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A questão do meio na pedologia e suas implicações pedagógicas

The problem of the environment in paedology and its pedagogical implications

El tema del entorno en la pedologia y sus implicaciones pedagógicas

La question de l'environnement dans la pédologie et ses implications pédagogiques

Resumos

Este texto faz uma leitura da conferência de Vigotski sobre a questão do meio na pedologia buscando as implicações pedagógicas das ideias aí contempladas para a educação das crianças, especialmente das crianças pequenas. Destaca inicialmente a metodologia do autor que ensina seus ouvintes e leitores a pensar dialeticamente, desafio a ser enfrentado por aqueles leitores que, acostumados a pensar com a lógica formal, se propõem a compreender os estudos de Vigotski. Toma, especificamente, duas questões trazidas por Vigotski na referida conferência para refletir sobre seu significado para as práticas pedagógicas com as crianças pequenas: a linguagem oral como aspecto que condiciona a influência do meio sobre o desenvolvimento humano na infância e a especificidade do desenvolvimento cultural na infância que faz da forma ideal ou final das objetivações humanas um elemento essencial na formação e no desenvolvimento das qualidades humanas desde suas etapas mais elementares. Em ambos os casos, as reflexões desenvolvidas por Vigotski nessa conferência deflagram uma revolução no pensar e agir docentes, especialmente para a educação da pequena infância.

Educação infantil; Jardins de infância; Atividade pedagógica


This paper searches the pedagogical implications for early childhood education presented in the lecture given by Vygotsky about the environment and its influence on child development. It points out the author's methodology as he brings up his arguments initiating the listeners and readers in the dialectical thinking, challenge to be faced by readers educated in the logical thinking but aiming to understand Vygotsky's studies. It elects two arguments brought by Vygotsky in the mentioned conference: the oral language and its meaning for the influence of the environment on human development in early childhood and the development singularities in childhood which consists on the following: that which it is possible to achieve at the end and as the result of the developmental process, is present in the environment from the very beginning and influences and guides the child's development. Both arguments brought by Vygotsky in this conference start off a revolution in the way teachers think and act in young children education.

Child education; Kindergartens; Educational activity


Este texto es una lectura de la conferencia de Vigotski sobre el tema del entorno en la pedología buscando las implicaciones pedagógicas de las ideas ahí presentes para la educación de niños y niñas, especialmente los más pequeños. Inicialmente, pone de relieve la metodología utilizada por el autor que enseña a sus oyentes y lectores a pensar dialécticamente - desafío para los lectores acostumbrados a pensar con la lógica formal que se proponen a comprender los estudios de Vigotski. Aquí, en concreto, se toman dos cuestiones planteadas por Vigotski en esa conferencia para reflexionar sobre su significado para las prácticas pedagógicas con niños de corta edad: el lenguaje oral como aspecto que condiciona la influencia del entorno sobre el desarrollo humano en la infancia y la especificidad del desarrollo cultural en la niñez que hace de la forma ideal o final de las objetivaciones humanas una guía en la formación y desarrollo desde sus etapas más elementares. En ambos casos, la discusión planteada en esta conferencia por Vigotski desata una revolución en el pensamiento y en la actuación docente.

Educación infantil; Jardines de infancia; Actividad pedagógica


Ce texte est une lecture de la conférence de Vygotsky sur la question de l'influence de la culture et de l'environnement sur la pédologie et cherche les implications pédagogiques des ces idées sur l'éducation des enfants et, en particulier, les petits enfants. Initialement, met en évidence la méthode de l'auteur que enseigne à ses auditeurs et lecteurs à penser dialectiquement, un défi que doit être confrontés par les lecteurs - habitués à penser avec la logique formelle - pour essayer de comprendre les études de Vygotsky. Deux éléments apportés par Vygotsky à la conférence sont prise pour réfléchir sur son importance pour le développement de l'enfant: la question de la langue orale et de son importance pour l'influence de la culture et de l'environnement sur le développement humain dans l'enfance et la spécificité du développement culturel dans l'enfance que dit que ce que nous pouvons parvenir à la fin ou à la suite du processus de développement est présente dans la culture depuis le début et touche et guide ce développement de l'enfant. Dans les deux cas, la discussion au sein de cette conférence de Vygotsky déclenche une révolution dans la pensée et l'action des enseignants.

Education des enfants; Ecole d'enfance; L'activité pédagogique


Dossiê Vigotski

A questão do meio na pedologia e suas implicações pedagógicas

The problem of the environment in paedology and its pedagogical implications

La question de l'environnement dans la pédologie et ses implications pédagogiques

El tema del entorno en la pedologia y sus implicaciones pedagógicas

Suely Amaral Mello

Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista - UNESP (Campus de Marília)

RESUMO

Palavras-chave: Educação infantil. Jardins de infância. Atividade pedagógica.

ABSTRACT

Keywords: Child education. Kindergartens. Educational activity.

RÉSUMÉ

Mots-clés: Education des enfants. Ecole d'enfance. L'activité pédagogique.

RESUMEN

Este texto es una lectura de la conferencia de Vigotski sobre el tema del entorno en la pedología buscando las implicaciones pedagógicas de las ideas ahí presentes para la educación de niños y niñas, especialmente los más pequeños. Inicialmente, pone de relieve la metodología utilizada por el autor que enseña a sus oyentes y lectores a pensar dialécticamente - desafío para los lectores acostumbrados a pensar con la lógica formal que se proponen a comprender los estudios de Vigotski. Aquí, en concreto, se toman dos cuestiones planteadas por Vigotski en esa conferencia para reflexionar sobre su significado para las prácticas pedagógicas con niños de corta edad: el lenguaje oral como aspecto que condiciona la influencia del entorno sobre el desarrollo humano en la infancia y la especificidad del desarrollo cultural en la niñez que hace de la forma ideal o final de las objetivaciones humanas una guía en la formación y desarrollo desde sus etapas más elementares. En ambos casos, la discusión planteada en esta conferencia por Vigotski desata una revolución en el pensamiento y en la actuación docente.

Palabras clave: Educación infantil. Jardines de infancia. Actividad pedagógica.

Considero a iniciativa de tradução deste texto de Vigotski uma grande contribuição para a divulgação do enfoque histórico-cultural entre os leitores de língua portuguesa. E isso por diferentes razões. A primeira delas refere-se ao fato de que, possivelmente por tratar-se esse de uma conferência, ou seja, de um texto oral, os conceitos são apresentados, na complexidade de suas inter-relações, de forma acessível a leitores que se iniciam na compreensão do enfoque histórico-cultural enquanto conduzem práticas docentes que formam qualidades humanas nas crianças desde a primeiríssima infância. Esse aspecto merece ser louvado por todos os profissionais que atuam com formação de professores e com a compreensão dos problemas do ensino e da aprendizagem - questões essenciais para a sociedade e a escola humanizadoras que almejamos.

No campo específico da educação escolar das crianças pequenas, percebo que a maior dificuldade dos professores e professoras - novos leitores da teoria histórico-cultural - é dominar o significado dos conceitos utilizados pelos autores e o modo como os articulam a partir da lógica de análise que utiliza. Vigotski (1995) aponta esse problema quando, ao discutir a gênese das funções psíquicas superiores, reclama da polissemia e confusão de conceitos "que se modificam de acordo com o ponto de vista básico escolhido pelo investigador sobre o objeto" (Vigotski, 1995, p. 139). O autor exemplifica esse fato com o conceito de desenvolvimento. O mesmo acontece com o conceito de atividade utilizado amplamente no discurso cotidiano e no educacional como sinônimo de tarefa ou ação.

Desse ponto de vista, o desafio primeiro posto aos educadores da infância no processo de compreender os conceitos da teoria histórico-cultural envolve a revisão de conceitos já adquiridos de outras teorias e a apropriação da lógica que fundamenta o pensamento dos autores dessa escola: a lógica dialética. Pensar o processo pedagógico em sua historicidade e movimento, pensar as múltiplas relações que o condicionam como totalidade, compreender as relações recíprocas entre os elementos que o constituem e buscar a compreensão desse processo na essência são desafios que, uma vez enfrentados, possibilitam uma compreensão dos processos de ensino e de aprendizagem que vêm transformando as práticas pedagógicas na escola da infância (Kratsov, 2009; Marino Filho, 2008; Singulani, 2009).

Ao apresentar ao leitor o processo como o meio influencia o desenvolvimento humano, Vigotski esclarece nesta conferência que:

para compreender corretamente o papel do meio no desenvolvimento da criança é sempre necessário abordá-lo não a partir de, creio ser possível formular dessa maneira, parâmetros absolutos, mas, sim, a partir de parâmetros relativos. Além disso, deve-se considerar o meio não como uma circunstância do desenvolvimento, por encerrar em si certas qualidades ou determinadas características que já propiciam, por si próprias, o desenvolvimento da criança, mas é sempre necessário abordá-lo a partir da perspectiva de qual relação existe entre a criança e o meio em dada etapa do desenvolvimento. Pode-se falar disso como se fala de uma regra geral que frequentemente se repete na pedologia - a de que é necessário migrar dos indicadores absolutos do meio para os indicadores relativos, ou seja, para esses mesmos indicadores, mas tomados no que concernem à criança. (Vigotski, 1935/2010)

Desse ponto de vista, destaca o lugar da criança como elemento ativo que condiciona essa relação. Assim, mesmo que ao longo de um processo o meio apresente poucas mudanças, sua influência sobre a criança pode significar grandes mudanças, uma vez que a criança muda no processo de desenvolvimento, tanto devido a condições biológicas quanto devido à experiência humana de que se apropria. Mais ainda, cada situação mobiliza algumas e não todas as peculiaridades da criança. Isso significa que, em cada situação, algumas peculiaridades exercem papel principal enquanto outras podem estar ausentes. Por isso, para compreender a influência do meio sobre o desenvolvimento da criança, "é importante saber quais dessas peculiaridades constitucionais desempenharam um papel determinante para definir a atitude da criança frente a dada situação"(itálicos no texto original). Por isso, segundo o autor, a análise do papel do meio no desenvolvimento da criança deve ser conduzida "do ponto de vista das vivências da criança".

A relação, então, que se estabelece entre a criança e a cultura é sintetizada por Vigotski no conceito de vivência como uma unidade de elementos do meio e de elementos da personalidade, como unidade do subjetivo e do objetivo, como a unidade sujeito/cultura. Conforme o texto:

A vivência é uma unidade na qual, por um lado, de modo indivisível, o meio, aquilo que se vivencia está representado - a vivência sempre se liga àquilo que está localizado fora da pessoa - e, por outro lado, está representado como eu vivencio isso, ou seja, todas as particularidades da personalidade e todas as particularidades do meio são apresentadas na vivência, tanto aquilo que é retirado do meio, todos os elementos que possuem relação com dada personalidade, como aquilo que é retirado da personalidade, todos os traços de seu caráter, traços constitucionais que possuem relação com dado acontecimento. Desta forma, na vivência, nós sempre lidamos com a união indivisível das particularidades da personalidade e das particularidades da situação representada na vivência. ( Vigotski, 1935/2010, itálicos do autor)

Ao destacar a importância da relação que se estabelece entre a criança e o meio para a compreensão da influência do meio na formação e desenvolvimento das funções psíquicas superiores, Vigotski traz, implicitamente, elementos para uma discussão sobre a concepção de criança e sobre o papel do mediador nesse processo. Do ponto de vista da educação institucional da pequena infância, isso tem implicações essenciais no que respeita ao lugar que criança e professor/a ocupam nas relações vividas na escola infantil.

A concepção de criança, hoje, ainda marcada pela comparação com as características do adulto e, por isso, definidora de suas impossibilidades, já era denunciada pelo autor para seu tempo. Segundo ele, "se tivéssemos que determinar de maneira geral que exigência básica se apresenta ao problema do desenvolvimento nas investigações modernas, a resposta seria que o fundamental é o estudo das peculiaridades positivas do comportamento infantil". E prossegue afirmando que essa tarefa de "captar as características reais da conduta da criança em toda a sua plenitude e riqueza de expansão e apresentar o positivo de sua personalidade" só pode ser realizada com uma nova concepção de criança compreendida a partir de uma transformação radical da concepção sobre o desenvolvimento infantil. (Vigotski, 1995, p. 141).

Ao apontar para a criança um lugar essencial na constituição da influência do meio sobre o desenvolvimento humano, Vigotski aponta para uma concepção de criança rica de possibilidades, capaz de estabelecer relações com o mundo que a rodeia e que, na escola infantil, deve contemplar experiências ricas e diversificadas com a cultura histórica e socialmente criada, diferente do que ocorre quando a criança é compreendida como pobre de possibilidades - alguém que deve ser protegido e cuidado num ambiente de simulações superficiais e facilitadas da cultura que criam um mundo à parte para a infância, um mundo pobre de vivências com a cultura elaborada.

As implicações dessa nova concepção de criança para a educação infantil são muitas e essenciais no movimento de produção de uma identidade para a escola infantil. Vale dizer que essa concepção, contemplada pelo conjunto das contribuições da teoria histórico-cultural, recupera, para a psicologia, um espaço nas discussões sobre uma pedagogia para as crianças pequenas, inicialmente descartada em função do engessamento das possibilidades das crianças na infância promovido pelas abordagens que não consideravam a história e a cultura no processo de formação e desenvolvimento humano.

Ao mesmo tempo, ao possibilitar ao leitor a compreensão do processo de apropriação como totalidade e fruto de um movimento complexo, Vigotski traz, com esse texto, elementos para solucionar a polêmica sobre o protagonismo no processo educativo: nem o meio, nem o professor ou a professora, e nem a criança considerados isoladamente, mas a unidade indivisível da relação que se estabelece entre eles e que se constitui na vivência.

Do ponto de vista das implicações pedagógicas do conceito de vivência e de seu papel mediador na relação criança-cultura - ou na relação cultura-consciência -, gostaria de destacar a unidade do cognitivo e do afetivo - o lugar da emoção e das "particularidades da personalidade" no processo da criança se relacionar com a cultura e aprender. Entendo que essa compreensão revoluciona a forma como o/a professor/a pensa e propõe o ensino e concebe a aprendizagem.

Conforme Gomes (2008):

a dicotomia afetivo-cognitivo presente na escola sustenta a ideia de que o trabalho pedagógico abarca, tão somente, o aspecto cognitivo e que, portanto, não cabe a essa instituição social "trabalhar o afetivo" que, por vezes, impõe obstáculos à aprendizagem do sujeito. (p. 10)

Essa atitude exime a educação escolar da sua responsabilidade na formação da personalidade. Assim, ainda segundo a autora, "afirmar o caráter histórico e social da formação humana e a unidade afetivo-cognitivo no desenvolvimento das funções psicológicas" contribui para o

rompimento com a ideia das disposições intrínsecas do sujeito que aprende, propondo a superação de uma perspectiva naturalizante da "dimensão afetiva" e recuperando o papel dos mediadores sociais - as relações interpessoais, o conhecimento, o entorno - como elementos transformadores dos afetos, com destaque para a educação escolar e o caráter intencional da prática docente nesse processo de desenvolvimento. (Gomes, 2008, p. 11)

Desse ponto de vista, a educação escolar torna-se elemento essencial - ainda que não suficiente - para a constituição singular do humano em suas máximas possibilidades.

A partir do conceito de vivência, como unidade da relação do sujeito com o meio, duas discussões se destacam nessa conferência com implicações pedagógicas para o trabalho educativo que se desenvolve na escola de um modo geral e na escola da infância de modo especial. A primeira diz respeito à apropriação da linguagem oral e à compreensão dos significados das palavras pelas crianças pequenas.

Segundo Vigotski, a compreensão dos significados das palavras pelas crianças influencia sua relação com o meio e a maneira como o meio influirá sobre seu desenvolvimento, uma vez que essa relação depende de como a criança compreende um fato. Conforme suas palavras,

a influência do meio no desenvolvimento da criança será avaliada juntamente com demais influências, bem como com o nível de compreensão, de tomada de consciência, da apreensão daquilo que ocorre no meio. Se as crianças irão tomar consciência disso de formas distintas, então uma mesma ocorrência possuirá para elas sentidos completamente diferentes. (Vigotski, 1935/2010, itálicos do autor)

Por isso, o interesse confesso do autor pela questão da fala:

nós temos um interesse já conhecido, que se trata de uma concepção bastante complexa, mas muito importante para compreender a influência do meio no desenvolvimento. Tal concepção está ligada ao que constitui o significado de nossa palavra. Vocês sabem, é claro, que nos comunicamos com as pessoas em torno de nós, principalmente, com a ajuda da fala. Esse é um dos recursos fundamentais, com a ajuda do qual a criança possui contato psíquico com as pessoas ao seu redor. A pesquisa da fala mostrou que o significado das palavras para as crianças não coincide com nosso significado da palavra, ou seja, o significado das palavras para crianças em diferentes faixas etárias possui uma construção diferente. (Vigotski, 1935/2010)

Ainda conforme o texto, a criança pequena " ainda não possui as generalizações mais superiores que nós nomeamos de conceito, de modo que para ela a generalização tem um caráter mais concreto, mais evidente". Na idade pré-escolar, "a criança determina com as palavras os mesmos objetos que nós, só que ela os generaliza de forma diferente da nossa, de maneira mais concreta, mais visual, mais factual" ( itálicos do autor).

Desse ponto de vista, percebemos que

a criança concebe a realidade, compreende os acontecimentos que se dão ao redor dela não inteiramente, como nós compreendemos... compreende por partes, não integralmente, compreende um aspecto do assunto, não compreende outro; entende, mas entende à sua maneira, processando, recortando de seu próprio jeito, retirando apenas parte daquilo que lhe explicaram. (Vigotski, 1935/2010 )

No que diz respeito às implicações pedagógicas, esta afirmação de Vigotski chama a atenção, em primeiro lugar, para a atitude que os adultos devem ter em relação aos atos de fala com as crianças, uma vez que elas não os compreendem como os adultos imaginam. Isso implica na necessidade de uma atitude intencional do professor ou da professora ao conduzir o trabalho educativo, observando mais atentamente as crianças e suas atitudes para perceber os níveis de compreensão dos significados das palavras utilizadas na comunicação oral entre adultos e crianças. Ao mesmo tempo, chama a atenção para a importância do uso intencional da fala para fazer avançar o desenvolvimento do pensamento infantil e o processo de generalização que condiciona a influência da cultura sobre a criança.

No que toca à relação do/a professor/a com as crianças por meio da linguagem oral, a realidade de muitas escolas de educação infantil é pobre. Pesquisas demonstram (Hevesi, 2004) que os/as professores/as das crianças pequenas falam pouco com elas, usam vocabulário simplificado e reprimem ou dão ordens na quase totalidade de seus atos de fala dirigidos às crianças e em muito poucas situações estimulam a criança a falar. Essa atitude, que possivelmente tem seu fundamento na compreensão de que o aparecimento da linguagem oral resulta de um processo natural, pouco promove o desenvolvimento da fala e empobrece a relação da criança com a cultura que a rodeia (Lisina, 1987). Vigotski denuncia, nessa conferência, o fato de crianças educadas em creches terem seu desenvolvimento da linguagem oral retardado em relação a crianças que vivem sua infância em casa - ainda que em outros aspectos, como a independência e a disciplina, as crianças educadas em creches sejam superiores às outras crianças.

Assim, pois, na análise de como o meio influencia o desenvolvimento cultural na infância, vamos percebendo, então, que este

não pode ser analisado por nós como uma condição estática e exterior com relação ao desenvolvimento, mas deve ser compreendido como variável e dinâmico. Então o meio, a situação de alguma forma influencia a criança, norteia o seu desenvolvimento. Mas a criança e seu desenvolvimento se modificam, tornam-se outros. E não apenas a criança se modifica, modifica-se também a atitude do meio para com ela, e esse mesmo meio começa a influenciar a mesma criança de uma nova maneira. Esse é um entender dinâmico e relativo do meio - é o que de mais importante se deve extrair quando se fala sobre o meio na pedologia. ( Vigotski, 1935/2010, itálicos do autor)

Por um lado, então, Vigotski esclarece a questão de como o meio influencia o desenvolvimento, mas há ainda a questão sobre "qual é o papel principal do meio no que diz respeito ao desenvolvimento da criança".

Para responder a essa questão, Vigotski aponta a especificidade das relações que acontecem entre a criança e a cultura e que consiste no fato de que

no desenvolvimento da criança, naquilo que deve resultar ao final do desenvolvimento, como resultado do desenvolvimento, e que já está dado pelo meio logo de início. (Vigotski, 1935/2010, itálicos do autor)

O exemplo da apropriação da fala pela criança ilustra essa convivência da criança em sua fase inicial de articulação dos primeiros sons com as formas mais elaboradas da fala compartilhadas pelas pessoas ao seu redor - o que não implica que a forma ideal da fala seja necessariamente a norma culta, mas a língua oral tal como objetivada pelos falantes mais experientes. "A criança fala frases monossilábicas, mas a mãe fala com a criança já com uma linguagem gramatical e sintaticamente formada, com um bom vocabulário, claro... ela já se comunica utilizando uma forma desenvolvida da fala" (Vigotski, 1935/2010 ).

Em outras palavras, o desenvolvimento na infância do ser humano ocorre em condições de interação muito especiais com a cultura, relações nas quais

a forma ideal, a forma final, esta que deverá aparecer ao final do desenvolvimento, não somente existe no meio e concerne à criança logo desde o início, mas ela realmente interage, realmente exerce influência sobre a forma primária, sobre os primeiros passos do desenvolvimento infantil. (Vigotski, 1935/2010)

O processo de evolução predominantemente biológica dos seres humanos, quando não havia forma ideal que norteasse os processos de desenvolvimento, quando o processo era de adaptação e acontecia de forma lenta e gradual, é radicalmente distinto do processo atualmente vivido. Hoje, o processo de evolução acontece na presença e sob a influência da forma mais elaborada, potencializado por esta que serve como um guia nesse processo da apropriação progressiva que a criança faz da linguagem, por exemplo, podendo ajustar sempre sua forma inicial e elementar de linguagem aos padrões mais elaborados com que convive.

A partir daí, Vigotski destaca o papel principal da cultura na formação e desenvolvimento das qualidades humanas:

o meio desempenha no desenvolvimento da criança, no que se refere ao desenvolvimento da personalidade e de suas características específicas ao homem, o papel de uma fonte de desenvolvimento, ou seja, o meio, nesse caso, desempenha o papel não de circunstância, mas de fonte de desenvolvimento. (Vigotski, 1935/2010, itálicos nossos)

Vigotski retoma aqui a lei geral do desenvolvimento humano:

as funções psicológicas superiores da criança, as propriedades superiores específicas ao homem, surgem a princípio como formas de comportamento coletivo da criança, como formas de cooperação com outras pessoas, e apenas posteriormente elas se tornam funções interiores individuais da própria criança . (Vigotski, 1935/2010, itálicos do autor )

Com isso, chama a atenção do leitor para o fato de que na ausência da forma ideal correspondente - ou seja, das formas mais desenvolvidas das objetivações humanas -, o desenvolvimento da criança não acontece nas suas máximas possibilidades. Nas palavras do autor, "se não há no meio uma forma ideal correspondente, então, na criança, não se desenvolverá a ação, a propriedade correspondente, a qualidade correspondente". É o caso daquelas creches nas quais as crianças pequenininhas são deixadas interagindo entre si por longos períodos, com longos períodos de silêncio do/a educador/a ou em situações em que os/as educadores/as falam com as crianças com frases de, em média, duas ou três palavras, ligadas a ordens sobre a espera ou proibição de uma conduta determinada (Hevesi, 2004). Como resultado disso, a linguagem das crianças se desenvolve de maneira limitada.

A compreensão da necessidade da convivência da forma ideal das objetivações humanas com as formas iniciais de objetivação da criança tem, do meu ponto de vista, um conjunto significativo e revolucionário de implicações para a escola de um modo geral e para a escola da infância em especial. Trata-se, em primeiro lugar de ampliar essa reflexão que o autor faz utilizando-se do exemplo do desenvolvimento da linguagem oral para as outras linguagens humanas. Se no desenvolvimento da linguagem oral na criança a fonte desse desenvolvimento é a convivência das formas iniciais do balbucio com as formas mais elaboradas da linguagem dos adultos, o que devemos dizer em relação ao desenho, à pintura, à musica, à dança, à escultura e à própria linguagem escrita no momento em que ela é apresentada às crianças?

Promover a apropriação e o desenvolvimento dessas linguagens é preocupação dos currículos da educação infantil. No entanto, essa reflexão de Vigotski nos leva a olhar criticamente a forma como se tem proposto e realizado o acesso a essas linguagens na escola da infância e a aprender uma nova atitude em relação às formas elaboradas dessas linguagens, o que tem implicações diretas na organização do espaço da escola da infância, nas situações vividas, na cultura a que as crianças pequenas têm acesso na escola. O espaço da escola, em geral pobre de referências culturais, pode se tornar uma galeria das formas iniciais e das formas mais elaboradas de desenho, de escultura, de pintura. Em lugar da audição de músicas produzidas para as crianças com caráter comercial e com pouco ou nenhum senso artístico, as formas mais elaboradas da produção artística podem passar a conviver com as formas iniciais de produção sonora pelas crianças; em lugar das danças e dos movimentos estereotipados criados para as crianças, também as formas mais elaboradas da dança favorecidas pelo acesso aos espetáculos, ao teatro, ao cinema e às diferentes linguagens, cada vez mais possível também pelas tecnologias de acesso à informação presentes nas escolas.

Ao destacar o meio como fonte do desenvolvimento humano também na infância e desde a infância, Vigotski implicitamente traz a questão dos conteúdos que devem estar presentes nas vivências propostas às crianças educadas em casa ou nas escolas da infância: o conteúdo das vivências deve contemplar o acesso ao conjunto da cultura humana. Em cada idade, a criança interpretará, compreenderá, atribuirá sentidos diferentes ao que vê e vive. E nesse processo se apropriará das máximas possibilidades de desenvolvimento humano.

Por tudo isso, essa conferência, do meu ponto de vista, encerra uma contribuição singular para a urgente atualização das práticas de educação infantil na maioria das escolas brasileiras que não são, ainda, escolas da infância, mas podem vir a ser, se assumirmos as bases histórico-culturais para orientar o pensar e o agir docentes.

Aceito: 27/10/2010

Suely Amaral Mello , Docente da Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista - UNESP (Campus de Marília). Endereço para correspondência: Rua Rosalino Belline, 254, 13546-050, São Carlos, SP.

Endereço eletrônico: suepedro@terra.com.br

  • Hevesi, K. (2004). Relação através da linguagem entre a educadora e as crianças do grupo. In J. Falk (Org.), Educar os três primeiros anos: a experiência de Lószy (pp. 47-53). Araraquara, SP: JM Editora.
  • Kratsov, G. (2009). As bases histórico-culturais do Programa Golden Key. Conferência de abertura da 2a International Cultural-Historical Summer School do Vygotsky Institut of Psychology Moscou. (Trabalho não publicado)
  • Leontiev, A. N. (1978). Actividad, consciência e personalidad Buenos Aires: Ciências del Hombre.
  • Lisina, M. (1987). La genesis de las formas de comunicación em los niños. In V. Davidov & M. Shuare (Orgs.), La psicologia evolutiva y pedagógica en la URSS (Antologia) Moscou: Progresso.
  • Marino Filho, A. (2008). Relações de poder e dominação no processo educativo Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, SP.
  • Singulani, R. A. D. (2009). As crianças gostam de Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, SP.
  • Vigotski, L. S. (2010). A questão do meio na pedologia (M. P. Vinha, trad.). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. (Trabalho original publicado em 1935)
  • Vygotski, L. S. (1995). Obras escogidas (Vol. 3). Madrid: Visor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    2010

Histórico

  • Aceito
    27 Out 2010
  • Recebido
    27 Set 2009
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