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Apresentação

Dossiê Vigotski

Apresentação

Gisele Toassa

Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás

É com grande satisfação que apresentamos a primeira tradução direta ao português da conferência Probliema sriedi v pedologuii ou "A questão do meio na pedologia", proferida por Lev Semionovich Vigotski entre 1933-1934 (mais provavelmente 1933). Sua primeira publicação em russo foi capitaneada por M. A. Levina em 1935, entre as outras sete conferências dos "Fundamentos de pedologia" (Osnovi Pedologuii). Algumas traduções já circulam nas universidades brasileiras, como a editada por Jaan Valsiner, "The problem of the environment" (Vigotski, 1994), e "El problema del entorno" (Vigotski, n.d.), que, segundo sabemos, foi traduzida do inglês na Universidade de Havana. Trata-se da única conferência dos "Fundamentos de pedologia" que veio à luz no Ocidente.

Vale informar, contudo, que as condições dos estenogramas das conferências não são as melhores possíveis: segundo Kataraeva (2001), editora do original-fonte da tradução, trechos do material estão distorcidos, ilegíveis, tendo sido corrigidos por ela e sua equipe. O estilo das conferências é simples e a tradução de Márcia Vinha procurou preservar as características do discurso oral do autor.

A história da versão em português começa com nossa pesquisa de doutorado sobre a diacronia do conceito de emoção na obra de Vigotski, inicialmente orientada por Maria Amélia Azevedo no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). O trabalho teórico inicial levou-nos à análise da primeira obra do autor, "A Tragédia do Hamlet" (1916), em que as categorias vivência e emoção sobrepõem-se. Em outras, como a "Psicologia da Arte" (1971), a própria "The problem of the environment" (1994) e os "Problemas de la psicología infantil" (1996), traduzia-se perejivânie como vivencia, experience, emotional experience e feeling, expressões que acabaram criando uma confusão polissêmica. Isso dificultava o desenvolvimento de nossa pesquisa, pois não sabíamos se a sobreposição semântica da primeira obra repetia-se em trabalhos posteriores de Vigotski.

O encontro com "The problem of the environment" foi acidental, mas oportuno. Sua leitura agudizou nossa dúvida sobre perejivânie. Sua importância já se colocava previamente no debate acadêmico: a conferência fornece suporte para que Van Der Veer e Valsiner (2001) discorram sobre a categoria emotional experience (cuja fonte é perejivânie), a partir da tradução de 1994, considerando-a categoria essencial à compreensão das emoções humanas. Já a leitura da tradução ao espanhol de uma outra conferência pedológica de Vigotski, "La crisis de los siete años" (1996a), indicava as vivências como unidade sistêmica da consciência/personalidade em sua relação com a realidade objetiva, na qual se integram os diversos processos psicológicos parciais: entre eles, as emoções. Na época, acreditamos que a tradução direta ao português de Probliema sriedi v pedologuii contribuiria muito para mitigar a angústia causada por esses indícios dispersos, e encaminhar a elaboração das conclusões que apresentamos neste Dossiê, em artigo redigido a quatro mãos com Marilene Proença Rebello de Souza.

Os leitores habituados à densidade de Vigotski talvez se surpreendam ao se deparar com "A questão do meio na pedologia" - um texto breve e simples, com as características de uma aula introdutória sobre o tema. Cremos que sua publicação em língua portuguesa é importante por várias razões. A primeira: possibilita-nos tratar, sem maiores dificuldades, da pouco comentada pedologia de Lev Semionovich Vigotski. Não há outros textos pedológicos do autor traduzidos ao português. Merece atenção a sua definição da pedologia como ciência do desenvolvimento infantil e adolescente, de caráter essencialmente interdisciplinar, enquanto outros autores de sua época consideravam-na simplesmente como ciência sobre as crianças. Publicando esta tradução, desejamos suscitar um interesse mais amplo (tanto de seus leitores quanto do mercado editorial) nos seus textos pedológicos. Sem elas, cremos que o crescimento da produção científica sobre a pedologia de Vigotski, que, durante décadas, caiu no esquecimento mesmo na União Soviética - graças à perseguição agressiva à obra de Vigotski nos anos 1930 (Leontiev, 2005) - tende a continuar sofrendo profundas limitações.

De fato, é surpreendente que um autor tão popular e de facetas tão diversificadas como Lev Semionovich venha sendo publicado de forma tão escassa e fragmentária. Desde "A construção do pensamento e da linguagem" (2001), edição integral do "Michlenie i riétch", nada temos de novo no mercado editorial em língua portuguesa. Existe, no entanto, uma infinidade de contribuições fechadas no hermetismo do idioma russo, que aguarda o olhar dos interessados em conhecer melhor a evolução, ruptura e transformação dos conceitos na obra do autor, sua relação com a cultura e o contexto histórico soviético e suas implicações para nossas ideias e práticas com crianças e adolescentes. São aspectos fundamentais para intensificar o processo de superação das perspectivas naturalizantes, conservadoras, evolucionistas-mecanicistas da psicologia brasileira, que tendem a desvalorizar o papel do educador no desenvolvimento dos alunos, fazendo tábula rasa de sua história, cultura e vivências singulares.

Muitos trabalhos já foram realizados para a superação de tais perspectivas (Patto, 1981, 1984, 1990, Machado, 1994; Tanamachi, Rocha, & Proença, 2002 e muitos outros). Perguntar-se-ia, então: por que estudar a natimorta ciência pedológica de Vigotski? Respondemos: porque a perspectiva vigotskiana carrega consigo um significativo trabalho crítico-filosófico e científico. Porque o conjunto de conclusões existente na pedologia de Vigotski traça um quadro com o qual podemos compreender a infância e adolescência como processos históricos, por meio da infância e adolescência particulares à sua época. Os conceitos de vivência e emoção em Vigotski e sua interface com as práticas relacionadas a uma psicologia crítica é de extrema importância nas discussões sobre o reencaminhamento da avaliação psicológica, as metodologias de pesquisa e intervenção, as direções político-ideológicos da psicologia. Categorias como vivência e sentido desdenham da simples mensuração e padronização das capacidades e atitudes intelectuais e afetivas; introduzindo lugares teóricos para pensarmos a perspectiva das crianças e adolescentes, para além do mero levantamento empírico de seus depoimentos.

A "Questão do meio na pedologia" recebe, neste Dossiê, quatro artigos de comentário. O primeiro deles, do russo Boris Mescheriakov, tem propósitos introdutórios. Faz-nos conhecer o intrigante conceito, por Boris desenvolvido, de "zona de desenvolvimento distante". Enriquece este Dossiê com informações diversas sobre a edição original da conferência vigotskiana e seu contexto. Seu comentário à "Questão do meio na pedologia" desenvolve-se a partir do conjunto das sete conferências dos Osnovi pedologuii e de uma problematização de sua especificidade e utilidade para o trabalho clínico com crianças. Propõe que as conferências de as "Bases da pedologia" antecedem tanto "O problema da idade" quanto as conferências sobre as crises da idade (Vigotski, 1996b). Trabalha, também, a importância do papel da vivência na determinação das conexões constitutivas do sistema meio-criança. Diversos problemas referentes ao desenvolvimento humano são debatidos: hereditariedade, leis de desenvolvimento, comparação da psicologia histórico-cultural com outras psicologias. Boris também compara Vigotski, Bozhovich e Leontiev no que se refere ao conceito de vivência e traça uma analogia, não isenta de possíveis polêmicas, entre o sistema teórico vigotskiano e o de enfoques teóricos da psicologia ocidental (terapia racional-emotiva, teorias cognitivas etc.).

Suely Amaral Mello explora o caráter dialético da conferência, no qual "o pensamento se abre num movimento em que três elementos também em movimento passam a protagonizar o desenvolvimento humano": o meio, o mediador e a criança. Destaque para o papel da linguagem oral no meio social. Suely sublinha: "a atitude que os adultos devem ter em relação aos atos de fala com as crianças, uma vez que elas não os compreendem como os adultos imaginam. Isso implica na necessidade de uma atitude intencional do professor ou da professora ao conduzir o trabalho educativo", a partir das considerações sobre linguagem presentes na "Questão do meio da pedologia".

Angel Pino brinda-nos com considerações sobre a categoria meio e a natureza, transitando por diversas ciências, sobre o papel mutável do meio no que toca às espécies mais complexas. Segundo o autor: "Pode-se pensar então que existem tantos tipos de meio quantas são as inúmeras espécies de organismos". O autor, comentando com propriedade o caráter cultural do meio humano e as necessidades impostas ao educador: a necessidade de conhecer o meio da criança concreta e histórica, e também a noção de meio para Vigotski: "o meio, em si mesmo, não tem existência ontológica, uma vez que ele é sempre meio de alguém e para alguém". Trata, ainda, das regras e critérios para análise da criança-meio e do trabalho semiótico existente na vivência.

Por fim, nosso trabalho, escrito com Marilene Proença Rebello de Souza, resultado de pesquisa de doutorado por ela orientada em 2008, sintetiza as conclusões acerca de nossas dúvidas iniciais, já comentadas, no que se refere ao conceito de vivência. Assim sendo, explora questões de etimologia e tradução de perejivânie e problemas relativos ao seu sentido, num breve olhar através da obra de Vigotski com especial atenção a dois momentos: "A tragédia do Hamlet, Príncipe da Dinamarca" (1916) e os textos pedológicos dos anos 1930, incluindo "A questão do meio na pedologia".

Para concluir, agradecemos a Boris Meshcheriakov pela cópia eletrônica de Probliema sriedi v pedologuii; ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do IPUSP pelo financiamento da tradução; a Eduardo Carli de Moraes pelas traduções ao francês dos resumos de nosso artigo e do de Boris Meshcheriakov; e a Márcia Pileggi Vinha, pela interlocução referente aos nós de tradução verificados na conferência de Vigotski.

Referências

Kataraeva, G. (2001). Predislovie. In L. S. Vigotski, Lektsii po pedologii (pp. 4-8). Ijevsk: Isdatelskii Dom "Udmurtskii Universitet".

Leontiev, A. A. (2005). The life and creative path of A. N. Leontiev. Journal of Russian and East European Psychology, 43(3), 8-69.

Machado, A. M. (1994). Crianças de classe especial: efeitos do encontro da saúde com a educação. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Patto, M. H. de S. (1981). Introdução à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz.

Patto, M. H. de S. (1984). Psicologia e ideologia: uma introdução crítica à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz.

Patto, M. H. de S. (1990). A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T. A. Queiroz.

Tanamachi, E. R., Rocha, M. L., & Proença, M. (Orgs.). (2002). Psicologia e educação: desafios teórico-práticos (2. ed.) São Paulo: Casa do Psicólogo.

Van Der Veer, R., & Valsiner, J. (2001). Vygotsky: uma síntese. São Paulo: Loyola.

Vigotski, L. S. (1971). The psychology of art. Recuperado em 13 de outubro, 2006, de: http://www.marxists.org/archive/vygotsky/works/1925/index.htm. (Texto original de 1925)

Vigotski, L. S. (1994). The problem of the environment. In J. Valsiner (Ed.), The Vygotsky reader (pp. 338-354). Oxford, UK: Blackwell. (Trabalho original publicado em 1935)

Vigotski, L. S. (1996a). La crisis de los siete años. In Obras escogidas (Vol. 4, pp. 377-386). Madrid: Visor. (Trabalho original proferido entre 1933-1934)

Vigotski, L. S. (1996b). Problemas de la psicología infantil. In Obras escogidas (Vol 4, pp. 249-386). Madrid: Visor. (Trabalhos originais de 1932-1934)

Vigotski, L. S. (n.d.). El problema del entorno. Universidade de Havana. (Trabalho não publicado)

Vigotski, L. S. (2001). A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes. (Texto original de 1934)

Recebido: 27/09/2009

Aceito: 26/08/2010

Gisele Toassa, Professora Doutora, Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO.Endereço para correspondência: Av. Primeira Avenida, 206, Apto 204, St. Leste Universitário,Goiânia,GO, CEP: 74605-020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    2010
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