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O direito à humanidade

The right to the humanity

Le droit à l'humanité

El derecho a la humanidad

Resenha1 1 Resenha publicada em Gazeta Mercantil, Caderno de Cultura, São Paulo, 11-14 de outubro de 2001. (Pesquisadora critica a atitude política que retira dos cidadãos o acesso à plena formação intelectual).

O direito à humanidade

The right to the humanity

Le droit à l'humanité

El derecho a la humanidad

Olgária Matos

Universidade de São Paulo - USP

Patto, M. H. S. (2000). Mutações do cativeiro: escritos de psicologia epolítica. São Paulo: Hacker.

"Mutações do Cativeiro (Escritos de Psicologia e Política)" de Maria Helena Souza Patto, é também resistência ao cativeiro. Reunindo ensaios sobre a escrita dahistória em Michelet, o ofício do artista em Cézanne, a educação e a cultura, realiza a crítica à racionalidade política contemporânea, que, nas democracias ocidentais, atua segundo o abuso do poder econômico e a humilhação dos indivíduos, operando ativamente a exclusão social, não apenas dos direitos civis e políticos, massobretudo da educação e da cultura, que, para Maria Helena, constituem a quintessência da cidadania. Seu eixo encontra-se na concepção de cultura e de educaçãoem tempos neoliberais, "pragmáticos", performáticos e globalizantes.

No ensaio "Mutações do cativeiro (Caminhos da semiformação)", a autora revela o modo de produção que transforma o cidadão em necessitado, a consciênciapública em filantropia e a conseqüente tradução do indivíduo marginalizado àcondição de "incompetente social". Ao tratar de uma pesquisa em educação realizada na Universidade de Yale sobre técnicas de aprendizagem e "inteligência emocional", para fins de "sucesso escolar", Maria Helena escreve:

O livro silencia sobre a qualidade do ensino, os preconceitos e estereótiposque grassam no ambiente escolar, as humilhações freqüentes a que são submetidas as crianças pobres em sala de aula... e o confronto de interesses das classes no interior das escolas – numa palavra, omite a dimensão política dainstituição escolar. (p. 168).

O discurso da ciência constrói e legitima a marginalização que supostamente deveria combater: a ciência é "preconceito compartilhado" quando dissimula o sentido que deveria revelar e a "racionalidade" que a habita. Ideológica, mostra Maria Helena, é a racionalidade compreendida como mensuração e calculabilidade, bem como "autodomínio" de emoções desestabilizadoras de comportamentos desejáveis pela instituição, a fim de ajustar "emocionalmente" o estudante aos fins do mercado:

Além da volta ao organicismo dos anos sessenta e setenta (quando a disfunção cerebral mínima explicou todos os desvios da norma), à deficiência intelectuale cognitiva acrescenta-se agora uma nova explicação para as dificuldades deescolarização de crianças pobres em escolas públicas – a deficiência de inteligência emocional inscrita em rotas neurais inatas que não foram corrigidas. Uma volta, com sofisticação técnico-científica, ao acento naturalista presentena psicologia desde seu nascimento, inclusive no Brasil. Tudo indica que, em matéria de avaliação psicológica, diagnósticos neuropsíquicos dos excluídos substituirão em breve a psicanálise vulgar e o cognitivismo raso dos laudosatuais. (p. 16).

Neste sentido, o racionalismo moderno comporta a tese dogmática segundo a qual só é racional o que for classificável e só o que é calculável e pensável. Motivo pelo qual ratio vem a significar adequação de pensamentos e atos a "fatos" e situações.

Para uma crítica da razão psicométrica" mostra as questões científicas, técnicas, econômicas e de poder ocultadas pelas noções de objetividade e neutralidade axiológica, "inocentes" com respeito a seus "objetos de reflexão": "Noções neutralizadas e matematizadas de diferenças individuais e grupais de capacidade psíquica foram elaboradas a partir de condições sócio-históricas determinadas que é preciso desvendar. Foi desta perspectiva que se pôde fazer a crítica da cruzada psicométrica do começo do século XX e da "teoria" dacarência cultural.... Isto posto, três afirmações intimamente relacionadas, quese fazem presentes nos debates sobre testes, precisam ser revistas: a primeira qualifica a crítica ético-política como fácil, superficial e inútil, pois, para realizá-la, supõe-se que bastaria apresentar-se como "marxista" e em seguida taxar tudo de ideológico; a segunda separa ciência e ética a partir do pressuposto de que "Ciência é uma coisa, Ética, outra"; a terceira classifica a crítica ético-política como crítica externa ao conhecimento, em contraposição à análiselógico-formal da correção do pensamento..., esta sim tida como verdadeira crítica interna. (pp. 76-78).

A preocupação de Maria Helena com estas técnicas de ensino diz respeito à educação e à democracia, quando a quantificação é tomada como índice de escolarização. Educação "barata" supõe a substituição da educação formadora das potencialidades de cada um, o desenvolvimento de suas habilidades pelo "analfabetismo secundário" – instrução "curta", feita por professores "curtos" (com baixo custo de formação) em cursos "curtos" (supostamente profissionalizantes).

O presente trabalho se constrói como engajamento ético, poisprioriza a educação formadora nos termos da tradição humanista do Ocidente, dos valores herdados da Grécia, de Roma, de Jerusalém – phylia, cidadania civil e amor ao próximo –, o que se condensa na prioridade à leitura atenta e concentrada e à produção artística. Não por acaso, fazem parte desta coletânea o diálogo entre Cézanne e Zola e um texto dedicado ao "historiador-poeta" Michelet. Ambos atestam um fazer que requisita tempo e método, método compreendido, antes de mais nada, como "afeição" aos "objetos de reflexão". Anteriores à compartimentação cientificista das competências contemporâneas e contemporâneos da interlocução dos saberes são o pintor e o historiador. Quanto ao historiador, Maria Helena observa:

(Michelet) certamente foi mais que um historiador: referências à sensibilidadede poeta, ao efeito sinfônico da composição verbal, à noção precisa da relação entre forma e conteúdo da escritura, à acuidade da visão dramática, à apreensão shakespeareana dos fatos, à tristeza dostoievskiana de seus escritos são freqüentes entre críticos e intérpretes. Mais do que cientista, Michelet foi um cientista-artista que não aderiu à assepsia exigida pela ciência e transpôs a fronteira que a separava da arte numa época em que esta divisão foi-se tornando mais radical nas ciências do homem. (p. 12)

Também a importância do tempo – a necessidade de dedicação e assiduidade –, encontra-se em Cézanne. "dada não só a complexidade do quadro da natureza, mas também à sua diversidade" (p. 52).

No que tange à educação e à cultura, Maria Helena esclarece a diferença entre o "espírito enciclopedista" – que acumula conhecimentos sementre eles tecer relações de significação – e "espírito culto" – aquele para quem a cultura se tornou uma maneira de ser e de viver. Não por acaso a autora se volta para as reflexões de Adorno acerca da educação como barreira contra os totalitarismos. Trata-se, no ensaio que dá nome ao livro, da educação que, à distância da indústria cultural – que veicula e produz estereótipos – e da educação performática ou semiformação – não oculta a sua identidade: ela é humanista, forma o indivíduo no reconhecimentodos bens culturais, pois, como escreveu Adorno, "os deserdados da cultura são os verdadeiros herdeiros da cultura". A educação liga-se à experiência emocional e intelectual que exige distância da aceleração do tempo nas sociedades globais e globalizadoras que fazem coincidir consumo e felicidade.

Trabalho e trabalho espiritual não se dissociam, assim como o "olhardo artista" não é só percepção mas também reflexão – a mesma que se encontra na literatura e na narrativa histórica de Michelet. O tempo dareflexão não segue a velocidade das revoluções técnicas e científicas ligadas à indústria e à microeletrônica. Que se pense – e também aqui é grande o mérito dos escritos deste livro – na educação como experiênciade pensamento, isto é, de autoconhecimento. Que se lembre, para enfatizar esta "resistência ao cativeiro", das palavras de Proust. Em "À Sombradas Raparigas em Flor", o narrador descreve como se foi constituindo para ele, progressivamente, a "Sonata de Venteuil", cujos compassos acompanham toda a "Recherche":

Esse tempo de que necessita um indivíduo para ingressar em uma obra profunda é como o resumo e símbolo dos anos e por vezes séculos que devem transcorrer até que o público possa apreciá-la verdadeiramente.... Foram os próprios quartetos de Beethoven que levaram 50 anos para dar vida e número ao público de suas composições, realizando o que seria impossível encontrar quando a obra-prima apareceu, isto é, criaturas capazes de amá-la.

O presente trabalho nos convida a reconhecer nas obras de pensamento partes de uma vida inteira constituída de paradoxos, enganose liberdade. É preciso gerações para recebê-las e interpretá-las, para decifrar a serenidade de Sócrates no momento de sua morte, os êxtases de Plotino, as noites atormentadas das "Meditações Metafísicas" de Descartes.

Realizando uma "crítica à razão excludente", encontramos nas linhase entrelinhas deste trabalho a presença de Adorno, filósofo da educação e crítico da cultura. Para ele e para a autora, à distância de fundamentalismos econômicos, religiosos e ódios étnicos, pensar a educação formadora humanista constitui uma barreira contra a violência e é prática anti-dogmática de hospitalidade e amizade.

Olgária Matos, Professora Titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Endereço para correspondência: Rua Loefgreen, 1667, Vila Clementino, São Paulo, SP, Brasil. CEP: 04040-030. Endereço eletrônico: olgaria@uol.com.br

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    Resenha publicada em
    Gazeta Mercantil, Caderno de Cultura, São Paulo, 11-14 de outubro de 2001. (Pesquisadora critica a atitude política que retira dos cidadãos o acesso à plena formação intelectual).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Set 2011
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