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A relação transferencial do analista com as teorias

The relationship of transference between the analyst and theories

Le relation transférentielle de l’analyste avec les théories

La relación transferencial del analista con las teorías

Resumos

Este artigo explora a relação transferencial que o analista estabelece com as teorias, examinando seus aspectos narcísicos, não narcísicos e edipianos conforme propostos por Caper em “Uma mente própria” (1999). Os aspectos narcísicos da transferência referem-se à possibilidade de o analista projetar seus objetos internos sobre a teoria; os aspectos não narcísicos referem-se a sua capacidade de perceber a teoria como objeto independente de suas projeções; os aspectos edipianos referem-se à possibilidade de o analista projetar seus objetos internos na teoria e percebê-la como algo distinto de si, sustentando esse paradoxo. Perceber a teoria como distinta de si implica reconhecer que ela estabelece relações com outros objetos, das quais o analista está excluído; esse reconhecimento, por sua vez, permite ao analista estabelecer relações com novos objetos, das quais a teoria está excluída. A necessária distância emocional entre analista e teoria é dada, portanto, pela viva ligação do analista com seus pacientes.

Clínica psicanalítica; Teoria psicanalítica; Transferência; Robert Caper


This paper explores the relationship of transference between the analyst and theories, examining its narcissistic, non-narcissistic and oedipal aspects, as proposed by Caper (1999). The narcissistic aspects of transference refer to the analyst’s ability to project his internal objects on the theory; the non-narcissistic aspects refer to his ability to perceive the theory as an object that is independent from his projections; the oedipal aspects refer to the analyst’s ability to project his internal objects on the theory and to perceive it as something apart from oneself, maintaining the paradox. To view the theory as separate from oneself is to accept that it establishes relationships with other objects, from which the analyst is excluded; this acceptance, by its turn, allows the analyst to establish relationships with new objects, from which the theory is excluded. The necessary emotional distance between analyst and theory is thus given by the analyst’s living connection to his patients.

Psychoanalytic clinic; Psychoanalytic theory; Transference; Robert Caper


Cet article explore la relation transférentielle de l’analyste avec les théories, par l’examen de ses aspects narcissiques, non-narcissisques et oedipiens, tel que proposés par Caper (1999). Les aspects narcissiques du transfert se réfèrent à la capacité de l’analyste de projeter ses objets internes sur la théorie; les aspects non-narcissiques se réfèrent à sa capacité de percevoir la théorie comme un objet indépendant de ses projections; les aspects oedipiens se réfèrent à la capacité de l’analyste de projeter ses objets internes sur la théorie et de la percevoir comme quelque chose distinct de lui-même, en maintenant le paradoxe. La concepcion de la théorie comme séparée de soi-même implique de reconnaître qu’elle établit des relations avec d’autres objets, dont l’analyste est exclu; cette reconnaissance, à son tour, permet à l’analyste d’établir des relations avec de nouveaux objets, dont la théorie est exclue. La distance émotionnelle nécessaire entre l’analyste et la théorie est donc donnée par la vigoureuse connexion de l’analyste avec ses patients.

Clinique psychanalytique; Théorie psychanalytique; Transfert; Robert Caper


Este artículo explora la relación transferencial del analista con las teorías, examinando sus aspectos narcísicos, no-narcísicos y edipianos, conforme propuestos por Caper (1999). Los aspectos narcísicos de la transferencia se refieren a la capacidad del analista de proyectar sus objetos internos en la teoría; los aspectos no-narcísicos se refieren a su capacidad de percibir la teoría como un objeto independiente de sus proyecciones; los aspectos edipianos se refieren a la capacidad del analista de proyectar sus objectos internos en la teoría y a la vez percibirla como distinta del yo, manteniendo la paradoja. Percibir la teoría como distinta del yo es aceptar que esta establece relaciones con otros objectos, de los cuales el analista está excluido; tal aceptación, por su vez, le permite al analista establecer relaciones con nuevos objectos, de los cuales la teoría está excluida. La necesaria distancia emocional entre analista y teoría es así propiciada por la viva conexión del analista a sus pacientes

Clínica psicoanalítica; Teoría psicoanalítica; Transferencia; Robert Caper


A relação transferencial do analista com as teorias1 1 Artigo baseado no quarto capítulo da dissertação de mestrado A teoria como objeto interno do analista e seus destinos na clínica: luto e melancolia como metáfora, defendida em 2007 no IPUSP sob orientação do Prof. Dr. Luís Claudio Figueiredo, a quem agradeço. A pesquisa contou com o apoio financeiro da CAPES, à qual também devo meu agradecimento.

The relationship of transference between the analyst and theories

Le relation transférentielle de l’analyste avec les théories

La relación transferencial del analista con las teorías

Camila Lousana Pavanelli de Lorenzi

Universidade de São Paulo, São Paulo-SP, Brasil

RESUMO

Este artigo explora a relação transferencial que o analista estabelece com as teorias, examinando seus aspectos narcísicos, não narcísicos e edipianos conforme propostos por Caper em “Uma mente própria” (1999). Os aspectos narcísicos da transferência referem-se à possibilidade de o analista projetar seus objetos internos sobre a teoria; os aspectos não narcísicos referem-se a sua capacidade de perceber a teoria como objeto independente de suas projeções; os aspectos edipianos referem-se à possibilidade de o analista projetar seus objetos internos na teoria e percebê-la como algo distinto de si, sustentando esse paradoxo. Perceber a teoria como distinta de si implica reconhecer que ela estabelece relações com outros objetos, das quais o analista está excluído; esse reconhecimento, por sua vez, permite ao analista estabelecer relações com novos objetos, das quais a teoria está excluída. A necessária distância emocional entre analista e teoria é dada, portanto, pela viva ligação do analista com seus pacientes.

Palavras-chave: Clínica psicanalítica. Teoria psicanalítica. Transferência. Robert Caper.

ABSTRACT

This paper explores the relationship of transference between the analyst and theories, examining its narcissistic, non-narcissistic and oedipal aspects, as proposed by Caper (1999). The narcissistic aspects of transference refer to the analyst’s ability to project his internal objects on the theory; the non-narcissistic aspects refer to his ability to perceive the theory as an object that is independent from his projections; the oedipal aspects refer to the analyst’s ability to project his internal objects on the theory and to perceive it as something apart from oneself, maintaining the paradox. To view the theory as separate from oneself is to accept that it establishes relationships with other objects, from which the analyst is excluded; this acceptance, by its turn, allows the analyst to establish relationships with new objects, from which the theory is excluded. The necessary emotional distance between analyst and theory is thus given by the analyst’s living connection to his patients.

Keywords: Psychoanalytic clinic. Psychoanalytic theory. Transference. Robert Caper.

RÉSUMÉ

Cet article explore la relation transférentielle de l’analyste avec les théories, par l’examen de ses aspects narcissiques, non-narcissisques et oedipiens, tel que proposés par Caper (1999). Les aspects narcissiques du transfert se réfèrent à la capacité de l’analyste de projeter ses objets internes sur la théorie; les aspects non-narcissiques se réfèrent à sa capacité de percevoir la théorie comme un objet indépendant de ses projections; les aspects oedipiens se réfèrent à la capacité de l’analyste de projeter ses objets internes sur la théorie et de la percevoir comme quelque chose distinct de lui-même, en maintenant le paradoxe. La concepcion de la théorie comme séparée de soi-même implique de reconnaître qu’elle établit des relations avec d’autres objets, dont l’analyste est exclu; cette reconnaissance, à son tour, permet à l’analyste d’établir des relations avec de nouveaux objets, dont la théorie est exclue. La distance émotionnelle nécessaire entre l’analyste et la théorie est donc donnée par la vigoureuse connexion de l’analyste avec ses patients.

Mots-clés: Clinique psychanalytique. Théorie psychanalytique. Transfert. Robert Caper.

RESUMEN

Este artículo explora la relación transferencial del analista con las teorías, examinando sus aspectos narcísicos, no-narcísicos y edipianos, conforme propuestos por Caper (1999). Los aspectos narcísicos de la transferencia se refieren a la capacidad del analista de proyectar sus objetos internos en la teoría; los aspectos no-narcísicos se refieren a su capacidad de percibir la teoría como un objeto independiente de sus proyecciones; los aspectos edipianos se refieren a la capacidad del analista de proyectar sus objectos internos en la teoría y a la vez percibirla como distinta del yo, manteniendo la paradoja. Percibir la teoría como distinta del yo es aceptar que esta establece relaciones con otros objectos, de los cuales el analista está excluido; tal aceptación, por su vez, le permite al analista establecer relaciones con nuevos objectos, de los cuales la teoría está excluida. La necesaria distancia emocional entre analista y teoría es así propiciada por la viva conexión del analista a sus pacientes.

Palabras-clave: Clínica psicoanalítica. Teoría psicoanalítica. Transferencia. Robert Caper.

Este artigo visa investigar a relação entre teoria e prática na clínica psicanalítica do ponto de vista da relação transferencial que o analista estabelece com as teorias.2 2 Apesar de este ser um trabalho no âmbito da psicanálise e pautado por conceitos psicanalíticos, psicoterapeutas de outras vertentes teóricas poderão encontrar aqui considerações pertinentes a sua prática, visto que a relação transferencial com a teoria não é, naturalmente, um fenômeno que se restringe aos psicanalistas.. Para tanto, recorreremos ao texto “Uma mente própria”, de Robert Caper (1999), que investiga a relação transferencial em seus aspectos narcísicos, não narcísicos e edipianos. Caper refere-se à transferência do paciente com o analista e ao modo como o analista responde a essa transferência; o presente artigo, por sua vez, está interessado na transferência do analista com as teorias. Portanto, a leitura que propomos do texto de Caper precisará operar constantes ajustes e deslocamentos, derivados antes de tudo do fato de que estamos pensando as teorias como objetos culturais, que não respondem ao analista contratransferencialmente.

Investigaremos os aspectos narcísicos e não narcísicos da transferência, conforme definidos por Caper (1999), para refletir sobre o modo como os analistas se apropriam das teorias que informam sua prática. Quanto aos aspectos edipianos, acreditamos que Caper dá esse nome a uma relação transferencial na qual os aspectos narcísicos e não narcísicos da transferência encontram-se em um nível ótimo de tensão. Não se trata de chegar a uma síntese, mas, sim, de manter uma relação dialética sempre instável e dinâmica entre esses dois polos – isto é, entre aspectos narcísicos e não narcísicos –, sustentando o paradoxo de ser e ao mesmo tempo não ser idêntico ao outro (ou, no caso da presente investigação, ser e não ser idêntico à teoria).

Passemos portanto à investigação de cada um desses polos – que se definem, em grande medida, por sua relação com o polo oposto – para, a partir daí, examinarmos como os aspectos narcísicos e não narcísicos do analista se fazem presentes em suas relações transferenciais com as teorias.

Abordaremos primeiramente os aspectos narcísicos da transferência:

Na transferência, o paciente projeta no analista (em fantasia) alguns de seus objetos internos, que são, como sabemos, partes dele mesmo. Ele passa então a ver e sentir inconscientemente o analista – um objeto externo – como a parte de si mesmo que projetou. . . . Essas projeções transformam o analista . . . em um objeto externo da fantasia, um objeto que é visto e sentido como uma versão externa de um objeto interno. (Caper, 1999, pp. 112-113)3 3 Todas as traduções deste artigo são de minha autoria.

A projeção dos próprios objetos internos na teoria estudada – ou, de forma mais ampla, a projeção de aspectos do self, entendido aqui, seguindo Cintra e Figueiredo (2004, p. 119), como um “ego-id” indiferenciado – é precisamente o que caracteriza uma relação transferencial narcísica com a teoria. O analista acaba encontrando, na teoria, esse objeto externo, nada mais que uma reprodução de seu mundo interno. É este, aliás, “o problema de toda relação narcisista . . . : o objeto não pode ser levado em consideração, ele é um mero suporte para que eu tenha um endereço para onde enviar minhas projeções” (Cintra & Figueiredo, 2004, p. 115).

Para Caper, o paciente transforma o analista em objeto externo da fantasia por duas vias distintas (ambas inconscientes). Em primeiro lugar, o paciente “só ouve o que quer”: atribui grande importância aos comportamentos do analista que se coadunam a sua fantasia, ignorando todos os outros que se contrapõem a ela. A isso Caper (1999) denomina “atenção seletiva” (p. 113). Em segundo lugar, o paciente lança mão de identificações projetivas, induzindo no analista estados mentais específicos que o fazem corresponder, na realidade, àquilo que o paciente espera dele na fantasia.

Na relação com as teorias, o analista certamente pode fazer uso de atenção seletiva, centrando-se principalmente nos aspectos da teoria que correspondem a suas próprias expectativas. É impossível, contudo, recorrer a identificações projetivas na relação com textos teóricos, pois este é um mecanismo de defesa que envolve a participação de pelo menos duas subjetividades – naturalmente, o analista pode fazer projeções no texto, mas o texto não responde a essas projeções identificando-se com elas. Ainda assim, acreditamos que algumas teorias, por sua própria natureza, são mais permeáveis às projeções do analista do que outras. Essa permeabilidade pode ser igualmente bem caracterizada como o “grau de abertura” da teoria ao leitor: algumas teorias mostram-se mais convidativas que outras, conclamando o leitor à coconstrução da teoria a partir de sua própria experiência. Acreditamos que teorias desse tipo são mais propensas a servir de base para uma relação transferencial narcísica com o analista, pois implicitamente (e às vezes até explicitamente, como Winnicott e Ogden costumam fazer) convidam o leitor a projetar sua própria experiência na teoria. Por outro lado, há teorias que – seja pela linguagem utilizada, seja pelos problemas teóricos que abordam – admitem a participação do leitor em grau muito menor (como é o caso, por exemplo, de teorias desenvolvidas por Lacan e Bion).

Para que isso não fique muito vago, exemplifiquemos o que estamos chamando de “permeabilidade da teoria às projeções do analista” com teorias de Ogden e Bion – que, no tocante a essa permeabilidade, assumem posições opostas. Ogden, por exemplo, é pródigo em deixar espaços no texto a serem ocupados pelo leitor. Ele mesmo reclama a participação ativa deste na leitura de alguns de seus textos (Ogden, 2001), conclamando o leitor a atentar para a escuta de um poema e pedindo-lhe que projete sua própria experiência sobre o texto teórico. Mas mesmo nos textos em que Ogden não demanda explicitamente do leitor uma participação tão ativa, ele considera o papel do leitor no processo de leitura e escrita, deixando-o sempre em posição confortável – por exemplo, quando retoma didaticamente conceitos introduzidos por Freud em outro texto, facilitando assim o trabalho do leitor. Dessa forma, Ogden cria um texto propício ao estabelecimento de uma relação transferencial de tonalidade afetiva próxima e amigável, que quase nunca passa pelo estranhamento.

Coisa bem diferente acontece na escolha de Bion dos termos “alfa” e “beta” para caracterizar processos e fenômenos psíquicos que nos são desconhecidos: tais termos ressaltam justamente a dimensão estranha e desconhecida desses fenômenos e processos (Ogden, 2005). Com eles, Bion conclama o analista justamente a não projetar na teoria suas próprias pré-concepções do que sejam “função alfa” ou “elementos beta”. Trata-se, portanto, de estilos opostos, que fomentam relações transferenciais diferentes.

Já um autor cujo estilo parece-nos bastante propício ao estabelecimento de relações transferenciais pautadas tanto por aspectos narcísicos quanto não narcísicos é o próprio Freud. A escrita de Freud, coloquial sem deixar de ser erudita, convida o leitor a uma aproximação na medida justa. Nossa ideia de que o estilo de Freud é permeável tanto a aspectos narcísicos quanto não narcísicos do leitor encontra ressonância em Mahony (1992), quando este afirma que Freud, por um lado, sempre escrevia tendo um ouvinte ou leitor em vista; ao mesmo tempo, porém, Freud claramente escrevia primordialmente para si mesmo, a tal ponto que “o leitor por vezes sente-se no papel de intruso” (p. 81). O leitor de Freud recebe deste, por vezes, “um convite cortês e acolhedor ao texto” (Mahony, 1992, p. 80); outras, sente-se invadindo um texto que foi escrito visando exclusivamente à satisfação interior de Freud. Assim, os textos freudianos mantêm um precário e feliz equilíbrio entre abertura e fechamento ao leitor, convidando à aproximação, mas também, eventualmente, ao distanciamento. Essa aproximação do leitor, na qual também há espaço para o distanciamento (ou, em termos metapsicológicos, a possibilidade de projetar aspectos do self sobre a teoria ao mesmo tempo que a percebe como um objeto externo ao Eu), também é facilitada por suas formulações teóricas metapsicológicas, que “[resistem] a qualquer tentativa de assimilação precipitada ao campo das experiências” (Figueiredo, 2004, p. 126).

Nunca é demais lembrar, porém, que a teoria sempre precisará encontrar um analista disposto a aceitar (ou recusar) os convites que lhe são feitos. O fato de uma teoria ser mais ou menos aberta à participação do analista (isto é, mais ou menos permeável às suas projeções) de forma alguma determina a relação transferencial que o analista estabelecerá com ela.

Voltemos então aos aspectos narcísicos da transferência. Eis como Caper caracteriza a tonalidade emocional característica de uma relação transferencial predominantemente narcísica (lembrando sempre que o autor está se referindo à transferência do paciente com o analista):

há um sentimento de identificação mútua, de uma relação entre duas pessoas que conhecem, entendem e amam uma à outra. . . . O paciente pode sentir que o analista foi capaz de articular o que ele sempre soube e quis dizer para si mesmo, mas até então não fora capaz de encontrar as palavras para tal. (Caper, 1999, p. 115)

Esse “sentimento de identificação mútua” – particularmente a sensação de encontrar no outro aquilo que no fundo sempre se soube sobre si mesmo – permeia também a relação transferencial narcísica do analista com as teorias. A teoria parece dizer ao analista aquilo que ele mesmo já sabia, mas ainda não tinha sido capaz de formular. Nesse estado emocional – nessa dimensão da relação transferencial com as teorias em que os aspectos narcísicos do analista se fazem presentes –, a questão da autoria das ideias torna-se irrespondível. A teoria apenas sistematizou ideias que já eram do analista, ou efetivamente lhe trouxe contribuições novas? Uma questão como essa não faz sentido quando eu e outro – analista e teoria – encontram-se profundamente indiferenciados. Mas “o que está faltando nesse estado emocional é tão digno de nota quanto o que está presente: não há ansiedade, culpa, depressão” (Caper, 1999, p. 115). Se a identificação narcísica com a teoria é muito profunda – isto é, se não há nenhuma possibilidade de distanciamento dela –, a teoria se ajusta perfeitamente às ideias do analista, e ambas (que, nesse plano, são uma só e a mesma coisa) se ajustam perfeitamente à realidade clínica. Aqui, analista, teoria e clínica (con)fundem-se de maneira absolutamente harmoniosa e desprovida de conflitos. Naturalmente, isso só é possível porque se estão negando as diferenças – as separações – existentes entre esses três polos.

Até aqui, porém, viemos falando de uma relação em que a teoria ocupa na transferência a posição de objeto (narcísico) bom do analista. Mas, conforme nos alerta Caper (1999, p. 116), há situações transferenciais em que o analista ocupa o lugar de objeto mau do paciente; há que se considerar também, portanto, situações em que a teoria ocupa transferencialmente o lugar de objeto mau. Não é incomum, por exemplo, a suposição de que teorias psicológicas ou psicanalíticas impedem o contato com a alteridade da situação clínica (cf. Pavanelli, 2007). Nesse caso, a posição de objeto narcísico bom é ocupada por outro pressuposto teórico: a necessidade da abertura para a experiência.

Curiosamente, o caso clínico apresentado por Caper no texto “Uma mente própria” trata de uma paciente que, dentre outros sintomas, estabelecera uma relação estritamente narcísica com a teoria de determinado autor (a paciente era historiadora). A relação transferencial da paciente com essa teoria ilustra particularmente bem como ela pode ser impeditiva do pensamento. A paciente negava ativamente tudo aquilo que, nas ideias do autor, pudesse ser conflituoso com suas próprias ideias. Contudo,.

Não é que ela sabia o que pensava, e achou que as ideias do autor estavam em concordância com as suas por ter tido um delírio de que o autor concordava com ela. A paciente simplesmente era incapaz de pensar com clareza sobre esse assunto – era incapaz de ter uma ideia clara do que qualquer um dos dois pensava. (Caper, 1999, pp. 121-122, itálicos no original).

Ou seja, a paciente não passou a negar ativamente os aspectos discordantes da teoria depois de perceber uma discordância originária entre suas ideias e as do autor (e, portanto, diferenciação e separação entre ambas). A indiferenciação entre seu próprio pensamento e a teoria é primária, a ponto de impedir a paciente de pensar claramente sobre o assunto em questão. “Por detrás do clima superficialmente acolhedor da união narcísica” (Caper, 1999, pp. 123-124), entrevê-se a paralisação do pensamento: o sujeito torna-se presa da união narcísica entre suas ideias e a teoria, da mesma forma que a teoria se torna presa dessa união (pois não pode ser vista como um objeto distinto do Eu, passível de ser submetido a críticas).

Passemos agora ao aspecto não narcísico da transferência: para Caper (1999), o aspecto não narcísico do paciente é aquele para o qual o analista é um objeto distinto do Eu – isto é, o aspecto não narcísico é o que permite ao paciente formar com o analista uma relação que não seja de total harmonia e (con)fusão.

Analogamente, portanto, existe um aspecto não narcísico na personalidade do analista capaz de estabelecer uma relação transferencial com a teoria que não é de indiferenciação e fusão harmoniosa. Esse aspecto de sua personalidade trata a teoria como um objeto externo ao Eu – que pode, portanto, ser perdido, e a partir daí introjetado. Se a teoria pode ser percebida como um objeto distinto do Eu, o analista está em posição privilegiada para estudá-la objetivamente e submetê-la a críticas:

A tonalidade emocional desse tipo de relação, diferentemente daquela associada à identificação narcísica, é complexa e contém elementos dolorosos, mas o aspecto não narcísico do paciente aceita-a porque, dentre outras coisas, se o paciente não está confundido com o analista em um sistema de identificação, ele pode ter uma identidade e uma mente próprias. (Caper, 1999, p. 117)

A dor advinda da dimensão não narcísica de uma relação transferencial refere-se justamente à separação que ali vigora entre sujeito e objeto (analista e teoria). Se teoria e analista não são uma só e a mesma coisa – isto é, se a teoria não diz apenas e exatamente o que o analista já sabia –, isso significa que a teoria diz também coisas que o analista não entende, não consegue ou não quer ouvir. Entrar em contato com tudo aquilo da teoria que é diferente de mim implica entrar em contato, portanto, com as próprias limitações, pois a teoria em algum momento apontará para o que me é desconhecido e incompreensível – para coisas, enfim, que fogem ao controle onipotente do analista. Ao mesmo tempo, perceber que a teoria é distinta de mim também implica a percepção de que ela é distinta da realidade clínica – jamais esgotará, portanto, o que os pacientes têm a comunicar.

Mas, ao entrar em contato com a barreira existente entre si próprio e as teorias (e, consequentemente, com suas próprias – do analista e da teoria – limitações e falibilidade), o analista adquire uma mente e uma identidade próprias. Isso significa que o analista consegue manter-se vivo para a experiência (tanto a experiência com o paciente quanto com as teorias) –, isto é, está mais capacitado a vivenciar “os prazeres e dores, alturas e profundezas” (Goethe, 1808/1824, citado por Ogden, 2004) da experiência humana.

Ter uma mente própria como analista significa ter uma mente que não está aprisionada numa identificação narcísica com a teoria, sendo portanto livre para operar deslocamentos – isto é, estabelecer relações transferenciais com outras teorias. Pois um dos problemas da identificação narcísica com a teoria é justamente o represamento de todo o investimento libidinal do analista naquela teoria específica. A energia psíquica do analista fica depositada na teoria com a qual ele está identificado melancolicamente, não podendo ser deslocada para novos objetos. E, quando o analista está identificado (narcísica e melancolicamente) a uma determinada teoria, os objetos da clínica tenderão a ser focalizados sempre de uma mesma maneira, pasteurizando assim aquilo que poderia ser a multiplicidade da clínica.

Aos poucos viemos nos aproximando, portanto, dos assim chamados aspectos edipianos da transferência. Vale lembrar que a tese principal do texto de Caper é justamente o reconhecimento da interdependência entre os processos de elaboração da posição depressiva (o reconhecimento da separação entre sujeito e objeto) e a travessia do Édipo (a participação numa relação triádica onde está presente a inclusão na exclusão). Assim, ao falarmos dos aspectos não narcísicos da transferência do analista com as teorias – que supõem a separação daquele em relação a estas – acabamos por esbarrar justamente na emergência de um terceiro. Isso porque a constatação de que a teoria não se reduz às minhas projeções (isto é, o reconhecimento de sua alteridade) passa necessariamente pelo reconhecimento de que ela estabelece relações com outros objetos (outras ideias, autores, etc.) às quais o Eu não tem acesso. A constatação de que a teoria é ligada a outros objetos, por sua vez, “libera” o analista para estabelecer relações com novos objetos (novas teorias, aspectos inomináveis e incompreensíveis dos pacientes) das quais aquela teoria estará excluída.

É justamente do estabelecimento de uma terceiridade que a seguinte citação trata:

o analista está ligado ao paciente através de sua sensibilidade às projeções deste, mas, ao mesmo tempo, possui uma ligação com seus próprios objetos internos, da qual o paciente está excluído. Aquilo que denominamos distância emocional ou barreira entre analista e paciente é um modo de falar dessas ligações [ do analista] com seus objetos internos. (Caper, 1999, pp. 117-118)

Aqui, Caper mudou o foco de sua investigação: ele não mais está se referindo ao paciente que estabelece uma relação transferencial com o analista, e sim ao analista que deve manejar a transferência do paciente. Cabe ao analista colocar-se em um “estado mental que [lhe permita] estar receptivo às projeções do paciente e ao mesmo tempo distanciar-se delas” (Caper, 1999, p. 117). Tal estado será compreendido, no que diz respeito à relação do analista com as teorias, como o estado que permite ao analista projetar seus objetos internos na teoria ao mesmo tempo que lhe permite olhar para ela como algo diferente de si, isto é, como algo que em muito ultrapassa suas projeções. O analista liga-se à teoria pelos aspectos de sua própria experiência que ele pode projetar nela; mas, ao mesmo tempo, o analista está ligado contratransferencialmente a seus pacientes, numa relação da qual a teoria está excluída. A distância emocional entre analista e teoria é dada pela ligação do analista com seus pacientes.

Ou seja, uma relação transferencial com a teoria dotada de aspectos narcísicos do analista (suas projeções na teoria) e não narcísicos (percepção da teoria como algo independente dessas projeções) é uma relação transferencial na qual está pressuposto o Complexo de Édipo. Chegamos, assim, à ideia de que a clínica opera como o terceiro ao qual o analista deve estar sempre voltado em sua relação com as teorias. Caper (1999, p. 119) retoma a concepção de Bion segundo a qual a mãe só pode cuidar do bebê porque ama o pai – isto é, porque estabelece relações fecundas com outros objetos, internos e externos, distintos do bebê. Tais relações são fundamentais para que a mãe possa estar receptiva às projeções do bebê sem fundir-se a ele numa identificação narcísica, pois suas ligações com seus objetos internos e externos (seu “amor pelo pai”) barram tal fusão.

Analogamente, o analista só pode cuidar do paciente porque “ama” as teorias: “o objeto interno que ajuda o analista a sustentar sua barreira interna contra as projeções do paciente é a própria psicanálise enquanto um tipo específico de investigação empírica” (Caper, 1999, p. 118). Com a proposta de que o analista deve “amar as teorias”, estamos nos afastando ligeiramente de Caper – pois que ele trata aqui da psicanálise em sua dimensão metodológica – e nos aproximando de Figueiredo (2000), que pensa ser justamente essa uma das principais funções da teoria na clínica: a constituição de um espaço de reserva no analista, interditor de uma implicação excessiva no atendimento.

Faz-se necessário retomar brevemente a dialética da implicação e reserva de Figueiredo (2000) para que se compreenda melhor nossa proposta, deslocando a formulação de Bion anteriormente citada (“a mãe só pode cuidar do bebê porque ama o pai”) para a relação do analista com as teorias.

Figueiredo (2000) descreve a postura ética do analista como envolvendo a manutenção de uma dialética sem síntese entre duas posições, implicada e reservada, na relação com o paciente. Criar e manter um espaço de reserva é o contraponto necessário à implicação excessiva em que o analista se vê envolvido na relação transferencial com o paciente. As reservas, portanto, são fundamentais – “elas se alimentam da implicação, criam as condições para ela e a ela se contrapõem” (Figueiredo, 2000, p. 37), fundando o espaço da cura.

O que estamos propondo aqui é que a dialética da implicação e reserva que Figueiredo (2000) propõe para a clínica psicanalítica pode ser igualmente bem aproveitada para pensarmos a relação do analista com as teorias. Também com as teorias (sejam as que se está estudando ou as que se está produzindo) é desejável que se estabeleça uma relação de implicação permanentemente sustentada por uma reserva psíquica em relação a elas. Nos termos da teoria psicanalítica, isso significa uma relação transferencial com a teoria na qual aspectos narcísicos possam dar lugar a aspectos não narcísicos, e vice-versa.

Avançando um pouco mais, pensamos que essa reserva do analista em relação às teorias que professa e estuda pode ser proporcionada justamente por seu contato com os pacientes. Assim como uma “teoria na clínica psicanalítica [deve] nutrir e proteger as ‘reservas de mente’ necessárias à sustentação da posição do analista” (Figueiredo, 2000, p. 35, itálicos no original), acreditamos que é apenas o contato com a realidade clínica que poderá instituir uma reserva de mente necessária à sustentação da “posição de leitor e formulador da teoria” do analista (isto é, sua posição enquanto teórico da psicanálise).

De fato, nada melhor do que o contato vivo com a realidade da clínica para desimplicar-se de uma teoria e não levá-la tão a sério em suas promessas explicativas e organizadoras. Ou seja: estamos propondo que o analista só poderá relacionar-se de forma satisfatória com as teorias se estiver, nas palavras de Ogden (2005), “firmemente assentado sobre a realidade de sua experiência vivida com pacientes” (p. 43).

Recebido em: 25/11/2012

Aceito em: 17/6/2013

Camila Lousana Pavanelli de Lorenzi, mestra em Psicologia Experimental pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Mestra em Letras-Português por Tulane University (EUA) e doutoranda em Psicologia Social pelo IPUSP. Endereço eletrônico: camilalpav@gmail.com

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  • Ogden, T. (2001). The music of what happens in poetry and psychoanalysis. In T. Ogden, Conversations at the frontier of dreaming (pp. 77-114). Northvale & Londres, UK: Jason Aronson.
  • Ogden, T. (2004). On the art of psychoanalysis. In T. Ogden, Reverie and interpretation (pp. 1-20). Lanham: Jason Aronson.
  • Ogden, T. (2005). This art of psychoanalysis: Dreaming undreamt dreams and interrupted cries Londres, UK: Routledge.
  • Pavanelli, C. L. (2007). A teoria como objeto interno do analista e seus destinos na clínica: luto e melancolia como metáfora (Dissertação de Mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • 1
    Artigo baseado no quarto capítulo da dissertação de mestrado A teoria como objeto interno do analista e seus destinos na clínica: luto e melancolia como metáfora, defendida em 2007 no IPUSP sob orientação do Prof. Dr. Luís Claudio Figueiredo, a quem agradeço. A pesquisa contou com o apoio financeiro da CAPES, à qual também devo meu agradecimento.
  • 2
    Apesar de este ser um trabalho no âmbito da psicanálise e pautado por conceitos psicanalíticos, psicoterapeutas de outras vertentes teóricas poderão encontrar aqui considerações pertinentes a sua prática, visto que a relação transferencial com a teoria não é, naturalmente, um fenômeno que se restringe aos psicanalistas..
  • 3
    Todas as traduções deste artigo são de minha autoria.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 2013

    Histórico

    • Recebido
      25 Nov 2012
    • Aceito
      17 Jun 2013
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