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O cine-pensamento de Deleuze: contribuições a uma concepção estético-política da subjetividade

The cinethought of Deleuze: contributions to an aesthetic-political conception of subjectivity

El cine-pensamiento de Deleuze: las contribuciones a un diseño estético-político de la subjetividad

La cine penseé de Deleuze: les contributions a une conception estetique-politique de la subjetivité

Resumos

O presente artigo propõe a leitura dos livros Cinema I: Imagem-Movimento e Cinema II: Imagem-Tempo, de Gilles Deleuze, como uma proposta do filósofo para que encontremos no cinema da imagem-tempo uma imagem não dogmática do pensamento anunciada na obra Diferença e Repetição, encaminhando, assim, novas concepções ao pensamento de uma subjetividade implicada estética e politicamente. Para tal, o autor parte das concepções bergsonianas de imagem, tempo e memória para complexificar as noções de percepção, imagem, movimento e tempo, chegando, por fim, à vidência de um tempo puro e virtual, tornando o falsário o personagem conceitual tanto do cinema como do pensamento.

cinema; pensamento; tempo; subjetividade; vidência


This article proposes a reading of the books Cinema I: Movement-Image and Cinema II: Time-Image, written by Gilles Deleuze, like a philosopher's proposal to meet the time-image cinema as the non-dogmatic image of thought announced in his work Difference and Repetition, thus forwarding new ideas to the thought of an implied subjectivity aesthetic and politically. To this end, the author takes the image, time and memory's bergsonian notions to complex the concepts of perception, image, movement and time. Finally, a visionary vision of a pure and virtual time is developed. In this way, the forger become like the cinema and thought's conceptual character.

cinema; thought; time; subjectivity; visionary vision


En este trabajo se propone la lectura de los libros Cine I: Imagen-Movimiento y Cine II: Imagen-Tiempo, de Gilles Deleuze, como una propuesta del filósofo para encontrar en el cine de la imagen-tiempo una imagen no dogmática del pensamiento anunciado en la obra Diferencia y Repetición. Así procesiones nuevos conceptos al pensamiento de una subjetividad implícita estética y políticamente. Para eso, el autor parte de los conceptos bergsonianos de imagen, tiempo y memoria a complejizar las nociones de percepción, imagen, movimiento y tiempo, viniendo finalmente a la clarividencia de un tiempo puro y virtual, haciendo que el falsificador se convierta en el carácter conceptual tanto del cine como del pensamiento.

Cine; pensamiento; tiempo; subjetividad; clarividencia


Le présent article propose l'analyse des oeuvres de Gilles Deleuze L'Image-mouvement: Cinéma I, et L'Image-temps: Cinéma II. Le philosophe dans son ouvrage L'Image-temps remarque l'image non dogmatique de la pensée révélée dans le livre Différence et Répétition, transmettant ainsi de nouvelles notions à l'idée de subjectivité esthétique et politiquemente impliquée. Dans ce sens, l'auteur part de concepts bergsoniens de l'image, de le temps et de la mémoire pour complexifier les notions de perception, d'image, de mouvement et de temps, et ainsi aboutir à une clairvoyance d'un temps pur et virtuel,en rendent le faussaire un personnage conceptuel de la pensée et du cinéma.

Cinéma; pensée; temps; subjectivité; clairvoyance


Introdução

Cinema I - Imagem-Movimento e Cinema II - Imagem-Tempo não são livros sobre cinema escritos por um filósofo cinéfilo. Muito além de interpretar o cinema por meio de sua teoria, Deleuze parece encontrar no cinema uma imagem do pensamento ao afirmar que esses livros são de Filosofia. Nós, seus leitores, reencontramos nesses livros um cinema perdido na verborragia imagética contemporânea, que guia nossa percepção para o que devemos ver, ouvir e compreender, dando-nos a sensação de que somos cada vez mais capturados pelo império dos clichês. Mas, além disso, esses livros nos levam a encontrar também uma proposta política da teoria deleuzeana numa repotencialização de uma vida cotidiana que passa a ser vista e ouvida pelas lentes do cinema moderno, que cria e ao mesmo tempo revela ao homem, por meio de puras imagens óticas e sonoras, a possibilidade de um pensamen to complexo, descentrado e, por isso, politicamente mais potente.

Assim, o encontro com os filmes de que nos fala Deleuze nos obriga a forçar a velocidade atarefada da contemporaneidade e a explosão de ações e cores dos blockbusters que lotam os cinemas de hoje e dominam a linguagem televisiva: é preciso parar para ouvir um cinema mudo, sentir a intensidade impressa num jogo de luz e sombra composto entre o preto e o branco, conectar-se com uma lentidão quase sonífera, conhecer o cinema de autor. Toda uma atmosfera precisa ser cavada para dar lugar ao cinema e seu tempo intensivo. É justamente nesta atmosfera, composta de outro tempo e outra luz, que seguimos esta instigante leitura.

É a descrição de uma imagem-tempo que constrói uma imagem do pensamento em sua complexidade e violência, enquanto a imagem-movimento nos remeteria a uma imagem ortodoxa do pensamento, objeto da crítica do terceiro capítulo da obra de Deleuze, Diferença e Repetição, intitulado "A Imagem do Pensamento". Para darmos mais elementos ao que queremos apresentar aqui, voltamos a este capítulo.

Por uma imagem não ortodoxa do pensamento

No referido capítulo de Diferença e Repetição, (Deleuze 2006aDeleuze, G. (2006a). Diferença e repetição. (L. B. L. Orlandi & R. Machado, trads.). São Paulo, SP: Graal.) enumera oito postulados do que nomeia como imagem dogmática do pensamento, ou seja, daquilo que foi convencionado como o que significa pensar. Resumidamente, esta imagem do pensamento se sustenta sobre pressupostos dados como naturais, sejam eles subjetivos ou objetivos; toma o pensamento como a boa vontade de um suposto sujeito pensante que habitaria os ideais universalizantes do senso comum e do bom senso1 1 Para Deleuze (2006a, pp. 316-319) o bom senso é uma verdade parcial (a razão) que se une ao sentimento do absoluto para caracterizar-se como essencialmente distribuidor e repartidor. Desta forma, é capaz de conjurar as diferenças numa regra de partilha universal que uniformiza o diverso e igualiza o desigual. O bom senso quer prever mais do que agir, moldando o sentido do tempo como uma flecha que vai de um passado representável a um futuro provável, do particular ao geral. É aí que se gesta o senso comum definido "subjetivamente pela suposta identidade de um Eu como unidade e fundamento de todas as faculdades e, objetivamente, pela identidade de um objeto qualquer ao qual se julga que todas as faculdades se reportem" num intermitente processo de recognição. Assim, o bom senso e o senso comum se refletem entre si constituindo as duas metades da ortodoxia: regra de partilha universal e regra universalmente partilhada, o que assegura as ilusões de uma verdade universal e eterna. ; se organiza pelo modelo da lógica recognitiva, em que todas as faculdades concordariam no reconhecimento de um mesmo objeto; opera mediante elementos representacionais, identidade, semelhança, oposição e analogia, que acabam remetendo a diferença ao erro, a um contrário ou a categorias distributivas dependentes de uma unidade centralizadora e racionalizante, seja ela Deus, a consciência humana, o progresso ou a revolução. Enfim, essa imagem nos daria a ilusão de que todo mundo pensa e todo mundo sabe o que significa pensar, acabando por estruturar a história da Filosofia como história da moral, "uma terrível forma de julgar em nome de deus" (Deleuze, 1997Deleuze, G. (1997). Crítica e clínica (P. Pál Pelbart, trad.). São Paulo, SP: Editora 34.) que asseguraria a tarefa da Filosofia como a busca de uma verdade universal e eterna.

Mas, o pensamento, para (Deleuze 2006aDeleuze, G. (2006a). Diferença e repetição. (L. B. L. Orlandi & R. Machado, trads.). São Paulo, SP: Graal.), teria um funcionamento mais complexo e pouco passível à universa lização. Tomar o caminho contrário a esta tendência homogeneizante seria a proposta política de sua filosofia. A estes postulados, o filósofo opõe uma luta rigorosa contra uma imagem sedentária do pensamento que seria operada por uma não filosofia ou uma pop-filosofia, pois, no sentido nietzschiano, um pensamento nômade, acentrado e não totalizante escaparia à história clássica da Filosofia (Deleuze, 2006bDeleuze, G. (2006b). A ilha deserta. São Paulo, SP: Iluminuras.). O pensamento então, não pensaria de boa vontade, mas forçado por paradoxos, fantasmas, absurdos, besteira, maldade, sonho, loucura, fabulação etc. A boa vontade, apenas reproduziria a universalidade do bom senso e do senso comum, os ideais da moral. Além disso, as faculdades não operariam pela concordância sobre um mesmo objeto, relegando a diferença à mera atribuição de diferentes qualidades. As faculdades operariam, sim, por um jogo discordante desencadeado por encontros com signos que forçariam o pensamento ao desdobramento das múltiplas expressões de cada encontro (Deleuze, 2006aDeleuze, G. (2006a). Diferença e repetição. (L. B. L. Orlandi & R. Machado, trads.). São Paulo, SP: Graal.).

Diferença e Repetição foi publicada em 1968 e pode ser considerada a obra fundamental da trajetória filosófica de Deleuze, pois fornece uma amostra de seu árduo trabalho em distinguir o pensamento filosófico do pensamento ortodoxo (Farina, Fonseca, 2010Farina, J. T., & Fonseca, T. M. G. (2010). Fantasmas do futuro: a clínica do virtual. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 10(2), 1-16.), mas é um trabalho calcado sobre o exercício conceitual que caracteriza o plano filosófico do pensamento e apesar de anunciar escapes de uma imagem do pensamento preestabelecida nos deixa a enunciação enigmática de que teríamos necessidade de criar um pensamento sem imagem. Já os livros Cinema I e II são publicados em 1983 e parecem encontrar no cinema da imagem-tempo um território privilegiado para expressão legítima de uma imagem do pensamento descolada das categorias representacionais, problema este que parece ser tanto o problema do cinema2 2 "A expressão do pensamento é o problema fundamental do cinema" (Deleuze, 2009, p. 209). , quanto o da filosofia deleuzeana.

Em Diferença e Repetição, Deleuze inaugura sua filosofia, caracterizando-se como um pensador da diferença, do sentido, do desejo e da multiplicidade, no qual encontramos um pensamento pluralista, ontológico, ético e trágico (no sentido eminentemente nietzscheano), numa obra de crítica ao domínio da representação e ao primado da identidade. Nos livros sobre cinema, Deleuze debruça-se sobre a questão da imagem (e não mais do conceito) para desenvolver um plano filosófico que o cinema teria a potência de criar em relação direta com a produção de uma nova subjetividade.

Imagem-Cinema

Localizamo-nos agora nos livros Cinema I e II, neles Deleuze recorre especialmente a Bergson, filósofo contemporâneo do advento do cinema. Apesar de ter sempre sido citado por Deleuze como um de seus principais intercessores, nos livros sobre cinema, Bergson tem papel privilegiado, devido à sua atenção sobre os problemas da imagem, do tempo e da memória, que, segundo ele, teriam sido mal colocados pela Psicologia da época.

(Bergson 1990Bergson, H. (1990). Matéria e memória. São Paulo, SP: Martins Fontes.) opera sua crítica à Psicologia a partir da seguinte constatação: o que nossa percepção consegue representar enquanto imagem é o que da matéria interessa ao nosso corpo. A percepção humana da matéria, produtora de nossos conhecimentos científicos e metafísicos, seria apenas uma parte limitada (como seria limitado o enquadramento que pensa a câmera como substituta do olho humano) desse todo da matéria inacessível à nossa percepção. O erro da Psicologia estaria em concluir que a percepção humana da matéria seria maior e mais complexa do que a própria matéria percebida, tornando-a uma perspectiva privilegiada, notável, asseguradora de um antropocentrismo maligno sem, no entanto, ter respondido o mistério que envolve a produção das representações mentais uma vez que apreendemos o mundo por meio de imagens. Em outras palavras, teria tomado um limitado sistema sensório-motor para retificar as convicções ingênuas que sustentam o senso comum e nos iludem mediante a ideia de que compartilhamos um mesmo mundo passível de ser conhecido pelo saber humano e também modificado e dominado por nossa suposta capacidade de ação sobre ele.

A realidade da matéria consiste na totalidade de seus elementos e de suas ações de todo tipo. Nossa representação da matéria é a medida de nossa ação possível sobre os corpos; ela resulta da eliminação daquilo que não interessa nossas necessidades e, de maneira mais geral, nossas funções. Num certo sentido, poderíamos dizer que a percepção de um ponto material inconsciente qualquer, em sua instantaneidade, é infinitamente mais vasta e mais completa que a nossa, já que esse ponto recolhe e transmite as ações de todos os pontos do mundo material, enquanto nossa consciência só atinge algumas partes por alguns lados. (Bergson, 1990Bergson, H. (1990). Matéria e memória. São Paulo, SP: Martins Fontes., p. 26)

É neste rastro que, segundo (Deleuze 1983Deleuze, G. (1983). Cinema I: A imagem-movimento. São Paulo, SP: Brasiliense.), surge o cinema. Este começa tomado de uma tentativa de reprodução da percepção humana em seu esquema sensório-motor: câmera imóvel, mundo em movimento, plano sequência... o cinematógrafo funcionaria num sistema de similitude com a percepção humana e seu pretenso ponto de vista privilegiado e centralizante, mostrando a todos como todos veem, enaltecendo nossa capacidade de análise inteligível do mundo. Mas as primeiras imagens cinematográficas de que se tem notícia já parecem anunciar a própria fuga deste ponto de vista imóvel e centralizado quando duplicam esta percepção e convocam que se pense uma imagem em movimento desta imagem pensada estaticamente. Em vez de representar a percepção humana, acaba por revelar um mundo acentrado, composto de matérias múltiplas, em que tudo reage a tudo e do qual o corpo do homem e o que ele consegue perceber é apenas uma parte também movente. O cinema não seria, então, o aparelho aperfeiçoado de segurança da mais velha ilusão, mas o órgão de uma nova realidade a ser aperfeiçoado. No lugar de reencontrar o corte imóvel da imagem-percepção, o cinema reencontra a variação universal que a percepção subjetiva unicentrada eliminaria, pertencendo assim, a uma concepção moderna do movimento, que desloca a arte das poses e os instantes privilegiados fazendo ver instantes quaisquer por onde tudo se move. É assim "...o plano das imagens-movimento, um corte móvel de um Todo que muda, isto é, de uma duração, de um devir universal" (Deleuze, 1983Deleuze, G. (1983). Cinema I: A imagem-movimento. São Paulo, SP: Brasiliense., p. 92).

Assim, mesmo ligado primeiramente à primazia do sensório-motor, o cinema se revela ao mesmo tempo a arte do século e a arte da realidade e já anuncia "um desejo de recomeçar a história do mundo a partir da história do cinema". E talvez seja exatamente por isso que o pensamento deleuzeano converge com o cinema, na tentativa de recomeçar a história da Filosofia a partir de um pensamento mais cinematográfico de que metafísico (Bellour, 2005Bellour, R. (2005). Pensar, contar: o cinema de Gilles Deleuze. In F. P. Ramos (Org.), Teoria contemporânea do cinema: pós-estruturalismo e filosofia analítica. São Paulo, SP: Ed. Senac.), operando uma análise muito mais sensível do que inteligível (Deleuze, 1983Deleuze, G. (1983). Cinema I: A imagem-movimento. São Paulo, SP: Brasiliense.).

Mas, mesmo carregando todas essas potencialidades o cinema cai em armadilhas que o tributam como um território apto a assegurar as ilusões do antropocentrismo, pois alguns sistemas de corte e montagem responderiam novamente a centros racionais e de causa-efeito: início-meio-fim, contexto-conflito-resolução, plano de conjunto-plano médio-primeiro plano, um herói-protagonista de um enredo que dele depende entre outros. Estas caracte rísticas levam Deleuze a classificar este modelo cinematográfico como imagem-movimento, representado pelo cinema de ação, desde o expressionismo até os blockbusters contemporâneos, todo o cinema que se encontra preso ao modelo narrativo do folhetim, mesmo que Deleuze não retire dos filmes que analisa, sua grandiosidade enquanto obra de arte. Dentro da perspectiva deleuzeana, o cinema da imagem-movimento se prestaria às mesmas exigências da representação que são apresentadas em Diferença e Repetição, e sua política reuniria o homem a outro mundo idealizado ou ao mundo transformado por suas próprias ações. O herói, o agente, é colocado no centro de um todo abarcado pela imagem fílmica sendo capaz de agir e reagir à situação que o aflige.

O cinema se mantém, assim, conectado a um sistema de ação-reação, em que a narrativa consiste no desenvolvimento dos esquemas sensório-motores segundo os quais os personagens reagem às situações em que se encontram ou atuam de forma que tal situação fique visível ao espectador que seria levado, por sua vez, a uma identificação projetiva com este personagem. Assim, a narração parece aspirar à verdade, remeter-se a uma forma do verdadeiro. É um esquema que implica metas, obstáculos, meios, rodeios que ali estão para serem alvo da reação do personagem que sofre a ação de tal situação. Isso nos coloca diante de um sistema composto por uma imagem-percepção (movimento de corpos como substantivos) e uma imagem-ação (movimento como verbo) centralizada num personagem, o que também sustentaria a relação sujeito conhecedor e objeto cognoscível da ciência tradi cional, mantendo a posição do homem como agente de transformação e o progresso do mundo a partir de um ponto de vista privilegiado, extraordinário, notável.

Mas entre essas duas imagens se coloca um problema: a imagem-afecção (capaz de dotar o movimento predicativamente, produzindo adjetivos, atributos qualitativos). Uma vez que o corpo é tomado como objeto destinado a mover objetos, não teria a capacidade de fazer nascer em si uma representação mental. Portanto, é preciso levar em conta uma dimensão afetiva que nos faria escolher uma percepção entre tantas outras possíveis que poderíamos arrancar do mundo, ou seja, não poderia haver percepção sem afecção. Além disso, a afecção também produziria um intervalo entre a percepção e a ação, fazendo que a primeira demore, dure, se misture com a memória, produzindo pensamento (Bergson,1990Bergson, H. (1990). Matéria e memória. São Paulo, SP: Martins Fontes.).

É por meio da imagem-afecção que (Deleuze 2009Deleuze, G. (2009). Cinema II: A imagem-tempo. São Paulo, SP: Brasiliense.) começa a nos encaminhar para um além da imagem-mo vimento. (Bergson 1990Bergson, H. (1990). Matéria e memória. São Paulo, SP: Martins Fontes.) já considerava a afecção uma impureza da percepção, um além do sensório-motor. E essa imagem-afecção é apresentada por (Deleuze 1983Deleuze, G. (1983). Cinema I: A imagem-movimento. São Paulo, SP: Brasiliense.) no movimento que toma o close como plano principal. Pois, quando o primeiro plano se engrandece, chegamos ao rosto, por onde podemos fazer uma leitura afetiva do filme. O rosto se torna uma unidade refletora imóvel em que todos os órgãos de recepção (e não de ação) se encontram em foco. É como se o cinema anunciasse aí, a duração3 3 No sentido bergsoniano, a duração não é tomada a partir da permanência de algo através do tempo medido cronologicamente. A duração é justamente aquilo que é capaz de seguir um movimento de devir, de variação, através de um tempo intensivo, não cronológico, desconectado do movimento que submete o tempo a uma contagem que percorre o espaço. Neste tempo só o sistema sensório motor pode agir, enquanto a duração se efetua em suas potências virtuais de diferenciação em relação a si mesmo num tempo incomensurável da afecção: a rostificação de uma imagem que captura o sensível e, ao mesmo tempo que é encarada, nos encara.

Assim, algo se descola das coordenadas espaço-temporais e do funcionamento puramente sensório-motor e, isolado, perde sua concordância com a percepção do espaço que ocupa. Neste momento, a potência de desterritorialização da imagem cinematográfica fica inevitável, pois um rosto reflexivo se torna imediatamente, um rosto intensivo e, neste intervalo entre a percepção e a ação, como efeito predicativo e adjetivante do mundo, que não é produzido pelo sujeito que olha, nem pelo objeto olhado, como pontos notáveis, surge uma potência virtual infinita.

Para cada imagem atual que retiramos do mundo surge, no intervalo afetivo, o seu duplo coalescente, indissociável e especular como uma imagem-virtual. O atual é sempre presente, mas porque é presente, sempre muda, sempre passa, sendo substituído instantaneamente por outro presente. Assim, cada momento tem sua face atual como percepção e sua face virtual como lembrança. A memória passa a ser tomada, então, como um imenso reservatório virtual a ser atualizado conforme os encontros convocados por meio de cada novo presente. É neste sentido que a memória guarda em si as potências do falso (Deleuze, 2009Deleuze, G. (2009). Cinema II: A imagem-tempo. São Paulo, SP: Brasiliense.), brilhantemente definida por Wally Salomão na célebre frase: "a memória é uma ilha de edição".

São estas potências que serão desenvolvidas pelo cinema moderno, representado prioritariamente pelo neorrealismo italiano e pela nouvelle vague francesa e outros movimentos cinematográficos surgidos a partir deles, que apresenta cortes descentrados e irracionais, planos não convencionais, roteiros sem fechamento entre outros. É aí que surge a imagem-tempo e enfim, a imagem do pensamento que (Deleuze 2009Deleuze, G. (2009). Cinema II: A imagem-tempo. São Paulo, SP: Brasiliense.) potencializa por meio da atmosfera cristalina e onírica em que estes filmes nos mergulham, pois nesta atmosfera, os objetos e os meios conquistam uma realidade material autônoma que os faz valerem por si mesmos, produzindo pontos de indiscernibilidade entre real e imaginário, sujeito e objeto, passado e presente, atual e virtual. Questões que só podem ser pensadas a partir do exercício bergsoniano que desvincula o tempo do movimento, da passagem, criando um tempo puro e infinito que se sobrepõe como um cone invertido sobre cada presente como vértice desse cone. Assim, o passado também deixa de assegurar uma versão verdadeira dos acontecimentos, pois cada convocatória involuntária e inconsciente de imagens virtuais, sejam elas lembranças, sonhos ou delírios, atualiza o passado sob outra possibilidade de "edição". Esse tempo puro desconhece a hierarquia cronológica ou o julgamento da importância de cada acontecimento. Não sabemos qual é o processo que faz aparecer uma imagem virtual em detrimento de outra, ou que reúne numa mesma imagem, acontecimentos de tempos cronológicos absolutamente distintos (Deleuze, 2009Deleuze, G. (2009). Cinema II: A imagem-tempo. São Paulo, SP: Brasiliense.).

Encontrar o pensamento no cotidiano

Quando nos deslocamos da centralidade de um ponto notável, o que vemos? O que ouvimos? Um lugar qualquer surge como cenário, não como banalidade cotidiana, mas como a potência que qualquer lugar tem de induzir em nós, imagens virtuais e nos levar, assim, para um além da banalidade sensório-motora. É partindo de um lugar qualquer por onde pode passar qualquer um, que (Deleuze 2009Deleuze, G. (2009). Cinema II: A imagem-tempo. São Paulo, SP: Brasiliense.) nos mostra o cinema da imagem-tempo e sua análise sensível como pensamento filosófico e, a partir daí, não há pensamento que não seja potencialmente filosófico, pois assim nos deslocamos do império escravocrata e maligno dos clichês, uma vez que são os clichês que mantêm o conjunto neste mundo sem totalidade nem encadeamento. (Deleuze, 1983Deleuze, G. (1983). Cinema I: A imagem-movimento. São Paulo, SP: Brasiliense.)

São estas imagens flutuantes, estes clichês anônimos que circulam no mundo exterior, mas também que penetram em cada um e constituem seu mundo interior, de modo tal que cada um só possui clichês psíquicos dentro de si, através dos quais pensa e sente, sendo ele próprio um clichê entre os outros no mundo que o cerca. Clichês físicos, óticos e sonoros, e clichês psíquicos se alimentam mutuamente. Para que as pessoas se suportem a si mesmas e ao mundo, é preciso que a miséria tenha tomado o interior das consciências e que o interior seja como o exterior. ... Como não acreditar numa poderosa organização intencional, num grande e poderoso complô, que encontrou o modo de fazer os clichês circularem de fora pra dentro e de dentro pra fora? (Deleuze, 1983Deleuze, G. (1983). Cinema I: A imagem-movimento. São Paulo, SP: Brasiliense., pp. 256-257)

Deste complô o cinema não escapou, pelo contrário, tornou-se seu mais importante veículo por meio do realismo americano que domina a produção cinematográfica, mas também dele tenta desesperadamente fugir mediante denúncias críticas e metáforas que operam a conscientização destes clichês, e principalmente, na criação de imagens livres dos clichês, arrancando deles verdadeiras imagens. Uma verdadeira imagem são imagens inteiras e sem metáfora, em que a coisa surge em si mesma, literalmente, em seu excesso de horror ou de beleza, em seu caráter radical ou injustificável, pois não há mais justificativa a partir dos valores preestabelecidos que dividem o mundo entre bem e mal.

Enquanto dos personagens da imagem-movimento se espera uma ação capaz de movimentar a situação em que se encontravam a partir de sua percepção privilegiada, de um ponto notável que apontaria sua anterioridade e sua posterioridade num sistema de causa-efeito que levaria ao bem; no cinema da imagem-tempo os personagens estão em situações para as quais não há qualquer ação possível: Acontece e é horrível! A tragicidade do acaso se engrandece e os personagens passam a investir nas situações através do olhar. Assim, o acontecimento não é uma espécie de clímax que representa o conflito a ser resolvido pelo herói. É um instante qualquer, desdobrável em outros tantos, que é capaz de produzir pensamento, pois o todo não está dado, nem é concebível. É justamente isso que se torna intolerável, insuportável: o mundo de todos nós não é o mundo universalizável do senso comum; é isto que agora o personagem só pode registrar e não mais reagir.

Nesta perspectiva, não é mais o esquema sensório-motor que é convocado e sim, a vidência. Pois o acontecimento passa a ser uma situação ótica e sonora pura, investida pelos sentidos, uma descrição físico-geométrica/inorgânica que se faz por meio de uma imagem atual, mas que, em vez de se prolongar em movimento, se conjuga com imagens-virtuais formando um circuito independente do esquema sensório-motor. Antes que qualquer ação possa se formar, opera-se uma análise sensível, num reconhecimento atento que não consegue prolongar a percepção sensório-motora, pois é movido pela extração infinita e inesgotável de características daquilo que se vê em fragmentos mínimos, sem importância utilitária; enquanto isso uma análise inteligível se opera por meio de um reconhecimento automático e habitual que prolonga a percepção mediante a maquinaria generalizadora dos clichês que descreve organicamente um objeto a partir do interesse subjetivo que assim reconhece este objeto.

Mediante esta operação vidente, a subjetividade ganha um novo sentido, mais temporal e espiritual do que motora e material (Deleuze, 2009Deleuze, G. (2009). Cinema II: A imagem-tempo. São Paulo, SP: Brasiliense.), pois agora, não é preciso esperar pelos grandes acontecimentos para que o pensamento se processe por meio da ação de grandes homens. Um momento qualquer dá a pensar a qualquer um: "é todo o real, a vida inteira que se tornou espetáculo" (Deleuze, 2009Deleuze, G. (2009). Cinema II: A imagem-tempo. São Paulo, SP: Brasiliense., p. 105). Retoma-se o cotidiano em toda a sua potência, pois o movimento reencontra sua dimensão real em que:

todas as imagens reagem umas sobre as outras, sobre todas as suas faces e em todas as suas partes. É o regime da variação universal, que ultrapassa os limites humanos do esquema sensório-motor, rumo a um mundo não humano, onde movimento é igual a matéria, ou então rumo a um mundo sobre-humano, que atesta um espírito novo. É aí que a imagem-movimento atinge o sublime. (Deleuze, 2009Deleuze, G. (2009). Cinema II: A imagem-tempo. São Paulo, SP: Brasiliense., p. 54)

É por isso que este contínuo de variação universal é uma continuidade de duração numa profundidade de tempo e não de espaço, só possível num pensamento livre do esquema sensório-motor, numa existência eminentemente trágica. Se o invisível se torna visível não é mais por condições discursivas por meio de um método arqueológico ou iluminista. São luzes de miragem que produzem expressão. É do insuportável, do intolerável, do não institucionalizável que sairá o pensamento, só transmissível, só expressável por meio da arte, do delírio, da fabulação, do sonho...

Por uma subjetividade cinematográfica

A arte não é uma representação, uma metáfora. O cinema é da ordem do sonho.

Glauber Rocha, 2011

O sonho cinematográfico nada tem a ver com as funções atribuídas ao cinema pelo senso comum: simples entretenimento, instrumento de conscientização das massas, aprendizagem por projeção, meio de informação, ilusão ficcional no escuro, metáfora do mundo, produção de um autômato espiritual transcendente (como algo que pudesse pensar pelo espectador, sistema que fez Hitler utilizar o cinema como instrumento de convocação), ou quando Hollywood se intitula uma fábrica de sonhos etc.

O cinema não pode ser tomado como uma simples oportunidade reflexiva, pois a narração que se pretendia verídica dá lugar a uma narração falsificante que não quer se prestar a uma representação de uma suposta realidade nem à proposição de um mundo melhor. O cinema se presta, sim, segundo (Deleuze 2009Deleuze, G. (2009). Cinema II: A imagem-tempo. São Paulo, SP: Brasiliense.), como meio de discutir o funcionamento psíquico. Com ele, poderíamos percorrer uma cartografia mental (não individual ou de sujeito) por meio de mecanismos monstruosos, caóticos ou criadores, em que podemos ter o pensamento como personagem.

Quando (Deleuze 2009Deleuze, G. (2009). Cinema II: A imagem-tempo. São Paulo, SP: Brasiliense.) nos coloca diante de situações óticas e sonoras puras impassíveis de se prolongarem em ações, o que ocorre é uma defasagem, um desprendimento da ação que libera uma atmosfera onírica que, por sua vez, é implicada no real, prolongando a situação num movimento de mundo. Saímos de uma posição que colocava o homem em combate com a natureza para submetê-la a seus desígnios, saberes e julgamentos para nos tornar videntes de uma unidade sensível e sensual entre o homem e a natureza. "O importante é sempre que a personagem e o espectador se tornem visionários" (Deleuze, 2009Deleuze, G. (2009). Cinema II: A imagem-tempo. São Paulo, SP: Brasiliense., p. 30), podendo fazer uma crítica da vida cotidiana que não aponte outro mundo como mundo ideal ou transformado pelo homem, mas faça o próprio real agir contra si mesmo na insuportabilidade do que se vê e do que se ouve: todo o tempo condensado coexiste com o momento presente.

Numa situação puramente ótica e sonora, algum elemento novo transtorna o conjunto das imagens-movimento (percepções, ações e afecções), impedindo que a percepção se prolongue em ação e permitindo que ela se relacione com o pensamento, apreendendo assim, algo de intolerável, insuportável. "Trata-se de algo poderoso demais, ou injusto demais, mas às vezes também belo demais, e que portanto excede nossas capacidades sensório-motoras" (Deleuze, 2009Deleuze, G. (2009). Cinema II: A imagem-tempo. São Paulo, SP: Brasiliense., p. 29), subordinando a situação à exigência de novos signos, que a levariam para além do movimento.

Assim, "toda subjetividade é o tempo, o tempo não cronológico apreendido em sua fundação e somos nós que somos interiores ao tempo e não o inverso" (Deleuze, 2009Deleuze, G. (2009). Cinema II: A imagem-tempo. São Paulo, SP: Brasiliense., p. 103), não é a duração que é subjetiva enquanto uma vida interior, enquanto tempo interiorizado. "A subjetividade nunca é nossa, é o tempo, quer dizer, a alma ou o espírito, o virtual. O atual é sempre objetivo, mas o virtual é o subjetivo" (Deleuze, 2009Deleuze, G. (2009). Cinema II: A imagem-tempo. São Paulo, SP: Brasiliense., p. 104). E este virtual são percepções, lembranças, sonhos, fantasmas, presenças alu cinatórias cristalizadas como imagens óticas e sonoras, que vagam no pensamento coletivo sem conhecimento de qualquer hierarquia cronológica, pois ao fim da taxionomia de imagens produzidas por Deleuze nestes livros, encontramos as imagens-cristal que não são o tempo, mas, por meio delas, pode-se ver o tempo não cronológico que encerra a poderosa vida não orgânica do mundo, em que os signos se tornam independentes dos objetos que os emanam. Há uma coexistência entre o atual e o virtual: os homens e as bestas, os seres vivos e os autômatos, os patrões e os empregados, os sãos e os loucos, a realidade e a ficção. O visionário, o vidente é quem vê no cristal. E o que se vê no cristal é o jorrar do tempo como um desdobramento, uma explicação que desenvolve a limitação de um signo mundano na ilimitação de um signo de arte4 4 "É a operação proustiana que disseca o funcionamento da memória como produção dos signos da arte. Num primeiro momento, há um encontro com signos mundanos, signos vazios que pretendem que o senti do se cole à forma do objeto. Mas é justamente essa vacuidade, que dá espaço para o excedente que a forma não atualiza, que os transforma em signos amorosos, capazes de convocar uma interpretação silenciosa do mundo que o objeto amado implica e impele a explicar. Esta estranha alegria experimentada pelo encontro com o objeto, faz a qualidade sensível se descolar do objeto e se transformar num signo sensível. É aí que opera o erotismo do exercício reminiscente: a busca do objeto perdido só consegue recriar eternamente o cenário em que surge o sensível. Chega-se então ao signo da arte, que jamais recria o mundo, mas cria outros mundos como meios espirituais povoados de essências alógicas que ultrapassam 'tanto os estados da subjetividade quanto as propriedades do objeto'. Os signos da arte atingem o imaterial, a total liberdade em relação aos objetos que os emanam (Deleuze, 2006c, pp. 3-37)". (Farina, 2009, p. 83) , pois a estrutura cristalina tem um sentido mais estético do que científico (Deleuze, 2006cDeleuze, G. (2006c). Proust e os signos (A. Piquet & R. Machado, trads). Rio de Janeiro, RJ :Forense Universitária., 2009).

O cinema moderno, com seus movimentos aberrantes, suas relações ilocalizáveis, seus cortes irracionais, sua função fabulatória nos torna videntes desse virtual. Não somos mais observadores, somos falsários, aqueles que escapam do sistema do julgamento por meio da infinita capacidade de criação das potências do falso. É de falsários que se compõe o povo que falta, o povo conectado a um devir, a uma variação universal inumana impassível de ser julgada por valores superiores5 5 Somos envolvidos de tal forma por ilusões de universalidade, transcendência, eternidade e discursividade que acabamos por suportar o peso da circulação das opiniões dominantes que nos fazem prisioneiros de um horizonte relativo e imóvel, como se não pudéssemos suportar os movimentos e as velocidades infinitas da imanência (Deleuze, Guattari, 1992). Foram essas ilusões que, ao longo da história da Filosofia, submeteram a diferença às exigências da representação, em que um "elemento do saber se efetua através de um objeto pensado recognitivamente por um sujeito que pensa" (Deleuze, 2006a, p. 272). . O falsário não é, então, um personagem dentro do filme, é o próprio personagem conceitual do cinema, em que a subjetividade só pode ser pensada em conexões com multiplicidades temporais complexas, pois não se espera mais que os heróis ajam, mas que qualquer um pense.

  • Bellour, R. (2005). Pensar, contar: o cinema de Gilles Deleuze. In F. P. Ramos (Org.), Teoria contemporânea do cinema: pós-estruturalismo e filosofia analítica. São Paulo, SP: Ed. Senac.
  • Bergson, H. (1990). Matéria e memória. São Paulo, SP: Martins Fontes.
  • Deleuze, G. (1983). Cinema I: A imagem-movimento. São Paulo, SP: Brasiliense.
  • Deleuze, G. (1997). Crítica e clínica (P. Pál Pelbart, trad.). São Paulo, SP: Editora 34.
  • Deleuze, G. (2006a). Diferença e repetição. (L. B. L. Orlandi & R. Machado, trads.). São Paulo, SP: Graal.
  • Deleuze, G. (2006b). A ilha deserta. São Paulo, SP: Iluminuras.
  • Deleuze, G. (2006c). Proust e os signos (A. Piquet & R. Machado, trads). Rio de Janeiro, RJ :Forense Universitária.
  • Deleuze, G. (2009). Cinema II: A imagem-tempo. São Paulo, SP: Brasiliense.
  • Deleuze, G., & Guattari, F. (1992). O que é a filosofia? (B. Prado Jr. & A. Alonso Muñoz, trad.). São Paulo, SP: Editora 34.
  • Farina, J. T. (2009). Desertação (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS.
  • Farina, J. T., & Fonseca, T. M. G. (2010). Fantasmas do futuro: a clínica do virtual. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 10(2), 1-16.
  • Parente, A. (2005). Deleuze e as virtualidades da narrativa cinematográfica. In F. P. Ramos (Org.), Teoria contemporânea do cinema: pós-estruturalismo e filosofia analítica. São Paulo, SP: Ed. Senac.
  • 1
    Para Deleuze (2006a, pp. 316-319) o bom senso é uma verdade parcial (a razão) que se une ao sentimento do absoluto para caracterizar-se como essencialmente distribuidor e repartidor. Desta forma, é capaz de conjurar as diferenças numa regra de partilha universal que uniformiza o diverso e igualiza o desigual. O bom senso quer prever mais do que agir, moldando o sentido do tempo como uma flecha que vai de um passado representável a um futuro provável, do particular ao geral. É aí que se gesta o senso comum definido "subjetivamente pela suposta identidade de um Eu como unidade e fundamento de todas as faculdades e, objetivamente, pela identidade de um objeto qualquer ao qual se julga que todas as faculdades se reportem" num intermitente processo de recognição. Assim, o bom senso e o senso comum se refletem entre si constituindo as duas metades da ortodoxia: regra de partilha universal e regra universalmente partilhada, o que assegura as ilusões de uma verdade universal e eterna.
  • 2
    "A expressão do pensamento é o problema fundamental do cinema" (Deleuze, 2009, p. 209).
  • 3
    No sentido bergsoniano, a duração não é tomada a partir da permanência de algo através do tempo medido cronologicamente. A duração é justamente aquilo que é capaz de seguir um movimento de devir, de variação, através de um tempo intensivo, não cronológico, desconectado do movimento que submete o tempo a uma contagem que percorre o espaço. Neste tempo só o sistema sensório motor pode agir, enquanto a duração se efetua em suas potências virtuais de diferenciação em relação a si mesmo num tempo incomensurável
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    "É a operação proustiana que disseca o funcionamento da memória como produção dos signos da arte. Num primeiro momento, há um encontro com signos mundanos, signos vazios que pretendem que o senti do se cole à forma do objeto. Mas é justamente essa vacuidade, que dá espaço para o excedente que a forma não atualiza, que os transforma em signos amorosos, capazes de convocar uma interpretação silenciosa do mundo que o objeto amado implica e impele a explicar. Esta estranha alegria experimentada pelo encontro com o objeto, faz a qualidade sensível se descolar do objeto e se transformar num signo sensível. É aí que opera o erotismo do exercício reminiscente: a busca do objeto perdido só consegue recriar eternamente o cenário em que surge o sensível. Chega-se então ao signo da arte, que jamais recria o mundo, mas cria outros mundos como meios espirituais povoados de essências alógicas que ultrapassam 'tanto os estados da subjetividade quanto as propriedades do objeto'. Os signos da arte atingem o imaterial, a total liberdade em relação aos objetos que os emanam (Deleuze, 2006c, pp. 3-37)". (Farina, 2009, p. 83)
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    Somos envolvidos de tal forma por ilusões de universalidade, transcendência, eternidade e discursividade que acabamos por suportar o peso da circulação das opiniões dominantes que nos fazem prisioneiros de um horizonte relativo e imóvel, como se não pudéssemos suportar os movimentos e as velocidades infinitas da imanência (Deleuze, Guattari, 1992). Foram essas ilusões que, ao longo da história da Filosofia, submeteram a diferença às exigências da representação, em que um "elemento do saber se efetua através de um objeto pensado recognitivamente por um sujeito que pensa" (Deleuze, 2006a, p. 272).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    08 Jul 2013
  • Revisado
    22 Nov 2013
  • Aceito
    22 Mar 2014
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