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Michel Henry e os problemas da encarnação: o corpo doente 1 1 Agradeço a Florinda Martins, da Universidade Católica Portuguesa, Porto, o diálogo valioso na realização deste trabalho.

Michel Henry and the problems of encarnation: The diseased body

Michel Henry et les problèmes de l'incarnation: un corps malade

Resumo:

Em sua teoria da encarnação, Michel Henry subverte radicalmente o paradigma cartesiano tal como é entendido pela fenomenologia tradicional, oferecendo à psicologia e a outras áreas do saber a concepção da indissociabilidade entre a subjetividade e o corpo. Ele concebe o corpo como subjetivo e o denomina carne, sendo que as dissociações são modos de padecimento da individualidade encarnada. Contudo, Michel Henry não tematiza os problemas da encarnação e suas consequências, sendo que tais problemas podem advir de degenerações orgânicas. É relevante para a clínica psicológica tematizarmos sobre os problemas da encarnação, pois o modo como vivemos o corpo é o modo como habitamos a carne. O objetivo deste trabalho é buscar compreender a questão da encarnação nas degenerações orgânicas e como elas afetam a constituição do Si. Para tanto, será utilizado o sentido da audição e sua perda como fio condutor na abordagem da problemática.

Palavras-chave:
Michel Henry; encarnação; corpo; subjetividade; audição

Abstract:

In his incarnation theory, Michel Henry radically subverts the Cartesian paradigm, as understood by the traditional phenomenology, offering to psychology and other fields of knowledge the conception of indissociability between body and subjectivity. He conceives the body as subjective and calls it flesh, whereas the dissociations are suffering modes of the incarnated individuality. However, Michel Henry does not thematizes the incarnation's problems and its consequences. These problems can arise by organic degenerations. It is relevant for the psychological clinic to discuss about the incarnation's problems because the way we live the body is the way we inhabit the flesh. The objective of this work is to understand the question of incarnation in organic degenerations and how they affect the constitution of the self. For that it will be used the sense of hearing and its loss as a conductive thread in addressing this issue.

Keywords:
Michel Henry; incarnation; body; subjectivity; hearing

Résumé:

Dans sa théorie de l'incarnation, Michel Henry subvertit radicalement le paradigme cartésien tel qu'il est compris par la phénoménologie traditionnelle, offrant à la psychologie et à d'autres disciplines la possibilité de concevoir l'inséparabilité corps/subjectivité. Il conçoit le corps comme subjectivité et l'appele chair, de telle manière qu'on peut les comprendre comme des modalités de la souffrance de l'individu incarné. Michel Henry ne thématise pas ses problèmes dans la phénoménalité de l'incarnation en tant que ses conséquences, mais ces questions peuvent survenir par rapport aux problèmes vécus dans une dégénérescence organique. Il est pertinent pour la psychologie clinique de thématiser ces problèmes dans une phénomenologie de l'incarnation, car la façon dont nous vivons notre corps est la façon dont nous vivons notre chair. Le but de ce travail est de comprendre la question de l'incarnation dans les dégénérescences organiques et comment ils affectent la formation de soi. Ainsi, l'exemple du sens de l'ouïe et de sa perte sera utilisé comme un fil conducteur pour l'approche de cette problématique.

Mots-clés:
Michel Henry; incarnation; corps; subjectivité; sens de l'ouïe

Resumen:

En su teoría de la encarnación, Michel Henry subvierte radicalmente el paradigma cartesiano, tal como la fenomenología tradicional lo entiende, ofreciendo a psicología y a otras áreas del conocimiento la concepción de inseparabilidad de la subjetividad y del cuerpo. Él concibe el cuerpo como subjetivo y lo denomina carne, siendo las disociaciones modos de padecimiento de la individualidad encarnada. Sin embargo, Michel Henry no tematiza los problemas de la encarnación y sus consecuencias. Estos problemas pueden advenir por medio de las degeneraciones orgánicas. Para la clínica psicológica es relevante tematizar los problemas de la encarnación, porque la forma como vivimos un cuerpo es la forma como habitamos una carne. Este trabajo busca comprender la cuestión acerca de la encarnación en las degeneraciones orgánicas y como afectan la constitución del Sí. Para eso se utilizará el sentido de la audición y su pérdida como hilo conductor para el abordaje de esta cuestión.

Palabras clave:
Michel Henry; encarnación; cuerpo; subjetividad; audición

A fenomenologia da vida de Michel Henry forneceu contribuições fundamentais para a clínica psicológica ao posicionar a afetividade como sendo central à constituição do indivíduo. O sofrer e o fruir são as tonalidades afetivas originárias, sendo caracterizadas pela transitividade imanente, ou seja, a possibilidade da modalização dos afetos. É esta transitividade imanente que é importante para o psicoterapeuta na compreensão da depressão e de outras alterações psíquicas, o que é reconhecido pelo próprio Henry: "em presença das doenças mais graves que afetam não apenas os corpos, mas a própria vida, uma terapia é sempre possível" ( Henry, 2003Henry, M. (2003b). De la subjectivité. In Phénoménologie de la vie (Tomo 2). Paris, Francia: PUF. , p. 158).

Do mesmo modo, em sua teoria da encarnação, subvertendo radicalmente o paradigma cartesiano, tal como é entendido pela fenomenologia tradicional, ele oferece à psicologia, bem como as áreas do saber que lhe são afins, a concepção da indissociabilidade da subjetividade e do corpo, pois "o corpo original, absolutamente imanente, absolutamente subjetivo que eu sou, não é outra coisa que a alma" ( Henry, 2003aHenry, M. (2003a). Souffrance et vie. In Phénoménologie de la vie (Tomo 1, pp. 143-156). Paris, Francia: PUF. , p. 172). Ele mostra-nos como o corpo objetivo e o corpo subjetivo - que denomina carne - são unos, pelo qual as dissociações são modos de padecimento desta Ipseidade encarnada.

Saber como se dá a constituição do Si na vida, no pathos e na carne é, então, de grande importância para a clínica, pois esta necessita abarcar os aspectos ontológicos, estruturantes do humano, para que sua práxis não se restrinja a uma visão reducionista do sujeito, visto somente como portador de um aparelho psíquico acometido por transtornos. Além disso, este conhecimento pode, de fato, ser fundamental para a evolução de um saber-fazer clínico, que propicie o desenvolvimento e alívio do sofrimento dos pacientes.

Em La Barbarie , Henry (1987)Henry, M. (1987). La barbarie. Paris, Francia: Gasset. ressalta os efeitos deletérios das práticas científicas e do mundo do trabalho realizadas sem consideração da nossa condição transcendental de seres encarnados e sensíveis, gerando distanciamento do humano e da vida. Em Encarnação ( Henry, 2001Henry, M. (2001). Encarnação: por uma filosofia da carne. Lisboa, Portugal: Círculo de Leitores. ) , ele aponta para os sentidos ou poderes originários da carne, na ausência dos quais a vida torna-se insuportável, como no caso de doença ou enfermidade.

Henry, todavia, não tematiza os problemas da encarnação e tampouco suas consequências. Ora, estes problemas podem advir ao nosso existir tanto por parte das degenerações orgânicas, ou na integridade do Si em seu processo de constituição.

O que acabamos de dizer mostra que o modo como vivemos o corpo é o modo como habitamos a carne ( Henry, 2001Henry, M. (2001). Encarnação: por uma filosofia da carne. Lisboa, Portugal: Círculo de Leitores. ), daí necessitarmos do outro, como é o caso da constituição do Eu de um bebê ou o de um adulto que é surpreendido por um câncer. Por isso, como diz Martins (2012)Martins, F. (2012). O que pode um corpo em depressão? In K. Wondracek, L. C. Hoch & T. Heimann (Orgs.), Sombras da alma - tramas e tempos da depressão (pp. 105-117). São Leopoldo, RS: Sinodal. , é imprescindível a compreensão "dos processos biológicos da fenomenalidade do corpo vivo, já que eles modificam e interferem no modo como a vida em nós se revela" (p. 108), interferindo na forma como habitamos a carne.

Neste trabalho, buscamos compreender a questão da encarnação nas degenerações orgânicas e nas falhas na constituição do Si. Para tanto, utilizaremos o sentido da audição e sua perda como fio condutor para abordar essa problemática.

Encarnação e audição - perspectiva da fenomenologia da vida em Michel Henry

Para nós, humanos, a audição, sensibilidade, enfim, a afetividade, não existem sem o corpo. Henry posiciona a questão do corpo como central à sua fenomenologia e a discute a partir da duplicidade do aparecer dos fenômenos visível e invisível, respectivamente o aparecer da vida e do mundo. Nesse sentido, afirma que temos dois corpos: o corpo subjetivo, invisível, denominado carne, constituído na indissociabilidade com o corpo orgânico; e o nosso corpo objetivo, visível e perceptível na exterioridade do mundo, paradoxalmente, também é inseparável de sua carne.

A encarnação consiste no fato de a vida se dar a provar na carne. Isso é, somos atravessados pelo desejo e temor, "ressentindo toda espécie de impressões ligadas à carne, porque constitutivas da sua substância - uma substância, por conseguinte, impressional, começando e acabando com o que ela experiencia" ( Henry, 2001Henry, M. (2001). Encarnação: por uma filosofia da carne. Lisboa, Portugal: Círculo de Leitores. , p. 3).

O afeto-ouvir

A audição é uma tonalidade afetiva, uma experiência interna transcendental; é o poder de sentir, como são a visão, o tato e o olfato. De acordo com Henry (2012)Henry, M. (2012). Filosofia e fenomenologia do corpo - ensaio sobre a ontologia biraniana. São Paulo, SP: É Realizações. , a "faculdade de sentir, concebida em si mesma" é "o ato de sentir considerado em si mesmo e como puro poder". É na própria vida que encontramos "no fundo de cada sentido como aquilo que constitui o seu ser próprio". É o poder puro, da vida e da subjetividade, que se manifesta "na raiz de cada um de nossos sentidos" (p. 100).

A unidade das sensações auditivas, de maneira similar às visuais ou táteis, é constituída. Contudo, o fundamento dessa unidade reside no poder que a constitui, ou seja, no movimento subjetivo do ouvir que se dá no corpo subjetivo.

A experiência do ouvir transcende para o mundo; entretanto, realiza-se integralmente em um registro de imanência radical. Quando utilizamos a palavra "ouvir", estamos usando um signo linguístico que diz respeito à experiência interna da audição, sendo uma reflexão sobre essa experiência e não a própria experiência. A audição, bem como qualquer outro sentido, define-se a si própria por seu exercício ( Henry, 2012Henry, M. (2012). Filosofia e fenomenologia do corpo - ensaio sobre a ontologia biraniana. São Paulo, SP: É Realizações. ).

A diferenciação entre os poderes de sentir não se dá na distinção material dos órgãos dos sentidos, mas, ao contrário, ocorre:

Sobre uma divisão transcendental de nossos poderes de sentir, sobre a divisão que há entre a visão, a audição, o tato, etc., que nos é originariamente dada na experiência interna transcendental que temos do ser subjetivo do nosso corpo. É porque sabemos, por um saber originário e primitivo, o que é a visão, a audição ou o tato que podemos, em seguida, nos representar o olho, a mão ou o ouvido como órgãos providos de ca pacidades próprias e irredutíveis umas às outras. ( Henry, 2012Henry, M. (2012). Filosofia e fenomenologia do corpo - ensaio sobre a ontologia biraniana. São Paulo, SP: É Realizações. , p. 140)

A experiência interna transcendental do ouvir, bem como dos outros sentidos, possibilita um saber imediato de si. Concomitantemente ao conhecimento afetivo imediato de si, o meu ouvir consiste em minha maneira particular de sentir: "sentir o mundo é a própria experiência que tenho de minha subjetividade, que é dada apenas a mim na experiência interna transcendental do ser originariamente subjetivo do meu corpo" ( Henry, 2012Henry, M. (2012). Filosofia e fenomenologia do corpo - ensaio sobre a ontologia biraniana. São Paulo, SP: É Realizações. , p. 134).

Desse modo, ontologicamente, cada pessoa ouve, por meio do movimento subjetivo do ouvir na experiência interna transcendental do corpo subjetivo, a si mesma e ao mundo, de sua maneira individual. Neste processo subjetivo, o Si apercebe-se e constitui-se, encarnado. Consequentemente, é "o corpo sim o fundamento de nossa individualidade, não o corpo empírico, é verdade, mas o ser originariamente subjetivo do corpo transcendental" ( Henry, 2012Henry, M. (2012). Filosofia e fenomenologia do corpo - ensaio sobre a ontologia biraniana. São Paulo, SP: É Realizações. , p. 134).

Para Henry, portanto, a concepção de audição, diferentemente da ciência, vai muito além da questão da percepção. A audição não é somente um mero sentido por meio do qual podemos perceber, processar sons e desenvolver a fala. Não é simplesmente uma faculdade que podemos mensurar por intermédio de testes psicofísicos. A audição em seu primeiro registro é afetividade originária, é pathos, é a subjetividade manifestada como vida, como experiência de si, permitindo o saber e a constituição do Si. O Si transcendental, constituído por esse afeto-ouvir, percebe também o mundo de forma particular, à sua maneira.

A encarnação e seus limites - a doença - perda de audição

Abordando a audição em uma perspectiva ontológica, Henry deixa claro que na raiz dos nossos sentidos está o poder puro da subjetividade, da vida em nós. Embora ontologicamente tenhamos esse poder a priori, ele não poderá provar-se na ausência de experiências auditivas. Para que essas experiências se realizem, é necessário um corpo biológico com sistema auditivo capaz de receber e processar sons. De outro modo, este será um poder não realizado ou pouco realizado, pela ausência ou insuficiência de incorporação e "corpopropriação" da audição.

Nosso corpo é o lugar no qual se processam as afecções vindas do mundo exterior. Incorporamos por meio dos nossos sentidos (sem querer, por meio da passibilidade que nos é inerente) as afecções auditivas, visuais, táteis, gustativas e olfativas. Nosso corpo transcendental em abertura intrínseca ao mundo, à natureza e ao outro, incorpora, queiramos ou não, tudo que chega até nós: sons, imagens, toques, sensações térmicas e cheiros.

Contudo, aquilo que se deu em mim sem o meu consentir, pode ser por mim apropriado. Para Biran, a possibilidade de acolhimento ou escape de uma sensação ou sentimento, sejam eles quais forem, apenas é viável se o eu estiver presente, pois "é do interior da vida que vivo a apercepção imediata do meu viver na vida" ( Martins, 2014Martins, F. (2014). A volúpia e o incômodo na configuração da certeza. In A. E. A. Antúnez, F. Martins & M. V. Ferreira (Orgs.), A fenomenologia da vida em Michel Henry: interlocução entre filosofia e psicologia (pp. 47-80) São Paulo, SP: Escuta. , p. 70). Esta apercepção, que Biran denomina compos sui, enfatiza o aspecto ativo da arquipassibilidade do sentir, acentuando mais a possibilidade de ação do que o padecimento de uma paixão.

Henry (2012)Henry, M. (2012). Filosofia e fenomenologia do corpo - ensaio sobre a ontologia biraniana. São Paulo, SP: É Realizações. , utilizando a terminologia de Biran, utiliza o termo corpopropriação, referindo-se ao corpo próprio que, por intermédio de uma relação encarnada e sensível com a natureza, a transforma; nesse processo, além de transformar o mundo, se apropria e transforma a si mesmo.

Martins (2014)Martins, F. (2014). A volúpia e o incômodo na configuração da certeza. In A. E. A. Antúnez, F. Martins & M. V. Ferreira (Orgs.), A fenomenologia da vida em Michel Henry: interlocução entre filosofia e psicologia (pp. 47-80) São Paulo, SP: Escuta. , a esse respeito, ressalta que "para Michel Henry o meu corpo é um corpo próprio, ou, no seguimento de Biran, sou o meu corpo - cogito " (p. 68). E tal como o cogito , definido pela fenomenalidade do sentir, esta união é, a priori , a corpopropriação.

Quando ouvimos, não apenas incorporamos os sons, podendo apropriar-nos deles como sendo nossos, nos apropriamos de nós mesmos nesse processo. A partir dessa corpopropriação, podemos utilizar os poderes do ego e nos exercermos como nós, de um modo pessoal e particular. A corpopropriação consiste na apropriação e domínio dos poderes do corpo, o que fortalece e permite a constituição de Si e seu exercício no mundo. Desse modo, podemos afirmar que o desenvolvimento do ego está diretamente relacionado ao processo de incorporação/corpopropriação.

Tomemos como exemplo uma criança que nasce com uma deficiência auditiva profunda, de origem genética. Mesmo que ontologicamente ela seja detentora do poder de ouvir, seu corpo biológico já nasceu configurado de tal forma que não é capaz de ouvir a voz de sua mãe, sua própria voz ou os sons que, de modo geral, povoam seu ambiente. Esta configuração física só lhe permite ouvir sons extremamente intensos, como os de aviões, fogos de artifício ou gritos fortes. Esses sons intensos, na maioria das vezes, não fazem parte de seu cotidiano e não lhe fornecem as referências necessárias e suficientes para o desenvolvimento da linguagem.

Consequentemente, a constituição do Si dessa criança, a partir do provar-se e do sentir-se, não incluirá de modo consistente o afeto-ouvir. Ela saberá de si por outros afetos, pouco pelos auditivos. Sendo restrita a possibilidade de incorporar os sons, também será a condição de corpopropriá-los e de fazer uso de si, exercendo seus poderes a partir deles. O falar, por exemplo, não será possível, pois para que isto ocorra é imprescindível a incorporação e corpopropriação dos sons da fala como referência e possibilidade de monitoramento da produção da fala. O desenvolvimento de seu ego e do poder de se exercer, neste caso, deverá ser realizado, principalmente, por intermédio de outros poderes do corpo que não o afeto-ouvir.

Portanto, uma alteração fisiológica pode comprometer diretamente o poder de exercer-se, corpopropriado, do ego; embora ele exista como possibilidade ontológica a priori. Isto impacta diretamente a constituição desse Si, que seguirá acontecendo de acordo com as características deste corpo particular. A relação entre afetividade e poder, dessa maneira, se realizará em concordância com a possibilidade da afecção permeada pelos poderes ou falta de poderes do corpo.

Esta criança, com esse tipo de perda de audição, fará, desde o nascimento, uma experiência de Si dessa forma particular (com pouco afeto-ouvir), constituindo-se desta maneira. Certamente outras questões diretamente relacionadas com essa particularidade surgirão e poderá afetá-la profundamente e também os destinos de sua vida, como a dificuldade ou impossibilidade de desenvolver linguagem oral, sendo essas as consequências para sua socialização e educação. Isso por si só determinará, na relação com o ambiente, outras afecções - contingentes ao seu meio cultural, familiar e às consequências de sua perda de audição.

Com a utilização de aparelhos de amplificação sonora individual, ela poderá vir a incorporar uma gama maior de sons e corpopropriá-los, provavelmente com auxílio de terapia fonoaudiológica. Estes sons, produzidos pela mediação de aparelhos de amplificação, não possuem exatamente as mesmas características naturais dos originais e, desse modo, as "afecções mediadas por instrumentos" comportarão essa particularidade. Contudo, a criança pode realizar uma corpopropriação de seu aparelho auditivo, integrando-o como extensão de si. Nesses casos, a adaptação ao aparelho poderá ser bem sucedida, e o infante poderá fazer bom uso de seu resto auditivo amplificado para desenvolver o poder de sentir da audição, bem como os outros poderes de seu corpo, como o falar. Por outro lado, aqueles que não conseguem corpopropriar o uso de seus aparelhos, provavelmente não terão uma boa adaptação e possivelmente não conseguirão utilizar este resto auditivo amplificado para o desenvolvimento desses poderes.

A interferência do ambiente na modalidade afetiva da Ipseidade

O Si constitui-se, durante toda a vida, a partir de seu pathos ; afetividade originária em relação permanente com a vida em si, com o mundo e com o outro. Deste modo, a interação com o ambiente e as afecções resultantes de sermos seres vivos na vida, encarnados e vivendo em relação, são fundamentais e moldam nossa constituição.

Existem ambientes tão agressivos e insalubres que nos causam doenças. Esse é o caso de trabalhadores expostos ao ruído intenso em seu local de trabalho e que adquirem a perda auditiva induzida pelo ruído. Essa alteração auditiva se desenvolve pela exposição contínua a ruído intenso e tende a aumentar em sua gravidade se a exposição a níveis sonoros exacerbados não é interrompida. Aqui, temos um ambiente nocivo agredindo e gerando problemas fisiológicos.

Nesta situação específica, temos um adulto que se constituiu desde o nascimento com seu afeto-ouvir intacto e, sendo assim, o seu saber imediato de si, o seu sentir-se a si mesmo, bem como o mundo à sua volta, deu-se incluindo o ouvir.

Na interação com o ambiente, seu corpo foi afetado de tal forma que sua carne não suportou o excesso de estimulação e adoeceu. Na incidência de uma deficiência auditiva na idade adulta, o que sucede é não somente a perda ou diminuição de um sentido, que por si só pode gerar consequências desastrosas, mas é a privação da possibilidade de reconhecer-se a si mesmo nesta afecção-ouvir. O modo particular como a vida se afeta nessa pessoa mudou.

Além de deixar de ter a experiência de si como costumava ter, da mudança de sua experiência interna transcendental do ouvir - embora a memória dessa experiência possa estar preservada - o que configura uma perda de parte da referência de si, o indivíduo continuará a constituir-se, agora com menos afeto-ouvir e com menor possibilidade da experiência de si, do mundo e do outro. Isso certamente acarreta sofrimento e sérias questões: como continuar a viver desse outro modo que não sou eu mesmo, da forma como sempre me reconheci, mas agora com menos poder de me exercer? A adaptação à perda do afeto-ouvir de si e o reorganizar-se com a nova possibilidade de si não são fáceis; trazem sofrimento e, por vezes, acarretam novos problemas, como a depressão e o isolamento social.

Desencarnação parcial e corpo inacabado

Poderíamos dizer que a audição encarnada, incorporada e corpopropriada sofreu um processo parcial de desencarnação, pela impossibilidade do corpo fisiologicamente ancorar esta encarnação. Poderíamos estender esse raciocínio para um operário que perde um braço em um acidente de trabalho. Embora subjetivamente ele possa experienciar seu braço - membros fantasmas em casos de amputações - essa vivência não se ancora no corpo orgânico. Seria também um processo parcial de desencarnação de parte do corpo pela perda do membro, decorrente de fatores ambientais.

Dejours (2011)Dejours, C. (2011). Le corps entre psychanalyse et phénoménologie de la vie. Prétentaine (27- 28), 87-113. aborda a questão do tratamento psicoterápico de psicóticos no qual a maior dificuldade para a cura não está vinculada ao pensamento ou ao conhecimento, mas ao corpo. Há um interesse pela parte dos psiquiatras em saber como o corpo é habitado pelo sujeito, procurando identificar os transtornos da experiência do corpo. O autor reitera que refletir essa questão a partir de Michel Henry implicaria abordar essa problemática de uma perspectiva totalmente nova, pensando o corpo a partir da afetividade e não da representação. Fundamentado na fenomenologia da vida e olhando sob a ótica das patologias da experiência do corpo, seria possível admitir que o corpo pode experimentar fraturas, dissociações e que suas falhas não proveem do pensamento ou consciência, mas de toda a subjetividade. Acrescenta ainda que:

A dissociação do corpo como experiência fundamental de uma fuga da vida, até de uma distorção da vida que se sente em si, sugere que o corpo objetivo ainda que presente não impede que o corpo subjetivo seja carregado de transtornos graves. ( Dejours, 2014Dejours, C. (2014). O corpo entre a psicanálise e a fenomenologia da vida. In A. E. A. Antúnez, F. Martins & M. V.Ferreira (Orgs.), A fenomenologia da vida em Michel Henry: interlocução entre filosofia e psicologia (pp. 197-226) São Paulo, SP: Escuta. , p. 206)

Desta maneira, ao contrário do trabalhador que perdeu seu braço ou sua audição, podemos falar de um corpo inacabado quando o corpo orgânico não sofreu alterações, mas quando estas ocorrem no corpo subjetivo.

Sobre um corpo inacabado, Dejours descreve:

É um corpo privado de certos registros de sensibilidade, sob efeito de uma proscrição que tem em geral um carácter definitivo. A dita proscrição não é uma simples falha, é uma amputação dos poderes do corpo, que altera o sujeito criando nele zonas inabitáveis. Essas últimas são de fato zonas perigosas em relação à saúde mental. Porque quando essas zonas se revelam, elas se experienciam como um corpo em desmoronamento, que é também uma prova de que a subjetividade se apaga deixando uma sensação de frio e a experiência horrível do vazio e da morte em si; angústia, diferente daquela que surge do fato do abraço da vida consigo mesma; angústia da vida que desaparece, angústia de uma queda vertiginosa em um vazio sem fundo, que é o primeiro momento de toda a decomposição psicopatológica cuja forma a mais cruel é sem dúvida a da dissociação psicótica . ( Dejours, 2014Dejours, C. (2014). O corpo entre a psicanálise e a fenomenologia da vida. In A. E. A. Antúnez, F. Martins & M. V.Ferreira (Orgs.), A fenomenologia da vida em Michel Henry: interlocução entre filosofia e psicologia (pp. 197-226) São Paulo, SP: Escuta. , p. 220)

Podemos questionar, contudo, que mesmo nos casos de psicose a subjetividade não se apaga, pois isto seria a morte. A autoafecção da afetividade e da vida em si em seu corpo permanecem na experiência do vazio e da morte de si, pois estes são afetos, do mesmo modo que "angústia de uma queda vertiginosa em um vazio sem fundo", como relata Dejours. Todas as angústias são angústias da vida e a vida as abraça. Mesmo privado de registro de sensibilidade e não completamente apropriado dos poderes do corpo, ainda há vida e afetividade específica nesse sujeito particular.

Dejours (2011)Dejours, C. (2011). Le corps entre psychanalyse et phénoménologie de la vie. Prétentaine (27- 28), 87-113. sugere ainda que para discutirmos e compreendermos esta possibilidade de encarnação inacabada ou da amputação do corpo subjetivo de partes de si, deveríamos nos questionar sobre a ontogênese do corpo subjetivo em relação com o corpo biológico. Esta gênese é abordada por Henry (2012)Henry, M. (2012). Filosofia e fenomenologia do corpo - ensaio sobre a ontologia biraniana. São Paulo, SP: É Realizações. em Filosofia e Fenomenologia do Corpo; entretanto não há indagações sobre os limites ou fracassos dessa revelação dos poderes do corpo ao si.

Conclusão

Neste trabalho, a partir da reflexão sobre a audição e sua perda, vimos que os limites orgânicos afetam a encarnação, não subvertendo assim seu modo ontológico de realização como proposto por Henry, mas revelando as particularidades desse processo a cada indivíduo. As peculiaridades e características de incorporação e corpopropriação ocorrem a partir de aspectos ônticos da vida de cada um: a configuração de seu corpo ôrganico afetado por fatores hereditários ou ambientais.

Contudo, temos muito a pesquisar sobre a relação das características do corpo próprio individual em sua relação com o meio, e como as alterações orgânicas e ambientais - não apenas aquelas que afetam o corpo biológico diretamente, mas também aquelas que modificam ou estabelecem padrões afetivos particulares - abalam e influenciam a constituição do Si.

Referências

  • Dejours, C. (2011). Le corps entre psychanalyse et phénoménologie de la vie. Prétentaine (27- 28), 87-113.
  • Dejours, C. (2014). O corpo entre a psicanálise e a fenomenologia da vida. In A. E. A. Antúnez, F. Martins & M. V.Ferreira (Orgs.), A fenomenologia da vida em Michel Henry: interlocução entre filosofia e psicologia (pp. 197-226) São Paulo, SP: Escuta.
  • Henry, M. (1987). La barbarie. Paris, Francia: Gasset.
  • Henry, M. (2001). Encarnação: por uma filosofia da carne. Lisboa, Portugal: Círculo de Leitores.
  • Henry, M. (2003a). Souffrance et vie. In Phénoménologie de la vie (Tomo 1, pp. 143-156). Paris, Francia: PUF.
  • Henry, M. (2003b). De la subjectivité. In Phénoménologie de la vie (Tomo 2). Paris, Francia: PUF.
  • Henry, M. (2012). Filosofia e fenomenologia do corpo - ensaio sobre a ontologia biraniana. São Paulo, SP: É Realizações.
  • Martins, F. (2012). O que pode um corpo em depressão? In K. Wondracek, L. C. Hoch & T. Heimann (Orgs.), Sombras da alma - tramas e tempos da depressão (pp. 105-117). São Leopoldo, RS: Sinodal.
  • Martins, F. (2014). A volúpia e o incômodo na configuração da certeza. In A. E. A. Antúnez, F. Martins & M. V. Ferreira (Orgs.), A fenomenologia da vida em Michel Henry: interlocução entre filosofia e psicologia (pp. 47-80) São Paulo, SP: Escuta.
  • 1
    Agradeço a Florinda Martins, da Universidade Católica Portuguesa, Porto, o diálogo valioso na realização deste trabalho.
  • 2
    Bolsista CAPES/PNPD.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    19 Jun 2014
  • Aceito
    15 Dez 2014
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