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Maria Amélia Matos e o estudo do controle aversivo: uma contribuição exemplar

Maria Amélia Matos y el estudio del control aversivo: una contribución ejemplar

Maria Amélia Matos et l’étude du contrôle aversif: une contribuition exemplaire

Maria Amélia Matos and the study of the aversive control: an exemplary contribution

Resumos

Este artigo foi escrito com o objetivo de destacar, entre as contribuições de Maria Amélia Matos para a análise do comportamento, aquelas que, de modo especial, se referem ao estudo do controle aversivo. São feitos alguns comentários sobre parte do material de estudo de Maria Amélia sobre controle aversivo e sobre algumas de suas atividades nessa área (orientações, disciplinas ministradas), em especial sobre algumas palestras que fez e que geraram o artigo “A ética do exercício de controles aversivos”, publicado originalmente em 1981.

Maria Amélia Matos; Prática científica; Análise do comportamento; Controle aversivo


Este artículo fue escrito con el objetivo de destacar, de las contribuciones de Maria Amélia Matos para el análisis del comportamiento, aquellas que de un modo especial se refieren al estudio del control aversivo. Se hacen algunos comentarios sobre parte del material de estudio de Maria Amélia sobre el control aversivo y sobre algunas de sus actividades en esta área (orientaciones, asignaturas dadas), en especial, sobre algunas conferencias que pronunció y que dieron origen al artículo La ética del ejercicio de controles aversivos, publicado originalmente en 1981.

Maria Amélia Matos; Práctica científica; Análisis del comportamiento; Control aversivo


Cet article a pour but de mettre en exergue, parmi les diverses contributions de Maria Amélia Matos à l’analyse comportementale, celles qui se réfèrent spécifiquement à l’étude du contrôle aversif. On y retrouve également quelques commentaires sur une partie du matériel d’étude de Maria Amélia Matos sur le contrôle aversif et sur quelques unes de ses activités dans le domaine (direction de thèse, disciplines enseignées), et particulièrement sur quelques présentations qu’elle a faites, et qui sont à l’origine de l’article “L’étique dans l’exercice de contrôles aversifs”, publié pour la première fois en 1981.

Maria Amélia Matos; Pratique scientifique; Analyse du comportement; Contrôle aversif


This article was written with the goal of highlighting, among the contributions of Maria Amelia Matos for the analysis of behavior, those that, in particular, refer to the study of aversive control. Some comments are made about part of the study material of Maria Amelia on aversive control and about some of her activities in this area (advisement, courses taught), especially on some lectures that she did and that led to the article “A ética do exercício de controles aversivos” originally published in 1981.

Maria Amelia Matos; Scieptifil practice; Behavior Analysis


DOSSIÊ MARIA AMELIA MATOS

Maria Amélia Matos e o estudo do controle aversivo: uma contribuição exemplar

Maria Amélia Matos and the study of the aversive control: an exemplary contribution

Maria Amélia Matos et l’étude du contrôle aversif: une contribuition exemplaire

Maria Amélia Matos y el estudio del control aversivo: una contribución ejemplar

Tereza Maria de Azevedo Pires Sério; Nilza Micheletto

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

RESUMO

Este artigo foi escrito com o objetivo de destacar, entre as contribuições de Maria Amélia Matos para a análise do comportamento, aquelas que, de modo especial, se referem ao estudo do controle aversivo. São feitos alguns comentários sobre parte do material de estudo de Maria Amélia sobre controle aversivo e sobre algumas de suas atividades nessa área (orientações, disciplinas ministradas), em especial sobre algumas palestras que fez e que geraram o artigo “A ética do exercício de controles aversivos”, publicado originalmente em 1981.

Palavras-chave: Maria Amélia Matos. Prática científica. Análise do comportamento. Controle aversivo.

ABSTRACT

This article was written with the goal of highlighting, among the contributions of Maria Amelia Matos for the analysis of behavior, those that, in particular, refer to the study of aversive control. Some comments are made about part of the study material of Maria Amelia on aversive control and about some of her activities in this area (advisement, courses taught), especially on some lectures that she did and that led to the article “A ética do exercício de controles aversivos” originally published in 1981.

Keywords: Maria Amelia Matos. Scieptifil practice. Behavior Analysis.

RÉSUMÉ

Cet article a pour but de mettre en exergue, parmi les diverses contributions de Maria Amélia Matos à l’analyse comportementale, celles qui se réfèrent spécifiquement à l’étude du contrôle aversif. On y retrouve également quelques commentaires sur une partie du matériel d’étude de Maria Amélia Matos sur le contrôle aversif et sur quelques unes de ses activités dans le domaine (direction de thèse, disciplines enseignées), et particulièrement sur quelques présentations qu’elle a faites, et qui sont à l’origine de l’article “L’étique dans l’exercice de contrôles aversifs”, publié pour la première fois en 1981.

Mots clés: Maria Amélia Matos. Pratique scientifique. Analyse du comportement. Contrôle aversif.

RESUMEN

Este artículo fue escrito con el objetivo de destacar, de las contribuciones de Maria Amélia Matos para el análisis del comportamiento, aquellas que de un modo especial se refieren al estudio del control aversivo. Se hacen algunos comentarios sobre parte del material de estudio de Maria Amélia sobre el control aversivo y sobre algunas de sus actividades en esta área (orientaciones, asignaturas dadas), en especial, sobre algunas conferencias que pronunció y que dieron origen al artículo La ética del ejercicio de controles aversivos, publicado originalmente en 1981.

Palabras clave: Maria Amélia Matos. Práctica científica. Análisis del comportamiento. Control aversivo.

Há vinte anos atrás, procuramos1 1 Ao recorrer a segunda pessoa do plural nem sempre estamos nos referindo às autoras deste artigo, alguns desses episódios tiveram também a participação da professora Maria Amália Pie Abib Andery, como é o caso da busca do material aqui referido; outros envolveram apenas uma das autoras (Nilza Micheletto), como é o caso da organização do material sobre controle aversivo de Maria Amélia Matos. Maria Amélia Matos, em sua sala na USP, para solicitar auxílio na escolha de bibliografia para um curso que daríamos na PUC sobre controle aversivo. Não foi preciso pedir duas vezes, prontamente ela nos entregou um conjunto de textos que vinha reunindo, ao longo dos anos, em seu estudo sobre controle aversivo: “Aí está o que tenho, não está completo e está desorganizado. Mas é para devolver, hein!”.

Claro que nunca devolvemos. Passado algum tempo, depois de algumas cobranças, Maria Amélia nos autorizou a ficar com seu material. Foi a partir desse material que iniciamos um estudo mais sistemático sobre controle aversivo.

Ao organizar os textos, descobrimos que tínhamos recebido mais do que textos sobre controle aversivo. Havia também uma boa quantidade de textos sobre controle de estímulos e sobre esquemas de reforçamento. Mais do que isto, alguns dos textos eram separatas de artigos históricos, tanto sobre controle de estímulos como sobre controle aversivo. Só para dar alguns exemplos, encontramos uma separata de Keller, de 1941, Light-aversion in the white rat; uma de Dismoor, de 1954, Punishment: I. The avoidance hypothesis; uma de Azrin, de 1956, Some effects of to intermittent schedules of immediate and non-immediate punishment; uma de Sidman e Boren, de 1957, The relative aversiveness of warning signal and shock in an avoidance situation; e uma de Schoenfeld, da própria Matos e de Snapper, de 1967, Cardiac conditioning in the rat with food presentation as unconditional stimulus.

Encontramos também algumas curiosidades, talvez a maior delas um artigo em japonês: The fear drive and the reversibleness of the reinforcing value, publicado no Japonese Journal Psychology, em 1958, cuja única parte para nós compreensível foi um breve resumo, ao final, em inglês.

Se isso não bastasse, os textos tinham trechos grifados, comentários nas margens e uma indicação de classificação que nos pareceu, dada sua letra peculiar, terem sido feitos pela própria Maria Amélia. E, junto com tudo isso, encontramos também várias anotações em folhas de papel (até hoje nos perguntamos: por que não aprendemos a decifrar bem sua letra?

Organizamos todo esse material, separando os textos por ano e classificando-os segundo o assunto tratado. Esse trabalho produziu o que chamamos de Arquivo Maria Amélia e revelou que 152 textos eram sobre controle aversivo. Eram em sua grande maioria artigos, mas havia algumas teses, monografias (monographs) e alguns textos pertencentes a uma série que tinha o título Technical Report, publicada pela Columbia University. A data de publicação dos textos ia de 1938 até 1977 e a quantidade de textos por ano era desigual; o maior número de textos concentra-se entre os anos de 1958 e 1967, com um aumento progressivo de textos arquivados por ano, durante esse período, de forma que, só em 1967, o arquivo tinha 22 artigos. Os artigos arquivados tinham sido publicados em diversas revistas: Psychological monographs, The Journal of Comparative and Physiological Psychology, Psychological Review, Journal of Experimental Psychology, Psychological Reports, Journal of Experimental Analysis of Behavior, entre outros. Nos textos, eram abordados vários temas: punição, esquiva, fuga, propriedades dos estímulos aversivos e supressão condicionada, tema que concentrava a maioria deles. Supressão condicionada foi o tema da tese Acquisition and extinction of conditioned suppression in the rhesus monkey as a function of probability of unavoidable shock, que Maria Amelia defendeu, em 1969, na Columbia University, sob orientação de W. N. Schoenfeld.

Figura 1. Número acumulado de teses e dissertações orientadas por Maria Amélia Matos, por ano.

A dedicação de Maria Amélia ao estudo de controle aversivo pode ser vista também nas atividades que realizou nos primeiros anos de seu retorno ao Brasil, após concluir seu mestrado (Matos, 1964), sob orientação de Fred Keller, e seu doutorado (Matos, 1969). Maria Amélia, já em sua chegada em 1969, passou a ministrar disciplinas no curso de graduação de Psicologia da USP e no Programa de Psicologia Experimental da USP e, dentre estas, como indica seu Currículo Lattes, ministrou disciplinas sobre controle aversivo, em 1970, 1971, 1973 e 1976.

No Programa de Pós-Graduação em Psicologia Experimental da USP, que ajudou a desenvolver, destacam-se suas orientações de teses e dissertações, atividade que realizou também em outras universidades. Sob sua orientação foram defendidos 60 trabalhos em análise do comportamento2 2 A Figura 1 foi elaborada a partir do Banco de Dados de Dissertações e Teses em Análise do Comportamento no Brasil 1968-2007 (BDTAC). Este Banco contém informações sobre tais dissertações e teses defendidas no Brasil entre 1972 e 2007 e foi elaborado por Micheletto, Guedes e Perreira (2008), a partir de sites ou bibliotecas das universidades com cursos de pós-graduação em Análise do Comportamento (USP, UnB, UFSCar, UFPA e PUC-SP) e de sites de universidades reconhecidas por agregar pesquisadores em ACAC; do banco de teses e dissertações da CAPES; de Currículos Lattes de orientadores localizados (o Currículo Lattes de todos os orientandos dos primeiros orientadores foram também acessados, para verificar se tinham orientado teses e dissertações em Análise do Comportamento. Isto foi feito ainda por três gerações). A seleção das teses e dissertações para elaboração deste banco ocorreu a partir de título, palavras-chave, autor, resumo; foram selecionados aqueles trabalhos em que foram identificados conceitos da Análise do Comportamento. e parte deles (13) voltados para o estudo do controle aversivo. Na Figura 1, pode-se observar o número acumulado de dissertações e teses em análise do comportamento orientadas por Maria Amélia, por ano, e, em uma das curvas, pode-se observar quantos destes trabalhos foram realizados com o objetivo investigar aspectos relacionados ao controle aversivo.

Dos 60 trabalhos, 13 foram realizados com o objetivo de investigar diferentes aspectos relacionados ao controle aversivo: supressão condicionada (3), efeitos de choque livre (2) ou de choques não contingentes (2), esquiva (3), time-out (1), autoagressão (1), propriedades aversivas dos estímulos (1). No período inicial de seu trabalho de orientação (1972-1979), houve um destaque forte de investigações sobre este tema: dos 24 trabalhos orientados (teses e dissertações) nesses sete anos, 10 são sobre controle aversivo. Depois desse ocorreu uma diminuição de orientações sobre este tema, sendo que o último trabalho orientado sobre controle aversivo foi defendido em 1989. É importante destacar que as duas primeiras dissertações concluídas sob sua orientação (Ferrara, 1972, e Carvalho, 1972) e também a primeira tese (Ferrara, 1976) foram sobre controle aversivo.

A redução no número de orientações sobre controle aversivo ocorre em período razoavelmente próximo do período em que Todorov (2001), em polêmico artigo sobre as dificuldades do estudo da punição em análise experimental do comportamento, afirma que tais dificuldades aumentam; segundo esse autor, a quase ausência do tema nas publicações voltadas para difundir o conhecimento produzido em análise do comportamento parece estar relacionada também a barreiras concretas impostas pelos próprios avaliadores de artigos e editores de revistas para tais publicações. No caso do trabalho de orientação realizado por Maria Amélia, tal redução é acompanhada por um aumento crescente no número de orientações de teses e dissertações voltadas para o estudo de processos envolvidos no controle de controle de estímulos. A mesma mudança pode ser observada nos cursos ministrados.

Tomando como fonte o Banco de Dados de Dissertações e Teses em Análise do Comportamento no Brasil 1968-2007, observa-se que duas de suas orientandas que estudaram controle aversivo também orientaram trabalhos na área: Maria Lucia Dantas Ferrara (que orientou 2 dissertações e 2 teses entre 1983 e 1987 sobre choque não contingente, choque livre, propriedades aversivas do estímulo) e Maria Helena Leite Hunziker (que orientou 10 dissertações, no período de 1991 até 2006, e 2 teses, em 2004 e 2005, predominantemente sobre incontrolabilidade).

Nada mais esperado que procurássemos reflexos de todo esse seu trabalho em suas publicações. Voltando ao Currículo Lattes de Maria Amélia, encontramos indicações de quatro livros publicados, 15 capítulos de livros e quase 50 artigos publicados em revistas com seletivo corpo editorial ou em revistas de importância na área de análise do comportamento; dentre essas publicações apenas uma delas parece ter relação direta com controle aversivo: o artigo intitulado A ética do exercício do controle aversivo (Matos, 1981). A leitura desse artigo nos faz, imediatamente, pensar muito sobre a palavra ‘apenas’ como um indicador de suas publicações sobre controle aversivo e, também, sobre outros indicadores aos quais tão frequentemente recorremos para descrever ou caracterizar o nosso trabalho intelectual e o de nossos colegas.

Encontramos neste artigo, no melhor sentido do termo, uma das sínteses possíveis do conhecimento produzido, até então, em análise do comportamento sobre controle aversivo e uma síntese historicamente significativa: possibilita-nos, por assim dizer, a compreensão ‘comportamental’ do momento histórico que vivíamos. Não fosse isso já mais do que suficiente, de forma extremamente sensível, Maria Amélia o faz de forma duplamente poética: sugere relações entre as descobertas feitas em laboratório e versos de diversas músicas do, como ela mesma apresenta, “poeta, compositor, intérprete e teatrólogo Francisco Buarque de Hollanda” (Matos, 1982/1981, p. 2) e sua escrita informa e emociona.

A versão que temos do artigo é uma publicação, um tipo de separata, publicada pela UFSCar, em 1982. Nela encontramos informações sobre a história do artigo. Ele se origina de três palestras apresentadas sucessivamente na 2ª Semana de Psicologia de São Caetano do Sul, em 1976, na VI Reunião Anual da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto, também em 1976, e no Encontro de Psicologia, promovido pela Associação Bahiana de Psicologia, em Salvador, no ano de 1977; o artigo é uma versão modificada da última palestra.

No que pode ser considerado como a introdução do artigo/palestra, dois aspectos merecem destaque. A forma como Maria Amélia se apresenta:

tenho trabalhado na área de Psicologia Operante, pesquisando variáveis procedimentos e fenômenos relativos a aquilo que se convencionou chamar “controle aversivo do comportamento”. Traduzindo, isso significa que estudo o comportamento de seres biologicamente vivos, investigando como esse comportamento é afetado por técnicas aversivas, isto é, técnicas que envolvem variáveis ou procedimentos de caráter desagradável, nocivo, e que representam um prejuízo às chances de sobrevivência do organismo em questão. Como trabalho em situação de laboratório, escolhi, como variável analógica, o choque elétrico, e como sujeito, o rato branco. (Matos, 1982/1981, p. 1)

E a forma como apresenta a palestra que irá proferir:

Não pretendo realmente falar sobre ética, deixo, esperançosamente, para que vocês o façam após esta palestra. O que gostaria mesmo é falar sobre alguns mecanismos e procedimentos de controle aversivo, estudados e usados, respectivamente, dentro e fora do laboratório. Gostaria de falar sobre as consequências desse uso sobre o comportamento daqueles que o usam e sobre o daqueles sobre os quais eles são usados. acredito, nossas práticas verbais afetam nossas ações e então, importante se torna falar. (Matos, 1982/1981, pp. 2-3)

Se pudermos estender a análise que Todorov (2001) faz das dificuldades em se estudar punição também para a comunidade científica brasileira e para o estudo do controle aversivo em geral, é preciso ter muito claro o papel e as características da produção de conhecimento científico como uma prática cultural para se apresentar como uma estudiosa do controle aversivo. Desnecessário dizer que isso deveria ser ainda mais “difícil” de ser feito naquele momento histórico que vivíamos: nossa oposição às práticas coercitivas como forma de controle do comportamento humano crescia e se difundia, mesmo que não conseguíssemos identificar algumas de suas piores consequências (aquelas menos imediatas, mais sutis e sem uma relação óbvia com tais práticas de controle). Além disso, Maria Amélia não deixou nada de fora ao falar de seu trabalho: apresenta de forma simples e precisa o trabalho de laboratório.

Dentro desse contexto parece ganhar significado especial a apresentação de sua palestra: 1) “falar dos mecanismos e procedimentos de controle aversivo” “estudados” “dentro do laboratório” e “usados” “fora dele” e 2) “falar sobre as consequências desse uso”, tanto para quem recorre a tais procedimentos como forma de comportamento do comportamento de outros como para quem está submetido a tais procedimentos. Deixa claro, para aqueles que a ouviam (e depois para seus leitores), que esse falar completa, em alguma medida, seu trabalho como estudiosa do comportamento: ele poderia ser uma das maneiras de mudar comportamentos. “Acredito que nossas práticas verbais afetam nossas ações”; como uma boa analista do comportamento e behaviorista radical, Maria Amélia fazia ciência para mudar comportamentos; podemos, assim, considerar esse seu falar como um momento do processo de produção de conhecimento científico e reconhecer nele algumas características especiais. Só para dar um exemplo: é possível encontrar, após cada uma das conclusões que apresenta, a indicação da fonte (é importante notar que não apenas os experimentos são indicados e que, em muitos casos, mais de um experimento é indicado) que serviu de fundamento para aquela conclusão; falar de forma a ser entendida não a eximia de fornecer a sustentação que julgava básica, crítica para as afirmações que descreviam e explicavam comportamentos.

E especialmente sobre o assunto controle aversivo o que podemos aprender com esse artigo de Maria Amélia?

Começa apresentando o que se descobriu sobre os efeitos da punição (no caso, a apresentação de um evento aversivo após a ocorrência de uma resposta) e parece seguir uma trajetória histórica para falar disso: diminuição na força das respostas ou supressão das respostas pertencentes à classe da resposta que antecedeu o evento aversivo, produção de estímulos aversivos condicionados, mudanças nas dimensões das respostas que pertencem à classe da resposta que antecedeu o estímulo aversivo, alteração em respostas relacionadas de alguma forma com a resposta em questão e, finalmente, aumento da força de respostas anteriormente suprimidas. Destacando a supressão como o “principal efeito, e o mais comum, de contingências aversivas” (p. 4), Maria Amélia introduz de forma muito simples e clara o debate que até hoje marca as discussões sobre punição: como entender a supressão dessas respostas? Lida com duas possibilidades e deixa claro que mais do que uma mera discussão de teorias ou metodologias científicas, o estudo dessas possibilidades pode trazer consequências para nossa história futura.

A existência de “mecanismos inibitórios” (p. 4); cita como exemplos de tais mecanismos a ansiedade, a dor e o medo e apresenta as possíveis caracterizações de ansiedade (de forma bem resumida as que enfatizam como fator determinante básico os estados fisiológicos, as que enfatizam os estados emocionais, as que consideram ansiedade como a “própria mudança comportamental” (p. 5)), destacando que, em determinadas condições, ela pode transformar-se em um evento automantido. Mesmo para quem não está acostumado com a oposição entre explicações mentalistas e comportamentais, a exigência que se coloca para a possibilidade da ‘supressão direta’ e as diferentes alternativas que ela contém ficam apresentadas.

A segunda possibilidade abordada é a da ‘supressão indireta’: os eventos aversivos

não agiriam diretamente suprimindo a resposta atingida; agiriam indiretamente, produzindo outras respostas ou comportamentos. Comportamentos esses que, de certo modo, removeriam ou atenuariam o evento aversivo.

Essas respostas, que removem ou atenuam o evento aversivo, acabariam por ocupar o espaço comportamental; isto é, assumiriam uma tal posição na hierarquia de respostas do organismo, que acabariam por eliminar todas as demais. (p. 5)

Maria Amélia, resumindo o percurso experimental que conduziu à conclusão, ressalta que isso pode acontecer mesmo em situações nas quais o evento aversivo não mais é apresentado e apresenta como analogia não as várias práticas coercitivas que marcavam aquele momento histórico, mas uma quase que invisível e que marcava e continua marcando o cotidiano de muitos de nós:

A analogia, entre essa situação e a do operário que rotineira e exaustivamente conduz seu trabalho apenas para evitar um mal maior, e que, de pé, entre uma parada e outra do ônibus caro, sujo e superlotado, cochila (porque esta é sua oportunidade de recuperar algum tempo de sono), não é uma analogia impossível. (p. 6)

Maria Amélia ressalta que a discussão entre as duas possibilidades de entendimento de quais são mesmo os efeitos do controle aversivo ou de como eles podem ser descritos e/ou explicados não deveria encobrir que muitos dos problemas que marcam nosso convívio social possivelmente têm sua origem e manutenção na difusão, generalização e predominância de tais práticas de controle como forma de organização social, política e econômica. Reconhecer isso, como ela também ressalta, já é parte da prática científica que além de identificar as variáveis que caracterizam as contingências de controle aversivo e os parâmetros críticos de tais variáveis, busca, também, identificar como as relações assim estabelecidas podem ser alteradas; talvez o que esteja faltando seja a produção de conhecimento mais dirigida para a identificação de alternativas a tais práticas. Tal conhecimento pode se transformar num instrumento de planejamento social colocado à disposição de todos e não apenas daqueles que, dada sua proximidade maior com os diversos centros de poder (econômico, religioso, social, político), têm também o domínio do conhecimento científico. Termina sua palestra fazendo um convite: “Acho que nós também deveríamos tentar desenvolver uma outra tecnologia. A programação de contingências adequadas é muito mais eficaz e barata que o uso da punição” (p. 14).

Em palestra feita três anos depois, no Japão, e publicada após sua morte, Skinner (1990) propõe que esta é a tarefa da análise da análise experimental do comportamento: “a modificação de comportamento no sentido exato da aplicação de uma análise experimental do comportamento é, creio, o primeiro esforço organizado para desenvolver alternativas a práticas punitivas” (p. 100). Sua afirmação encontra suporte na análise que faz de parte da história do homem:

Três grandes exemplos históricos [de coisas desagradáveis] às quais a espécie humana tem sido exposta são a fome intensa, doença e trabalho exaustivo. A espécie fez grandes progressos ao lidar com elas. Por meio da descoberta da agricultura e de maneiras de armazenar e transportar alimento, a humanidade (em parte, pelo menos) escapou de padecer de inanição. Por meio da medicina e do saneamento, escapou de muitos dos sofrimentos de doenças e de morte prematura. Por meio da tecnologia física ela tem escapado de padecer com trabalho exaustivo. Os únicos sofrimentos aos quais muitos membros da espécie humana estão ainda expostos são aqueles que nós infligimos uns sobre os outros. (p. 98)

Para Skinner (1990), a análise científica das consequências do recurso a reforçamento positivo e a punição permitirá o surgimento de uma tecnologia comportamental que “será, no final das contas, comparável, em seu efeito sobre a vida humana, à agricultura, medicina e tecnologia física na eliminação dessa última grande fonte de sofrimento humano” (p. 100).

É a mesma tarefa que Maria Amélia havia proposto, em suas palestras de 1976 e 1977, para os estudiosos do comportamento, em especial, para os analistas experimentais do comportamento. Podemos dizer que esta é a sua contribuição exemplar no estudo do controle aversivo.

Como excelente analista do comportamento, não podia apenas propor uma tarefa, ela já apresenta algumas indicações de que essa tarefa exigirá muito trabalho de pesquisa, de análise e de discussão. Tendo como base, mais uma vez, resultados experimentais, deixa claro que além de identificarmos quais podem/devem ser as novas práticas de controle, precisaremos também identificar como fazer a transição de relações predominantemente estabelecidas por contingência de controle aversivo para relações predominantemente estabelecidas por contingência de reforçamento positivo; a mera suspensão das contingências aversivas pode gerar problemas inéditos: a simples suspensão da punição produz um aumento muito grande na frequência das respostas anteriormente punidas.

Referências

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Todorov, J. C. (2001). Quem tem medo da punição? Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 3, 37-40.

Recebido em: 25/01/2010

Aceito em: 23/03/2010

Tereza Maria de Azevedo Pires Sério, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Avenida Professor Alfonso Bovero, 260, apto. 22. CEP: 01254-000. São Paulo-SP. Endereço eletrônico: teiaserio@uol.com.br

Nilza Micheletto, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Avenida Higienópolis, 148, apto. 121. CEP: 01238-000. São Paulo-SP. Endereço eletrônico: nimicheletto@uol.com.br

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    Ao recorrer a segunda pessoa do plural nem sempre estamos nos referindo às autoras deste artigo, alguns desses episódios tiveram também a participação da professora Maria Amália Pie Abib Andery, como é o caso da busca do material aqui referido; outros envolveram apenas uma das autoras (Nilza Micheletto), como é o caso da organização do material sobre controle aversivo de Maria Amélia Matos.
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    A Figura 1 foi elaborada a partir do
    Banco de Dados de Dissertações e Teses em Análise do Comportamento no Brasil 1968-2007 (BDTAC). Este Banco contém informações sobre tais dissertações e teses defendidas no Brasil entre 1972 e 2007 e foi elaborado por Micheletto, Guedes e Perreira (2008), a partir de sites ou bibliotecas das universidades com cursos de pós-graduação em Análise do Comportamento (USP, UnB, UFSCar, UFPA e PUC-SP) e de sites de universidades reconhecidas por agregar pesquisadores em ACAC; do banco de teses e dissertações da CAPES; de Currículos Lattes de orientadores localizados (o Currículo Lattes de todos os orientandos dos primeiros orientadores foram também acessados, para verificar se tinham orientado teses e dissertações em Análise do Comportamento. Isto foi feito ainda por três gerações). A seleção das teses e dissertações para elaboração deste banco ocorreu a partir de título, palavras-chave, autor, resumo; foram selecionados aqueles trabalhos em que foram identificados conceitos da Análise do Comportamento.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      25 Jan 2010
    • Aceito
      23 Mar 2010
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