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Lacan e Frege: sobre o conceito de Um

Lacan et Frege: sur le concept d’Un

Lacan and Frege: about the concept of One

Lacan y Frege: sobre el concepto de Uno

Resumos

Muitas vezes ignorada, a importância dada por Lacan à obra de Frege se mostra na verdade cada vez mais considerável. Citada pelo psicanalista desde os anos 1950, a importância dessa obra evolui na mesma medida que o ensino lacaniano. Este privilégio é devido não somente à crescente sofisticação da reflexão de Lacan, mas sobretudo a seu esforço em determinar uma questão bastante específica: como isolar a articulação existente entre a estrutura diferencial do significante e a economia pulsional? Este problema encontra sua formulação mais explícita na elaboração lacaniana do conceito de Um, que é justamente realizada através de um diálogo constante com o logicismo fregeano.

Lacan, Jacques, 1901-1981; Frege, Gottlob, 1848-1925; Significante; Pulsão


Maintes fois négligé, l’importance accordée par Lacan à l’oeuvre de Frege est en fait considérable. Plus encore. Cité par le psychanalyste depuis les années 50, cette oeuvre aura une importance grandissante au fur et à mesure de l’évolution de l’enseignement lacanien. Ce privilège est dû non seulement à la sophistication progressive de la réflexion de Lacan, mais surtout à l’effort en préciser une question bien spécifique : comment isoler l’articulation existante entre la structure différentielle du signifiant et l’économie pulsionnelle ? Ce problème trouve sa formulation la plus explicite dans l’élaboration lacanienne du concept d’Un, élaboration faite justement à travers d’un constant dialogue d’avec le logicisme frégéen.

Lacan, Jacques, 1901-1981; Frege, Gottlob, 1848-1925; Signifiant; Pulsion; Un


Often overlooked, the importance given by Lacan to the work of Frege is quite more considerable. Cited by the analyst since the 1950s, the importance of this work will grow as much as Lacanian learning evolves. This privilege is not only due to the increasing sophistication of the Lacan’s thinking, but especially to the effort to determine a very specific question: how to isolate the relationship that exists between the differential structure of meaning and the pulsional economy? This problem finds its most explicit formulation in the development of One Lacanian concept, which is made precisely through a constant dialogue with the Fregean logicism.

Lacan, Jacques, 1901-1981; Frege, Gottlob, 1848-1925; Signifier; Drive; One


Muchas veces desestimada, la importancia que Lacan otorga a la obra de Frege es de hecho considerable. Más aun, citado por el psicanalista desde los años 50, esta obra adquirirá una importancia creciente a lo largo de la evolución de la enseñanza lacaniana. Este privilegio se debe no solamente a la sofisticación progresiva de la reflexión de Lacan, sino sobre todo a su esfuerzo por elucidar una cuestión bien precisa: ¿cómo aislar la articulación existente entre la estructura diferencial del significante y la economía pulsional? Este problema encuentra su formulación más explícita en la elaboración lacaniana del concepto de Uno, elaboración hecha justamente a partir de un constante diálogo con el logicismo fregeano.

Lacan, Jacques, 1901-1981; Frege, Gottlob, 1848-1925; Pulsión; Uno


ARTIGOS ORIGINAIS

Lacan e Frege: sobre o conceito de Um1 1 Este artigo é baseado em uma parte da tese de doutorado do autor em Ciências da Linguagem, pela Université Paris X – Nanterre, intitulada L'économie du signe chez Saussure et Lacan, realizada com financiamento da CAPES – Ministério da Educação

Lacan and Frege: about the concept of One

Lacan et Frege: sur le concept d'Un

Lacan y Frege: sobre el concepto de Uno

Maurício José d'Escragnolle Cardoso

Doutor em Ciências da Linguagem – Université Paris X – Nanterre, Pós-doutorando do Departamento de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística Geral da Universidade de São Paulo, 27A, Bd. Jourdan, Fondation Argentine, 75014, Paris, France, Endereço eletrônico: descragnolle@yahoo.fr

RESUMO

Muitas vezes ignorada, a importância dada por Lacan à obra de Frege se mostra na verdade cada vez mais considerável. Citada pelo psicanalista desde os anos 1950, a importância dessa obra evolui na mesma medida que o ensino lacaniano. Este privilégio é devido não somente à crescente sofisticação da reflexão de Lacan, mas sobretudo a seu esforço em determinar uma questão bastante específica: como isolar a articulação existente entre a estrutura diferencial do significante e a economia pulsional? Este problema encontra sua formulação mais explícita na elaboração lacaniana do conceito de Um, que é justamente realizada através de um diálogo constante com o logicismo fregeano.

Palavras-chave: Lacan, Jacques, 1901-1981. Frege, Gottlob, 1848-1925. Significante. Pulsão.

ABSTRACT

Often overlooked, the importance given by Lacan to the work of Frege is quite more considerable. Cited by the analyst since the 1950s, the importance of this work will grow as much as Lacanian learning evolves. This privilege is not only due to the increasing sophistication of the Lacan's thinking, but especially to the effort to determine a very specific question: how to isolate the relationship that exists between the differential structure of meaning and the pulsional economy? This problem finds its most explicit formulation in the development of One Lacanian concept, which is made precisely through a constant dialogue with the Fregean logicism.

Keywords: Lacan, Jacques, 1901-1981. Frege, Gottlob, 1848-1925. Signifier. Drive. One.

RÉSUMÉ

Maintes fois négligé, l'importance accordée par Lacan à l'oeuvre de Frege est en fait considérable. Plus encore. Cité par le psychanalyste depuis les années 50, cette oeuvre aura une importance grandissante au fur et à mesure de l'évolution de l'enseignement lacanien. Ce privilège est dû non seulement à la sophistication progressive de la réflexion de Lacan, mais surtout à l'effort en préciser une question bien spécifique : comment isoler l'articulation existante entre la structure différentielle du signifiant et l'économie pulsionnelle ? Ce problème trouve sa formulation la plus explicite dans l'élaboration lacanienne du concept d'Un, élaboration faite justement à travers d'un constant dialogue d'avec le logicisme frégéen.

Mots-clés: Lacan, Jacques, 1901-1981. Frege, Gottlob, 1848-1925. Signifiant. Pulsion. Un.

RESUMEN

Muchas veces desestimada, la importancia que Lacan otorga a la obra de Frege es de hecho considerable. Más aun, citado por el psicanalista desde los años 50, esta obra adquirirá una importancia creciente a lo largo de la evolución de la enseñanza lacaniana. Este privilegio se debe no solamente a la sofisticación progresiva de la reflexión de Lacan, sino sobre todo a su esfuerzo por elucidar una cuestión bien precisa: ¿cómo aislar la articulación existente entre la estructura diferencial del significante y la economía pulsional? Este problema encuentra su formulación más explícita en la elaboración lacaniana del concepto de Uno, elaboración hecha justamente a partir de un constante diálogo con el logicismo fregeano.

Palabras-clave: Lacan, Jacques, 1901-1981. Frege, Gottlob, 1848-1925. Pulsión. Uno.

O problema da articulação entre economia pulsional e estrutura significante encontra sua formulação mais abstrata na elaboração lacaniana do conceito de Um, que é realizada através de um diálogo constante com o logicismo fregeano. Nosso artigo toma por objetos certos aspectos da leitura lacaniana de Frege e visa explicitar de que maneira Lacan justifica, por intermédio de Frege, a pertinência do conceito metapsicológico de Um, entendido como insistência da substância pulsional.

Para tanto, veremos de que maneira Lacan vai buscar no logicismo de Frege os instrumentos teóricos para elaborar sua própria concepção da gênese simbólica do real da pulsão. Analisaremos as características desta discussão de Lacan com Frege com respeito a quatro pontos importantes: a) sobre uma mesma crítica comum tanto a Frege quanto a Lacan com relação ao empirismo lógico; b) a propósito dos paradoxos decorrentes da autonomia da ordem simbólica; c) sobre a utilização do logicismo fregeano na determinação do sujeito e do objeto; e d) acerca do conceito lacaniano de Um.

Frege, Lacan e a crítica ao empirismo lógico

A primeira referência à lógica fregeana aparece no ensino de Lacan em 1957, em seu seminário sobre A relação de objeto. Esta baliza histórica é interessante, pois Lacan cita neste momento Frege como um exemplo de uma teoria que recusa situar o estatuto e a gênese da dimensão simbólica a partir da abstração da experiência. Nesta primeira alusão a Frege, Lacan refere-se também ao modelo da autonomia do significante que ele mesmo havia anteriormente proposto no apêndice de seu artigo sobre a Carta Roubada, de Poe. Observamos assim que, para Lacan, não podemos em nenhum caso deduzir a aparição do símbolo a partir da experiência e do concreto da sensibilidade. Com respeito a esta problemática, o caso da gênese fregeana do número e da sucessão é considerado exemplar por Lacan:

A unidade e o zero, tão importantes para toda constituição racional do número, são isto que há de mais resistente a toda tentativa de uma gênese experimental do número, e especialmente se esperamos dar uma definição homogênea do número enquanto tal, reduzindo a nada todas as gêneses que podemos tentar dar do número a partir de uma coleção e da abstração da diferença a partir da diversidade. (Lacan, 1961/1962, p. 155)

Lacan concorda com Frege quanto à independência do número em relação a toda origem empírica. O número não tem por função primordial representar um fato físico (como designando extensivamente um simples agregado de objetos), da mesma maneira que ele não pode ser engendrado a partir da abstração da experiência. Como diz Lacan, "contar não é empírico e é impossível deduzir este ato unicamente de dados empíricos. Hume tentou, mas Frege demonstrou a inépcia da tentativa" (Lacan, 1966a, p. 203. É precisamente isto que Lacan extrai primeiramente da reflexão de Frege: o número não pode ser nem o representante de uma coleção, nem simplesmente a abstração da propriedade de um agregado. Em outros termos, o número não é um conceito empírico.

Esta mesma posição mínima inicial também é cultivada por Lacan, para quem a questão do número deve ser dissociada de toda perspectiva empirista. Para ele, "O Um não se deduz, contráriamente à areia nos olhos que pode nos jogar Stuart Mill, simplesmente ao tomar coisas distintas e a tomá-las por idênticas" (Lacan, 1971/1972a, p. 98).

Assim sendo, se os elementos simbólicos não são derivados da experiência, é necessário existir uma ordem autônoma e autorreferencial de determinação, capaz de responder tanto pela origem quanto pelo estatuto funcional do número. Lacan compartilha assim com Frege a crença de que a dimensão da determinação simbólica não pode provir, por abstração, da experiência, sob pena de desenvolver uma perspectiva psicologista da simbolização. Ao contrário, ela consiste em uma dimensão objetiva própria e irredutível tanto à realidade empírica quanto à subjetividade.

Frege e Lacan compartilham assim um mesmo critério de base com respeito à ordem simbólica: a autonomia e a objetividade do registro do símbolo implicam a exclusão de toda perspectiva psicologista, fundada necessariamente em um ponto de vista naturalista. Além disso, é somente a partir da autonomia do simbólico que o próprio fato do pensamento pode ser corretamente determinado. Como nos lembra Frege em um comentário com o qual Lacan certamente estaria de acordo:

As leis aritméticas governam o domínio do enumerável. Incluem não somente o real, não somente o intuitivo, mas todo o pensável. Não é necessário, da mesma maneira, que as leis dos números tenham uma relação íntima com aquelas relativas ao pensamento? (Frege, 1969, p. 142)

Lacan volta-se assim ao trabalho de Frege a fim de interrogar as características fundamentais desta ordem e do objeto que lhe é próprio, para demonstrar que "a substância do vivido é o lógico" (Lacan, 1966b, p. 114). Esta substância lógica do vivido – nós veremos mais adiante – não será outra coisa que o lugar-tenente do real pulsional imanente à ordem simbólica, e encontrará sua expressão conceitual maior sob a forma da noção de Um. Como veremos no decorrer do artigo, a expressão conceitual "mesmidade do Um" (mêmeté de l'Un) designará o elemento lógico da pulsão.

Partamos assim da consideração de Lacan, segundo a qual a lógica é útil para a psicanálise precisamente enquanto ciência do real inerente ao pensamento. Esta definição aparece no ensinamento de Lacan desde a sexta lição de seu seminário A Identificação, de 1962, a propósito da inconsistência intrínseca à noção de universo de discurso. A lógica é a ciência do real na medida em que ela determina formalmente o lugar do real imanente à ordem simbólica, e, mais precisamente, do real entendido como o impossível que os paradoxos lógicos manifestam. Ou, ainda, como diz Lacan sobre o interesse da lógica para a teoria psicanalítica: "à condição que acentuemos o fato de ser a ciência do real para aí permitir o acesso sob o modo do impossível. O que se encontra na lógica matemática" (Lacan, 1975, p. 4). Este impossível não é outra coisa senão a forma modal que Lacan utiliza para designar o modo de presença da insistência pulsional no seio da ordem simbólica.

É esta determinação modal da pulsão, ou, em outras palavras, o impossível como modalidade pulsional, que a lógica demonstra quando interpretada como ciência do real. Efetivamente, uma ciência do real surgedesde que a impossibilidade se torna logicamente objetiva, e é precisamente isso que demonstraria a lógica matemática: uma forma de "real realizado" matematicamente (Lacan, 1965/1966, p. 54). Este real deve ser então entendido ao mesmo tempo como um constrangimento lógico objetivo e como inconsistência lógica. Para Lacan, o real não é um "simples obstáculo contra o qual nós batemos a cabeça, mas um obstáculo lógico imanente ao simbólico, ou seja, aquilo que se enuncia como impossível. É daí que o real surge" (Lacan, 1969/1970, p. 143). Esta interpretação do estatuto dos paradoxos decorre da definição mesmo do real pulsional como equivalente aos "impasses da lógica" (Lacan, 1971/1972a, p. 39). É disso que nos recorda igualmente Jacques-Alain Miller quando assinala que:

para Lacan La lógica matemática es la ciencia de lo real porque, más allá de las articulaciones lógicas, permite captar qué quiere decir lo imposible. Lo imposible tiene como referencia siempre una articulación significante y el único indicio de lo real es precisamente lo imposible. (Miller, 1994, p. 11)

Mas como chega Lacan a esta consideração com respeito ao seu diálogo com Frege?

Para tanto, o psicanalista parte da determinação fregeana da aritmética. Segundo ele, a teoria de Frege do número e do sucessor pode vir confirmar sua própria definição do universo significante, na medida em que seu autodesdobramento possui uma relação ambígua com algo que se encontra em seu próprio fundamento. Em outros termos, o autodesdobramento de uma sequência simbólica, e logo do universo simbólico em sua totalidade, consiste em um processo contínuo de autodeterminação que se assenta paradoxalmente em sua própria impossibilidade.

A identidade de contraditórios, mecanismo dialético por excelência, se situa no coração da própria atividade de redução da contraditoriedade. É esta mesma matriz que Lacan isola na teoria fregeana dos números e que lhe serve para a determinação do conceito de insistência pulsional.

Frege e a gênese do enumerável

Segundo Frege, um número é um objeto lógico que deve ser contruído a partir de verdades analíticas, isto é, de maneira tautológica. Um julgamento lógico é assim a asserção de uma relação de identidade, cujo modelo é a operação de igualdade entre as duas partes de uma equação: a = b. No seio de uma equação, o signo de igualdade formula então a asserção "idêntico a" (Frege, 1971, p. 129). Em outras palavras, quando uma proposição ou equação expressa a igualdade, ela asserta, na verdade, um julgamento de identidade entre dois objetos, e logo pressupõe que esses objetos sejam objetos independentes, o que significa, no caso de Frege, que eles sejam idênticos a eles mesmos.

Estamos diante de um dos fundamentos da distinção fregeana entre sentido e denotação: o sentido é "o modo de doação do objeto", e, dessa maneira, este objeto constituti então sua denotação. Essa distinção é importante na medida em que uma mesma denotação pode ser determinada de várias maneiras diferentes. Assim, no exemplo de uma equação do tipo 2 + 5 = 7: "a denotação do grupo de signos à direita [do signo de igualdade] é a mesma que a denotação dos signos da esquerda" (Frege, 1971, p. 82). Uma equação somente pode ser uma tautologia precisamente tendo em vista que suas proposições denotem o mesmo objeto.

Estamos considerando aqui o estatuto unicamente simbólico da determinação e da natureza dos objetos e conceitos lógico-matemáticos, ou seja, não é pertinente para nossa perspectiva a consideração das operações de significação no que concerne às línguas naturais e à sua relação com os objetos sensíveis. O mesmo se dá em Frege, na medida em que a questão dos conceitos predicativos (funções) e dos nomes de sujeito (argumentos) é primeiramente considerada inteiramente do ponto de vista da realidade lógica e somente em seguida aplicada à questão das línguas naturais. O modelo de referência para a Frege é a Ideografia Lógico-matemática, e não as línguas naturais. É nesse sentido que o protótipo de objeto é o Valor de Verdade (V ou F) da denotação, assim como o protótipo de predicado é a Função Conceitual, e da mesma maneira que, finalmente, o de sujeito é o Argumento.

Em outras palavras, o realismo de Frege não é empírico, mas platônico. É fundamental, no entanto, ressaltar que não estamos dizendo que para Frege não exista a realidade empírica dos objetos ou que ela constitui uma espécie de ilusão subjetiva, mas que o registro de realidade tratado por Frege não é este da realidade empírica qualitativamente determinada pelos sentidos. Ao contrário, Frege está tratando do que para ele constitui um outro plano de realidade cujos sentidos não podem apreender: uma forma de objetividade não empírica, pois é inteiramente lógica. Neste ponto de vista, a identidade de um objeto, ou seja, o fato de sua existência lógica, é independente tanto do sujeito cognoscente quanto da operação ou método utilizado em sua construção, constituindo assim uma realidade que lhe é própria. É nesse sentido que a existência independente e a identidade objetal são aqui sinônimas, pois o fato de sua realidade concerne mais ao reconhecimento de uma entidade que existe independente de nós que a um simples procedimento de construção.2 2 Sobre a questão do platonismo matemático, cf.: Frege (1969), Bernays (1953), Bouveresse (1998), Poincare (1913), Branquinho, Desidério & Gonçalves (2006)

Contudo, do ponto de vista epistêmico, o problema da determinação da identidade do objeto é, para Frege, o responsável pela confusão que afeta três empregos diversos das noções de Um e de Unidade. Assim, Frege postula que o Um enquanto número cardinal é um objeto; já o Um enquanto cifra pode ser um nome próprio (que designa o objeto número Um), e, finalmente, a Unidade é um conceito. Para citar Frege:

a denotação do signo numérico 7 [isto é, o objeto que ele designa] não é nada que seja perceptível pelos sentidos. Esta tendência, ...a não reconhecer como objeto o que não é percebido pelos sentidos, tem por consequência que tomamos os signos dos números [um nome próprio] pelos números eles mesmos. (Frege, 1971, p. 82)

Esta distinção se aplica às duas teses centrais da determinação do número (Frege, 1969, p. 182): 1) um número é um objeto independente; 2) um número é isto que recai sob um conceito. O objeto, como já dissemos, não é uma propriedade empírica de um agregado. Se estamos tratando de uma dimensão essencialmente lógica, ele deve ser determinado simplesmente como isto que recai sob a extensão de um conceito. Assim, podemos ver que o conceito não é nada mais que a determinação de um conjunto preciso e delimitado dos objetos lógicos que formam a sua extensão. A propósito disso, Frege (1971) assinala: "o conceito é predicativo. Inversamente, um nome de objeto, um nome próprio, não pode de maneira alguma ser empregado como um predicado gramatical" (p. 128).

Frege (1971) postula assim a equivalência formal entre conceito e função, assim como entre objeto e o percurso de valores de um argumento. A identidade dos percursos de valores de funções será então equivalente à identidade de extensões de conceitos. Será precisamente essa correspondência entre funções e conceitos que asseguraria a possível redução das matemáticas à lógica, que Frege envisajava sob a forma do projeto logicista. Assim, "podemos caracterizar o percurso de valores de uma função na qual o valor para todo argumento é um valor de verdade como a extensão de um conceito" (p. 90).

Partindo desta tese da extensionalidade, o conceito de número pode ser definido unicamente em termos de equinumericidade ou, ainda, de correspondência biunívoca (Frege, 1969, p. 194). Nesse sentido, a qualificação de equinumérico designa dois conceitos que possuem uma mesma extensão, e que seus objetos podem ser situados em uma correspondência termo a termo. Frege considera que é a partir de um conteúdo de julgamento, tal que "o número que pertence ao conceito X é idêntico ao número que pertence ao conceito Y", que se torna possível determinar a equinumericidade nos termos de "extensão da extensão" de um conceito, sob a seguinte forma canônica : "O número que pertence ao conceito X é a extensão do conceito 'equinumérico ao conceito X'" (Frege, 1971, p. 134). Os números se tornam assim, como assinala Rouilhan (1988), "conjuntos de conjuntos equinuméricos" (p. 20).

Desta definição de coextensionnalidade derivam os quatro objetivos do projeto de refundação lógica de uma sucessão aritmética: 1) caracterizar o que é uma correspondência biúnivova; 2) demonstrar que dois números são idênticos ; 3) dar uma definição completa dos números e do zero ; 4) dar conta da sucessão natural dos números inteiros (Frege, 1969, p. 183).

Sobre a base da atribuição do número zero a um conceito, Frege afirma que, neste caso, este conceito não possui extensão, isto é, que nenhum objeto recai sob este conceito. 0 (zero) é assim equivalente ao conjunto dos conjuntos equinuméricos ao conjunto vazio. Partindo então da definição fregeana de verdade analítica, tal como vimos anteriormente – que cada objeto independente é idêntico a si mesmo – pode-se definir 0 (zero) como o número pertencendo ao conceito "não idêntico a si mesmo" (Frege, 1969, p. 200). Ora, o conceito "não idêntico a si mesmo" (p. 200) não pode logicamente subsumir nenhum objeto, na medida em que se trata de um conceito contraditório e, nesse sentido, possui uma extensão vazia.

Dito de outra maneira, um conceito contraditório é definido como aquele sob o qual não recai nenhum objeto, tendo em vista que a característica de uma contradição é precisamente não poder determinar um existente. Seu exemplo lógico-aritmético maior é assim o conceito ao qual o número 0 é atribuído. Para Frege, 0 (zero) é o número que recai sob o conjunto de todos os conjuntos equipotentes àquele cuja extensão é vazia, enquanto 1 é o número que cai sob o conceito de todos os conceitos cujo único elemento é 0 (zero), assim como 2 é o número atribuído ao conceito de todos os conjuntos equivalentes ao conjunto cujos elementos são 0 e 1, e assim sucessivamente.

No entanto, como nos lembra Benmakhlouf (1997), Frege não exige nenhuma restrição à natureza lógico-matemática dos objetos, e como a extensão de um conceito é um objeto lógico equivalente ao número, nada impede que uma classe (um conjunto de objetos lógicos) seja um objeto do conceito do qual ela é a extensão. Em função dessa maneira de definir conceitos e objetos, Frege abre a possibilidade do surgimento de paradoxos reflexivos, tal como indicado por Russell: se postulamos a classe que contém a totalidade de todas as classes que não se contêm, um paradoxo reflexivo se produz. É a própria estrutura lógica do enumerável que implica o sugimento de paradoxos reflexivos, cuja forma canônica é dada pelo paradoxo de Russell : "seja w o predicado 'ser um predicado que não é predicado de si mesmo', w pode ser predicado de si mesmo? De cada uma das respostas segue uma contradição" (Rouilhan, 1988, p. 21). Em outras palavras, a contradição se produz quando a proposição contém a si mesma como termo, ou quando uma classe contém a si mesma como elemento, gerando um círculo vicioso reflexivo. Como a lógica proposicional somente trata dos juízos não contraditórios, ela deve excluir precisamente as proposições cujo valor lógico é indeterminado, ou seja, os valores lógicos contraditórios.

O que este problema dos paradoxos reflexivos ensina a Lacan? Desde que a subsunção simbólica é generalizada, isto é, quando a possibilidade de uma solução metalinguística é negada, nós entramos na ordem da pura reflexividade. A partir deste momento, o universo do discurso tornase inconsistente, ou seja, ele passa a implicar uma contradição imanente e intrínseca, gerando assim um valor lógico indeterminado. Uma solução permitindo evitar os paradoxos da reflexividade consiste precisamente em distinguir entre uma linguagem-objeto e um plano metalinguístico. No entanto, cabe ressaltar que é precisamente esta solução (adotada por Russell em sua Teoria Simples dos Tipos) que é recusada por Lacan: Lacan deseja precisamente preservar a reflexividade e os paradoxos que daí derivam, excluindo dessa maneira uma solução metalinguística.

Com isso, a condição que deve ser respeitada, segundo a perspectiva de Lacan, para que a lógica possa interessar à psicanálise, é justamente que ela preserve esta dimensão reflexiva e paradoxal. Ou, em termos mais lacanianos, que ela seja a ciência da reflexividade do significante: "[...] enquanto tal, o significante não somente não está submetido à lei dita da contradição, mas é mesmo aí o suporte, ou seja, que A é utilizável como significante na medida em que A não é A" (Lacan, 1961/1962, p. 133). Vemos assim as características gerais da teoria lacaniana do significante: 1) o conjunto dos significantes é inconsistente; 2) o significante, contrariamente ao objeto fregeano, não é nem um objeto independente nem idêntico a si mesmo; 3) considerar o universo significante como inconsistente significa afirmar que não há metalinguagem.

Consequentemente, essas características do signficante serão fundamentais para a própria determinação do sujeito do significante, como veremos em seguida. Como nos lembra Lacan:

Se tomamos o conjunto dos elementos que não se pertencem, o conjunto constituído de tais elementos nos conduz a um paradoxo que conclui em uma contradição. Em termos simples, isso quer somente dizer que na ordem do discurso nada contém tudo, e aí reencontramos a falha que constitui o sujeito. (Lacan, 1966a, p. 205)

O conceito de sujeito, no ensinamento lacaniano, vai assim designar exatamente esta inconsistência da rede simbólica, sendo entendido como elemento em exclusão interna ao conjunto de traços significantes que compõem a ordem da linguagem. O sujeito é nesse sentido o elemento lógico de valor indeterminado equivalente à extensão de um conceito contraditório, pois reflexivo. Como observa Jacques-Alain Miller (1994):

Este es estrictamente el funcionamiento que Lacan le asigna al sujeto del inconsciente en relación a la cadena significante: este es continuamente aspirado por la cadena significante y, al mismo tiempo, rechazado de ella, se encuentra continuamente entre dos, no tiene ninguna estabilidad. (p. 37)

Sujeito e extensão de conceito

Para a caracterização desta noção de sujeito, Lacan retoma então a determinação fregeana do engendramento do número e da sucessão cardinal, e postula primeiramente a equivalência do elemento-sujeito com o conceito ao qual é assinalado o número 0 (zero). O sujeito é assim designado como o conceito contraditório que possui uma extensão vazia.

A aproximação com a definição do 0 (zero), fornecida por Frege, é aqui esclarecedora. O 0 (zero) é um número dotado de duas propriedades: por um lado, ele designa o conceito de um objeto impossível não com relação à realidade, mas aos valores lógicos de verdade. Por outro lado, o zero paradoxalmente se conta como Um.

O 0 (zero) se define dessa maneira, ao mesmo tempo, como conceito do impossível – na medida em que é o signo numérico da contradição – e como elemento positivo, ocupando assim uma função precisa na sucessão numérica. O mesmo se aplica à noção metapsicológica de sujeito, pois, ao ser representado pelo significante, ele é constituído, ao mesmo tempo, como um signo vazio e como uma entidade discreta enumerável. Há então, segundo Lacan, uma estreita afinidade entre o sujeito e o zero, afinidade ainda mais estreita se considerarmos esta função que lhes é comum: tanto um quanto outro asseguram pelo seu lugar, singular, o movimento contínuo da sucessão dos números (Lacan, 1978/1979).

Devemos reter quatro pontos principais com respeito a este comentário de Lacan.

Em primeiro lugar, o sujeito é o conceito contraditório na medida em que ele é por definição dividido entre a representação pelo significante e a ausência-objeto que compõe uma extensão vazia.

Em segundo lugar, esta extensão vazia, se conta ela mesma como Uma (a qual, em termos fregeanos, poder-se-ia atribuir o número zero). Já vimos que, para Frege, tanto o conceito quanto o número não são jamais a abstração dos membros de um agregado. O mesmo se encontra em Lacan: desde que ocorre a reiteração do vazio do sujeito com um Um contável, o significante não designa um atributo qualitativamente positivo de um sujeito, mas a própria falta de tal atributo. Nesse caso, a consequência desta determinação do sujeito pelo significante consiste em seu engendramento ao mesmo tempo como vazio e como objeto.

Em terceiro lugar, desde que definimos o número atribuído a um conceito como conjunto de conjuntos equinuméricos (Rouilhan, 1988, p. 20), a passagem do 0 (zero) ao Um enumerável não faz mais que reiterar o vazio no seio de cada extensão. Quando passamos, assim, de uma primeira inscrição do 0 (zero) atribuído ao conceito da falta ao Um da série de números, o 0 (zero) é sempre a mesma extensão vazia que a cada vez, por recorrência, se situa na origem do desdobramento da sucessão.

Em outras palavras, "cada número cardinalmente sucessor corresponde ao cardinal que o precede acrescentando o conjunto vazio" (Lacan, 1971/1972b, p. 98). Este conjunto vazio é esta dimensão do sujeito que, enquanto resíduo impossível a representar, se repete. Ou seja, uma das modalidades possíveis de repetição é precisamente o sujeito enquanto vazio de representação.

Em quarto lugar, o vazio do sujeito não é portanto um Nada, pois se trata precisamente de uma falta que possui propriedades simbolicamente positivas. Com efeito, este vazio, esta inexistência enquanto Uma, é, por um lado, um elemento enumerável e, por outro, possui uma função simbólica precisa. Neste caso, vemos que para Lacan existe uma equivalência entre o Um, o Nada e o valor lógico indeterminado.

Podemos considerar, a partir deste ponto, que este vazio enumerável consiste em uma função significante, formando dessa maneira uma função significante da inexistência. Observemos que esta expressão deve ser entendida em dois sentidos complementares ou, mais precisamente, como uma identidade de contraditórios: ele é um Um, no sentido de ser um elemento discreto, pois se trata de uma formação significante, mas ele é, ao mesmo tempo, uma falta no interior da mesma bateria de significantes. Este Um é assim uma impossibilidade determinada, ele é o elemento significante que encarna o limite interior ao domínio mesmo da representação. Em outras palavras, a única substância imanente à ordem simbólica, este valor lógico indeterminado (pois contraditório), é um puro limite significante.

Entendamos bem o que Lacan tenta nos indicar: não estamos falando simplesmente de um elemento designando a inexistência de maneira nominal, pois o Um não é uma espécie de etiqueta colada sobre um espaço vazio. Ao contrário, é a própria inexistência contada como Uma.

O conceito ao qual convém o número 0 repousa sobre isso que se trata do idêntico a 0, mas não idêntico a 0. E que este que é simplesmente idêntico a 0 é tido por seu sucessor e como tal igualado a 1. É claro que a equinumericidade do conceito sob o qual não cai nenhum objeto, sob o título de inexistência, é sempre igual a ele mesmo. Entre 0 e 0, não há diferença (pas de différence). É este pas de différence no qual Frege entende fundar o 1. (Lacan, 1971/1972a, p. 59)

Vemos que Lacan busca colocar em relevo o lugar preciso da reiteração do conjunto vazio que faz parte da extensão dos números em uma sucessão. Temos assim que cada número possui duas características: 1) cada número é diferente de todos os demais e, nesse sentido, o valor lógico indeterminado é também um elemento simbólico diferente dos demais e; 2) cada engendramento do sucessor implica a reiteração da mesma inexistência.

A consequência desta dupla característica de toda e qualquer série é que a inexistência é, ao mesmo tempo, Uma e a Mesma. Este "pas de différence" que evoca Lacan designa precisamente este ponto de pura reflexibilidade, a partir do qual nós passamos da diferença relativa à diferença absoluta. É justamente por passarmos a um tipo de diferença que é, paradoxalmente, idêntica a si mesma, que sua presença simbólica é definida por Lacan como constituindo uma substância simbólica.

Um e mesmidade

Ao interpretar assim a determinação do número a partir de critérios eminentemente metapsicológicos, Lacan parece buscar na verdade diferenciar entre dois tipos diferentes de Um.

Por um lado, haveria o Um entendido como número relativo em uma sucessão de inteiros, isto é, simplesmente o sucessor de 0 (zero) em um sistema de diferenças. Trata-se então de um número idêntico a todos os outros em sua diferença relativa no interior de uma série de enumeráveis, e, portanto, de um significante ordinário. Mas, por outro lado, há o Um entendido como a extensão de um conjunto vazio, isto é, a in-existência do resíduo contraditório que se reitera sempre como Um Mesmo Nada. É sobretudo deste último tipo de Um que Lacan busca precisar a função e determinar a natureza. Como diz o psicanalista:

Frege não dá conta da sucessão dos números inteiros, mas da possibilidade da repetição. A repetição se põe primeiramente como repetição do 1, enquanto 1 da inexistência. Não haveria alguma coisa que sugere que neste caso, que não haja um único 1 mas o 1 que se repete e o 1 que se situa na sucessão dos números inteiros, que neste hiato encontramos alguma coisa que é da ordem disto que interrogamos em colocando como correlato necessário da questão da necessidade lógica o fundamento da inexistência? (Lacan, 1971/1972a, p. 61).

Como podemos observar, a distinção que Lacan propõe entre o Um enumerável (o número Um) e o Um da inexistência somente pode ser posta no interior justamente de um registro inteiramente determinado pelo significante, e portanto sustentado unicamente pela necessidade lógica. Se a dimensão lógico-simbólica é efetivamente autônoma e objetiva, se este registro não é determinado por nenhum existente extrasimbólico empiricamente positivo, então a própria necessidade lógica somente pode possuir como fundamento um fundamento ausente.3 3 Ou, como diz Jacques-Alain Miller (1994): "La única referencia que puede plantease es el agujero mismo" (p. 47). Com respeito ainda ao trabalho de Jacques-Alain Miller, cabe assinalar a diferença entre o objetivo de nosso artigo – compreender de que maneira, no interior de um diálogo de Lacan com Frege, podemos entender a relação entre o conceito de Um e a insistência da exigência pulsional, compreendida como a mesmidade atuante no seio da determinação do sujeito pelo significante – e o de Miller, no seu trabalho intitulado A Sutura. Mesmo que tocando o mesmo contexto – a questão da determinação do sujeito como contradição a partir do uso que Lacan faz de Frege –, o objetivo de Miller é diferente do nosso, pois ele visa explicitar como a reiteração deste vazio, que é a dimensão pulsional do sujeito, pode ser suturada pelo significante unário. É nesse sentido que Miller tematiza o que Lacan chama de Traço Unário, ou seja, a forma significante que permite ao sujeito apreender-se como uma unidade, isto é, como não dividido. Miller visa assim, em seu texto, depreender da lógica fregeana como o Um pode ser um Nome Próprio no interior do processo de alienação (termo que designa o paradoxo da identificação em psicanálise, na medida em que no processo identificatório o sujeito se representa como um a partir de sua divisão pelo significante). Com isso, Miller situa perfeitamente, por um lado, "el objeto imposible que el discurso de la lógica convoca como lo no-idéntico consigo mismo y rechaza como lo negativo puro, que convoca y rechaza para constituirse como lo que es, ..., lo llamamos, en tanto que funciona como el exceso que opera en la serie de los números: el sujeto" (p. 62). E, a partir deste conceito de sujeito, busca, por outro lado, "distinguir el cero como falta del objeto contradictorio, de aquel que sutura esa ausencia en la serie de los números; ...distinguir el 1, nombre propio de un número, de aquel que llega a fijar en un rasgo el cero de lo no-idéntico consigo mismo suturado por la identidad-consigo-mismo, ley del discurso en el campo de la verdad. La paradoja central que deben comprender es que el rasgo de lo idéntico representa lo no-idéntico" (p. 62). Ou seja, Miller busca distinguir o sujeito, objeto impossível, do nome próprio do traço unário que o sutura. Assim, é interessante notar que, enquanto Miller busca entender como existe um Um que pode funcionar como traço unário próprio à alienação do sujeito ao significante, nós buscamos definir o Um que funciona como a face do sujeito que é pura insistência da mesmidade pulsional. Estas duas maneiras de pensar o problema do Um não são contraditórias, pois se articulam intimamente, na medida em que justamente o sujeito é dividido entre seu vazio como insistência pulsional e sua representação pelo significante, cujo modo exemplar é precisamente o traço unário. Como assinala precisamente Miller, " Es necesario conservar juntas las definiciones que hacen del sujeto el efecto del significante y del significante el representante del sujeto, relación circular, sin embargo no recíproca" (p. 64). Ou seja, devemos conservar os dois modos de concepção do Um em psicanálise lacaniana: o Um do vazio do sujeito, que é pura insistência da mesmidade pulsional, isto é, o real do sujeito; e o Um da identidade do sujeito como Um significante que garante assim a sua ilusão de autonomia. É por este motivo que, na teoria lacaniana, cabe a distinção entre o Um unificante, o traço unário, e o Um distintivo, vazio do sujeito e mesmidade da pulsão, aos quais faz menção Miller em seu texto

Dito de outra maneira, o único condicionante logicamente pertinente é a própria ausência de fundamento, e a entidade simbólica julgada por Lacan capaz de responder a este critério lógico-fundamental é precisamente a contradição lógica. É nesse sentido que, para Lacan, o fundamento da ordem do signicante somente pode ser uma contradição interna à ordem mesmo da determinação simbólica.

Vemos que, neste caso, entre as diferenças relativas de todos os elementos de um sistema se encontra um elemento sempre suplementar, um puro limite, uma pura impossibilidade que se reitera: a mesmidade da diferença pura. Para Lacan, é esta mesmidade do Um da inexistência que não cessa de se repetir:

No primeiro nível de construção que constitui a teoria dita dos conjuntos, o axioma da extensionalidade significa precisamente que no início não se trataria de mesmo. Se trata assim de saber em qual momento nesta construção surge a mesmidade. (Lacan, 1971/1972a, p. 110)

Como já vimos, o princípio de extensionalidade repousa sobre a diferença relativa dos elementos, isto é, sobre o caráter discreto dos objetos que formam a extensão de um conceito. Nesse sentido, podemos considerar a extensionalidade como equivalente ao que habitualmente chamamos de estrutura sincrônica do significante. Do ponto de vista sincrônico, que é o ponto de vista do próprio sistema, a mesmidade não poderia nunca ser cronologicamente primeira. Ela deve ser sempre engendrada retroativamente pelo fato mesmo do sistema de diferenças copresentes, isto é, como uma espécie de subproduto derivado da instalação da ordenação simbólica. Em outras palavras, uma vez instaurada a ordem significante, a inexistência surge como Uma de maneira retroativa. Como afirma Lacan, "o Um começa no nível onde há Um que falta" (p. 111).

Este Um, o nada (la nade) em tanto que ele está no princípio do surgimento do Um numérico, do Um do qual é feito o número inteiro, é então alguma coisa que se apresenta como sendo originalmente o conjunto vazio ele-mesmo. No discurso analítico, o Um se sugere como estando no início da repetição e que então aqui se trata justamente da espécie de Um que se encontra marcado de não ser que uma falta, um conjunto vazio. (Lacan, 1971/1972b, p. 102)

Vemos assim que é unicamente em uma dimensão de subsunção generalizada – em outras palavras, no registro de um universo inteiramente reflexivo –, na qual somente a existência lógica dos objetos é objetivamente pertinente, que a falta pode ser efetivamente contada. Se, ao contrário, nos situássemos em um registro de agregados empíricos, a função da falta no seio da necessidade lógica não poderia ser jamais corretamente situada. Dito de outra maneira, é somente no interior do registro da pura necessidade lógica que a função da mesmidade da diferença pode ser metapsicologicamente situada.

É aí precisamente que encontramos o mérito particular do procedimento tanto lacaniano quanto fregeano de "dissociar, de desarticular de uma forma defintiva o predicado do atributo" (Lacan, 1971/1972a, p. 137). Pois é somente a partir desta distinção que podemos corretamente situar a diferença entre as noções de real (para Lacan, uma noção predicativa no sentido de ser um paradoxo lógico-proposicional) e de realidade (conceito empírico que implica entender a predicação como simples atribuição de um atributo empírico-qualitativo a um sujeito substancial), que surge a possibilidade de contarmos a diferença como uma forma particular de existência lógica, ou seja, de levar em consideração "o lugar de Uma falta", ou ainda de notar a equivalência da "reiteração do Um" como "reiteração da falta" (Lacan, 1971/1972b, p. 102). Em outras palavras, o real pulsional não é um atributo empírico de um sujeito psicológico, mas um paradoxo lógicoproposicional correlativo à determinação do sujeito pelo significante.

Citando Lacan (1971/1972b):

Vemos que tomando o elemento enquanto pura diferença, podemos vê-lo como mesmidade desta diferença, eu quero dizer que um elemento na Teoria dos Conjuntos, ...é equivalente a um conjunto vazio, já que o conjunto vazio pode também se exercer como elemento.... Mas, tomando esta equivalência, esta mesmidade da diferência absoluta, tomando-a como isolável... isso quer dizer que a mesmidade como tal é contada. (p. 104, itálicos nossos)

Dessa maneira, é importante não esquecermos que considerar a reiteração da mesmidade como sendo o fundamento dos objetos lógicos não implica de forma alguma sua indiferenciação. Ao contrário, é unicamente na ordem simbólica que, entre as diferenças relativas dos elementos, podemos ver aparecer um tipo inteiramente novo de valor diferencial e que consiste nesta singularidade da diferença enquanto tal.

Este é um ponto importante a ressaltar, pois a unicidade da diferença diz respeito precisamente, para a psicanálise, ao fato de uma singularidade. Como observa Lacan, "o que pode querer dizer 'os mesmos', se não é justamente que o elemento é único? (Lacan, 1971/1972b, p. 105). Da mesma maneira que a noção de diferença relativa concerne sempre a uma multiplicidade significante (a negatividade significante), o Um implica, por sua vez, necessariamente o singular (uma mesma inércia positiva).

Conclusão

Gostaríamos de terminar nosso trabalho ressaltando a importância deste tipo de análise conceitual para o desenvolvimento de toda a pesquisa metapsicológica, na medida em que nos ajuda sensivelmente no trabalho de precisão dos conceitos utilizados pela teoria psicanalítica lacaniana.

Tomemos como exemplo o conceito de Repetição – conceito central em toda a metapsicologia psicanalítica. Em relação à unicidade da inexistência – esta singularidade própria ao Mesmo e que caracteriza o modo de manifestação lógica da pulsão como exigência de simbolização feita ao aparato psíquico –, o termo de repetição se demonstra inadequado para dar conta desta especificidade do conceito lacaniano de Um pulsional. Enquanto tal, o caráter de singularidade deste Um pulsional não poderia repetir-se, pois se, com efeito, a inexistência concerne sempre a um mesmo resíduo, ela não pode, por definição, se repetir. Vemos que, neste caso, seria mais correto então designar o modo de reiteração da mesmidade pulsional como insistência. Assim, é a insistência, mais que a repetição, a característica maior que podemos atribuir à mesmidade do Um. É nesse sentido que esta mesmidade do Um – que insiste e que se determina psiquicamente sob a forma da repetição – é tão somente a formulação lacaniana definitiva do conceito freudiano de Pulsão. A insistência pulsional é assim o Um, a inércia desta mesmidade que se reitera como resíduo de indeterminação no seio da determinação simbólica.

Podemos então compreender por que, para Lacan, a insistência é igualmente o fundamento metapsicológico da existência. Como diz Lacan (1971/1972a), "a existência é a insistência" (p. 164). Reencontramos aí finalmente a distinção entre os conceitos metapsicológicos de Real e de Realidade que havíamos citado anteriormente. O Real concerne a natureza própria ao Um e é em torno desta mesmidade da inexistência que, paradoxalmente, se coloca a questão da existência. Em outras palavras, a questão da existência, no tocante à dimensão econômica da determinação psíquica, não concerne, em primeiro lugar, à realidade empírica, mas sobretudo à própria insistência do real da exigência pulsional. Lacan mesmo afirma esta característica ontológica do Um em uma de suas mais enigmáticas proposições: "somente há o Um" (Lacan, 1971/1972b, p. 115). Dito de outra maneira, para Lacan, se o regime da determinação simbólica é caracterizado pela negatividade, a insistência do Um pulsional é efetivamente a única substância própria e imanente ao registro da linguagem. É por isso que, repetindo a proposição lacaniana supracitada, "a existência é a insistência" (Lacan, 1971/1972a, p. 164).4 4 O trabalho realizado por Badiou (1988) de repensar o problema ontológico a partir da matemática e de seus paradoxos é de sumo interesse com respeito à relação entre a ex-sistência do Um e seu estatuto de inconsistência lógica. Como assinala Badiou, é necessário fazer uma distinção entre não ser, uma simples negatividade ôntica (o não ser não é), e o Ser Nada, positividade da própria inconsistência, na medida em que esta oposição é correlata àquela entre o "Il y a" lacaniano e o Ser segundo a perspectiva clássica da filosofia entendida como metafísica da presença. O Um em Lacan seria assim um Ser Nada, próprio ao fato de uma inconsistência matemática poder ser simbolicamente positiva. Em outras palavras, isto que ex-siste, o fato da insistência do mesmo, somente pode ser tributado ao próprio vazio do significante que é o sujeito. Como diz Badiou: "Il n'y a pas 'plusieurs' vides, il n'y en a qu'un, ce qui signifie l'unicité de l'imprésentable tel que marqué dans la présentation" (p. 82). Cf. também Benmakhlouf (1992).965n, p. 55).

Gostaríamos de sublinhar que o termo mais próprio para designar este estatuto do Um pulsional, enquanto modo de insistência da mesmidade do Real, é a ex-sistência. Somente a pulsão pode ex-sistir, pois, do ponto de vista das séries significantes inconcientes, a pulsão é ao mesmo tempo presença substancial e ausência do significante. Cabe, enfim, ressaltar que este termo – de ex-sistência – surge na lição de 15 de março 1972 do seminário Ou pire, precisamente a propósito da existência do Um (1971/1972a, p. 99): "Não há existência, que sobre o fundo da inexistência. É bem aí, isto que se trata no Um". Somente o ex-sistente pulsional, real próprio à determinação simbólica do sujeito, pode insistir.

Esperamos ter explicitado assim que o conceito de Um, entendido como insistência da mesmidade pulsional, tem precisamente por função heurística inscrever a identidade metapsicológica entre a inexistência do sujeito e a presença inerte do objeto, entre o nada da Coisa freudiana e a insistência do Real.

Recebido em: 21/04/2009

Aceito em: 10/09/2009

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  • 1
    Este artigo é baseado em uma parte da tese de doutorado do autor em Ciências da Linguagem, pela Université Paris X – Nanterre, intitulada
    L'économie du signe chez Saussure et Lacan, realizada com financiamento da CAPES – Ministério da Educação
  • 2
    Sobre a questão do platonismo matemático, cf.: Frege (1969), Bernays (1953), Bouveresse (1998), Poincare (1913), Branquinho, Desidério & Gonçalves (2006)
  • 3
    Ou, como diz Jacques-Alain Miller (1994):
    "La única referencia que puede plantease es el agujero mismo" (p. 47). Com respeito ainda ao trabalho de Jacques-Alain Miller, cabe assinalar a diferença entre o objetivo de nosso artigo – compreender de que maneira, no interior de um diálogo de Lacan com Frege, podemos entender a relação entre o conceito de
    Um e a insistência da exigência pulsional, compreendida como a mesmidade atuante no seio da determinação do sujeito pelo significante – e o de Miller, no seu trabalho intitulado
    A Sutura. Mesmo que tocando o mesmo contexto – a questão da determinação do sujeito como contradição a partir do uso que Lacan faz de Frege –, o objetivo de Miller é diferente do nosso, pois ele visa explicitar como a reiteração deste vazio, que é a dimensão pulsional do sujeito, pode ser suturada pelo significante unário. É nesse sentido que Miller tematiza o que Lacan chama de Traço Unário, ou seja, a forma significante que permite ao sujeito apreender-se como uma unidade, isto é, como não dividido. Miller visa assim, em seu texto, depreender da lógica fregeana como o
    Um pode ser um Nome Próprio no interior do processo de alienação (termo que designa o paradoxo da identificação em psicanálise, na medida em que no processo identificatório o sujeito se representa como um a partir de sua divisão pelo significante). Com isso, Miller situa perfeitamente, por um lado,
    "el objeto imposible que el discurso de la lógica convoca como lo no-idéntico consigo mismo y rechaza como lo negativo puro, que convoca y rechaza para constituirse como lo que es, ..., lo llamamos, en tanto que funciona como el exceso que opera en la serie de los números: el sujeto" (p. 62). E, a partir deste conceito de sujeito, busca, por outro lado,
    "distinguir el cero como falta del objeto contradictorio, de aquel que sutura esa ausencia en la serie de los números; ...distinguir el 1, nombre propio de un número, de aquel que llega a fijar en un rasgo el cero de lo no-idéntico consigo mismo suturado por la identidad-consigo-mismo, ley del discurso en el campo de la verdad. La paradoja central que deben comprender es que el rasgo de lo idéntico representa lo no-idéntico" (p. 62). Ou seja, Miller busca distinguir o sujeito, objeto impossível, do nome próprio do traço unário que o sutura. Assim, é interessante notar que, enquanto Miller busca entender como existe um
    Um que pode funcionar como traço unário próprio à alienação do sujeito ao significante, nós buscamos definir o
    Um que funciona como a face do sujeito que é pura insistência da mesmidade pulsional. Estas duas maneiras de pensar o problema do
    Um não são contraditórias, pois se articulam intimamente, na medida em que justamente o sujeito é dividido entre seu vazio como insistência pulsional e sua representação pelo significante, cujo modo exemplar é precisamente o traço unário. Como assinala precisamente Miller, "
    Es necesario conservar juntas las definiciones que hacen del sujeto el efecto del significante
    y del significante el representante del sujeto,
    relación circular, sin embargo no recíproca" (p. 64). Ou seja, devemos conservar os dois modos de concepção do
    Um em psicanálise lacaniana: o
    Um do vazio do sujeito, que é pura insistência da mesmidade pulsional, isto é, o real do sujeito; e o Um da identidade do sujeito como Um significante que garante assim a sua ilusão de autonomia. É por este motivo que, na teoria lacaniana, cabe a distinção entre o
    Um unificante, o traço unário, e o
    Um distintivo, vazio do sujeito e mesmidade da pulsão, aos quais faz menção Miller em seu texto
  • 4
    O trabalho realizado por Badiou (1988) de repensar o problema ontológico a partir da matemática e de seus paradoxos é de sumo interesse com respeito à relação entre a ex-sistência do
    Um e seu estatuto de inconsistência lógica. Como assinala Badiou, é necessário fazer uma distinção entre não ser, uma simples negatividade ôntica (o não ser não é), e o Ser Nada, positividade da própria inconsistência, na medida em que esta oposição é correlata àquela entre o
    "Il y a" lacaniano e o Ser segundo a perspectiva clássica da filosofia entendida como metafísica da presença. O
    Um em Lacan seria assim um Ser Nada, próprio ao fato de uma inconsistência matemática poder ser simbolicamente positiva. Em outras palavras, isto que ex-siste, o fato da insistência do mesmo, somente pode ser tributado ao próprio vazio do significante que é o sujeito. Como diz Badiou:
    "Il n'y a pas 'plusieurs' vides, il n'y en a qu'un, ce qui signifie l'unicité de l'imprésentable tel que marqué dans la présentation" (p. 82). Cf. também Benmakhlouf (1992).965n, p. 55).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2010

    Histórico

    • Recebido
      21 Abr 2009
    • Aceito
      10 Set 2009
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