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Histeria ainda hoje, por quê?1 1 Fonte de financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas.

L'hystérie aujourd'hui, pourquoi?

La histeria de hoy, ¿por qué?

Resumo

Estudo teórico que teve o propósito de discutir a histeria na contemporaneidade, considerando as mudanças culturais que podem ter acorrido desde a fundação da psicanálise até hoje. A discussão teve como cerne os apontamentos de Charles Melman, posto que seja um psicanalista que vem pensando a posição do sujeito nas condições da cultura ocidental atual. Foram destacados aspectos que nos conduziram a elaborar um pensamento em torno de como a neurose histérica aparece no contexto contemporâneo. Partimos do princípio de que sofremos uma mutação cultural, na qual passamos de uma cultura propensa à neurose para uma propensa à perversão. Tal concepção determina que lidamos com sujeitos que funcionam sob a ordem de uma nova economia psíquica e que em decorrência assistimos a expressão de uma histeria coletiva que, por sua vez, seria espaço de reivindicação dos sujeitos, a fim de requisitar um paradeiro e reinventar um pai que já esteja destituído.

Palavras-chave:
histeria; contemporaneidade; mutação cultural; nova economia psíquica; Charles Melman

Résumé

Ce travail a pour objectif d'analyser l'hystérie dans la contemporanéité, en tenant compte des changements qui ont afflué depuis la fondation de la Psychanalyse jusqu'à présent. Notre discussion est centrée sur les notes de Charles Melman, psychiatre-psychanalyste qui sous l'égide de la psychanalyse réfléchit à ce qui concerne la position du sujet dans la culture occidentale actuelle. Nous trouvons des éléments qui mettent en évidence la construction d'une pensée autour de la névrose hystérique et de comment celle-ci se construit dans la contemporanéité. Nous supposons que nous sommes soumis à une mutation culturelle, dans laquelle nous passons d'une culture fondée sur la névrose à une culture qui promeut plutôt la perversion. Cette conception nous conduit à penser que nous sommes face à des sujets qui fonctionnent sous l'ordre d'une nouvelle économie psychique et, en conséquence, on voit l'expression d'une hystérie collective, dans laquelle le sujet se place dans un rôle revendicatif, afin de demnder le sujet et réinventer un père qui a été déjà destitué.

Mots-clés:
hystérie; contemporanéité; changement culturel; nouvelle économie psychique; Charles Melman

Resumen

Este trabajo es un estudio teórico que tuvo como objetivo discutir la histeria en la época contemporánea, teniendo en cuenta los cambios culturales que han ocurrido desde la fundación del psicoanálisis hasta hoy. La discusión tuvo como base las notas de Charles Melman, por ser un psicoanalista que ha considerado el lugar del sujeto en los contextos de la cultura actual. Se pusieron de relieve los aspectos que nos han llevado a desarrollar una reflexión acerca de cómo la neurosis histérica surge en el contexto contemporáneo. Partimos del supuesto de que nos enfrentamos a un cambio cultural en el que pasamos de cultura propensa a la neurosis a la perversión. Este concepto determina que nos ocupamos de sujetos que funcionan a partir del orden de una nueva economía psíquica, y como resultado vemos una expresión de la histeria colectiva que, a su vez, es un espacio de demanda de los sujetos con el fin de requerir un descanso y de reinventar un padre que ya está depuesto.

Palabras clave:
histeria; contemporaneidad; cambio cultural; nueva economía psíquica; Charles Melman

Abstract

This theoretical study aims at discussing hysteria nowadays and considers the cultural changes that might have occurred from the foundation of Psychoanalysis until today. The discussion is based on the thoughts of Charles Melman, a psychoanalyst who has studied the position of the subject in the conditions of the current Western culture. We highlighted aspects and consequently elaborated a reflection on how hysterical neurosis arises in the contemporary context, based on the principle that a cultural mutation occurred - a culture prone to neurosis was transformed into one prone to perversion. Owing to this conception, we deal with subjects that function under the order of a new psychic economy. Moreover, we see the expression of a collective hysteria that would be the space for the claims of the subjects, which aim at demanding a place and reinventing a father which is already destituted.

Keywords:
hysteria; contemporaneity; cultural mutation; new psychic economy; Charles Melman

Introdução

É atual e significativo, no âmbito da clínica, surgirem questionamentos sobre os efeitos do tratamento psicanalítico para os casos denominados de "novos sintomas". E a origem desse tipo de interrogação está na descrição do que podemos considerar como novidade, no que tange a certo mal-estar na cultura contemporânea. Como e por que o sujeito ainda parece recorrer a determinados fenômenos, de interesse da psicanálise, como saída para expressar sua angústia, seu desamparo, algum tipo de reivindicação? Em meio ao predomínio das descrições diagnósticas deliberadamente massivas, convertidas em elevadas taxas estatísticas da incidência de novas doenças psíquicas e/ou comportamentais, nos propusemos um retorno à histeria enquanto sintoma, não exatamente em seu sentido patológico. Nossa proposta é refletir acerca da expressão histérica enquanto sintoma do social.

Esse retorno se deve também a um compromisso de resgate, já que a histeria caiu em algum tipo de esquecimento, apesar de sua importância para a fundação da psicanálise. Ramos (2008)Ramos, G. A. (2008). Histeria e psicanálise depois de Freud. Campinas, SP: Editora da Unicamp. refere este entremeio que a histeria ocupa entre a sua importância para história da psicanálise e o seu desaparecimento dos manuais diagnósticos dos séculos seguintes. Para o autor, não há dúvida do valor que a histeria tem para o início da psicanálise e justamente isso a transformou numa ideia mítica - Estudos sobre a histeria (1895) é o texto fundador e, como tudo que é fundador, trata-se de algo que, com o tempo, toma auras de mítico.

Nossa discussão visa contribuir para pensar a incidência da histeria na contemporaneidade, levando em conta as vicissitudes da cultura hodierna e de como o sujeito vem se posicionando frente a elas, como faz laço nessa atmosfera atual. Supomos que desde a época em que Freud começou a estudar e tratar a histeria, final do século XIX, os discursos dominantes que circulavam na cultura sofreram alguma modificação.

Tendo em vista que mudança é uma característica do progresso, no sentido de avanço dos tempos, os sintomas podem ter adquirido sentidos diferentes, ou mesmo aparecerem de outras formas. É possível que a histeria enquanto sintoma social, já não seja reconhecida como no passado. Contudo, ao contrário do que muito se fala sobre seu desaparecimento, ela continua se apresentando (Melman, 2003Melman, C. (2003). Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, RS: CMC.; Quinet, 2005Quinet, A. (2005). A lição de Charcot. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.).

Psicanalista francês e discípulo colaborador de Lacan, Melman (2003)Melman, C. (2003). Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, RS: CMC. afirma que a histeria ainda é uma questão clínica mediante ao que denominou de "Novas formas clínicas no início do terceiro milênio"2 2 Livro originalmente lançado no Brasil, pois trata-se da transcrição de um seminário ministrado por Charles Melman na cidade de Curitiba em 2002. , assim como a depressão, as toxicomanias e as psicoses. Quinet (2005)Quinet, A. (2005). A lição de Charcot. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. corrobora ao sugerir que embora tenha sido expulsa pela porta da psiquiatria, a histeria retorna no cotidiano de diversas maneiras através de muitas janelas.

Para Melman, a histeria em sua forma clássica tornou-se mais rara e cedeu lugar a fenômenos mais relacionados ao espectro teatral; um movimento mais condizente com a disposição cultural para o espetáculo e à superficialidade. Tal fenômeno teria, então, mais um caráter de sintoma social contemporâneo.

O sintoma social é o que se articula a partir do discurso dominante de cada época. Segundo Vorcaro (2004)Vorcaro, A. (2004). Seria a toxicomania um sintoma social? Mental, 2(3), 61-73. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S167944272004000200006&script=sci_arttext
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, o sintoma social metaforiza uma verdade da civilização, cujo reconhecimento não se delineia por meio de incidência estatística, mas pela inscrição dessa articulação discursiva no campo social. É aquilo que aponta o mal-estar universal, e comum, entre os sujeitos, "metáfora partilhada do mal-estar, por meio de uma modalidade de gozo inscrita e estimulada pelo discurso dominante de uma época" (p. 42). Para Greiser (2008)Greiser, I. B. (2008). O psicanalista frente aos sintomas sociais. ASephallus, 3(6). Recuperado de, http://www.isepol.com/aesphallus/numero_06/artigo_01_port.htm
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há sintoma social quando o laço com o Outro do inconsciente é de algum modo anulado.

Com base em tais afirmações, consideramos importante associar essa característica de sintoma do funcionamento social às novas formas de manifestações histéricas. Assim, percebemos a necessidade de identificar os pontos de mudança, descritos por psicanalistas como Jean-Pierre Lebrun e Charles Melman, entre o mal-estar na cultura que corresponde à época em que Freud publicou Estudos sobre a histeria e a cultura que vivenciamos hoje.

Na época em que Freud viveu, a neurose foi justificada como renúncia à satisfação das pulsões em prol de ideais incorruptíveis, sublimados, substitutivos. Na contemporaneidade, o discurso atual altera essa proposta. Hoje vivemos como num sonho onde o impossível não só pode como deve se realizar, sem restrições, mas, pelo contrário, com estímulos a "Gozar a qualquer preço" (Melman, 2008Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.).

Celes (2007)Celes, L. M. (2007). "Dora" contemporânea - E a crise terapêutica da psicanálise. Psicologia Clínica, 19(1), 137-154. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/pc/v19n1/10
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declara que a clínica se encontra numa situação de lidar com subjetividades bastante desestruturadas, as condições subjetivas, sob as quais a neurose incidia, hoje são diferentes. É como se dissesse que hoje os sujeitos são psiquicamente mais empobrecidos e precisam de uma subjetividade, no sentido de uma identidade coletiva para se inscrever enquanto sujeitos. Porge (2009)Porge, E. (2009). Un sujet sans subjectivité. Essaim, 1(22), 23-34. doi: 10.3917/ess.022.0023
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descreve que subjetividade e sujeito são dois temas distintos que se excluem entre si. Ele defende que falar em novos sujeitos a partir de uma nova economia psíquica não se adequa ao sentido psicanalítico, que em seu papel não deve confundir sujeito com subjetividade. A subjetividade seria assunto mais adequado ao campo da psicologia, da sociologia e do direito, e o psicanalista deve ser um especialista do sujeito. Entretanto, o autor aponta que essa ideia de "novo sujeito", "novos sintomas", "nova economia psíquica" é uma corrente de pensamento incitada pelas publicações de Melman e Lebrun. Em O homem sem gravidade (Melman, 2008Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.), deparamos com a difusão da ideia de que o sujeito do inconsciente freudiano encontra-se desabrigado, perdido, sem possibilidade de sustentação, sem gravidade.

Para Arantes (2014)Arantes, U. (2014). Goze! Notas sobre a nova economia psíquica. Caderno de Psicanálise, 36(31), 95-113. Recuperado de, http://www.cprj.com.br/imagenscadernos/caderno31_pdf/Goze_Notas_sobre_a_Nova_Economia_Psiquica.pdf
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, atualmente a psicanálise constata o desaparecimento das neuroses tradicionais, cedendo lugar a estados borderline. Acontece que, sempre que o sintoma existir, o que, por um lado, está curado, por outro, passa a ser sofrido (Melman, 2008Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.).

Uma invenção do século XIX

Adentramos o aspecto da "invenção" da histeria, cena da qual Charcot foi personagem importante, com o propósito de perpassar o percurso que levou Freud a se interessar pela histeria a ponto de torná-la fundamental para desenvolvimento da psicanálise.

O termo que se destaca é "invenção", cujo significado vem do latim Inventio que significa "achado, descoberta". Aqui, o prefixo In já promove a ideia de algo que está dentro "em"; é como se invenção desse conta de algo que já existe e só falta emergir. Continentino (2006)Continentino, A. M. A. (2006). Alteridade no pensamento de Jacques Derrida: escritura, meio-luto, aporia (Tese de Doutorado). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. aponta que "invenção" pode ser entendida como abertura, para além do sentido de imaginação, criação, produção e desvelamento. Essa abertura comporta o desejo de invenção que persegue o pensamento, desejo este que está associado ao desejo de falar do impossível, do inominável. A autora considera que a essência da invenção é a abertura ao novo que pode surgir do que já está cristalizado e, portanto, parece transparente, ou invisível.

Nada mais propício que pensemos a "invenção da histeria" de acordo com essa perspectiva, já que, como afirma essa autora, a histeria foi no passado e, apesar do suspeitado ofuscamento, ainda conserva "essa possibilidade de abertura para o inesperado, para o desdobramento de posturas há muito cristalizadas" (p. 205).

A histeria foi inventada por Charcot no hospital de Salpêtrière, em Paris. Esta instituição era considerada um estabelecimento asilar, com características de um grande hospício. Didi-Huberman (2003)Didi-Huberman, G. (2003). Invention of hysteria: Charcot and the Phptographic iconography of the Salpêtrière (A. Hartz, trad.). London, England: The MIT Press. sugere que era outra Bastilha, cujos muros isolavam dois incômodos da sociedade, dois assuntos marginalizados: a mulher e a loucura. Temos conferido essa característica de inventor da histeria a Charcot, devido a seu trabalho para estabelecer a nosologia e a nosagrafia daquelas manifestações sintomáticas pouco conhecidas e de caráter duvidoso, com as quais ele se deparou em Salpêtrière, visto que não havia correspondente anatômico para justificar a ocorrência da patologia. Antes de Charcot a histeria não existia nos manuais médicos, era vista apenas como parte sintomática de outros tipos de adoecimento, como a epilepsia; ou como parte de mistério, que ocorria desde tempos antigos (Didi-Huberman, 2003Didi-Huberman, G. (2003). Invention of hysteria: Charcot and the Phptographic iconography of the Salpêtrière (A. Hartz, trad.). London, England: The MIT Press.).

O primeiro texto de Freud sobre a histeria - Estudos sobre a histeria - foi publicado em 1895 e aparece como um dos primeiros volumes das obras completas de Freud. Escrito entre 1893 e 1895 por Freud e Breuer, Estudos sobre a histeria apresenta sementes teóricas, ainda pouco consistentes, da teoria psicanalítica, a saber, a noção de inconsciente, recalque, transferência, entre outras, que já aparecem no texto de modo embrionário. A nota do editor nos apresenta uma interessante suposição sobre o caráter desse estudo: a de que pode ser tratado como relato de uma história - A história da invenção do "primeiro instrumento para exame científico da mente humana" (Freud, 2006Freud, S. (2006). Estudos sobre a histeria. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas (Vol. 2). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1895), p. 20), isto é, a psicanálise. Mais uma vez é possível entender a importância da histeria à psicanálise. Lacan (1992Lacan, J. (1992). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (A. Roitman, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller)) é categórico ao afirmar: "foi do desejo da histérica que Freud extraiu seus significantes-mestres. Não se deve esquecer, com efeito, que Freud partiu daí" (p. 135).

Entre o pensamento lógico arraigado na postura médica e as ideias menos endurecidas, nessa obra a busca pela etiologia da histeria transita entre a concepção do trauma (causa externa) e a suscetibilidade do indivíduo (causa interna) para desenvolver o histórico de doença. Essa suscetibilidade pode ser dividida em dois níveis de compreensão; o termo daria conta de explicar uma predisposição inata intrapsíquica e ao mesmo tempo fala da idiossincrasia de cada pessoa. A partir desse ponto de vista nota-se que uma aproximação subjetiva, a busca para compreender o sujeito, se fazia necessário para tentar entender a histeria em sua expressão sintomática. Tratava-se de uma descrição do que viria a ser a clínica de Freud e de que tipo de histérica ele tratava, o que já demonstrava certa diferença se comparada às histéricas de Charcot (Freud, 2006Freud, S. (2006). Estudos sobre a histeria. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas (Vol. 2). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1895)).

Os estudos sobre a histeria possuem a particularidade de produzir uma dimensão da histeria para além do adoecer. Mesmo que, nessa obra, a histeria não fosse pensada ainda em termos de estrutura - pois, segundo Maurano (2010)Maurano, D. (2010). Histeria: o princípio de tudo. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira., o pensamento estruturalista atribuído a Lévi-Strauss é posterior a Freud - supomos que foi o pathos da histeria que possibilitou o empreendimento de Freud. Pathos sugere paixão e sofrimento; etimologicamente dá sentido a palavra patologia.

Denise Maurano (2010)Maurano, D. (2010). Histeria: o princípio de tudo. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. lança um olhar sobre a época em que se deram os surtos histéricos na Europa. A histeria, de acordo com a autora, enquanto reflexo de uma época, funcionaria como um paradigma da condição de seu tempo. E, no tempo de Freud, as influências contemporâneas - o relativismo, a queda da razão, a ênfase no amor e na sexualidade - pareciam servir de estímulo para o aparecimento das manifestações histéricas.

Dado o transcorrer do tempo e as mudanças culturais, o que a histeria pode refletir hoje em dia? Qual é o paradigma deste tempo para que ela venha ocorrer? Onde e de que maneira se apresenta?

Histeria - o feminino e a história que põe o pai em cena

Percebemos que sobre a histeria algo sempre se repetiu ao longo da história: a vinculação que se atribuiu ao feminino, independente das diversas explicações já sugeridas para o enigma, antes e depois da psicanálise. Um tanto pela associação histórica da histeria às mulheres, desde o período hipocrático, passando pela Idade Média, depois Charcot e suas pacientes do Salpêtrière. Até Freud, podemos dizer, contribuiu teoricamente para essa vinculação, pois seus relatos de casos na referida obra só apresentaram mulheres. Houve períodos, no entanto, em que houve uma desfeminilização da histeria, como no período da Renascença, no qual a histeria passou a ser relacionada a aspectos neurológicos e, nesse cerne, tanto mulheres quanto homens são passíveis de sofrer problemas dessa ordem (Ramos, 2009). Mas, aqui é necessário salientar que, como Maurano (2010)Maurano, D. (2010). Histeria: o princípio de tudo. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. explica, "masculino e feminino referem-se na psicanálise a posições que podem ser frequentadas tanto por homens quanto por mulheres, para além de serem distinções de gênero" (p. 42, grifo no original). Portanto, a concepção de feminilidade e a oposição que inevitavelmente se produz em relação à masculinidade, para a psicanálise, não se explicam somente por acepções sociológicas. Lacan (1992)Lacan, J. (1992). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (A. Roitman, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller) esclarece que essa exclusividade não é das mulheres, pois no nível do discurso exigido para o processo analítico, os homens não são diferentes.

Eis o discurso da histérica industriosa como ela é. Ao dizer industriosa, assim no feminino, fazemos da histérica uma mulher, mas isso não é privilégio seu. Muitos homens se analisam e, só por este fato, são forçados a também passar pelo discurso histérico, pois essa é a lei, a regra do jogo. (p. 34)

Melman (1985)Melman, C. (1985). Novos estudos sobre a histeria (D. Levy, trad.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas. traz a posição feminina como referência de lugar, mais precisamente o enigma do lugar que é reservado à mulher. Isso porque a mulher é essencialmente a própria figura do exilado, na medida em que sua castração é tida como real. É como se a castração na mulher mais do que uma ameaça consolidasse a perda do trono que é sustentado pela primazia do falo. E é sobre esse território do exílio que o feminino se constitui.

O sintoma histérico surge como resultado notável da imposição da realidade psíquica sobre a realidade material. Isto é, há uma verdade subjetiva. São expressões singulares constituídas do fantasma, da questão do trauma que faz aparecer o pai (Melman, 1985Melman, C. (1985). Novos estudos sobre a histeria (D. Levy, trad.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.). O pai Real, que é o agente da castração (Lacan, 1992Lacan, J. (1992). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (A. Roitman, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller)).

É definida como a cena violenta a transformação da relação com o pai que se processa nas meninas - transformação de uma relação incialmente "fundada no amor e na identidade para uma marcada pelo sexo e a alteridade" (Melman, 1985Melman, C. (1985). Novos estudos sobre a histeria (D. Levy, trad.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 38). Essa cena inaugura uma queda, no sentido da perda do trono, em um roteiro no qual, até um determinado momento, a menina desenvolve a mesma atividade fálica que os meninos e depois descobre que está condenada a outro destino. O destino que implica uma espécie de abandono subjetivo, visto que o pai já não poderia mais garantir o reconhecimento de sua identidade. Deve ser por essa razão que a histérica busca um mestre, como substituto potencial desse pai que não lhe garantiu um senso de segurança subjetiva. Para Lacan (1992)Lacan, J. (1992). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (A. Roitman, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller), a histérica quer um mestre, e indaga se não seria daí que o mestre foi inventado.

Nesse ínterim de elaborações acerca do fenômeno histérico, Melman (1985)Melman, C. (1985). Novos estudos sobre a histeria (D. Levy, trad.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas. aponta que a expressão sintomática histérica (esta doença que não é doença) é o mesmo que uma proteção ao pai, pois mesmo quando o fantasma apresentava o triunfo da relação incestuosa, em tempo, a denúncia do incesto também protegia o pai da suspeita de impotência que poderia pairar sobre ele. Desse modo, a histeria, em última análise, pode ser compreendida como proteção ao pai. Essa formulação será importante para se pensar, por exemplo, a questão de que, se na contemporaneidade, estamos diante da visível destituição do pai de sua função Real, do suposto enfraquecimento ou mesmo ausência do significante mestre, do Outro, do referente, a histeria surge como uma expressão para reafirmar essa potência esquecida.

A princípio, pensamos que conceber a noção do pai destituído seria um forte indício para supor o desaparecimento da histeria. No entanto, o que a leitura nos suscita é justamente o contrário. Melman (1985)Melman, C. (1985). Novos estudos sobre a histeria (D. Levy, trad.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas. parece sugerir que este pai supostamente morto está vivo enquanto a histeria acontecer, porque a histérica protege o pai do declínio. Ela promove uma retirada do pai do seu lugar-comum, onde ele deixa de ser aquele a quem todos reconhecem de igual maneira, sem o privilégio da sua função simbólica, que instaura a lei (Kehl, 2002Kehl, M. R. (2002). Sobre ética e psicanálise. São Paulo, SP: Companhia das Letras.). A histérica teria por objetivo, portanto, modificar a representação patética do pai, visto que seja pouco interessante para sustentá-la enquanto sujeito que deseja - característica essencial, pois onde alguma coisa falta existe um sujeito (Lacan, 1992Lacan, J. (1992). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (A. Roitman, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller)). Isso explicaria, por exemplo, o porquê de a histérica freudiana ter feito de seu pai um criminoso: desse modo concedeu-lhe um lugar enfatizado.

Ainda sobre a lógica contraditória quanto à questão do lugar do pai no universo histérico, parece pertinente considerar que na histeria há uma insistência em fazer do pai o suporte da sua expressão e, desse modo, fazê-lo príncipe de um reino no qual a histérica pudesse ser rainha. Segundo Lacan (1992)Lacan, J. (1992). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (A. Roitman, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller) a histérica faz o mestre, ela sempre quer que o outro saiba mais, mas não ao ponto de saber que ela é a recompensa para todo o seu saber, ela "quer um mestre sobre o qual reine. Ela reina, e ele não governa" (p. 136). Ao passo que faz isso se torna também um sujeito, sujeito de direito3 3 Kehl (2002) menciona o "sujeito de direito" como sendo a subjetividade moldada no modo de vida burguês, predominante na Europa do século XIX, período que foi palco da expressão do sofrimento das histéricas, meio pelo qual se produziu um sentido digno de escuta. Sujeito de direito, aqui, também tem um sentido de "lugar social", de saída da posição de exilado que equivale ao lugar da mulher e do feminino, na medida em que esse lugar só pode ser pensado como falta. Esse movimento da histérica de produzir o mestre é semelhante ao que ocorre na interação em análise, pois assim como o mestre confere um lugar de reconhecimento à histérica, o analista tem, segundo Arantes (2014), a tarefa fundamental de ser "um lugar que dá lugar ao que não tinha lugar reconhecido" (p. 108). .

Retiramos dessa suposição que, aquilo que antes poderia ser atributo do fazer-se mulher, em referência à sua posição de exilado, atualmente pode ser tomado como predicado de toda e qualquer pessoa que se encontra perdida, sem ter a quem se remeter, sem um pai que lhe proporcione integração e validação enquanto sujeito. Risco que também anuncia que, além do declínio do pai, lidamos com os efeitos de um mundo sem bordas, fragilizado pela inexistência de fronteiras. Efeitos tais que diante da supressão de barreiras podem muito bem nos remeter a um lugar sem chão ou céu.

A emergência de uma nova economia psíquica

O apagamento das fronteiras, a suspensão de limites e a mixagem paradoxal das línguas no inconsciente caracterizam o que Melman pensa sobre contemporaneidade. O mundo contemporâneo encontra-se sob o regimento de uma nova ordem, a de que passamos por uma mutação cultural e estamos diante da emergência de uma nova economia psíquica (NEP). E isso estaria produzindo novos sujeitos e novas patologias. Para Porge (2009)Porge, E. (2009). Un sujet sans subjectivité. Essaim, 1(22), 23-34. doi: 10.3917/ess.022.0023
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, no entanto, tal afirmação assinala uma radicalização de um dos primeiros trabalhos de Lebrun, Um mundo sem limite, publicado em 1997. A radicalização teria se dado sobre a concepção de que as novas patologias não denotam uma nova estrutura psíquica, mas uma nova possibilidade de contravenção às leis da linguagem (Lebrun, 2009 citado por Porge, 2009Porge, E. (2009). Un sujet sans subjectivité. Essaim, 1(22), 23-34. doi: 10.3917/ess.022.0023
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). A coerência desse pensamento com as ideias que destacamos até então é de que as vicissitudes e os discursos dominantes de uma determinada época e cultura são determinantes para promover algumas mudanças. A suposição de que alguma alteração tenha ocorrido na dinâmica do psiquismo refere que antigamente havia uma submissão à lógica da repressão que hoje não é tão mais poderosa como parecia no passado. Hoje estamos à mercê da exigência da livre expressão dos desejos.

Chamamos de tese o que Melman (2008)Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud. defende como mutação cultural e nova economia psíquica, porque ele segue desenvolvendo essas ideias, sempre presentes em suas produções faladas e/ou escritas e o temos como referência para este estudo. Em O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço, resultado de conversas com Lebrun, Melman explica mais esmiuçadamente tal tese. O pensamento impresso nesse livro pode ser definido como o empreendimento em produzir uma teoria sobre o sujeito contemporâneo que funciona sob o código de uma economia psíquica diferente daquela que Freud investiu em explicitar.

A comparação entre a economia psíquica que Freud estudou e a NEP de Melman é ponto crucial para nós, na medida em que pretendemos compreender os rumos da neurose histérica dentro desse processo de mutação cultural que supostamente estamos vivendo.

A emergência da nova economia consiste, em linhas gerais, em uma nova forma de se relacionar com o objeto, efeito e resultado de uma mutação cultural inédita, caracterizada, entre outras coisas, pela crise das referências, pelo desaparecimento do sagrado (aquilo que sustenta tanto o sexo quanto a morte), pela liquidação das transferências, pelos excessos, a ausência de limites. O objeto causa do desejo, antes perdido e ausente, por essência, perdeu seu estatuto, está se presentificando, e as possibilidades de substituição são infinitas (Melman, 2008Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.).

Um traço da nova economia psíquica seria a de que a divisão subjetiva quase não acontece mais. Aquele sujeito dividido, que questionava a existência, estaria se transformando em um sujeito inteiro. É preciso entender que, do ponto de vista de Melman (2008)Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud., ser inteiro indica um paradoxo porque subtrai ao invés de somar as características que faz do ser humano um ser diferenciado dentre as espécies animais.

O ideal de liberdade, que parece ser realidade nesse contexto de mutação cultural, implica o aprisionamento do sujeito em uma região de limbo, onde se encontram desorientados, perdidos; em um mundo onde ele não sabe mais se está vivendo ou sonhando. A liberdade, nesses termos, torna-se danosa, porque se tudo é permitido, não exige mais dos indivíduos tanta reflexão nem escolha.

Essa suspeita nos remete ao que Lacan (1992)Lacan, J. (1992). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (A. Roitman, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller) diz sobre o ateísmo da psicanálise, quando explica que é um ateísmo diverso do comum "Deus está morto". Nesse caso, poderíamos pensar que sem Deus, sem a interdição, tudo seria permitido. No entanto, a compressão é justamente contrária:

Indiquei há tempos que diante da frase do velho pai Karamazov, se Deus está morto, então tudo é permitido, a conclusão que se impõe no texto da nossa experiência é que Deus está morto tem como resposta nada mais é permitido. (p. 126)

Sendo assim, o imperativo do gozo está mais para um castigo do que para uma alegre liberdade. Se, por um lado, isso demanda cada vez menos do sujeito, por outro, não oferece mais suporte para sua realidade, que outrora deveria ser organizada pela decepção ou insatisfação.

Uma das prerrogativas dessa nova ordem de sujeitos inteiros, liberados do peso da culpa e da dívida é que a entropia seja máxima (Melman, 2008Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.). Entropia é uma propriedade física, uma grandeza utilizada na termodinâmica para medir o nível de degradação de energia num sistema. A máxima entropia ocorre quando o desequilíbrio está elevado, quando é alto o grau de desordem de um sistema (Dicionário Larousse, 2005Rodrigues, D., & Nuno, F. (Org.). (2005). Dicionário Larousse - Língua portuguesa. São Paulo, SP: Larousse do Brasil.). Portanto, quanto maior a entropia, maior a propensão de um retorno a um grande equilíbrio, que de tão equilibrado está quase sem vida. É como uma água parada que sugere morte.

Melman (2008)Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud. escreve "máxima entropia" (p. 60) para falar desse conforto quase mortífero que recai sobre as pessoas, hoje. Conforto que consiste numa defesa contra o desejo atormentador, mas necessário à vida. A impossibilidade de realização dos desejos, visto que realizá-los já não é mais uma conquista, faz que os desejos se tornem fluidos e escassos, e o que deveria representar um tipo de conforto se transforma num tipo de sedação.

O homem sem gravidade (Melman, 2008Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.) nos convida a olhar para o sujeito como quem perdeu sua dimensão específica, a de sujeito dividido, submetido ao impossível, organizado na assimetria. Falamos do que abrange a condição para a neurose, seja enquanto estrutura ou sintoma. Melman (2008)Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud. acredita que passamos da cultura da neurose para a cultura na qual a estrutura predominante é ou será a perversão. Uma perversão generalizada é o que faria laço social no momento em que chegamos e para onde continuamos progredindo.

Isso quer dizer que estamos ao passo de uma neurose que não aparece mais? Ao que nos parece, a questão vai além das contradições do existe e do não existe que recai, na nossa proposição principalmente, no que tange a histeria. A questão é tentar entender a neurose perante as mudanças decorrentes desse progresso.

Se o desejo é fundamentalmente perverso, a neurose continuaria funcionando como uma defesa contra a perversão. Dessa maneira, já que foi sugerido estarmos vivendo em uma sociedade de perversos, o neurótico deixa então de ser a regra e passa ser a exceção. Passam a ser os neuróticos que, de alguma forma, denunciam a perda do paradeiro; aqueles que reclamam, através dos sintomas que as condições contemporâneas propiciam ou promovem.

Pelo que se observa dos sintomas atuais, a neurose não deixa de se mostrar atuante, sobretudo na cultura propensa à perversão, porque é justamente devido a esta situação que a defesa aumenta. Tanto que chegamos ao ápice de anunciar que vivemos numa "sociedade dos sintomas" (Laurent, 2007Laurent, E. (2007). A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa.). Os sintomas, hoje, representam uma via de reconhecimento - a exemplo do que se produziu com a histeria do século XIX (Zanotti, Abellhauser, Gaspard, & Besset, 2013Zanotti, S. V., Abelhauser, A., Gaspard, J-L., & Besset, V. L. (2013). Aux limites de l'hysterie, la douleur chronique. Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental, 16(3), 425-437. Recuperado de http://dx.doi.org/10.1590/S1415-47142013000300006
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).

O fato é que o mal-estar atual é diferente daquele que Freud indicou, e talvez possamos dizer que a neurose, enquanto representante de uma defesa contra a falta nos dias de hoje, apresente uma defesa contra os excessos. É possível que nisso se constitua uma explicação para a epidemia de alguns sintomas hoje em dia, sejam eles classificados como orgânicos ou psíquicos.

Os sujeitos, sob a ordem dessa nova economia psíquica, ainda se organizam em torno de um impossível. "Afinal de contas terão de arranjar para si um desconforto, de buscar sistematicamente instaurar o que não funciona, o que cria um conflito ou cria uma dificuldade" (Melman, 2008Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud., p. 92). A considerável alteração nesse caso ocorre no nível da demanda, porque se deve reconhecer que do núcleo das mudanças nas expressões de sofrimento contemporâneas, a mais notável é de que os sintomas não são mais reformulados no campo da reivindicação nem da demanda (Melman, 2008Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.).

De repente, aí encontramos uma das peças que justifique a ida cada vez mais frequente desses portadores dos "novos sintomas" aos consultórios psiquiátricos e às psicoterapias de promessa de cura rápida, para não dizer imediatas, algumas vezes. Melman (2008)Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud. cita exemplos que chegam a seu consultório corroborando esta reflexão. Quanto a nossa própria experiência, podemos dizer que na clínica da universidade4 4 Clínica do Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Universidade Federal de Alagoas. boa parte dos pacientes dificilmente consegue passar da queixa. A demanda que aparece é rarefeita, falta implicação e quase nunca as pessoas que buscam a psicoterapia passam ao nível de comunicar o seu desejo. Podemos supor que isso retrata também uma situação que alude a uma necessidade de mudança na clínica, no que concerne à posição do analista, pois também corre o risco da atopia.

Diante de uma atopia5 5 Sem lugar. para todos

Laurent (2007)Laurent, E. (2007). A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa. afirma que no contexto contemporâneo "o psicanalista deve permanecer atópico em relação à corrente principal da civilização que o arrasta" (p. 171), e escutar como quem se propõe a "ver" para além do alívio do sujeito o peso da sua relação com o gozo. Percebemos, então, que a atopia é a grande condição que afeta a todos.

A atopia é tema sempre presente nas discussões de Melman. Todavia, notamos uma sutil diferença na ligação que ele faz no que diz respeito à atopia subjetiva, no modo como ela aparece em Novos estudos sobre a histeria (1985) e em O homem sem gravidade (Melman, 2008Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.). Naquele, a atopia foi descrita como privilégio, primeiro do sujeito em posição feminina; depois, mais incisivamente referenciando a histérica. No texto mais recente, a atopia deixa de ser privilégio de alguns para ser condição de todos. Com base nessa pequena distinção, podemos supor que aquele sacrifício assumido pela histérica a fim de restituir a palavra do pai para que venha lhe dar sustentação, hoje em dia é um sacrifício assumido por todos os sujeitos "naturalmente" perdidos, desabrigados.

Diante da condição examinada, a histeria surge como uma alternativa ao projeto de sustentação subjetiva. Ocorre que do mesmo modo que se configurou uma alternativa para o impossível do sujeito no feminino se torna agora uma saída mais comum, e afeta a todos indiscriminadamente. Quando Lebrun expressa sua opinião menos pessimista quanto ao fato de que um razoável número de pessoas ainda realiza a operação de subjetivação, Melman (2008)Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud. responde: "com certeza, lidamos com subjetividades organizadas mais pela participação numa histeria coletiva, do que por determinação singular" (p. 64).

Histeria coletiva, como está definida no próprio texto, é uma expressão da neurose histérica manifestada coletivamente, o que produz o efeito de uma epidemia. Podemos supor que a histeria coletiva, da forma que foi referida por Melman (2008)Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud., tem o sentido mais de estrutura do que necessariamente a reprodução de sintomas histéricos por identificação. Entretanto, podemos dizer que é exatamente sobre um fenômeno dessa espécie que se discute, já que se fala em sujeitos identificados por uma deficiência, isto é, uma carência subjetiva generalizada, sujeitos carentes de ser (Kehl, 2002Kehl, M. R. (2002). Sobre ética e psicanálise. São Paulo, SP: Companhia das Letras.). Quer dizer também que o sujeito não parece ser mais capaz de se assumir por si mesmo. Responsabilidade e identidade passaram a ser adquiridas coletivamente. "O sujeito não é mais responsável, na medida em que sua determinação subjetiva não se origina mais no que seria uma aventura singular, numa escolha íntima, mas numa participação na histeria coletiva" (Melman, 2008Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud., p. 65).

Esse fenômeno nos faz pensar nas expressões sintomáticas, principalmente nas doenças em posição de destaque nos dias atuais, as quais, ao menos para nós, atualizam a denúncia do mal-estar contemporâneo, como a depressão e o pânico. Existem, ainda, as doenças classificadas como sendo do espectro histérico: a anorexia, a bulimia, toda a sorte de dismorfias corporais etc. E as identificadas como síndrome de dor crônica, por exemplo, a fibromialgia (Zanotti et al., 2013Zanotti, S. V., Abelhauser, A., Gaspard, J-L., & Besset, V. L. (2013). Aux limites de l'hysterie, la douleur chronique. Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental, 16(3), 425-437. Recuperado de http://dx.doi.org/10.1590/S1415-47142013000300006
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). Melman (2003)Melman, C. (2003). Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, RS: CMC. apresenta três questões clínicas atuais, dentro do processo da mutação cultural: a depressão, as toxicomanias e a histeria (esta em dimensão coletiva).

No momento cultural em que nos encontramos, a histeria aparece mais nitidamente de duas maneiras: pela estimulação ao espetáculo e pelo que Melman (2003)Melman, C. (2003). Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, RS: CMC. chama de "comunitarismo". No fim, ambas são formas de um sujeito se fazer notado, reconhecido.

O espetáculo tem a ver com o estado propenso a exibição de tudo, desde o mais supérfluo ao que geralmente seria tratado como mais valorizado na vida, como as trocas pessoais - está aí o gosto pelos reality shows, que não nos deixa em contradição. É cada vez mais dominante e crescente na sociedade essa vocação para o espetáculo, como se fosse o caminho ideal para se entrar no mundo. O outro caminho, o comunitarismo, ocorre pela reunião de diversas vozes separadas a fim de se transformar numa espécie de reivindicação, que geralmente reclama uma identidade. Separadas, as vozes dos sujeitos ignorados no campo da representação, são vozes mudas (Arantes, 2014Arantes, U. (2014). Goze! Notas sobre a nova economia psíquica. Caderno de Psicanálise, 36(31), 95-113. Recuperado de, http://www.cprj.com.br/imagenscadernos/caderno31_pdf/Goze_Notas_sobre_a_Nova_Economia_Psiquica.pdf
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; Melman, 2003Melman, C. (2003). Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, RS: CMC.).

Compreende-se que esses sujeitos forcluídos, em sofrimento, possam encontrar uma argumentação histórica qualquer que os façam reivindicar o reconhecimento de uma pertença comunitária que até aqui teria sido negligenciada; quer dizer, o comunitarismo é uma das manifestações dessas histerias coletivas. (Melman, 2003Melman, C. (2003). Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, RS: CMC., p. 104)

Isso nos remete aos grupos e/ou comunidades virtuais, hoje, bastante difundidos e de fácil acesso, pelos quais as pessoas buscam se autorizar enquanto sujeitos. A internet facilitou esse encontro que produz um comunitarismo muito potente no exercício dessa função de conferir voz e presença aos sujeitos que sozinhos são praticamente inaudíveis e invisíveis. Esses sujeitos, não falam mais por si, mas em nome da comunidade da qual participam. O fenômeno é paradoxal no sentido de que, enquanto essas comunidades dão suporte coletivamente, elas intensificam o mutismo singular e o anonimato. Contudo, não se pode negar que em termos de requerimento de sustentação surge como uma alternativa.

Trata-se de um modo contemporâneo de reivindicar um paradeiro, uma filiação. É uma postura semelhante à postura do sujeito histérico, quando associada à figura do estrangeiro exilado. Com o agravante de que se trata de uma reivindicação sem duplicidade, ou seja, não existe mais o Eu e a comunidade, hoje esta é assumida inteiramente. Em outras palavras, não é apenas uma parte representada do seu endereçamento ao Outro (Melman, 2008Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.). Na melhor das hipóteses, para não ser radical e dizer que o endereçamento não existe mais, é dito que ele se tornou autorreferente ou gasoso. Autorreferente num sentido bastante próximo ao modo como Laurent (2007)Laurent, E. (2007). A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa. expõe sua opinião sobre o gosto, que hoje em dia se vê de fácil submissão ao risco: "em toda essa bacanal mortífera, tão característica da nossa época, encontramos manifestações da busca de uma presença do Outro em nós" (p. 170).

O problema de o Sujeito ser inteiro

Em O homem sem gravidade (Melman, 2008Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.), os sujeitos aparecem adjetivados também como apátridas. Para nós, isso tem ligação com a percepção de que lidamos com a ausência dessa instância Outra, da referência paterna. A correlação se estende à figura do migrado que habita vários lugares, mas não encontra o seu lugar. Kehl (2002)Kehl, M. R. (2002). Sobre ética e psicanálise. São Paulo, SP: Companhia das Letras. relata que as sociedades contemporâneas produzem um sujeito cada vez mais centrado no eu e carente de ser, o que significa em outros termos que a filiação já não restaure por completo o campo simbólico que situa o sujeito. Um segundo sentido para a expressão "carente de ser", de acordo com a autora, é que o que está faltando para esses sujeitos carentes é ser o falo do Outro. Mas ao mesmo tempo, "esta posição de gozo que se perdeu, ou que nunca se teve" (p. 40).

Então nos questionamos: já houve algum paradeiro? É possível que em alguma época alguém tenha se beneficiado desse sentimento de integração plena, de ter encontrado um lugar no Outro que lhe favorecesse como sentimento de segurança total?

A nostalgia nascida desse tipo de análise acerca do contemporâneo causa tal impressão de que um dia isso já foi possível. No entanto, a prerrogativa psicanalítica, apesar de apontar o agravamento da situação, não consiste em defender tal perspectiva ou promessa de integração e plenitude; ao contrário, dá ênfase à cisão do sujeito, à sua incompletude, como condição específica. Diante das vicissitudes dos processos subjetivos atuais, essa característica deixou de ser algo que já existe para ser algo que precisa ser buscado (Figueiredo, 2008Figueiredo, L. C. (2008). Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo, SP: Escuta.).

Esse autor também afirma que o ideal de completude, de plena integração, é um ideal Romântico e do Iluminismo, defendido em cada segmento de modos diferentes. Tanto o Romantismo quanto o Iluminismo pretenderam combater a cisão e as dicotomias; a diferença entre os dois consiste em que o Romantismo tentou vencer as dicotomias pela harmonia e a unidade, enquanto o Iluminismo visou vencê-las pela superação de uma força sobre a outra nos jogos dicotômicos, por exemplo, consciente/inconsciente, corpo/mente. É através dessa explicação que autor sintetiza o que configura a problemática hoje: que a busca pela integração dentro dessa lógica do "fazer sentido" defasou a inserção do sujeito na experiência. Ele propõe a substituição da importância do fazer sentido pelo dar passagem, ou seja, a permissão para permanecer nos espaços entre, o que a nosso ver configura uma rejeição à totalidade.

Nesse ponto das elaborações, encontramos talvez o motivo de Melman considerar um problema no fato de o sujeito contemporâneo parecer inteiro. Figueiredo (2008)Figueiredo, L. C. (2008). Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo, SP: Escuta. nos ajuda a compreender, quando diz: "Quanto mais os aspectos da experiência - em particular das experiências afetivas mais intensas - são invalidadas por não encontrarem um contexto social de legitimação, mais cresce e pesa a força do inconsciente invalidado" (p. 37).

Essa referência ao inconsciente invalidado contribuiu para visualizar melhor a mutação que Melman (2008)Melman, C. (2008). O homem sem gravidade - gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun (S. R. Felgueiras, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud. supõe ter ocorrido no inconsciente e, sobretudo, quando ele alerta que o sujeito do inconsciente freudiano não existe mais. Além disso, Figueiredo (2008)Figueiredo, L. C. (2008). Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo, SP: Escuta. também nos auxilia a compreender que a divisão é importante por ser condição específica do sujeito. A hipótese é de que haja uma esquizoidia6 6 Não no sentido de definição da psicopatologia (não se trata do transtorno de personalidade), mas no sentido de "esquizo" como divisão, segregação. subjacente nos sujeitos, necessária para que estes se constituam como tal. Trata-se de uma suposição que foi desenvolvida a partir da concepção de Fairbairn, autor que Figueiredo (2008)Figueiredo, L. C. (2008). Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo, SP: Escuta. toma como referência para elaborar seu pensamento, que diz que toda subjetivação comporta uma esquizoidia, desde a fase inicial e como estrutura básica do psiquismo, até as saídas por meio de quadros sintomáticos7 7 Como defendem Zanotti et al. (2013) no estudo sobre a dor crônica. , sobretudo, em situações-limite e como via de reestruturação, após uma sequência de "desastres existenciais" (p. 46).

Ao que nos parece é pela via dos sintomas contemporâneos que os sujeitos ainda se apresentam em defesa dessa "divisão" que supostamente está desaparecendo. É importante antes dizer que não se trata de uma apologia ao sofrimento, nem ao adoecimento, mas um modo de perceber que há uma intencionalidade vigente no sofrimento humano que é fazer-se reconhecido, ainda mais quando a dimensão específica do sujeito parece quase inanimada.

Figueiredo (2008)Figueiredo, L. C. (2008). Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo, SP: Escuta. afirma que os quadros neuróticos, psicóticos e perversos seriam estratégias para lidar com a esquizoidia subjacente. É possível também que, hoje em dia, seja uma estratégia para fazê-la sobressair enquanto peculiaridade subjetiva que não deve ser esquecida. Talvez nisso consista o fato de a psicanálise não fazer da cura o seu maior objetivo, até porque a cura parece, nessas condições, ser inalcançável. Tendo em vista que "ninguém é curável de sua esquizoidia, porque ninguém é curável de si mesmo" (p. 50).

Segundo Figueiredo (2008)Figueiredo, L. C. (2008). Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo, SP: Escuta. a histeria é a primeira estação da viagem na qual as marcas da esquizoidia são visíveis. Pode ser considerada uma grande resistência ao "sistema fechado8 8 Fairbain chama de sistema fechado a estrutura endopsíquica doente, que limita ao máximo o contato com o outro, e que a terapia psicanalítica deve romper (Figueiredo, 2008, p. 50). ", o que dá a entender que o sujeito luta para se manter cindido de alguma forma. Pensamos que essa noção é coerente com a ideia de Melman de que estamos imersos em um processo que induz à histeria coletiva, sendo ela uma via para a sustentação e o reconhecimento enquanto sujeitos "ainda" divididos. O que mudou entre a histeria enquanto a primeira estação de Figueiredo e a histeria coletiva de Melman talvez tenha sido a expressão, a manifestação sintomática, seu sentido diante do que compreendemos por sintoma social.

Laurent (2007)Laurent, E. (2007). A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa. diz que uma das facetas da subjetividade contemporânea é "a busca de um sintoma em que valeria a pena acreditar" (p. 170). É certo que atualmente pouco se fala em histeria, até porque vem se convertendo em quadros diagnosticados como depressão e pânico. São os quadros ou diagnósticos investidos, aqueles que têm algum valor. Para Figueiredo (2008)Figueiredo, L. C. (2008). Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo, SP: Escuta., tais sintomas são formados para funcionarem como uma defesa contra o trauma. O trauma retorna, tal como Freud já o havia pensado em associação à histeria, nos primórdios. O que acontece é que essa transmutação sintomática deriva das mudanças ocorridas na cultura. De acordo com Laurent (2007)Laurent, E. (2007). A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa., "há novos sintomas toda vez que os significantes mestres se deslocam no Outro" (p. 175).

Foi preciso o declínio do pai para que o parricídio deixasse de ser interessante e a criança maltrada tomasse a frente da cena. Foi preciso a sociedade de consumo para que as epidemias anoréxicas e bulímicas desencadeadas adquirissem escala de massa, e para que de maneira mais global fosse as adições de todo tipo. Foi preciso uma crise na questão do Real para que a depressão como o "cansaço de ser o que se é" imperasse... . O avesso analítico da civilização contemporânea é o conjunto inconsistente das interpretações dadas a esses sintomas. (p. 175)

Então como se pode ver a mutação cultural não parece consistir num desaparecimento da neurose como um todo, nem da histeria. Mudaram as expressões; mudou, talvez, a função do sintoma. Desde as Novas formas clínicas no início do terceiro milênio (2003), Melman considera a histeria uma questão clínica de grande incidência na contemporaneidade e também não deixa de dizer, em sua ética analítica, que é um caminho para a ressignificação, resultante de uma reivindicação que surge para nos lembrar que a dimensão especifica do sujeito não está de todo perdida e que ainda há uma tentativa de restituir o Outro. E, em meio a desafios, também transformada, a clínica psicanalítica está aí para mostrar que a neurose não se extinguiu completamente, apesar do progresso e das transformações culturais.

Considerações finais

Freud e Melman, cada um em seu próprio tempo, e fazendo percursos diferentes, de algum modo parecem ter chegado a uma ideia comum sobre a histeria ser uma expressão do sujeito. Enquanto Freud concebeu em sua obra que a histeria era uma patologia do sentido, Melman nos conduz à discussão de que a histeria é resultado da tentativa de um reposicionamento subjetivo, uma (re)estrutura.

Os textos de Melman trabalham um ponto de vista que se tornou um questionamento e o cerne de nossa intuição inicial: o de pensar que a histeria depende quase que exclusivamente do recalque, enquanto força externa que funcionasse para vetar forças internas, ou seja, no sentido de repressão. A ideia era de que se hoje há o pretexto da livre expressão, o recalque, tão necessário à ocorrência da manifestação histérica, teria perdido sua função repressora, de modo que uma das consequências seria a desaparição da histeria. A questão é que a função do recalque não se resume somente à repressão dos desejos, mas é um dos agentes constitutivos do funcionamento do aparelho psíquico. Sendo assim, Melman vai pensar a histeria como uma expressão que se explica pela necessidade de reestruturar e ressignificar a posição subjetiva.

Uma direção constante que percebemos no texto de Melman foi o seu modo de pensar a histeria a partir da perspectiva da atopia subjetiva. Além dessa percepção, destacamos uma segunda ideia proposta de que a angústia gerada devido a tal condição - angústia que não deveria mais ser reconhecida como efeito do recalque/repressão - passa a ser reconhecida também como artefato que estimula a criação, cujo serviço se justifica em possibilitar a restituição do lugar supostamente perdido.

Supomos que Melman pensa a histeria do lado da pulsão e não por efeito da repressão. Desenvolvemos nossa própria especulação dando prosseguimento à ideia de que a histeria é o algoritmo de uma condição subjetiva especial, caracterizada pela atopia, por não ter lugar. Na contemporaneidade isso se popularizou e passou a ser condição generalizada.

Nosso estudo nos levou a pensar a contemporaneidade como uma atmosfera propícia para a expansão do número de sujeitos cada vez mais sem lugar. O progresso da cultura atual pôs também em cheque a dimensão específica do sujeito que era então caracterizada pela divisão. A divisão subjetiva, compreendida como a peculiaridade capaz de demonstrar que os sujeitos se organizam em torno de um impossível, é aquilo que os faz passar a vida questionando os limites de sua existência.

No entanto, se o sujeito dividido é o que assume o lugar do agente na histeria (Lacan, 1992Lacan, J. (1992). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (A. Roitman, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller)), e este sujeito está desaparecendo, então nada mais esperado que a histeria também desapareça. Todavia, é justamente aí que Melman apresenta a histeria "coletiva" como sendo um dos efeitos dessa nova disposição subjetiva.

Somos convidados a considerar histeria coletiva não como um surto grupal, e sim como a expressão das massas. Quando Melman fala que os sujeitos se afirmam mais por uma epidemia de histeria coletiva do que por uma aspiração individual, isso quer dizer que não se assumem mais por si mesmos. Nesse caso, entendemos que a histeria das massas aparece como um recurso para tentar garantir, ainda, um lugar onde as vozes dos sujeitos sejam ouvidas como tal; talvez implique dizer que hoje em dia está muito difícil se sustentar de outra maneira.

Enquanto refletimos a respeito do modo como Melman considera a manifestação da histeria na contemporaneidade, uma definição da histeria que pairou em torno de nossas conjecturas foi a de que pode ser tomada como "expressão da sensibilidade", termo mencionado por Elaine Showalter (2004)Showalter, E. (2004). Histórias histéricas: a histeria e a mídia moderna (E. Vaitsman, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Rocco..

Tomá-la por essa definição nos foi pertinente porque pode ser referida independente da época em que se olhe para o fenômeno, tendo em vista que a histeria, em termos de funcionalidade ou sentido, continua denunciando que há alguma falha, ou como Melman proferiu nos Novos estudos sobre a histeria (1985)Melman, C. (1985). Novos estudos sobre a histeria (D. Levy, trad.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas. que algo no Outro não está bem. Por isso a reivindicação de ser particularidade da expressão histérica.

O sintoma neurótico nos apresentou esse sujeito da psicanálise, o sujeito dividido. Kehl (2002)Kehl, M. R. (2002). Sobre ética e psicanálise. São Paulo, SP: Companhia das Letras. aponta que isso se deu desde a modernidade, devido a fragmentação das referências, que gerou instabilidade e desamparo aos homens. Para ele, o homem moderno desaprendeu a sofrer e "o sofrimento recusado lança sobre o eu uma sombra muito maior do que sua dimensão verdadeira" (p. 60).

Concernente a isso, hoje não é muito diferente da época de Freud. A economia psíquica pode ter mudado, o inconsciente ter se tornado invalidado, e os arranjos subjetivos serem outros, em decorrência dessas tais mutações. Entretanto, nossa leitura nos possibilitou ver que a neurose jamais cessa de ocorrer e que a histeria, como sua versão mais rica, sempre será uma expressão que aparece para demonstrar que a condição específica do sujeito - a de ser dividido - não está totalmente perdida.

A histeria é expressão da sensibilidade porque se apresenta como via pela qual a divisão subjetiva ainda pode ser reconhecida. Em Freud essa característica do sujeito foi "descoberta" através do estudo da histeria; em Melman o estudo sobre a histeria indica que ela deve ser recuperada.

A manifestação de uma histeria coletiva talvez seja a expressão da infelicidade comum que Freud referiu ainda nos seus estudos. Infelicidade que de tão comum talvez hoje se confunda com uma não existência. Os textos de Melman renovam as concepções desenvolvidas acerca da histeria até então, quando nos aponta que para além da denúncia, ela funciona como uma tentativa de muitos sujeitos de restituir os impossíveis e as faltas necessárias à sustentação; de restituir um lugar onde o sujeito se reencontre na busca por integração, ainda que inalcançável; e de assim conferir voz e autoridade ao pai/mestre quando esta parece silenciada. Basta que se olhe com mais atenção para os modos de manifestar a histeria na atualidade, seja pelo comunitarismo, seja pela propensão ao exibicionismo, espetáculo cotidiano, seja através de sintomas, para perceber que eles acontecem com a expressão de sujeitos sensíveis às mudanças que o progresso geralmente acarreta à vida humana.

Referências

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    » http://dx.doi.org/10.1590/S1415-47142013000300006
  • 1
    Fonte de financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas.
  • 2
    Livro originalmente lançado no Brasil, pois trata-se da transcrição de um seminário ministrado por Charles Melman na cidade de Curitiba em 2002.
  • 3
    Kehl (2002)Kehl, M. R. (2002). Sobre ética e psicanálise. São Paulo, SP: Companhia das Letras. menciona o "sujeito de direito" como sendo a subjetividade moldada no modo de vida burguês, predominante na Europa do século XIX, período que foi palco da expressão do sofrimento das histéricas, meio pelo qual se produziu um sentido digno de escuta. Sujeito de direito, aqui, também tem um sentido de "lugar social", de saída da posição de exilado que equivale ao lugar da mulher e do feminino, na medida em que esse lugar só pode ser pensado como falta. Esse movimento da histérica de produzir o mestre é semelhante ao que ocorre na interação em análise, pois assim como o mestre confere um lugar de reconhecimento à histérica, o analista tem, segundo Arantes (2014)Arantes, U. (2014). Goze! Notas sobre a nova economia psíquica. Caderno de Psicanálise, 36(31), 95-113. Recuperado de, http://www.cprj.com.br/imagenscadernos/caderno31_pdf/Goze_Notas_sobre_a_Nova_Economia_Psiquica.pdf
    http://www.cprj.com.br/imagenscadernos/c...
    , a tarefa fundamental de ser "um lugar que dá lugar ao que não tinha lugar reconhecido" (p. 108).
  • 4
    Clínica do Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Universidade Federal de Alagoas.
  • 5
    Sem lugar.
  • 6
    Não no sentido de definição da psicopatologia (não se trata do transtorno de personalidade), mas no sentido de "esquizo" como divisão, segregação.
  • 7
    Como defendem Zanotti et al. (2013)Zanotti, S. V., Abelhauser, A., Gaspard, J-L., & Besset, V. L. (2013). Aux limites de l'hysterie, la douleur chronique. Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental, 16(3), 425-437. Recuperado de http://dx.doi.org/10.1590/S1415-47142013000300006
    http://dx.doi.org/10.1590/S1415-47142013...
    no estudo sobre a dor crônica.
  • 8
    Fairbain chama de sistema fechado a estrutura endopsíquica doente, que limita ao máximo o contato com o outro, e que a terapia psicanalítica deve romper (Figueiredo, 2008Figueiredo, L. C. (2008). Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo, SP: Escuta., p. 50).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2014
  • Revisado
    08 Mar 2015
  • Aceito
    27 Abr 2015
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