Acessibilidade / Reportar erro

Avaliação acadêmica, ideologia e poder

Evaluación académica, ideología y poder

Évaluation académique, idéologie et pouvoir

Evaluation, ideology and power

Resumos

O artigo discute a avaliação acadêmica no contexto caracterizado pelo produtivismo. Como introdução, analisa o episódio da lista dos improdutivos, ocorrido em 1988 na USP, procurando apontar algumas tendências do debate sobre avaliação à época. Em seguida, apresenta, em linhas gerais, ideias que constituem a ideologia produtivista e examina seus desdobramentos na construção de um sistema nacional de avaliação no Brasil. Por último, considera os efeitos desse sistema no trabalho acadêmico, tomando como referência o lugar das exigências de publicação no processo de avaliação.

Avaliação acadêmica; Produtivismo; Ideologia; Política científica


El artículo discute la evaluación académica en el contexto caracterizado por el productivismo. Como introducción, analiza el episodio de la lista de los improductivos, ocurrido en 1988 en la USP, buscando apuntar algunas tendencias del debate sobre evaluación en la época. Enseguida, en líneas generales, presenta las ideas que constituyen la ideología productivista, y examina sus consecuencias en la construcción de un sistema nacional de evaluación en el Brasil. Por último, considera los efectos de este sistema en el trabajo académico, tomando por referencia el lugar de las exigencias de publicación en el proceso de evaluación.

Evaluación académica; Productivismo; Ideología; Política científica


Cet article traite de l’évaluation académique dans le contexte caractérisé par le productivisme. Dans l’introduction, on analyse l’épisode de la liste des improductifs, qui s’est tenu à l’Université de São Paulo en 1988, en essayant de souligner quelques tendances du débat sur l’évaluation dans l’époque. Ensuite, on présente, en général, des idées qui constituent l’idéologie productiviste et on examine ses implications dans la construction d’un système national d’évaluation au Brésil. Pour finir, on considère les effets de ce système dans le travail académique, en prenant pour référence le lieu des exigences de publication dans le processus d’évaluation.

Évaluation académique; Productivisme; Idéologie; Politique scientifique


The article discusses the academic evaluation in the context characterized by high productivity. As an introduction, examines the episode of the unproductive list, which ocurred at USP in 1988, trying to point out some trends of the debate on evaluation at the time. It then presents, in general, ideas that constitute the productivist ideology and examines its implications in the construction of a national evaluation system in Brazil. Finally, consider the effects of this system in academic work, taking as reference publication requirements in the evaluation process.

Academic evaluation; Productivity; Ideology; Political science


Artigos Originais

Avaliação acadêmica, ideologia e poder1 1 Agradecimentos: Fábio de Oliveira, Ianni Regia Scarcelli, Leny Sato, Maria Cristina Kupfer, Maria Júlia Kóvacs, Paulo Albertini e Tatiana Freitas Stockler das Neves.

Evaluation, ideology and power

Évaluation académique, idéologie et pouvoir

Evaluación académica, ideología y poder

Maria Luisa Sandoval Schmidt

Universidade de São Paulo - USP

RESUMO

O artigo discute a avaliação acadêmica no contexto caracterizado pelo produtivismo. Como introdução, analisa o episódio da lista dos improdutivos, ocorrido em 1988 na USP, procurando apontar algumas tendências do debate sobre avaliação à época. Em seguida, apresenta, em linhas gerais, ideias que constituem a ideologia produtivista e examina seus desdobramentos na construção de um sistema nacional de avaliação no Brasil. Por último, considera os efeitos desse sistema no trabalho acadêmico, tomando como referência o lugar das exigências de publicação no processo de avaliação.

Palavras-chave: Avaliação acadêmica. Produtivismo. Ideologia. Política científica.

ABSTRACT

The article discusses the academic evaluation in the context characterized by high productivity. As an introduction, examines the episode of the unproductive list, which ocurred at USP in 1988, trying to point out some trends of the debate on evaluation at the time. It then presents, in general, ideas that constitute the productivist ideology and examines its implications in the construction of a national evaluation system in Brazil. Finally, consider the effects of this system in academic work, taking as reference publication requirements in the evaluation process.

Keywords: Academic evaluation. Productivity. Ideology. Political science.

RÉSUMÉ

Cet article traite de l’évaluation académique dans le contexte caractérisé par le productivisme. Dans l’introduction, on analyse l’épisode de la liste des improductifs, qui s’est tenu à l’Université de São Paulo en 1988, en essayant de souligner quelques tendances du débat sur l’évaluation dans l’époque. Ensuite, on présente, en général, des idées qui constituent l’idéologie productiviste et on examine ses implications dans la construction d’un système national d’évaluation au Brésil. Pour finir, on considère les effets de ce système dans le travail académique, en prenant pour référence le lieu des exigences de publication dans le processus d’évaluation.

Mots-clés: Évaluation académique. Productivisme. Idéologie. Politique scientifique.

RESUMEN

El artículo discute la evaluación académica en el contexto caracterizado por el productivismo. Como introducción, analiza el episodio de la lista de los improductivos, ocurrido en 1988 en la USP, buscando apuntar algunas tendencias del debate sobre evaluación en la época. Enseguida, en líneas generales, presenta las ideas que constituyen la ideología productivista, y examina sus consecuencias en la construcción de un sistema nacional de evaluación en el Brasil. Por último, considera los efectos de este sistema en el trabajo académico, tomando por referencia el lugar de las exigencias de publicación en el proceso de evaluación.

Palabras-clave: Evaluación académica. Productivismo. Ideología. Política científica.

No dia 22 de fevereiro de 1988, domingo, o jornal Folha de S.Paulo divulgou nomes de professores e pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) que não teriam escrito ou publicado no período de 1985 a 1986.

O rol desses nomes ficou conhecido como lista dos improdutivos e o episódio rendeu um debate público que teve como um de seus cenários o próprio jornal. Nele foram difundidas dezenas de artigos, diariamente, durante pelo menos um mês, trazendo análises, opiniões e desagravos dos docentes atingidos direta ou indiretamente pela publicidade de um documento que, além de ter sido elaborado em algum lugar recôndito da Reitoria sem o conhecimento da maioria da comunidade acadêmica, continha erros grosseiros.

Escreveram na Folha, na ocasião: Eunice Durham, Marilena Chaui, José Arthur Giannotti, Francisco Weffort, Walter Colli, Maria Tereza Leme Fleury, Modesto Carvalhosa, Rui Affonso, Nicolau Sevcenko, Carlos Guilherme Mota, Antonio Candido, Rogério Cezar de Cerqueira Leite, Newton Lima Neto, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Simon Schwarzman, Boris Schnaiderman, Florestan Fernandes, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Nestor Goulart Reis, Carlos Alberto Idoeta, Paul Singer, entre outros, pois essa citação não é exaustiva.

Em parte, alguns escritos vindos na esteira da malfazeja lista tinham a intenção de denunciar e reparar, na medida do possível, a violência e as injustiças cometidas contra intelectuais reconhecidamente profícuos.

É inegável, contudo, que a avaliação do trabalho acadêmico ocupou a cena principal e, nesse sentido, é interessante reler certo conjunto destes textos que anunciam, assim como a própria ocorrência da lista dos improdutivos, mudanças nas concepções e práticas universitárias de avaliação.

A lista dos improdutivos é significativa porque sintetiza e escancara dispositivos que foram se tornando, talvez, mais sutis e, aparentemente, mais sofisticados do ponto de vista da técnica de medida da produção, mas que, no fundo, reproduzem a mesma visão insensata do trabalho intelectual.

Uma breve referência a posições assumidas naqueles artigos2 2 Os textos de referência são: Avaliação institucional e execração individual, Eunice Ribeiro Durham (24/2); Perfil do professor improdutivo, Marilena Chaui (24/2); Falsa transparência, Francisco Weffort (25/2); Marajás e improdutivos, Walter Colli (26/2); A transparência recoberta pela leviandade, Maria Tereza Leme Fleury (29/2); Erramos, Rui de Brito Álvares Affonso (29/2); O efeito devastador da lista dos improdutivos, Modesto Carvalhosa, (29/2); O estranho caso do funcionário X e o professor Y, Nicolau Sevcenko (1/3); A USP, a Folha e a nova sociedade civil, Carlos Guilherme Mota (1/3); Jornal e universidade, Antonio Candido (2/3); Comoção e avaliação na USP, Rogério Cezar de Cerqueira Leite (3/3); Avaliando a avaliação, Newton Lima Neto (8/3); O imperador contra-ataca, José Arthur Giannotti (6/3); USP e ciência no Brasil, Maria Isaura Pereira de Queiroz (10/3); Depois da tempestade, Simon Schwartzman (11/3); Lacunas de um debate, Boris Schnaiderman (11/3); Essência e aparência, Florestan Fernandes (17/3); USP x Folha – para além da indignação, Paul Singer (15/3); Invectiva contra bárbaros – 2, Maria Sylvia de Carvalho Franco (16/3); O valor da nova inquisição, Nestor Goulart Reis (18/3); A intelligentsia e os outros, Carlos Alberto Idoeta (18/3). pode contribuir para o esclarecimento atual desse problema da avaliação que permanece produzindo efeitos perversos, e muitas vezes devastadores, quando se trata de apreciar o trabalho intelectual. Trata-se, a guisa de introdução, de examiná-los com a intenção de delinear, em linhas gerais, tendências, sabendo que os mesmos merecem interpretação mais alongada.

Convém lembrar que os referidos textos foram escritos numa atmosfera singular, marcada pelo impacto da publicação da lista e pelo dinamismo comum aos jornais. Essa circunstância mostra-se interessante: constrange os autores à tomada de uma posição imediata e, ao mesmo tempo, dá oportunidade à aparição do vasto campo de implicações conceituais, ideológicas, éticas e políticas que a avaliação suscita.

A maioria dos autores3 3 Dois autores manifestaram-se a favor da elaboração e divulgação de listas com indicadores individuais de produção, desde que as mesmas fossem benfeitas. manifestou-se contra a elaboração e divulgação da lista, responsabilizando a incompetência administrativa da Reitoria, a mentalidade empresarial de setores da universidade, a mediocridade da burocracia e o sensacionalismo da Folha pela geração do lamentável acontecimento.

No embate de argumentos em torno das responsabilidades, as tensões entre universidade e mídia materializaram-se: o jornal diz-se representar a sociedade civil que vem cobrar da universidade a prestação de contas de suas atividades e declara-se ético em relação aos docentes, por tê-los feito tomar conhecimento de um mecanismo interno à USP que desconheciam4 4 Há um aspecto constrangedor, nesse caso, pois a Folha não poderia esquecer ou negar que vivia, também, da contribuição intelectual constante ou eventual de um número expressivo de professores de diversas áreas da USP e, fato grave, alguns deles constavam da lista. Antonio Candido, Modesto Carvalhosa, Rui Affonso, José Arthur Giannotti e Paul Singer focalizaram em seus artigos, de forma mais detida, a questão do jornalismo e do trabalho intelectual acadêmico. ; os professores, por sua vez, precisam se defender da acusação ou da pecha de improdutivos sem resvalar no corporativismo ou na arrogância.

Por isso, talvez, a pluralidade de apreciações sobre avaliação configurada nos artigos tenha como solo comum a afirmação de sua necessidade, afirmação que a coloca, de partida, como prática que não pode ser deixada nas mãos de burocratas.

A frase de Maria Tereza Leme Fleury (1988) resume um presumível consenso: "A proposta de se criar e implantar um sistema de avaliação da universidade tem sido longamente discutida, contrapondo-se modelos das mais diversas universidades. Esta proposta não é novidade e é aceita, em tese, por todos" (p. A3).

Para além desse consenso e em sua trilha, é possível identificar algumas vertentes diferenciadas e nelas algumas ideias predominantes.

Marilena Chaui (1988), Francisco Weffort (1988) e Boris Schnaiderman (1988), por exemplo, dão ênfase à existência de práticas tradicionais de avaliação no interior da USP, contestando a impressão de que os professores não são avaliados de modo sistemático. Essas práticas incluem relatórios de atividades e de pesquisa endereçados a diferentes órgãos universitários e agências de fomento, bem como o sistema de teses e concursos para ingresso e progressão na carreira. Escrever, ministrar aulas, fazer conferências e comunicações são ocasiões, segundo Chaui (1988), em que os docentes são avaliados “pelo mais terrível dos critérios: a qualidade” (p. A3), na qual está em jogo a reputação intelectual.

Essa linha responde à provocação da lista com a defesa de uma avaliação qualitativa que se realiza no decorrer do exercício mesmo do ensino, da pesquisa e da extensão. Se lhe cabe algum aperfeiçoamento, este se projeta no plano político da democratização e transparência dos processos que qualificam e reconhecem, publicamente, a atividade acadêmica e no plano ético em que a universidade afirma e renova seus compromissos com a sociedade.

Nesse mesmo território encontra-se, quem sabe, Florestan Fernandes (1988), que convoca a democratização da avaliação sugerindo a participação, também, de alunos e funcionários, além dos pares.

Numa outra direção, admite-se a conveniência de uma combinação de critérios quantitativos e qualitativos, na qual os quantitativos serviriam de apoio aos qualitativos.

De certa maneira, essa vertente acolhe as ideias que gravitam em torno da progressão dos sistemas de avaliação no Brasil, numa espécie de acomodação ou negociação que concede privilégios à quantificação e aos “produtos” quantificáveis e continua insistindo, seguindo uma tendência mundial, na publicação em periódicos como critério principal de produtividade.

As expectativas em relação a um sistema de avaliação adequado e sério convergiam para um sistema de aferição coletivo e institucional que contemplasse ensino, pesquisa e extensão de maneira equilibrada e respeitasse a heterogeneidade das áreas do conhecimento. Os avaliadores deveriam ser docentes e pesquisadores como os avaliados, ou seja, preconizavam a avaliação pelos pares. Por último, mas não menos importante, percebia-se a necessidade de um programa eficiente de coleta e armazenamento de informação.

Vê-se, então, com mais evidência, como essas expectativas concentram os desdobramentos da instalação de um sistema de avaliação acadêmica válido para todo o Brasil: ao aceitarem a ideologia da avaliação, circunscreveram o debate de tal maneira que, ontem, como hoje, os questionamentos endereçados aos sistemas de avaliação continuam a reivindicar migalhas de atenção para a heterogeneidade das áreas e das produções ou produtos5 5 Dizer produtos ou produções para designar o que se faz e a impossibilidade de dizê-lo de outra forma no sistema ou para o sistema de avaliação é um potente indicador do espaço exíguo que há para outra linguagem que não a da quantificação. , sem grande sucesso, diga-se de passagem.

Se essa interpretação tem algum valor, é interessante rever o artigo de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1988), "Invectiva contra bárbaros – 2", que lança uma luz diversa sobre aquele momento, por assim dizer, instituinte do sistema de avaliação.

A autora entende que a “quimera da avaliação, monstro estéril e barulhento, só pode ser rejeitada de corpo inteiro”, pois se trata de um pacote indissociável de uma mentalidade que não favorece o avanço do ensino e da pesquisa, mas, ao contrário, lança uma cortina de fumaça sobre suas necessidades. Fazem parte desse pacote “incapacidade para formular políticas da cultura, estreiteza na condução dos assuntos universitários, insensatez no exercício do poder, autoritarismo, massificação, ‘produtividade’, abandono da pesquisa e sua ética” (Franco, 1988, p. A3).

Trata-se de um parecer que assinala a avaliação como ideologia, mostrando algumas de suas facetas que convém resgatar.

A ancoragem da avaliação é, obrigatoriamente, quantitativa. A quantificação, reconhece a autora, foi se constituindo em esfera refinada e complexa do conhecimento moderno e não admite, em sua prática, mediocridade ou ignorância. Porém, não se aplica às regiões em que “escrever e publicar obedeçam a senso crítico e estejam sujeitos a juízos críticos” (Franco, 1988, p. A3).

A quantificação é a lei da avaliação: suas exigências ensejam problemas técnicos de medição e controle do que se avalia e de quem avalia num espírito mais propriamente vigilante do que crítico.

Indissociável da quantificação, a avaliação seria, ainda, tributária do status quo. Nas palavras de Maria Sylvia de Carvalho Franco, seus idealizadores e defensores partem de uma “concepção estática de universidade” e

Operam com a lógica da preguiça e do resultado rápido, fechado sobre si mesmo, imediatamente rendoso, desconsiderando os rigores da invenção, custosa e muitas vezes incerta. (Franco, 1988, p. A3)

Por essa razão, o critério de mercado serve a seus propósitos, compondo de modo coerente com o modelo “publish or perish”6 6 Renato Mezan disse, certa ocasião, que atualmente esse modelo tornou-se “publish and perish”. e seus efeitos, que a autora descreve nos seguintes termos:

rapidez, superficialidade, falta de estudo, ânsia de êxito. Tantos golpes mortais na ética da investigação, sem a qual todo intercâmbio entre pesquisadores se nulifica. Pilhagem e abusos de confiança se reforçam pelo impulso ao sucesso, acabando por serem justificados pela exclusão da “propriedade do mundo das ideias. Por um contrassenso inerente aos incomponíveis aí reunidos - vantagem pessoal e comunismo do saber - os defensores desse coletivo reclamam, ciosamente, a própria assinatura, selo de individualidade, em suas contribuições. A ideologia da vangloria, fomentada pela urgência de publicar, esvazia a si própria: a reputação intelectual não se faz só com resultados, mas com os meios retos para obtê-los. (Franco, 1988, p. A3)

O modelo provoca, ainda, um “relaxamento do trabalho de pesquisa” em favor da “faina de editar”, expressos nas apropriações abreviadas e simplificadas de “noções pescadas ao sabor de conversas” que, por sua vez, se alastram, pela facilidade de sua apreensão, em teses, artigos e livros.

As práticas em gestação na esteira de tal modelo avaliativo apequenam o ensino e a pesquisa no lugar de enriquecê-los. Por isso, para a autora, a avaliação não aponta para a superação dos problemas acadêmicos, constituindo-se, igualmente, num grave entrave para sua consideração adequada.

Em sua opinião, o essencial, no caso da USP, naquela ocasião, seria proteger e potencializar as diferenças que, justamente, se viam ameaçadas pela barbárie representada pela publicação da lista dos improdutivos. Essa perspectiva traduz-se pelo restabelecimento das temporalidades e poéticas que configuram a singularidade de todo e cada conhecimento e pelo correspondente julgamento crítico que os aborda em seu caráter singular.

Em sua exposição, Maria Sylvia de Carvalho Franco analisa com aguda sensibilidade aspectos do nascente produtivismo que, com o passar dos anos, se tornará hegemônico e natural nos meios acadêmicos.

A autora tinha razão: não foi, e não é, possível aceitar a avaliação sem conviver com a ideologia que lhe dá corpo.

Aceitar a legitimidade da avaliação, imaginando poder debater as melhores maneiras de realizá-la, não deixa de indicar certa ingenuidade em relação a mecanismos orquestrados conceitual, política e ideologicamente em função da administração e do controle, não apenas da chamada produção acadêmica, mas, sobretudo, dos docentes e pesquisadores.

Em pelo menos dois momentos do texto, a autora alerta para a política de submissão atrelada à avaliação.

No primeiro, contra alguns colegas uspianos que atribuíram à publicação da lista o mérito de ter “movido as pessoas à reflexão” ela revida que a mesma: "não deu ideias a ninguém - feito impossível para aquela negação do pensamento - mas colocou a todos, inclusive os aliados, na posição conveniente para o chute que estatelou meia USP" (Franco, 1988, p. A3).

No segundo, denuncia a “atitude policial que se faz acompanhar dos chavões sobre transparência e publicidade da USP, que deve ‘prestar contas à sociedade que a sustenta’”. Para ela, a linguagem é aviltante, pois “a escravos se sustenta, a livres, paga-se” (Franco, 1988, p. A3).

A lista dos improdutivos deixa entrever de que maneira a implantação do sistema de avaliação vai requerer artefatos ideológicos e políticos que, pouco a pouco, constroem sua hegemonia. A crítica ao sistema de avaliação, por sua vez, veio identificando sua estrutura e seus efeitos ideológicos e políticos como produtivismo.

Avaliação e produtivismo

A compreensão de como se constituem os “ismos”, nesse caso o produtivismo, pede, como recomenda Bourdieu (2003), o esclarecimento de referências culturais ou do contexto em que aparecem.

Marilena Chaui (1989), em artigo publicado após os acontecimentos envolvendo a lista dos improdutivos, reconhece e analisa esse contexto como aquele da modernização universitária, feita sob a égide da produtividade acadêmica, a partir de critérios de produção e rendimento estabelecidos pela organização empresarial do trabalho.

A modernização busca, fundamentalmente, uma híper adaptação da universidade ao “ritmo, ao tempo e às exigências da sociedade industrial e da pós-industrial, isto é, ao universo da informação eletrônica” (Chaui, 1989, p. 57).

Na esfera política, contrapõe-se aos anseios de democratização da universidade, defendendo o exercício técnico do poder e incitando a apatia política da comunidade universitária, considerada leiga e incompetente para gestão administrativa. Na base dessa noção, como aponta Chaui (1989), existe uma confusão entre conhecimento técnico e discernimento político.

Conservadorismo e conformismo, competitividade e fragmentação são elementos de seu ideário.

A separação entre ensino e pesquisa e certa concepção de ciência e tecnologia estão ligadas a uma visão conservadora e conformista. Professores que se atêm ao ensino básico de um campo de estudo podem levar os alunos a um aprendizado técnico e normativo, propenso ao conformismo e adepto da autoridade. Escreve Chaui (1989) que:

se o ensino for praticado por professores que apenas conhecem os rudimentos de seu campo de estudo, conhecem apenas alguns dos problemas de sua área, conhecem o mínimo indispensável para transmitir técnicas e garantir pacotes de automatismos físicos e psíquicos nos alunos, não caberia indagar se esse tipo de professor não seria guiado pela perspectiva altamente normativa e conformista, se não alimentaria nos estudantes o gosto ou a tendência pela autoridade e se não faria isso até mesmo com os estudantes de humanidades? (p. 63)

Ciência e tecnologia, por sua vez, são indissociáveis na racionalidade capitalista e ingressam num modo de produção alçado à lei que

orienta a maneira como a universidade deverá tratar a ciência e a tecnologia, isto é, a universidade deve adaptar-se às condições empíricas da produção científica e tecnológica. E uma vez que o comando dessa maneira de fazer ciência e tecnologia encontra-se nos centros de pesquisa e nos laboratórios das forças armadas e das grandes empresas, a universidade deve adaptar-se às exigências e ao ritmo do complexo militar ou do complexo industrial. A simples ideia de que talvez a ciência e a tecnologia não devam ser assim definidas nem devam ser assim tratadas é imediatamente desqualificada como abstração idealista. A simples suposição de que a ciência teria algo a ver com a invenção, com a criação e com a instauração de um saber novo é imediatamente descartada e julgada anacronismo improdutivo. O argumento cola-se, portanto, aos dados empíricos e propõe um ajuste entre o trabalho universitário e as exigências do capital, este último nunca designado enquanto tal, mas sob etiquetas como “sociedade de massas”, “sociedade pós-industrial”, “massificação da cultura”, imperativos de eficiência e de rendimento. O argumento e a proposta dele decorrente confundem a situação empírica do trabalho científico e tecnológico e as exigências imanentes da própria ciência e da própria tecnologia. (pp. 64-65)

Reencontra-se, nas demandas à pesquisa, a mesma imposição de adaptação e adequação à ordem capitalista endereçadas ao ensino. Para atualizar os termos que a autora assinala como nomenclaturas do capital, pode-se acrescentar a globalização.

O ajustamento do ensino e da pesquisa almejam a competitividade, no âmbito nacional e internacional. E, ainda para Chaui (1989), esta se define, no capitalismo, como corrida contra o tempo, submetendo a pesquisa ao controle heterônomo e como segredo, submetendo-a ao isolamento.

Completando o quadro, em nome da racionalização administrativa, da produção e sua avaliação, ocorre a separação de áreas do conhecimento em institutos e faculdades isolados, fomentando a fragmentação, especialmente das humanidades.

O produtivismo, em linhas gerais, inscreve-se no processo de modernização da universidade como conjunto de ideias e práticas voltadas para adaptação de sua produção científica e tecnológica, numa era pós-industrial em que o conhecimento é objeto de disputa e interesse econômico tal como foram as matérias primas no período de desenvolvimento industrial. Seu cenário é informático e informacional (Lyotard, 1988).

Nesse cenário, a avaliação constitui-se como sistema simbólico articulado, cumprindo funções de dominação e controle dos campos de saber que devem ser traduzidos em linguagem de máquinas (Bourdieu, 2003; Lyotard, 1988).

Como instrumento do produtivismo, a avaliação empunha um poder de dominação da esfera científica e intelectual que se naturaliza e legitima pela adesão e submissão dos sujeitos à sua lógica e pela criação de uma ordem formal à qual a produção deve corresponder.

Dito de outra maneira, a avaliação, como parte da ideologia produtivista, apresenta-se, ela mesma, como mecanismo de dominação na forma de um poder simbólico. Abordá-la por esse viés exige a percepção do caráter insidioso do poder simbólico. Ao adverti-lo, Bourdieu (2003) afirma que

é preciso saber descobri-lo onde ele deixa se ver menos, onde ele é completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem. (p. 8)

Essa afirmação, sugestiva do ponto de vista metodológico, leva a pensar sobre para onde olhar, então, na tentativa de desentranhar o poder da avaliação de sua cômoda posição de consenso consagrado nos meios acadêmicos e fora deles.

Adaptação e poder

No percurso empreendido até aqui, é notável a convergência das opiniões de Maria Silvia de Carvalho Franco e Marilena Chaui em torno da relação entre produtivismo, avaliação e adaptação.

Pode ser interessante, portanto, tomar a adaptação como ponto por onde começar a esclarecer o poder da avaliação.

A adaptação é, antes de mais nada e num sentido mais genérico, às necessidades econômicas do desenvolvimento capitalista.

Nas áreas científicas diretamente produtoras de tecnologia, o processo de deslocamento de busca da verdade para a procura de aumento da eficiência do desempenho de sistemas e instrumentos tecnológicos é visível. Esse processo é descrito por Lyotard (1988), para quem “o desejo de enriquecimento”, mais do que o de saber, impulsiona o aperfeiçoamento das performances e produtos técnicos. O desenvolvimento industrial, desde o século XVIII, descobriu que não existe técnica sem riqueza, mas descobriu, também, que a recíproca é verdadeira, ou seja, não há riqueza sem técnica. Posse de tecnologia avançada, acumulação de capital e poder estão na base das intenções de muitos dos atuais financiadores de pesquisa. “Não se compram cientistas, técnicos e aparelhos para saber a verdade, mas para aumentar o poder”, escreve Lyotard (1988, p. 83).

Os recursos para pesquisa vindos do Estado, de empresas privadas ou sociedades mistas são distribuídos em função da equação que une otimização de desempenhos técnicos e aumento de poder; as áreas de investigação e ensino que não podem atuar nessa direção encontram dificuldade de obter crédito (Lyotard, 1988).

A avaliação acadêmica inventa, partindo de critérios autolegitimados e objetivados, a hierarquia de áreas de conhecimento, instituições, programas e linhas de pesquisa, visando a distribuição de recursos para o ensino e, principalmente, para a pesquisa.

É preciso perguntar, contudo, como a justificação e a legitimação de tal sistema de avaliação se firmam a partir da adesão de indivíduos e instituições às suas práticas e discursos. Trata-se da pergunta sobre a adaptação desde a perspectiva daqueles que praticam o ensino e a pesquisa.

O sistema de avaliação, como outros mundos administrados e organizados ideologicamente, exerce pressão sobre os sujeitos, deixando poucos espaços para o trabalho crítico e imaginativo de oposição à realidade que caracteriza o movimento próprio de abertura da consciência. Na precisa expressão de Franklin Leopoldo e Silva (2002), “a consciência torna-se obscurecida pelo existente” e esse obscurecimento está na raiz da adaptação ou do hiper-realismo.

Silva (2002) indica como o hiper-realismo ou pseudorrealismo enlaçam ideias e atitudes:

Trata-se da concepção de que a realidade é intocável e imutável: é este o sentido do hiper-realismo, a aceitação pura e simples à qual se segue naturalmente a adaptação, como se não fosse possível agir de outra maneira já que a realidade, por sua vez, também não pode se apresentar de outra forma. (p. 22)

Na avaliação acontece uma combinação de adaptação e controle, em que o controle exercido por seus dispositivos cria e afirma uma realidade do trabalho acadêmico à qual, num círculo vicioso, os docentes e pesquisadores precisam se adequar, para que suas instituições e programas de pós-graduação, assim como eles, sejam bem-avaliados.

Essa combinação apoia-se numa ideologia e numa mitologia que ensejam as crenças no poder da ciência de conhecer e explicar a realidade em si, na capacidade científica de manipular tecnicamente a realidade bem como de dominar e controlar coisas e homens (Chaui, 1994).

Trata-se de aplicar à ciência o seu próprio método, buscando, com isso, controlar e manipular sua produção. Na linguagem de seus agentes, percebe-se que induzir tendências no terreno acadêmico é prioritário.

Na manipulação e no direcionamento da atividade científica, a classificação é uma poderosa arma, porque dela depende o acesso a verbas e prestígio. Para Bourdieu (2003), “os sistemas de classificação especializados são eufemismos da luta econômica e política” (p. 14) que tendem a naturalizar a ordem que eles mesmos criam.

A legitimação de tal sistema é feita pelo poder, um poder simbólico capaz de “constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou transformar a visão do mundo” (p. 14) e capaz, ainda, de provocar a adesão dos indivíduos, não pela força, mas pelo reconhecimento decorrente do desconhecimento de seu caráter arbitrário.

Outro aspecto relevante desse sistema de classificação é a focalização dos resultados ou produtos, no lugar da atenção para com o trabalho de construção do conhecimento.

Esse aspecto rebate na maneira de conceber e estruturar as tarefas de medição e planejamento da atividade científica que a avaliação toma para si. Seu tempo é, em nome do futuro, um eterno presente. Sem consideração pelos processos históricos que engendraram uma conjuntura atual, seus idealizadores e gestores induzem tendências e condutas que, depois, esquecem terem sido fomentadas por mecanismos por eles mesmos propostos.

A ideia de progresso, atuante nos avaliadores, desqualifica o passado. As imposições de adequação ao presente - presente que é, também, em parte, projeção das idealizações e expectativas dos gerentes da produção científica - circunscrevem os avaliados à esfera de ações que devem corresponder ao presente, reforçando-o.

Referências ao passado podem ser desqualificadas como nostálgicas, mas, tampouco, se admite a crítica da ordem presente por alusão à imagem de uma outra ordem, no futuro. O pensamento utópico fica assim abolido.

Silva (2002), comentando as relações entre experiência humana e história, explicita uma faceta da adaptação que se consegue pelo esquecimento dos processos históricos. Em suas palavras, a adaptação é: aceitação absolutamente realista do presente, uma conformação à “objetividade” do presente histórico, atitude conformista que procura ignorar como o presente se formou (p. 26).

Retrocedendo à indagação feita anteriormente sobre como indivíduos e instituições aderem à avaliação, sustentando-a, vê-se que algumas interpretações se estendem a partir do conceito de adaptação.

A adaptação alimenta-se, por assim dizer, da dificuldade que os indivíduos e coletivos nos meios acadêmicos experimentam para realizar o trabalho de negação e oposição à avaliação proposta como pensamento único. Ou, parafraseando Silva (2002), para opor resistência àquilo que se apresenta como opção única de realidade. Na esteira dessa dificuldade constelam-se o esquecimento ou a ignorância dos processos históricos que a engendraram, o receio de ver desqualificadas as referências ao passado e as esperanças utópicas, o desejo de afirmar unicamente o que existe.

Adaptados, indivíduos e instituições compartilham concepções naturalizadas sobre a realidade e crenças onipotentes sobre ciência e tecnologia, expressam interesses individuais e corporativos na luta por poder econômico e político, fazem prevalecer a competição entre pares no lugar da colaboração, consideram a crítica como insensata.

Adaptação, ajustamento, adequação são metas que assinalam a avaliação como instrumento de um poder que produz e reproduz, no campo do conhecimento científico, uma ordem e sua legitimação. Essa ordem, por sua vez, é responsável por efeitos específicos na esfera acadêmica, modelando, junto às formas da investigação e sua divulgação, atitudes e condutas dos pesquisadores e estudantes.

Razão instrumental e crise de valores

Atitudes e condutas, tais como aquelas que Maria Silvia de Carvalho Franco apontava, em 1988, como incompatíveis com a ética da pesquisa, tornaram-se, até certo ponto, comuns, corriqueiras, na medida em que o sistema de avaliação foi se consolidando.

A naturalização de certas práticas que visam atender aos critérios de avaliação, desde uma perspectiva exterior e alheia ao processo de construção do conhecimento, sugere, contundentemente em algumas esferas, como as ciências humanas e sociais, uma crise de valores.

Na base dessa crise que atinge a formação dos estudantes e pesquisadores está, segundo Silva (2002), o vazio deixado pela esperança, frustrada, de conquista de emancipação e liberdade depositada no desenvolvimento científico e tecnológico, na modernidade.

O modelo desse desenvolvimento científico e tecnológico requereu, por um lado, a identificação de racionalidade e manipulação, em que à atividade da razão corresponde a passividade da natureza ou de um mundo de objetos e coisas dos quais se retirou a força ou a alma. Ou seja, o desejo de domínio introduz o desencantamento da natureza e das coisas. “O modelo objetivista triunfou na teoria da ciência como único possível não porque seja o único racional, mas porque é o único em que a razão se mostra produtiva, isto é, manipuladora: conhecer é saber fazer”, afirma Silva (1997).

Por outro, gerou o desequilíbrio entre a razão como meio de criação de instrumentos científicos e tecnológicos voltados para o aperfeiçoamento da civilização e a razão como trabalho de discernimento e estabelecimento das finalidades às quais os meios deveriam servir. Trata-se da separação entre meios e fins, entre a racionalidade instrumental e a racionalidade prática, em que a prevalência da razão instrumental expulsa a dimensão subjetiva em que se decidem os fins a serem perseguidos no plano individual e coletivo. Como explica Silva (2002):

a separação entre meios e fins, que na origem tinha o propósito de permitir a articulação das duas instâncias [teórica e prática] na unidade da razão, tornou-se isolamento e uma desconexão total e absoluta entre meios e fins, o que tende a fazer da racionalidade técnica e instrumental uma força cega, empenhada numa trajetória que acabou por fazer de si própria a única referência de percurso. (p. 20)

A crise do sentido e do valor da atividade acadêmica está, certamente, referida a esse quadro mais amplo em que a razão instrumental prevalece e em que a avaliação se instala como potente dispositivo de objetivação reificadora do saber, das instituições e dos pesquisadores. Parafraseando Silva (1997), mais uma vez, a avaliação como peça exemplar da razão instrumental promove a alienação dos pesquisadores em seus produtos, colocando-se, muitas vezes, como finalidade última e principal de suas ações: nesse caso, “a produção é o inverso da atividade livre”.

O ideário produtivista é indissociável da racionalidade técnica e ambos estão implicados na “coisificação” do trabalho acadêmico e de seus atores.

Apenas a presença autorreflexiva de sujeitos é capaz de mediar a combinação de meios e fins, fazer a crítica dos “ideais externos”7 7 Essa é uma expressão de Adorno, citada por Silva (2002). e resistir à imposição de uma visão única e naturalizada do campo do conhecimento.

Em contrapartida, a expulsão da subjetividade permite a aplicação do modelo instrumental na apreciação da ciência e da vida acadêmica, reduzindo essa apreciação à medida e a atividade acadêmica aos seus produtos.

O paradigma objetivo e matemático, que serviu e serve ao progresso das ciências e tecnologias instrumentais, é o mesmo que sustenta o modelo de avaliação.

É preciso retomar e expandir a análise das características desse modelo, algumas já citadas na discussão sobre produtivismo, agora buscando explicitar parte de seus efeitos em geral e, particularmente, nas ciências humanas e sociais, bem como suas conexões com a crise de sentido e de valores que atravessa essas regiões do saber.

A apreensão estatística, quantitativa, da ciência elegeu as publicações como unidades principais, quase únicas, de medida.

Dessa escolha decorrem questões com as quais a cientometria8 8 Cientometria é o nome da área de aplicação do método da ciência ao fenômeno da própria ciência, com vistas à ordenação e controle de sua expansão. Suas ideias e proposições metodológicas fundamentam os sistemas de avaliação acadêmica. Para uma análise de sua constituição social e histórica, ver Ortiz (2008). vem se havendo desde meados dos anos 60 do século XX e suas “soluções” e crenças ganham ancoragem nos organismos de avaliação científica e no mundo acadêmico.

O grande crescimento do número de publicações - artigos e periódicos -, em parte induzido pelos próprios mecanismos de avaliação, traz o risco de fragmentação e conflito no interior da ciência, o problema de orientação num universo em que a informação disponível se torna excessiva e, ainda, a necessidade de aferir a qualidade por meio da quantidade.

No entanto, como aponta Ortiz (2008), as críticas ao sistema de medição da ciência são interpretadas como dificuldades técnicas, o que permite manter a crença no sistema enquanto se busca consertar a técnica.

Nessa direção, a citação e o impacto somam-se à contagem de produtos, pretendendo alcançar a qualidade, por meio de um dispositivo quantitativo ou estatístico. Ao mesmo tempo, a citação como critério permite a divisão entre elite e massa de produtores científicos: os melhores são mais citados e os mais citados, automaticamente, são os melhores. E uma classificação das revistas e periódicos em função do seu uso, em que os pesquisadores mais citados publicam, reforçando o prestígio e a autoridade de ambos (Ortiz, 2008).

Ao imperativo de publicar bastante, muito, intensamente soma-se aquele de publicar em determinadas revistas científicas e alcançar visibilidade deduzida do número de citações.

Embora, como afirma Ortiz (2008), os estatísticos saibam que correlação é diferente de relação, os avaliadores insistem que “a relação entre quantidade e qualidade é revelada na correlação entre os bons cientistas e sua prolixidade”. Duas consequências desse tipo de correlação são indicadas pelo autor:

Em nenhum momento, as contribuições são consideradas nelas mesmas, a qualidade não possui individualidade, é suficiente agrupá-la através de sua manifestação numérica. A análise pressupõe ainda a unicidade da ciência, ela é um sistema no qual todas as disciplinas encontram-se niveladas. (p. 152)

A demanda por uma avaliação qualitativa, presente como tendência no debate desencadeado pela lista dos improdutivos, considerando a pluralidade de atividades, ritmos e áreas do conhecimento, não pode ser contemplada pelo sistema organizado pela cientometria porque seu caráter numérico, estatístico precisa da unicidade da ciência para chegar à classificação que serve aos propósitos de distribuição de verbas, reconhecimento e prestígio.

Esse sistema permite, por exemplo, ao parecerista de uma agência de fomento, em qualquer área de pesquisa, concluir que a produção de um colega não é adequada ou suficiente para obter o auxílio pleiteado, sem que esse parecerista tenha lido uma linha sequer das publicações do colega em julgamento: basta ver quanto e onde ele publicou e comparar com a média da área.

O nivelamento das áreas, na medida em que não corresponde à realidade das práticas de pesquisa que formam um território plural, controvertido e diverso, só pode aparecer como resultado da pressão exercida pelo sistema de avaliação e da adaptação dos pesquisadores e suas instituições a essas pressões.

A crise do sentido e do valor da atividade acadêmica, especialmente em setores das ciências humanas e sociais não alinhadas ao paradigma instrumental, mas não exclusivamente aí, ganha contornos dramáticos quando a adequação se materializa em condutas e atitudes que traem a autonomia e a liberdade que assinalam a presença de sujeitos.

Efeitos da adaptação ao sistema de avaliação têm sido denunciados, ao mesmo tempo em que se naturalizam comportamentos hiperadaptados.

Pode ser útil apontar alguns desses efeitos a guisa de conclusão dessas anotações.

A temporalidade do trabalho acadêmico sofre uma aceleração que acompanha a faina produtivista que emana das diretrizes avaliativas.

Ao elenco de condutas rasas de apropriação e divulgação de ideias que Maria Silvia de Carvalho Franco (1988) enunciou, vieram se agregar outras condutas, bem como, para alguns, a consciência de um mal-estar referido à vivência dessa temporalidade acelerada.

Kastrup (2010) faz uma descrição atual desse fenômeno, em que a própria escrita mimetiza essa compulsão à produção e alguns de seus frutos nocivos.

Mas hoje não há apenas um valor conferido à produção escrita, ou mesmo uma política de estímulo à publicação. Trata-se atualmente de um imperativo. É preciso produzir, produzir e produzir num ritmo, um determinado número de artigos por ano, em determinados periódicos considerados qualificados, ou em livros com certos atributos, atendendo a certos percentuais, escrever alguns textos em coautoria com orientando, etc, etc. Tudo deve perfazer um número determinado, que tem aumentado nos últimos anos. Por outro lado, como revisores e pareceristas de periódicos, temos recebido, cada vez mais, um grande número de artigos que parecem inacabados, com conclusões pouco amadurecidas e resultados desmembrados em mais de um texto, deixando escapar a noção de conjunto da investigação. Recebemos também muitos artigos sem relevância e sem qualquer contribuição inovadora. Publica-se por publicar, porque é preciso bater uma meta, porque é imperativo, mesmo que não se tenha nada de relevante a dizer. (p. 172)

Acúmulo de tarefas às quais é necessário se dedicar de maneira dispersa e descontínua e um sentimento de estar constantemente em débito completam o quadro. É fácil concluir que tal regime não se mostra propício ao trabalho do pensamento. Para a concepção instrumental, no entanto, a escrita não necessariamente é ocasião do pensar, mas, possivelmente, tarefa técnica, relatório de algo já pronto em algum lugar alhures.

A corrida contra o tempo que caracteriza o produtivismo, como assinalou Chaui (1989), é complementar ao isolamento, ao segredo. Essa observação, aparentemente contraditória, pois a avaliação está interessada na publicidade dos resultados de pesquisa, chama a atenção para um fato que o texto de Kastrup deixa entrever: publicar em função das metas quantitativas estabelecidas pelos avaliadores traz em si a perda do sentido da publicação como comunicação e oportunidade de debate. O isolamento não é resultado da intenção de esconder, do segredo, mas da falta de tempo e de interesse em ler o que os colegas escrevem. Assim, algumas linhas de investigação teóricas e/ou empíricas ficam saturadas do mesmo e não avançam rumo ao aprofundamento de suas temáticas e nem criam um espaço de discussão fecundo.

A observação de que pouco se lê do muito que se publica, afinada com a identificação de número de citações e qualidade, compelem os avaliadores a imaginar maneiras de “superar” esse problema.

Uma delas consiste na orientação para que disciplinas de pós-graduação, artigos e periódicos contenham, sempre, bibliografia recente, numa certa porcentagem preestabelecida e padronizada.

A citação de bibliografia recente é uma exigência que embarca no dinamismo rápido e raso do consumo: a cada 5 anos é conveniente trocar as referências por outras novas, disponíveis no mercado de publicações. A adaptação a essa exigência, no caso das ciências sociais e humanas, pode redundar no abandono de autores clássicos e na adesão a discursos que pregam a obsolescência de tudo aquilo que não foi pesquisado ou escrito nos últimos 5 anos.

A citação é sinal da visibilidade que transfere reconhecimento e autoridade ao pesquisador que precisa colocar-se apropriadamente nas revistas e bancos de dados científicos. Como mostra Ortiz (2008), “o valor, autoridade científica, fundamento do campo, é definido e articulado a uma cadeia de eventos: excelência – reconhecimento – visibilidade – citações – idioma” (p. 163).

Colocar-se adequadamente implica a manutenção da produção em certos patamares quantitativos que, apesar de algumas variações em função das áreas, vêm subindo vertiginosamente. O culto à quantidade vem associado a condutas envolvendo arranjos em torno de coautorias, alguns meramente formais entre pares, outros impostos de maneira autoritária por quem tem poder.

Implica, também, na adoção de regimes padronizados da linguagem e a prática de uma escrita esquemática e simplificada: ao desencantamento das coisas e do mundo corresponde uma escrita desencantada, reduzida à impessoalidade da linguagem que se pretende neutra política e ideologicamente. E, mais recentemente, implica, ainda, na adoção do inglês como língua universal para a comunicação científica e na necessidade de publicar em revistas estrangeiras.

Esses poucos exemplos de condutas adaptadas ao sistema de avaliação indicam como a mesma tornou-se uma finalidade em si mesma, especialmente no caso das áreas em que a fecundidade e a natureza compreensiva das investigações se mostram avessas a uma tradução quantitativa e à padronização das formas e dos meios de sua construção e comunicação.

Aceitar as regras do jogo da adaptação, mesmo em nome da sobrevivência e salvaguarda dessas áreas e suas instituições, significa render-se à anulação das diferenças e escolhas que as justificam e legitimam e expressa a predisposição ao controle heterônomo das práticas de ensino e pesquisa.

Se a adaptação - “publish or perish” - apresenta-se, nos planos político e ideológico, como via única do trabalho intelectual e científico, cabe fazer-lhe a crítica, reconhecendo e compreendendo seu caráter de prática humana engendrada social e historicamente e opondo-lhe resistência pela busca autônoma e livre do saber e seus fins.

Recebido em: 21/02/2011

Aceito em: 21/03/2011

Maria Luisa Sandoval Schmidt, Professora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Endereço para correspondência: Rua Capote Valente, 964, apto. 11. CEP: 05409-002, São Paulo, SP. Endereço eletrônico: maluschmidt@terra.com.br

  • Bourdieu, P. (2003). O poder simbólico Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
  • Chaui, M. (1988, 24 de fevereiro). Perfil do professor improdutivo. A Folha de Săo Paulo, p. A3.
  • Chaui, M. (1989). Produtividade e humanidades. Tempo Social, 1(2), 45-71.
  • Chaui, M. (1994). Convite ŕ filosofia Săo Paulo: Ática.
  • Fernandes, F. (1988, 17 de março). Essęncia e aparęncia. Folha de Săo Paulo, p. A3.
  • Fleury, M. T. L. (1988, 29 de fevereiro). A transparęncia recoberta pela leviandade. Folha de Săo Paulo, p. A3.
  • Franco, M. S. C. (1988, 16 de março). Invectiva contra bárbaros 2. Folha de Săo Paulo, p. A3.
  • Kastrup, V. (2010). Pesquisar, formar, intervir. Anais do 13 Simpósio de Pesquisa e Intercâmbio Científico em Psicologia Pesquisa em Psicologia: formaçăo, produçăo e intervençăo (pp.169-182). Fortaleza: Associaçăo Nacional de Pesquisa e Pós-Graduaçăo em Psicologia (ANPEPP).
  • Lyotard, J. F. (1988). O pós-moderno Rio de Janeiro: José Olympio.
  • Ortiz, R. (2008). Cientificidade, cientometria e insensatez. In R. Ortiz, A diversidade dos sotaques (p. 231). Săo Paulo: Brasiliense.
  • Schnaiderman, B. (1988, 11 de março). Lacunas de um debate. Folha de Săo Paulo, p. A3.
  • Silva, F. L. (1997). Conhecimento e razăo instrumental. Psicologia USP, 8(1), 11-31.
  • Silva, F. L. (2002). A perda da experięncia da formaçăo na universidade contemporânea. In M. L. C Prado & D. G. Vidal (Orgs.), Ŕ margem dos 500 anos: reflexőes irreverentes (p. 261). Săo Paulo: EDUSP.
  • Weffort, F. (1988, 25 de fevereiro). Falsa transparęncia. Folha de Săo Paulo, p. A3.
  • 1
    Agradecimentos: Fábio de Oliveira, Ianni Regia Scarcelli, Leny Sato, Maria Cristina Kupfer, Maria Júlia Kóvacs, Paulo Albertini e Tatiana Freitas Stockler das Neves.
  • 2
    Os textos de referência são: Avaliação institucional e execração individual, Eunice Ribeiro Durham (24/2); Perfil do professor improdutivo, Marilena Chaui (24/2); Falsa transparência, Francisco Weffort (25/2); Marajás e improdutivos, Walter Colli (26/2); A transparência recoberta pela leviandade, Maria Tereza Leme Fleury (29/2); Erramos, Rui de Brito Álvares Affonso (29/2); O efeito devastador da lista dos improdutivos, Modesto Carvalhosa, (29/2); O estranho caso do funcionário X e o professor Y, Nicolau Sevcenko (1/3); A USP, a
    Folha e a nova sociedade civil, Carlos Guilherme Mota (1/3); Jornal e universidade, Antonio Candido (2/3); Comoção e avaliação na USP, Rogério Cezar de Cerqueira Leite (3/3); Avaliando a avaliação, Newton Lima Neto (8/3); O imperador contra-ataca, José Arthur Giannotti (6/3); USP e ciência no Brasil, Maria Isaura Pereira de Queiroz (10/3); Depois da tempestade, Simon Schwartzman (11/3); Lacunas de um debate, Boris Schnaiderman (11/3); Essência e aparência, Florestan Fernandes (17/3); USP x
    Folha – para além da indignação, Paul Singer (15/3); Invectiva contra bárbaros – 2, Maria Sylvia de Carvalho Franco (16/3); O valor da nova inquisição, Nestor Goulart Reis (18/3); A intelligentsia e os outros, Carlos Alberto Idoeta (18/3).
  • 3
    Dois autores manifestaram-se a favor da elaboração e divulgação de listas com indicadores individuais de produção, desde que as mesmas fossem benfeitas.
  • 4
    Há um aspecto constrangedor, nesse caso, pois a
    Folha não poderia esquecer ou negar que vivia, também, da contribuição intelectual constante ou eventual de um número expressivo de professores de diversas áreas da USP e, fato grave, alguns deles constavam da lista. Antonio Candido, Modesto Carvalhosa, Rui Affonso, José Arthur Giannotti e Paul Singer focalizaram em seus artigos, de forma mais detida, a questão do jornalismo e do trabalho intelectual acadêmico.
  • 5
    Dizer produtos ou produções para designar o que se faz e a impossibilidade de dizê-lo de outra forma no sistema ou para o sistema de avaliação é um potente indicador do espaço exíguo que há para outra linguagem que não a da quantificação.
  • 6
    Renato Mezan disse, certa ocasião, que atualmente esse modelo tornou-se “publish and perish”.
  • 7
    Essa é uma expressão de Adorno, citada por Silva (2002).
  • 8
    Cientometria é o nome da área de aplicação do método da ciência ao fenômeno da própria ciência, com vistas à ordenação e controle de sua expansão. Suas ideias e proposições metodológicas fundamentam os sistemas de avaliação acadêmica. Para uma análise de sua constituição social e histórica, ver Ortiz (2008).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jun 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Recebido
      21 Fev 2011
    • Aceito
      21 Mar 2011
    Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco A, sala 202, Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, 05508-900 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revpsico@usp.br