convite. O problema de ser excluído é esse: você é ignorada o tempo todo. Só falam com você para pedir cola ou caneta emprestada. Ou, então, para te zoar. Montei o Blog dos Excluídos para ter um lugar em que todo mundo pudesse falar e ser ouvido, sem precisar ser bonitinho ou engraçadinho. Hoje, a minha situação na escola não mudou muito, mas eu já não ligo. Acho que é bobagem sofrer por querer entrar neste ou naquele grupo. A gente tem de procurar as pessoas que são mais parecidas com a gente . (Renata, 16 anos)

Entre estas duas categorias, ficam os "normais", termo usado para definir os que não se encaixam em nenhum dos grupos anteriores, e, talvez por isso, não caracterizada pela articulista.

A partir dos relatos dos alunos, são consultadas duas especialistas, profissionais de Psicologia, cujos depoimentos descrevem os tipos psicológicos de populares e excluídos, atribuindo algumas das atitudes descritas a características típicas da adolescência.

Uma dessas psicólogas relata que os alunos reproduzem os valores cultivados no mundo dos adultos, em termos de relações de poder, destacando-se os ricos, bonitos e socialmente habilidosos.

Ouçamos a "voz da Psicologia" em um relato que parece "ingenuamente" apresentar a escola enquanto reprodutora da "divisão de classes", cuja argumentação se fundamenta na autoridade conferida à ciência psicológica.

E o que a escola pode fazer para amenizar o purgatório dos excluídos? Muito pouco, afirmam os especialistas. Quanto mais você interfere na situação, pior é para o aluno. Tutelado, ele se sente ainda mais frágil e visado pelo grupo , afirma uma das psicólogas consultadas.

O que os educadores devem fazer é municiá-lo para lidar com a situação, trabalhando sua auto-estima, estimulando suas habilidades e seu entrosamento com colegas com quem possa ter afinidade, diz a psicóloga.

Algumas inquietações perpassam a análise desse discurso.

Parece indicar uma naturalização daquilo que, absolutamente, não é natural, partindo de uma análise que se mantém na superfície. O depoimento da psicóloga reflete a postura "naturalizadora", indicando que a escola não pode fazer praticamente nada para impedir a atitude dos populares em relação aos excluídos. Uma única possibilidade de atuação indicada é voltada a ajudar os excluídos a encontrarem outro grupo em que sejam aceitos.

Pode-se associar este papel de aparente neutralidade ou impotência da escola, diante da violência promovida pela subordinação conseqüente à divisão de classes, como reflexo da consciência ingênua? Ou, não seria tão ingênuo assim este modo de encarar a dominação na escola?

"Municiá-los para lidar com a situação", alternativa proposta pela psicóloga, indica uma adesão à adaptação dos oprimidos. Exclui a possibilidade de conscientização e transformação e privilegia a passividade diante da situação geradora da opressão. Postura condizente com a acomodação ao mundo da opressão (Freire, 1987).

A escola tem funcionado como aparato ideológico do estado, concebida como alienantemente a serviço das relações de poder e mostrando a realidade como ela "aparece" e não como realmente "é".

O senso comum impede a percepção do real, conduzindo a uma visão opaca do mundo. Deter-se somente no superficial mascara a realidade de tal modo que o que aquilo que deveria soar como estranho passa a ser entendido como natural e as "certezas" passam a encobrir qualquer possibilidade de dúvida, denotando-se uma percepção social falsificada, na qual a opinião substitui a verdade de fato, ignorando exceções e contradições (Bosi, 1992).

Cabe também destacar que podem ser percebidas lacunas na discussão do tema, pois aprofundando-se a análise do artigo, é possível verificar o ocultamento de questionamentos que, se inseridos, poderiam levar tanto os adolescentes participantes da cena retratada, quanto os leitores, a uma reflexão ética sobre seu papel social. A omissão da crueldade, da humilhação, das relações de poder, parece evidente. Como se fosse naturalmente esperado que os alunos populares não se relacionassem nem aceitassem o convite para a festa de um excluído ou "nerd".

A forma como a publicação é conduzida revalida a dimensão das relações de poder e a exclusão social, tornando a escola, ao menos para determinado grupo de alunos, em "um lugar de mal-estar". Mal-estar em função da humilhação, do sofrimento, do sentimento de menos valia, da crueldade.

É preciso pensar a escola e os alunos em um contexto mais amplo, não por um recorte isolado, como se as ações se dessem a partir de posturas individualizadas e desconectadas do meio.

Laing (1968) nos auxilia a entender as condutas pessoais numa amplitude maior quando propõe a necessidade de se considerar o contexto em que as condutas ocorrem, ou seja, é preciso estudar situações e não apenas indivíduos ou processos patológicos que se dão nos indivíduos. Quando partimos de micro situações para entender as macro, constatamos que a aparente irracionalidade de um indivíduo pode ser entendida no contexto da família; a família, por sua vez, ser compreendida no contexto de outras redes circundantes que também devem ser vistas no contexto das organizações e instituições ainda mais amplas.

Os tipos psicológicos podem ser discutidos sob este prisma, pois embora haja diferenças de personalidade, elas não podem ser transformadas em classificações que legitimam desigualdades de direitos. (Schwarcz, 2002).

Há que se considerar o papel da Psicologia que, ao descrever certas atitudes como próprias de determinadas fases de um abstrato "desenvolvimento humano", naturaliza a barbárie. A atitude dos alunos populares, que prima pela humilhação dos outros, é tida como algo natural, inerente à adolescência. É a emancipação convertendo-se em ideologia como ocorre com o jovem que, surpreendido em ato de violência, livra-se apelando à sua condição de teen-ager adolescente (Adorno, 2000).

Isto traz à tona a natureza ideológica que a ciência pode assumir. A fala de psicólogos, especialistas em comportamento humano, tidos como competentes para dizer, vem para naturalizar o que é construção político-social. Impõe-se, desde modo, a qualificação do que profere o discurso competente. Novamente a ciência presta-se a autorizar os especialistas em Psicologia, em nome do conhecimento dito científico. Relações interpessoais pautadas em valores negativos são postas como simples conseqüências da adolescência enquanto fase de desenvolvimento.

Introversão ou extroversão como tendências psicológicas diferentes são confundidas com posturas que, na verdade, segregam, humilham e desconsideram a dimensão ética da ação humana que cabe à escola ensinar.

Concepção muito bem ilustrada no relato de Vitor, o garoto de apenas onze anos, cuja visão de mundo é de que vencem os mais fortes, os mais aptos. A referência à selva e à sobrevivência do mais forte está impregnada da ideologia da classe dominante. A analogia com os animais desconsidera o que é genuinamente humano, levando a um empobrecimento, enquanto gente, enquanto pessoa, que possibilita de modo mais imediato o desprezo pelo outro, da outra casta, o excluído a quem o popular nem ao menos cumprimenta.

Cada vez que um artigo como este é publicado em veículos de comunicação de massa, parecendo harmonizar diferentes tipos de adolescentes escolares, o embuste ideológico se configura e, sem dúvida, tem efeito sobre seus leitores.

Cabem muitas indagações: Quais os efeitos sobre jovens leitores ou sobre os protagonistas da matéria &– com nomes e fotos na revista - deslumbrados com a posição de "populares"? Em que medida esta divulgação da ideologia torna-se elemento fortalecedor das relações de poder na escola? Qual o papel da Educação diante disto? Para onde a Educação conduz?

A incoerência entre os valores pregados pela escola e as práticas ali vivenciadas deve ser alvo da atenção dos que se debruçam para entender o papel da Educação. É o discurso educativo contrapondo-se às práticas ali vividas. O currículo oficial versus o currículo oculto, não planejado, que inclui práticas de preconceitos e discriminações. Carregadas de valores e crenças sociais estas experiências vividas na escola são fundamentais para a formação das crianças e jovens.

Pensar como uma pessoa torna-se executora de barbáries desemboca, necessariamente, na Educação. Ela é uma das instituições responsáveis pela formação do caráter tanto dos que praticam barbáries quanto dos que são vítimas passivas delas. Forma pessoas com posturas distintas. Pessoas autônomas, capazes de pensar a sociedade em que vivem ou pessoas heterônomas, subalternas às regras, aderindo cegamente às normas pragmáticas.

Assim, é preciso estudar as características do caráter autoritário e revelar às crianças e jovens os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer violências, com o objetivo de impedir que estas violências se repitam. Dentre estas características podem ser destacadas a coisificação, a indiferença e o uso inapropriado do anonimato diante do coletivo.

Ver o outro como "coisa" a ser manipulada mostra-se bem presente na descrição desta reportagem. Práticas entre adolescentes que podem indicar a consciência coisificada, na qual o valor do outro se equipara ao valor de um objeto qualquer. Vitor, o garoto popular do artigo, relata a respeito dos "que pensam que nem nos reinos antigos, vou chegar nele, jogar ele para fora e ficar no poder", indicando uma atuação coisificada com o outro, que pode ser "jogado fora", numa relação marcada pela profunda indiferença e frieza diante do que ocorre com o outro.

Fator que também merece destaque é a relação entre o individual e o coletivo nas práticas escolares. Os jovens têm certas atitudes em grupo, que jamais teriam individualmente. O grupo tem a capacidade de tornar "anônimos" os seus membros e, muitas vezes, se tem justificado o comportamento violento dos jovens em grupo, como sendo característico da adolescência. Novamente, é "naturalizar" algo que não é, e não pode ser considerado, natural. É o poder cego que o coletivo tem na determinação de ações individuais. A coletivização a serviço da barbárie.

Faz-se necessário, também, ressaltar a diferença entre conformidade e conformismo. Na conformidade há uma adesão mínima necessária para convivência no grupo. Este sim, fator fundamental, em especial aos adolescentes, cuja aceitação no grupo é crucial. No conformismo, por sua vez, há uma adesão total a valores, opiniões, estereótipos impostos de fora, sem qualquer questionamento.

A acomodação às circunstâncias estabelecidas no cotidiano é de fundamental importância para o ajustamento dos homens ao mundo. Entretanto, quando essa acomodação impede qualquer reação de resistência a situações de desumanização e injustiça social, passa a assumir um caráter conformista e impróprio às relações humanas.

Cabe à Educação preparar as pessoas para se orientarem no mundo, porém, isto não pode significar formar indivíduos ajustados a qualquer situação que se lhes apresente, incluindo relações de dominação.

O preconceito é outro elemento claramente perceptível na matéria aqui analisada.

Para Heller (2000), as opiniões não são necessariamente preconceito, desde que tenham caráter provisório. É possível definir preconceitos como sendo juízos que deveriam ser passageiros e são tidos como definitivos, permanentes, a despeito, até mesmo, das refutações científicas ou de argumentações baseadas na razão.

A partir dos hábitos reproduzidos automaticamente, são feitas ultra-generalizações, sem levar em conta o singular de cada um, o pensamento é pragmático, colado à ação, sem qualquer reflexão e o correto é tido como verdadeiro, quase automaticamente.

O preconceito está relacionado à maneira cotidiana de viver e a escola pode ser um terreno fértil à sua propagação. No ambiente escolar, muitos alunos são herdeiros de crenças já elaboradas, impostas pelo meio e o processo de socialização escolar abre espaço para a formação de estereótipos e rotulações, podendo a escola tornar-se instrumento para a formação das personalidades predispostas aos preconceitos.

O relato, objeto de nossa análise, mostra o preconceito baseado em dicotomias generalistas, e já naturalizadas. Assim como há mocinhos e bandidos, bem ou mal, há populares e "nerds".

Os estereótipos podem embaçar as relações que estabelecemos com as pessoas, correndo-se o risco de definições congeladoras. As pessoas são de tal modo impregnadas pelo estereótipo, que passam a dar-lhe uma atribuição quase biológica, e, em função disto, inquestionável (Bosi,1992).

Retorna-se, então, à função da educação, uma vez que, embora a origem dos preconceitos seja, em sua maioria, social, a reflexão a respeito pode produzir mudanças. Nas sociedades de classe não se podem eliminar totalmente os preconceitos, mas as pessoas podem ser trabalhadas quanto à rigidez, inflexibilidade, comportamentos bárbaros etc. Levar as crianças e adolescentes a pensarem sobre suas práticas e estimulá-los a escolher suas ações de modo crítico, pode ser um investimento de grande amplitude político-social, a ser feito pela Educação.

É preciso levar à escola uma possibilidade de reflexão que gere recusa às explicações tradicionais, fundamentadas no "sempre foi assim". É preciso gerar estranhamento diante da convicção de que o adolescente é assim mesmo, não suporta grupos divergentes, humilha os diferentes e se diverte com isto. É preciso re-significar, ir às raízes, desenvolver a atitude crítica e a consciência a respeito da barbárie: sua origem, sua função numa sociedade injusta e desigual, o sofrimento de quem é seu objeto e a desumanização de quem a pratica.

Recebido em: 24/03/2006

Aceito em: 3/04/2006

  • Adorno, T. W. (2000). Educação e emancipação (pp. 119-154). São Paulo: Paz e Terra.
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    Docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Paulista (UNIP). Mestre e Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia - USP (IPUSP). Endereço para correspondência: Av. Miguel Stéfano 380. Apto. 54 - Saúde - CEP 04301-000 - São Paulo, SP. Fone (11) 5071-8176 (residencial) (11) 2577-8861 (fax) e (11) 9162-8682 (celular). Endereço eletrônico:
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2006

    Histórico

    • Aceito
      03 Abr 2006
    • Recebido
      24 Mar 2006
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