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Aspectos da dialogia do mito Madre Ñame na cultura indígena wounaan-nonam

Aspects of the Madre Ñame dialogism in the wounaan-nonam indigenous culture

Aspects de la dialogie du mythe Madre Ñame dans la culture indigène wounaan-nonam

Aspectos de la dialogia del mito Madre Ñame en la cultura indígena wounaan-nonam

Resumo:

Este artigo reflete sobre maneiras de articular as relações eu-outro-mundo emergentes em diálogos envolvendo o imaginário mítico da cultura wounaan-nonam, uma comunidade indígena que vive na floresta tropical do pacífico colombiano. Desde a perspectiva do construtivismo semiótico-cultural em psicologia, a relação eu-outro-mundo se produz na conservação e transformação das culturas pessoal e coletiva: nesse processo o outro é uma oportunidade para que o eu interrogue e seja interrogado no diálogo com a cultura tradicional. A construção da cultura pessoal - base de toda cultura humana - é um processo único, no qual cada pessoa cria ativamente relações de significado em um sistema de mitos que permite aberturas e fechamentos na geração de novos mitos no contexto da cultura coletiva. A articulação da relação eu-outro-mundo emerge da análise dialógica do mito Madre Ñame dessa comunidade.

Palavras-chave:
relações eu-outro-mundo; cultura coletiva; cultura pessoal; construtivismo semiótico-cultural em psicologia

Abstract:

This article reflects on modes of articulation in I-other-world relationships emerged in dialogues encompassing the mythical imagination of the wounaan-nonam, an indigenous community that lives in the tropical forest region of Colombia's pacific coast. From the perspective of the Semiotic-Cultural Constructivism, the I-other-world relationships is a symbolic interplay that happens in the preservation and transformation of personal culture and collective culture, in which the other is an opportunity for the I to question and be questioned by the traditional culture. The construction of personal culture - the basis for all human conduct - is a unique process according to each a person creates meaningful relations in a system of myths that emerges in a dynamics of oppositions, allowing openings and closings in the process of generation of new myths in the collective culture. In this article, the articulation of the I-other-world relationship emerges from the dialogical analysis of the Madre Ñame myth.

Keywords:
I-other-world relationships; collective culture; personal culture; semiotic-cultural constructivism in Psychology

Résumé:

Cet article réfléchit sur les manières d'articuler les relations je-autre-monde qui émergent dans des dialogues enveloppant l'imaginaire mythique de la culture wounaan-nonam, c'est-à-dire d'une communauté qui vit dans la région de la forêt tropicale do Pacifique colombienne. À partir de la perspective du Constructivisme Sémiotique-Cultural en Psychologie, la relation je-autre-monde est produit dans la conservation et transformation des cultures personnel et collective, où l'autre est une opportunité pour le je interroger et être interrogé dans le dialogue avec la culture traditionnel. La construction de la culture personnel - base de toute la culture humaine - est un processus unique pour chaque personne qui créer activement des relations de signification dans un système de mythes qui surgit en permettant des ouvertures et fermetures dans la génération des nouveaux mythes dans la culture collective. Dans cet article, l'articulation de la relation je-autre-monde émerge de l'analyse dialogique du mythe Madre Ñame, mythe d'origine de la culture wounaan-nonam.

Mots clés:
relations je-autre-monde; culture collective; culture personnel; constructivisme sémiotique-culturel en psychologie

Resumen:

Este artículo reflexiona sobre los modos de articulación de las relaciones yo-otro-mundo que emergen en los diálogos del imaginario mítico de la cultura wounaan-nonam, comunidad indígena que vive en la selva tropical del pacífico colombiano. Desde el Constructivismo Semiótico Cultural en Psicología, la relación yo-otro-mundo se produce en la conservación y transformación de la cultura personal y la cultura colectiva. En este proceso, el otro es una oportunidad para que el yo cuestione y sea cuestionado en el diálogo con la cultura tradicional. La construcción de la cultura personal -base de toda conducta humana- es un proceso único, en el que cada persona crea activamente relaciones de significado en un sistema de mitos que permite el avance o el cierre de nuevos mitos en el contexto de la cultura colectiva. La articulación de la relación yo-otro-mundo emerge del análisis dialógico del mito Madre Ñame en esta comunidad.

Palabras clave:
relaciones yo-otro-mundo; cultura colectiva; cultura personal; constructivismo semiótico-cultural en psicología

Neste artigo abordaremos modos de articulação nas relações eu-outro-mundo emergidas em diálogos no âmbito do imaginário mítico dos wounaan-nonam, comunidade indígena que vive às margens do rio San Juan, na localidade de Puerto Pizario, situada na região da floresta tropical do litoral pacífico colombiano. Com isso buscamos dar continuidade a uma das vertentes de pesquisa do construtivismo semiótico-cultural (CSC) em psicologia, que busca explorar as possibilidades abertas pela análise dialógica das relações eu-outro-mundo para a compreensão do desenvolvimento humano (Simão, 2010Simão, L. M. (2010). Ensaios dialógicos: compartilhamento e diferença nas relações eu-outro. São Paulo, SP: Hucitec.).

As relações eu-outro-mundo oportunizam um processo de significação em que ocorre uma multiplicidade de reconstruções das mensagens dirigidas pelas pessoas, umas às outras. Nesse processo dialógico, cada pessoa transforma ativamente as expressões de outrem, tentando integrá-las em sua base afetivo-cognitiva pessoal, que via de regra também se transforma. Esse processo diz respeito à dinâmica do entre jogo simbólico que ocorre não somente, mas também, na preservação e transformação culturais, em que o outro constitui-se em oportunidade para o eu indagar e ser indagado pela tradição cultural (Boesch, 1991Boesch, E. (1991). Symbolic action theory and cultural psychology. Berlin- Heidelberg, Alemanha: Springer-Verlag.; Gadamer, 1975/1996Gadamer, H.-G. (1996). Verdad y método (Vol. I). Salamanca, Espanha: Ediciones Sígueme. (Trabalho original publicado em 1975); Simão, 2010Simão, L. M. (2010). Ensaios dialógicos: compartilhamento e diferença nas relações eu-outro. São Paulo, SP: Hucitec.; 2012Simão, L. M. (2012). The other in the self: a triadic unit. In J. Valsiner (Ed.), The Oxford handbook of culture and psychology (pp. 403-420). New York, NY: Oxford University Press.).

Está aqui em jogo a dinâmica da relação: cultura pessoal e cultura coletiva, tal como proposta por Valsiner (2013)Valsiner, J. (2013). An invitation to cultural psychology. London, UK: Sage.:

As duas noções - cultura pessoal e cultura coletiva - são noções "gêmeas" - elas representam processos entre a pessoa e o mundo social que se ligam mutuamente pelo processo de internalização/externalização. Entretanto, ambas essas culturas têm sua especificidade - ambas são únicas, na medida em que são transformações construtivas de uma na outra. (p. 223)

A cultura coletiva é um sistema semiótico de regulação, em que a construção e o uso de signos transformam o contexto do aqui e agora do ser humano. No entanto, embora os seres humanos possam distanciar-se de dado contexto no qual estão culturalmente (semioticamente) imersos, ainda assim permanecem como partes integrantes desse mesmo contexto. Portanto, a proximidade e o distanciamento da situação concreta na qual a pessoa está imersa é uma característica da relação sujeito-cultura (Valsiner, 2007Valsiner, J. (2007). Culture in mind and societies: Foundations of cultural psychology. London, UK: Sage.).

A construção da cultura pessoal, base de toda conduta humana, é um processo único para cada pessoa, que vai ativamente tecendo relações de significado entre aspectos da semiosfera. Na cultura pessoal está um sistema de mitos que encerra, ele mesmo, uma dinâmica de oposições e superações, gerando novos mitos, e assim por diante (Valsiner, 2013Valsiner, J. (2013). An invitation to cultural psychology. London, UK: Sage.).

A partir das reflexões sobre a origem social do pensamento, Valsiner (2013)Valsiner, J. (2013). An invitation to cultural psychology. London, UK: Sage. propõe ainda um terceiro nível em relação aos das culturas pessoal e coletiva que enquadra a criatividade desta última: o das representações sociais, que

codificam o meio de maneira a especificar direções para a conduta esperada - e sentimento a respeito desse contato esperado, pelo si mesmo e pelo outro. Elas se mantêm também no sistema de internalização da pessoa - em diferentes camadas de internalização. (p. 223)

Boesch (1991)Boesch, E. (1991). Symbolic action theory and cultural psychology. Berlin- Heidelberg, Alemanha: Springer-Verlag. já apontara o papel canalizador das direções da ação simbólica do sujeito no campo de ação cultural, em sua clássica definição de cultura:

A cultura é um campo de ação, cujos conteúdos vão desde objetos feitos e usados pelos seres humanos até instituições, ideias e mitos. Sendo um campo de ação, a cultura oferece possibilidades, mas, na mesma medida, estipula condições para a ação, ela circunscreve metas que podem ser conseguidas por certos meios, mas estabelece limites, também, para ações corretas, possíveis e desviantes. Como um campo de ação, a cultura não apenas induz e controla a ação, mas também é continuamente transformada por ela; portanto, a cultura é tanto um processo como uma estrutura. (p. 29)

Nessa definição, o campo de ação "cultura" abarca não só conteúdos materiais, mas também conteúdos ideacionais, que determinam, de maneira importante, o significado de aspectos materiais do ambiente. Para Boesch, tal como as leis, as teorias científicas, as crenças morais e os juízos estéticos, os mitos são conteúdos ideacionais que formam o campo cultural, e nele se formam. Nessa perspectiva, os conteúdos ideacionais, incluído o mito, integram a estrutura processual que é a cultura, tendo precedência sobre os conteúdos materiais.

Os mitos, ao possibilitarem a construção de enquadres de julgamento muito mais irrefletidos que os outros conteúdos ideacionais da cultura, estão mais próximos ao "senso comum" (Boesch, 1991Boesch, E. (1991). Symbolic action theory and cultural psychology. Berlin- Heidelberg, Alemanha: Springer-Verlag.).

Ao lado de seu caráter tácito, Boesch (1991)Boesch, E. (1991). Symbolic action theory and cultural psychology. Berlin- Heidelberg, Alemanha: Springer-Verlag. destaca o fato de que os mitos são, por assim dizer, paradigmáticos das influências sociais sobre o desenvolvimento individual. Trata-se, entretanto, de um tipo de influência que se dá necessariamente através de um processo pessoal de elaboração que, por sua vez, transforma o próprio mito. Embora concordando com Lévi-Strauss a respeito de que os mitos têm uma estrutura básica latente que subjaz suas diversas versões, Boesch (1991)Boesch, E. (1991). Symbolic action theory and cultural psychology. Berlin- Heidelberg, Alemanha: Springer-Verlag. argumenta que o que de fato orienta as atitudes e legitimações da pessoa criada em uma dada cultura não são os mitos enquanto estruturas lógicas abstratas, mas as histórias míticas, que particularizam o padrão do mito em temas e atitudes centrais da vida pessoal e cotidiana.

As histórias míticas podem ser expressas de diversas maneiras, por diferentes pessoas e em diversos momentos de suas vidas. Mitos e histórias míticas possuem temas específicos, a que Boesch chama de "mitemas". Os mitemas têm origem coletiva, mas tornam-se componentes subjetivos das histórias individuais, através do "boca a boca" ou através de modelos de comportamento transmitidos entre as gerações (Boesch, 1991Boesch, E. (1991). Symbolic action theory and cultural psychology. Berlin- Heidelberg, Alemanha: Springer-Verlag.). Dessa maneira, a relação bidirecional entre mito-mitemas e histórias míticas permitem estabelecer as relações entre mitos e senso comum.

A análise dialógica do mito Madre Ñame da cultura indígena wounaan-nonam articula três dimensões diferenciadas e inter-relacionadas da construção das relações eu-outro-mundo: cultural, dialógico e reflexivo (Simão, 2013Simão, L. M. (2013). The contemporary perspective of the Semiotic Cultural Constructivism: for a hermeneutical reflexivity in Psychology. In G. Marsico, R. Ruggieri & S. Salvatore (Orgs.), YIS: the yearbook of idiographic science (Vol. 6, Reflexivity and Change in Psychology). Charlotte, NC: Information Age Publishers.). Essas dimensões são abordadas principalmente através de noções de mito, histórias míticas, mitemas e fantasmas, da psicologia da ação simbólica de Boesch (1991)Boesch, E. (1991). Symbolic action theory and cultural psychology. Berlin- Heidelberg, Alemanha: Springer-Verlag.; da relação entre cultura pessoal e cultura coletiva na psicologia semiótico-cultural de Valsiner (2007)Valsiner, J. (2007). Culture in mind and societies: Foundations of cultural psychology. London, UK: Sage. e da dialogia das representações sociais na epistemologia dialógica de Marková (2003)Marková, I. (2003). Dialogicality and social representations: the dynamics of mind. Cambridge, UK: Cambridge University Press..

A comunidade indígena wounaan-nonam na floresta do pacífico colombiano

A comunidade indígena wounaan-nonam situa-se em Puerto Pizario, às margens do rio San Juan, que possui uma variedade de peixes, fonte principal de alimento para a comunidade. Seu território abrange uma área densa da floresta e áreas mais rarefeitas, próximas às aldeias, que se constituem em importante reserva animal, vegetal e mineral, especialmente de ouro e prata. A Figura 1 mostra esquematicamente a localização de Puerto Pizario na costa colombiana do Pacífico.

Figura 1
Localização de Puerto Pizario na costa colombiana do Pacífico

A atividade econômica da comunidade wounaan-nonam assenta-se na caça, pesca, cultivo, corte de árvores com regulação comunitária para sustentabilidade e extração da fibra da palma de werregue, com que elaboram artesanato, comercialmente muito apreciado. O artesanato constitui, para os wounaan-nonam, a principal fonte de renda para a obtenção de produtos que não possuem e que lhes são necessários à vida cotidiana, como sal, velas, gasolina e ferramentas. A Figura 2 apresenta o trabalho de artesanato de uma família indígena wounaan-nonam.

Figura 2
Artesanato dos indígenas wounaan-nonam

Nos assentamentos wounaan-nonam é usual haver uma escola e um depósito de comércio de bens de consumo básicos. Pode haver também um posto de saúde e uma Casa Dichaardi, que é o lugar comunitário de encontros e celebrações wounaan-nonam. Em Puerto Pizario, essa casa é o centro das atividades do programa Hogares Comunitarios del Instituto Colombiano de Bienestar Familiar (HC-ICBF). Na fotografia abaixo (Figura 3), pode-se ver um aspecto da distribuição territorial na reserva indígena wounaan-nonam de Puerto Pizario.

Figura 3
Distribuição territorial da reserva indígena de Puerto Pizario. Contribuição fotográfica de Nolberta Malaga. Líder Indígena wounaan-nonam

A Figura 4 mostra uma reunião das mães comunitárias no lar comunitário do ICBF.

Figura 4
Mães comunitárias no lar do ICBF, Colômbia

A língua falada pelo wounaan-nonam é o wounaan, pertencente ao grupo linguístico Choco, uma das marcas indenitárias da comunidade. A inclusão da escola em alguns assentamentos permite às crianças aprenderem o espanhol, continuando assim seu processo de escolarização e participando de outras atividades, inclusive acadêmicas e econômicas, em diversas partes da Colômbia. Entretanto, até a década de oitenta, apenas alguns homens falavam espanhol, de modo a viabilizar relações comerciais com outras comunidades e conseguir aqueles produtos básicos não disponíveis ou manufaturáveis a partir das extrações florestais, da caça e da pesca.

Todos os aprendizados na cultura wounaan-nonam se dão por meio da transmissão da linguagem oral e da participação ativa dos membros da comunidade nas atividades lúdicas, nos cantos, nos bailes, nas danças, nas assembleias, nas comitivas e nas mingas (trabalho comunitário), ou seja, no diálogo geracional propiciado pelo convívio entre crianças, jovens e adultos, inerente às práticas comunitárias. Destacam-se aí os encontros sistemáticos que os adultos (os líderes espirituais e os conselheiros) têm com as crianças, na Casa Dichaardi, para lhes relatar suas experiências e com elas compartilhar o saber ancestral da cultura wounaan-nonam. A Figura 5 apresenta um encontro comunitário, parte de um processo de recuperação de práticas culturais, desenvolvido na comunidade em 2005.

Figura 5
Encontro na Casa De Chardi, Resguardo de Puerto Pizario. Contribuição fotográfica de Nolberta Malaga. Líder Indígena wounaan-nonam

Uma narração comunitária do mito Madre Ñame

Durante o processo de recuperação de práticas culturais na aldeia indígena wounaan-nonam de Puerto Pizario (Sánchez & Málaga, 2005Sánchez, H., Málaga, M. 2005). Recuperación de prácticas culturales de la comunidad indígena nonam para la educación de los niños (Documento de Trabajo/2005), Cali, Colombia, Centro de Investigaciones en Psicología, Cognición y Cultura de la Universidad del Valle.), organizaram-se uma série de encontros para narrar mitos e lendas do pacífico colombiano, com a participação dos adultos sábios da comunidade, das mães comunitárias e das crianças participantes do programa HC-ICBF. Nesses encontros foi gravada uma versão do mito Madre Ñame narrada pelo líder comunitário Juan Perdiz, visando à construção de instrumentos educativos de interesse da comunidade. Valemo-nos de parte desse corpus de informações para as análises e ilustrações que se seguem.

Antigamente, não existia o inhame. Os pais costumavam deixar seus filhos sozinhos em casa. Na sua ausência, uma velha vinha com um cargueiro cheio de inhames grandes. Quando chegava à casa, mandava os meninos recolherem água e cozinhava os inhames em uma panela de barro gigante. Depois de ter cozido os inhames, a velha os descascava e chamava os meninos para comer. Satisfeitos, os meninos paravam de comer; então, a velha começava colocar inhame em sua boca, obrigando-os a comer mais; depois pisava na garganta dos meninos, matando-os. Depois ia de volta para sua casa. Quando os pais chegavam, encontravam as crianças mortas. A velha já tinha matado vários meninos, quando um menino contou o que tinha acontecido. Era uma velha que chegava na casa, trazendo inhame e, quando partia, levava embora todo seu inhame!

Daí um jovem ficou em casa com uma lança, escondido atrás de um monte. E assim foi. A velha chegou da mata como costumava. Trouxe o cargueiro cheio de inhame e disse às crianças: "recolham água para cozinhar o inhame". Ela fervia os inhames, depois tirava a pele deles para ver se estavam cozidos, e daí colocava os inhames descascados na sala. Tirava a casca e os colocava em um arjiu. Descascava bastante inhame e, mesmo que os meninos não quisessem mais, dava-lhes inhame na boca. Do seu esconderijo, o jovem observava tudo o que acontecia na sala. Quando a velha, enfurecida, pegou um menino pelo pescoço, o jovem arremessou uma lança nas costas dela e ouviu-se um som como se tivesse enterrado a ponta da lança em um inhame: zau...! E assim o jovem a matou, e ela nem sentiu dor. Quando os pais chegaram, enterraram-na rio abaixo.

Depois de vários meses, encontraram uma trepadeira brotando, cujas folhas depois murchavam. As mulheres disseram: "Seria bom sabermos qual é a sua semente!". Cavaram ao redor da trepadeira e encontraram inhames, que eram brancos e vermelhos, e muito grandes. Cada família começou a levar pés de inhame, e assim ele se espalhou por todos os lugares do país. Quando Ewandam nos criou não havia inhame, ele só passou a existir depois desse acontecimento"1 1 A versão original foi narrada por o líder comunitário Juan Perdiz em wounaan, depois traduzida para o espanhol, e deste ao português. Questões envolvendo essa "dupla tradução" estão sendo consideradas pelos pesquisadores, embora não discutidas neste texto. . (comunicação pessoal)

Madre Ñame entre os wounaan-nonam

Juan Perdiz é um líder comunitário reconhecido como possuidor da tradição oral do povo indígena wounaan-nonam. Nos encontros durante o processo de recuperação de praticas culturais (Sánchez & Málaga, 2005Sánchez, H., Málaga, M. 2005). Recuperación de prácticas culturales de la comunidad indígena nonam para la educación de los niños (Documento de Trabajo/2005), Cali, Colombia, Centro de Investigaciones en Psicología, Cognición y Cultura de la Universidad del Valle.), o senhor Perdiz foi convidado a narrar os mitos e lendas dos wounaan-nonam para os homens, mulheres e crianças da reserva indígena de Puerto Pizario. Efetivamente, em sua intervenção, informou dos mitos e lendas. Mas também emergiram de seu diálogo, agora desde a perspectiva do pesquisador, simultaneamente, o reconhecimento do outro como interlocutor e uma evidente intencionalidade educativa em sua pratica narrativa.

O senhor Perdiz, como narrador, decidiu falar dos mitos e lendas em língua wounaan porque "é a língua que entendem as crianças da comunidade". Mas também, desde a perspectiva do pesquisador, o dialogo do senhor Perdiz com a comunidade organizou-se segundo uma relação de confiança, em que contava aos outros (pais de família, mães comunitárias e crianças) sobre aquilo de que ele era o sabedor; além disso, também sabia para quem contar; sabia como, quando e onde fazê-lo; sabia, ainda, da possibilidade de falar e da necessidade de omitir. No entanto - e talvez tacitamente por isso mesmo - os outros (as pessoas da comunidade) reconheciam o senhor Perdiz como um sábio que sempre soube proteger os segredos dos wounaan-nonam.

Dessa maneira, tal como discutimos em outro lugar (Simão 2004aSimão, L. M. (2004a). Alteridade no diálogo e construção de conhecimento. In L. M. Simão & A. Mitjáns-Martínez (Org.), O outro no desenvolvimento humano: diálogos para a pesquisa e a prática profissional em psicologia (pp. 29-39). São Paulo, SP: Pioneira/Thomson Learning.), aqui também tomar o diálogo como relação dialógica (Marková, 2003Marková, I. (2003). Dialogicality and social representations: the dynamics of mind. Cambridge, UK: Cambridge University Press.) implica tomá-lo como uma relação entre elementos constituintes, inseparáveis, que são não só as pessoas envolvidas (as partes), mas também a própria relação entre elas; não só as falas dos envolvidos, mas também a relação das falas com quem falou, para quem e para que no sentido das expectativas e valores que norteiam a ação simbólica.

Nessa perspectiva, a compreensão dialógica dos encontros na reserva de Puerto Pizario implica considerar que os interatores A (senhor Perdiz) e B (a comunidade) vêm a existir, um para outro, como tais, simultaneamente à existência da própria interação, numa relação de complementaridade (Marková, 2003Marková, I. (2003). Dialogicality and social representations: the dynamics of mind. Cambridge, UK: Cambridge University Press.) ou de separação inclusiva (Valsiner, 2007Valsiner, J. (2007). Culture in mind and societies: Foundations of cultural psychology. London, UK: Sage.), na qual A e B compõem uma díade em que um define a outro, sem, entretanto haver uma fusão que os descaracterize como instâncias ativas particulares (Simão, 2002aSimão, L. M. (2002a). O significado da interação verbal para os processos de construção de conhecimento: proposta a partir da óptica boeschiana. In S. A. S. Leite (Ed.), Cultura, cognição e afetividade: a sociedade em movimento (pp. 85-102). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.).

Juan Perdiz é, para os wounaan-nonam, aquele que sabe contar a história fundamental, que dá identidade ao povo. Ao mesmo tempo, a comunidade de Puerto Pizario é, para o narrador, a evidência da existência dos wounaan-nonam no mundo. Dessa perspectiva, os mitos e lendas que circulam nessas conversas narrativas podem ser abordados como compreensão dialógica, na medida em que o significado da fala de um sempre o é para alguém outro, e buscando algo, ainda que momentaneamente.

A análise dialógica do significado da conversa envolve, por isso, "a consideração dos motivos, explícitos ou não, conscientes ou não, das falas, como subsídio para a compreensão interpretativa de para onde os interlocutores foram e/ou poderiam ter ido (potencialmente) com suas falas na construção das relações eu-outro-mundo" (Simão, 2002bSimão, L. M. (2002b). A noção de objeto e a concepção de sujeito em Boesch. In L. M. Simão, M. T. C. C. de Souza & N. E. Coelho Júnior, Noção de objeto, concepção de sujeito: Freud, Piaget e Boesch (pp. 88-120). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.). Na situação que aqui estamos analisando, no primeiro momento, o propósito acordado do processo de recuperação das práticas culturais foi a circulação dos mitos e lendas da cultura wounaan-nonam para a educação nos HC-ICBF. Ao mesmo tempo, sem estar previsto, emergiu nesses encontros um interesse particular das crianças e das mães comunitárias pelo mito Madre Ñame. Dessa forma, como salientamos em outras ocasiões (Simão, 2002bSimão, L. M. (2002b). A noção de objeto e a concepção de sujeito em Boesch. In L. M. Simão, M. T. C. C. de Souza & N. E. Coelho Júnior, Noção de objeto, concepção de sujeito: Freud, Piaget e Boesch (pp. 88-120). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.), aqui também os significados dos diálogos nos encontros não se resumiram, nem se identificaram, por equivalência, aos significados dos conteúdos das conversas que previamente, vieram a ser consensuados, dissensuados ou concluídos. Pelo contrário, a emergência do interesse particular no mito Madre Ñame deu-se possivelmente pelas ressignificações que as pessoas da comunidade deram às suas próprias inquietações (Simão, 2004bSimão, L. M. (2004b). Semiose e diálogo: para onde aponta o construtivismo semiótico-cultural? In M. T. C. C. de Souza (Org.), Os sentidos de construção: o si mesmo e o mundo (pp. 13-24). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo .) e às dos outros no processo de compreensão das relações entre os personagens da narração. A partir desses encontros, o pesquisador notou que o mito Madre Ñame transcendeu os encontros comunitários, "chegando para ficar" nos HC-ICBF da reserva de Puerto Pizario.

HC-ICBF: um programa para educação das crianças.

O HC-ICBF é um programa do estado colombiano orientado por mulheres da comunidade que assumem práticas educativas e protetoras para 15 crianças entre 0 e 6 anos. Em Puerto Pizario, as atividades do HC-ICBF iniciam-se às oito da manhã e encerram-se às quatro da tarde. Durante essa jornada, a mãe comunitária conversa com as crianças, prepara os alimentos, joga com elas, narra-lhes histórias, ouve e comenta seus sonhos, cuida delas e as protege dos perigos da floresta.

As práticas desse processo educativo, que implicam relações eu-outro, constituem-se na base das atividades cotidianas das crianças e das mães comunitárias wounaan-nonam. Cada prática implica um contínuo movimento de manutenção e renovação da cultura. Dessa maneira, quando a mãe comunitária narra o mito Madre Ñame no HC-ICBF, seu relato opera no campo cultural de suas ações simbólicas (Boesch, 1991Boesch, E. (1991). Symbolic action theory and cultural psychology. Berlin- Heidelberg, Alemanha: Springer-Verlag.), no nível da representação social (Valsiner, 2013Valsiner, J. (2013). An invitation to cultural psychology. London, UK: Sage.) dos wounaan-nonam.

A narração do mito, como prática educativa da mãe comunitária, mantém vigente o diálogo do saber ancestral com as novas gerações do povo wounaan-nonam, por articular aspectos de sua cotidianidade (presente) com suas origens (passado) e prescrições sociais (futuro); assim, preserva-se e difunde-se entre os wounaan-nonam, através dos tempos. O apelo ao mito, no contexto educativo, oportuniza que as crianças sejam formadas na cultura, nela enfrentando as tensões demandadas pela coerência entre passado e presente. Confrontam-se, assim, tradição (Gadamer, 1975/1996Gadamer, H.-G. (1996). Verdad y método (Vol. I). Salamanca, Espanha: Ediciones Sígueme. (Trabalho original publicado em 1975)) e novos sentidos.

Pensar a construção de conhecimento como um processo, que se dá em uma relação dialógica e educativa, requer a consideração do papel que a figura do outro aí desempenha. A perspectiva dialógica nos leva, contudo, para mais adiante. Trata-se justamente de buscar no diálogo o que está para além dele (Simão, 2004bSimão, L. M. (2004b). Semiose e diálogo: para onde aponta o construtivismo semiótico-cultural? In M. T. C. C. de Souza (Org.), Os sentidos de construção: o si mesmo e o mundo (pp. 13-24). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo .).

A abordagem aos mitos, como prática educativa nos HC-ICBF, não restringe ou exclui outros conteúdos ideacionais da cultura wounaan-nonam. Tampouco essa abordagem tem se constituído em caráter de etapa prévia essencial ao desenvolvimento de outras formas, algumas vezes compreendidas como mais sofisticadas, de construção de conhecimento que emerge na relação das crianças e as mães comunitárias.

Como Gadamer (1975/1996)Gadamer, H.-G. (1996). Verdad y método (Vol. I). Salamanca, Espanha: Ediciones Sígueme. (Trabalho original publicado em 1975) aponta, o mito tem a sua própria riqueza e credibilidade porque tenta entender a palavra e a linguagem em toda sua complexidade. Em sintonia com essa postura, o CSC busca compreender como os seres humanos, em seus processos afetivo-cognitivos de relações com os outros e o mundo, criam campos de significação dinâmicos que se estendem no espaço e no tempo como, por exemplo, nas explicações do mundo que emergem do contar e recontar histórias míticas.

Buscando, nessa direção, apreender a diferenciação simbólica eu-outro-mundo na circulação do mito na comunidade, nos valeremos, a seguir, da análise de conversas (diálogos) entre mães comunitárias e crianças wounaan-nonam sobre a Madre Ñame.

O assunto é o mesmo, a conversa é diferente...

Em 2014, iniciou-se o contato do Laboratório de Interação Verbal e Construção de Conhecimento do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo com a reserva indígena de Puerto Pizario, a partir de novos encontros, agora focalizando um conjunto de conversas entre as mães comunitárias e as crianças do programa HC-ICBF, a respeito do mito Madre Ñame.

Essas conversas estão mediadas pelo universo simbólico da tarefa que a mãe comunitária desempenha entre os wounaan-nonam. Como agente educativo, ela tem uma relação direta com as crianças, no cotidiano dos HC-ICBF. Simultaneamente, como membro da comunidade, está em um campo simbólico de ação cultural (Boesch, 1991Boesch, E. (1991). Symbolic action theory and cultural psychology. Berlin- Heidelberg, Alemanha: Springer-Verlag.) que reconhece a importância de seu trabalho de proteção e demanda de responsabilidades para garantir a preservação das novas gerações do povo wounaan-nonam.

Na foto a seguir, vê-se um momento do registro de uma conversa durante um encontro do HC-ICBF, em 2014.

Figura 6
Conversa da mãe comunitária com crianças indígenas wounaan-nonam

Nesses encontros, o mito Madre Ñame foi o foco da conversa entre a mãe comunitária e a criança. Desde a perspectiva aqui em discussão, nessas conversas cada ator constrói um conjunto inter-relacionado e diferente de significações a respeito da versão do outro, em que o diálogo vai se entretecendo, emergindo, na relação dinâmica dos diversos sentidos que coexistem, inclusive em contraposição, na alternância de cada participante na conversa.

Neste momento de nossa análise dos encontros buscamos compreender a dialogia interna do mito. Entendemos, assim, que as narrativas não são versões isoladas do mito que a mãe comunitária narra para a criança. Pelo contrário, consideramos as versões do mito que circulam na comunidade, assim como as narrativas a cada vez feitas para as crianças, como demandando um diálogo tanto interno como exteriorizado, que gera tensão e inquietação entre os atores participantes. Trata-se, portanto, de um processo de articulação simbólica que gera uma das principais oportunidades para que a identidade dos wounaan-nonam se mantenha viva e atualizada (Simão & Sánchez, 2015Simão, L. M. & Sánchez, H. (2015). Madre Ñame and the Nonam: one and another. In D. S. Guimarães (Org.), Amerindian paths: guiding dialogues with psychology (pp. 247-263). Charlotte, NC: Information Age Publishers.).

Uma das noções importantes para a compreensão dessa articulação simbólica é a bidirecionalidade nos processos de socialização (Valsiner, 2007Valsiner, J. (2007). Culture in mind and societies: Foundations of cultural psychology. London, UK: Sage.). Segundo essa noção, cada ator em interação transforma ativamente as mensagens comunicativas recebidas do outro, tentando integrá-las em sua base cognitivo-afetiva, a qual, por sua vez, também pode sofrer transformações durante esse processo (Simão, 2010Simão, L. M. (2010). Ensaios dialógicos: compartilhamento e diferença nas relações eu-outro. São Paulo, SP: Hucitec.).

Nessas reuniões, as crianças wounaan-nonam do HC-ICBF entraram em diálogo com o mito Madre Ñame a partir de uma proposta, convite, da mãe comunitária, que narrava sua versão daquele mito a cada criança. Ao final dessa narrativa, solicitava à criança que contasse para ela, mãe comunitária, a história que tinha ouvido.

Cada conversa encerra uma polifonia (no sentido de Bakhtin) de vozes a respeito do mito Madre Ñame: emerge agora, em 2014, a voz do senhor Perdiz, que em 2005 havia narrado o mito à comunidade, segundo as versões ancestrais do povo wounaan-nonam. Simultaneamente, emerge a voz da mãe comunitária que, em sua prática educativa, narra o mito às crianças para uma nova interpretação. Não entanto, emerge a voz da criança como possibilidade de perpetuar o mito a partir de sua atual experiência na narração. A polifonia das vozes no tempo - passado, presente e futuro - é ativada pela intersubjetividade que circula durante as conversas do mito nos encontros do HC-ICBF.

As conversas da mãe comunitária com as crianças, por um lado, e com o pesquisador, por outro, ilustram importantes aspectos dos diálogos nas relações eu-outro-mundo. Para as crianças, ela narra o mito em wounaan: "porque elas falam todo tempo na língua dos nonam". Já quando dirige-se ao pesquisador, referindo-se à conversa entre ela e as crianças, que está então acontecendo, fala com ele em espanhol, porque é a língua que lhes permite comunicação. Esse fato, aparentemente óbvio, nos chama atenção para o caráter de fronteira e barreira (Boesch, 1991Boesch, E. (1991). Symbolic action theory and cultural psychology. Berlin- Heidelberg, Alemanha: Springer-Verlag.) entre diferentes universos simbólicos, que o dirigir-se da mãe comunitária a cada interlocutor, nas línguas wounaan e espanhol representam.

Na situação aqui em foco, a meta, de caráter comunicativo, da mãe comunitária dá-se em um campo simbólico de ação em que ela "cruza fronteiras e mantém barreiras" em um vai e vem estratégico, para fazer-se entender e cumprir seu papel naquela situação, da maneira mais próxima aos valores por ela considerados desejáveis. Esse movimento simbólico não necessariamente é feito de maneira explícita e clara para si mesma, ou deliberadamente planejada, relacionando-se, em vez, ao processo de formar-se em dada cultura (Bildung, Gadamer, 1975/1996Gadamer, H.-G. (1996). Verdad y método (Vol. I). Salamanca, Espanha: Ediciones Sígueme. (Trabalho original publicado em 1975)).

A esse respeito, é interessante notar a diversificação da ação simbólica que se dá quando o ator defronta-se com barreiras e fronteiras (Simão, 2010Simão, L. M. (2010). Ensaios dialógicos: compartilhamento e diferença nas relações eu-outro. São Paulo, SP: Hucitec.). Nos episódios de conversa aqui em foco, o espanhol, na comunicação entre a mãe comunitária e o pesquisador, significa uma fronteira (Boesch, 1991Boesch, E. (1991). Symbolic action theory and cultural psychology. Berlin- Heidelberg, Alemanha: Springer-Verlag.), uma vez que requer dos atores uma adaptação ativa e permanente. Assim, por sua língua ser o espanhol, e por sua impossibilidade de compreender a língua wounaan, o pesquisador rompe a cotidianidade da comunidade, em que a comunicação entre seus membros se dá em wounaan. O espanhol é falado entre os nonam, mas para garantir o contato com o mundo exterior, ao qual de resto pertence o pesquisador.

Em Boesch (1991)Boesch, E. (1991). Symbolic action theory and cultural psychology. Berlin- Heidelberg, Alemanha: Springer-Verlag., a noção de fronteira relaciona-se à ideia de oposição binária entre o "aqui" e o "lá". O "aqui" representa aquilo que é mais conhecido, interligando-se ao sentimento de segurança e familiaridade, nesse caso implicando possibilidades de renarração do mito Madre Ñame entre os nonam. O "lá", por sua vez, representa algo desconhecido e menos transparente, gerando usualmente sentimentos de insegurança e ansiedade, mas também de curiosidade e excitação pelo novo; nesse caso, as expectativas da mãe comunitária com respeito à inquietação do pesquisador quanto àquela prática educativa; ou então, quando, a cada momento, a mãe comunitária retorna à comunicação em wounaan. Nesse movimento dialógico, ao mesmo tempo que a comunicação é assegurada, fica mantido o antagonismo entre o mundo exterior à comunidade, a que pertence o pesquisador, e mundo interior da comunidade. O wounaan conserva os segredos dos wounaan-nonam longe dos outros.

Em contraste, as mesmas línguas - wounaan e espanhol - na conversa da mãe comunitária com cada criança, têm outras implicações para o diálogo, desde as noções de fronteira e barreira (Boesch, 1991Boesch, E. (1991). Symbolic action theory and cultural psychology. Berlin- Heidelberg, Alemanha: Springer-Verlag.). Na conversa da mãe comunitária com a criança, os sentidos na língua comum, wounaan, são fronteiras porosas a serem cruzadas por ambas, no movimento de contar e ouvir, que se alterna entre elas: a mãe comunitária narra sua versão da história mítica, que a criança deve ouvir e depois "recontar com suas palavras". Assim, a língua, que é comum, garante a comunicação no âmbito do conhecido, mas ao mesmo tempo não encerra a comunicação no idêntico, que se abre em sentidos diversos nas versões da mãe comunitária e da criança. Já quando a mãe comunitária dirige-se ao pesquisador, em espanhol, impõe-se uma barreira comunicativa à criança, que pode compreender contextualmente que a fala dos dois refere-se à conversa que ela teve com a mãe comunitária momentos antes, mas não pode compreender seu conteúdo. Falam sobre sua narrativa, isso lhes interessa, mas ela não pode apreender no que e por quê. Novamente aqui, mas agora à inversa, ao mesmo tempo que a comunicação é assegurada, fica mantido o antagonismo entre o mundo exterior à comunidade, ao qual pertence o pesquisador, e o mundo interior da comunidade, ao qual pertence a criança. O espanhol encerra segredos para a criança wounaan-nonam.

A seguir apresentamos, a título de ilustração, um trecho de conversa entre uma mãe comunitária (MC) e uma criança wounaan-nonam (B) de seis anos. A conversa deu-se originalmente em wounaan, tendo sido traduzida para o espanhol e, em seguida, para o português2 2 Questões envolvendo essa "dupla tradução" estão sendo consideradas pelos pesquisadores, embora não discutidas neste texto. .

(MC) Bellanira, você conhece a história da Madre Ñame?

(B) Eu não conheço.

(MC) O que você acha que essa história vai contar?

(B) Não sei.

(MC) Agora eu vou a contar essa história para você.

Em tempo antigo moravam uns senhores no rio pequeno acima, que todos os dias iam à montanha cultivar e caçar. Em algumas ocasiões, as mães iam trabalhar com seus maridos e deixavam as crianças sozinhas em casa. Nesse momento, uma velha chegava por detrás da casa com um cargueiro cheio de inhames nas costas. Quando a velha entrava na casa, ela falava as crianças: "vocês têm que partir lenha para cozinhar". As crianças partiam a lenha para acender o fogão. Então, a velha cozinhava os inhames em uma panela de barro. Quando estavam cozidos, ela os descascava e os dava às crianças, para que comessem. Dessa maneira, a Madre Ñame entrou na comunidade.

No tempo antigo, os adultos cortavam folhas de plátano para colocar o inhame em cima e dar de comer às crianças. A velha fez a mesma coisa e falou às crianças: "vocês podem comer". Era o primeiro momento que os nonam comiam inhame. Depois de comer muito inhame, as crianças não quiseram mais, porque estavam satisfeitas. Então a velha, furiosa, pisou na garganta de uma criança até matá-la. Depois, ela voltou para sua casa no monte. No dia seguinte, ela voltou para dar de comer inhame, e matou outra criança da comunidade.

(MC) Querida, como foi a história?

(B) É a história das crianças wounaan-nonam.

(MC) Você pode explicar mais coisas? Você está falando em sua própria língua.

A criança não dá resposta alguma

A mãe comunitária fala em espanhol para o pesquisador

(MC) Parece que ela não pegou nada da história, eu vou contar de novo.

De novo, a mãe comunitária fala em wounaan para a criança

(MC) Antigamente, os velhos gostavam de trabalhar fora e deixavam as crianças sozinhas em casa. Uma velha chegava com um cargueiro de inhames. Então, ela subia na casa e cozinhava o inhame em uma panela de barro para que as crianças comessem. Essa foi a primeira vez que as crianças comeram o inhame e gostaram desse novo alimento. Mas, depois, elas não quiseram comer mais. Então, a velha começou a matar cada criança pela garganta.

Imediatamente, a criança fala em wounaan para a mãe comunitária

(B) Ela era uma velha que chegava do monte e entrava por detrás da casa, trazendo bastante inhame. A velha cozinhava o inhame para dar de comer às crianças. Era a primeira vez que eles comiam inhame. Eles não quiseram comer mais. Então, ela pisou na garganta e matou as crianças. Em seguida, ela voltou para o monte.

A mãe comunitária fala em espanhol para o pesquisador:

A criança disse isso em wounaan: Antigamente, os velhos trabalhavam muito e deixavam as crianças sozinhas em casa. Depois uma velha que chegava por dentro da casa, trouxe consigo um cargueiro cheio de inhame. Bellanira estava falando isso. E quando a velha chegou à casa, cozinhou o inhame em uma panela de barro. Depois de cozinhá-los, ela alimentou as crianças. Isto é o que Bellanira disse. E ao mesmo tempo a velha voltou ao monte. Isto foi o que Bellanira falou.

A mãe comunitária fala em wounaan para a criança

(MC) Agora, eu tenho um convite para você.

Você pode desenhar alguma coisa da história da Madre Ñame. Por exemplo, você pode desenhar uma indígena velha e o inhame.

A criança desenha a velha

(B) Agora, eu posso desenhar uma panela de barro e a cabeça do inhame.

(MC) Pode.

A criança desenha a panela de barro

(MC) Você está desenhando o inhame?

(B) Sim.

(MC) Agora o anel da panela de barro.

A mãe fala em wounaan para um grupo de crianças que entraram no local:

(MC) Não precisamos de crianças aqui. Somente estamos com a criança que está desenhando.

Depois de alguns minutos a mãe comunitária fala em woonam para Bellanira:

(MC) Você terminou?

(B) Sim.

(MC) Obrigado, Bellanira, muito bom.

Figura 7
Desenho de uma criança indígena wounaan-nonam relacionado com o mito Madre Ñame

Dialogar implica sempre entrar em contato com o outro. Também na conversa sobre o mito, a figura de outro torna-se, então, fundamental nos processos construtivos dialógicos, especialmente devido a algumas exigências que o dialogo impõe aos interlocutores, tais como a coordenação entre eles. As versões do mito da mãe comunitária e da criança na conversa mostram que, entretanto, a coordenação não significa necessariamente concordância ou identidade de objetivos (Simão, 2004aSimão, L. M. (2004a). Alteridade no diálogo e construção de conhecimento. In L. M. Simão & A. Mitjáns-Martínez (Org.), O outro no desenvolvimento humano: diálogos para a pesquisa e a prática profissional em psicologia (pp. 29-39). São Paulo, SP: Pioneira/Thomson Learning.). Por um lado, a mãe comunitária busca que a criança apreenda o que ela, implicitamente, considera importante, nuclear, no mito, tal como o narra. Quando constata que, a seu ver, isso não ocorreu, busca uma estratégia para que se dê; no caso, a repetição da narrativa - "ela não 'pegou nada', por isso repito".

A dialogia eu-outro-mundo nas representações sociais

Desde a perspectiva teórico-metodológica e ética em que estamos desenvolvendo esta pesquisa, o conhecimento construído na relação eu-outro-mundo é tomado como um processo que implica desenvolvimento de quem conhece e mudança qualitativa do que é conhecido (Simão, 2004aSimão, L. M. (2004a). Alteridade no diálogo e construção de conhecimento. In L. M. Simão & A. Mitjáns-Martínez (Org.), O outro no desenvolvimento humano: diálogos para a pesquisa e a prática profissional em psicologia (pp. 29-39). São Paulo, SP: Pioneira/Thomson Learning.). Entende-se aqui por conhecimento não apenas os aspectos de informações a respeito do que é tematizado como conteúdo do diálogo, mas principalmente a significação cognitivo-afetiva que os atores fazem, a partir do diálogo, com respeito à realidade, compreendida como versão pessoal datada e culturalmente contextualizada, em que habitam os objetos significativos, os outros, o si mesmo e a própria relação eu-outro de cada interlocutor (Simão, 2002aSimão, L. M. (2002a). O significado da interação verbal para os processos de construção de conhecimento: proposta a partir da óptica boeschiana. In S. A. S. Leite (Ed.), Cultura, cognição e afetividade: a sociedade em movimento (pp. 85-102). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.)

Na versão considerada do mito Madre Ñame, a mãe comunitária e a criança apresentam um conjunto de representações sociais que medeiam a dialogia cultura pessoal-cultura coletiva. A primeira representação social está relacionada à origem, relacionando os wounaan-nonam a um acontecimento e seus desdobramentos, marcando seu vir a existir com e na natureza, por sua relação com outrem: "Nesse momento, uma velha chegava detrás da casa com um cargueiro cheio de inhames nas costas"; "desta maneira, a Madre Ñame entrou na comunidade"; "Era a primeira vez que eles comeram inhame". Expressa-se aqui não só o caráter fundamental desse produto agrícola na dieta alimentar dos wounaan-nonam como também seu caráter simbólico, gerador de toda uma rede de relações eu-outro-mundo, desembocando em novo estado de coisas para a comunidade, que passa a identificar a si própria como grupo, na particularidade de seu advento (Simão & Sánchez, 2015Simão, L. M. & Sánchez, H. (2015). Madre Ñame and the Nonam: one and another. In D. S. Guimarães (Org.), Amerindian paths: guiding dialogues with psychology (pp. 247-263). Charlotte, NC: Information Age Publishers.).

A segunda representação social está relacionada com a responsabilidade dos cuidadores quanto à proteção geracional, papel que deve ser assumido junto às crianças pelos maiores, sejam os jovens, sejam os adultos: "No tempo antigo moravam uns senhores no rio pequeno acima, que todos os dias iam ao monte cultivar e caçar. Em algumas ocasiões, as mães iam a trabalhar com seus maridos e deixavam as crianças sozinhas em casa. Nesse momento, uma velha chegava por detrás da casa". Assim, o mito adverte e prescreve sobre a importância da proteção dos adultos para a sobrevivência da nova geração.

A terceira representação social atravessa implicitamente toda a história mítica, dizendo respeito a tensões na relação eu-outro-mundo, trazidas pelo outro, o estrangeiro (Simão, 2012Simão, L. M. (2012). The other in the self: a triadic unit. In J. Valsiner (Ed.), The Oxford handbook of culture and psychology (pp. 403-420). New York, NY: Oxford University Press.; Simão & Sánchez, 2015Simão, L. M. & Sánchez, H. (2015). Madre Ñame and the Nonam: one and another. In D. S. Guimarães (Org.), Amerindian paths: guiding dialogues with psychology (pp. 247-263). Charlotte, NC: Information Age Publishers.), envolvendo tipicamente o tempo (novo-velho) - "No tempo antigo, os pais"; "Anteriormente, os velhos gostavam de trabalhar fora" - e a moralidade (bom-mau) - "Eles não quiseram comer mais"; "Então, ela pisava na garganta e matava as crianças"; "Em seguida, ela voltou para o monte". Nesse sentido, o mito Madre Ñame como todo encerra a tensão própria à dialogia, no sentido proposto por Marková (2003)Marková, I. (2003). Dialogicality and social representations: the dynamics of mind. Cambridge, UK: Cambridge University Press., como capacidade da mente humana para conceber, criar e comunicar as realidades sociais em términos de alteridade.

A dialogia cultura pessoal-cultura coletiva está no cerne da contínua (re)construção da identidade, essa última aqui entendida como um processo de contínua busca e esforço de uma pessoa em relação a outras - ou de um grupo em relação a outros - para distinguir-se das demais pessoas, com base em características ou acontecimentos ímpares, por ela vistos e selecionados como relevantes para representar-se a si mesma e, eventualmente, sua pertença a um grupo. Essas características e acontecimentos, que dizem respeito a suas relações com outrem, podem ser expressos, comunicados e, eventualmente, compartilhados com outros. Estão aqui em jogo as relações entre compartilhamento e diferença nas relações eu-outro-mundo (Simão & Sánchez, 2015Simão, L. M. & Sánchez, H. (2015). Madre Ñame and the Nonam: one and another. In D. S. Guimarães (Org.), Amerindian paths: guiding dialogues with psychology (pp. 247-263). Charlotte, NC: Information Age Publishers.).

Referências

  • Boesch, E. (1991). Symbolic action theory and cultural psychology. Berlin- Heidelberg, Alemanha: Springer-Verlag.
  • Gadamer, H.-G. (1996). Verdad y método (Vol. I). Salamanca, Espanha: Ediciones Sígueme. (Trabalho original publicado em 1975)
  • Marková, I. (2003). Dialogicality and social representations: the dynamics of mind. Cambridge, UK: Cambridge University Press.
  • Sánchez, H., Málaga, M. 2005). Recuperación de prácticas culturales de la comunidad indígena nonam para la educación de los niños (Documento de Trabajo/2005), Cali, Colombia, Centro de Investigaciones en Psicología, Cognición y Cultura de la Universidad del Valle.
  • Simão, L. M. (2002a). O significado da interação verbal para os processos de construção de conhecimento: proposta a partir da óptica boeschiana. In S. A. S. Leite (Ed.), Cultura, cognição e afetividade: a sociedade em movimento (pp. 85-102). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.
  • Simão, L. M. (2002b). A noção de objeto e a concepção de sujeito em Boesch. In L. M. Simão, M. T. C. C. de Souza & N. E. Coelho Júnior, Noção de objeto, concepção de sujeito: Freud, Piaget e Boesch (pp. 88-120). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.
  • Simão, L. M. (2004a). Alteridade no diálogo e construção de conhecimento. In L. M. Simão & A. Mitjáns-Martínez (Org.), O outro no desenvolvimento humano: diálogos para a pesquisa e a prática profissional em psicologia (pp. 29-39). São Paulo, SP: Pioneira/Thomson Learning.
  • Simão, L. M. (2004b). Semiose e diálogo: para onde aponta o construtivismo semiótico-cultural? In M. T. C. C. de Souza (Org.), Os sentidos de construção: o si mesmo e o mundo (pp. 13-24). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo .
  • Simão, L. M. (2010). Ensaios dialógicos: compartilhamento e diferença nas relações eu-outro. São Paulo, SP: Hucitec.
  • Simão, L. M. (2012). The other in the self: a triadic unit. In J. Valsiner (Ed.), The Oxford handbook of culture and psychology (pp. 403-420). New York, NY: Oxford University Press.
  • Simão, L. M. (2013). The contemporary perspective of the Semiotic Cultural Constructivism: for a hermeneutical reflexivity in Psychology. In G. Marsico, R. Ruggieri & S. Salvatore (Orgs.), YIS: the yearbook of idiographic science (Vol. 6, Reflexivity and Change in Psychology). Charlotte, NC: Information Age Publishers.
  • Simão, L. M. & Sánchez, H. (2015). Madre Ñame and the Nonam: one and another. In D. S. Guimarães (Org.), Amerindian paths: guiding dialogues with psychology (pp. 247-263). Charlotte, NC: Information Age Publishers.
  • Valsiner, J. (2007). Culture in mind and societies: Foundations of cultural psychology. London, UK: Sage.
  • Valsiner, J. (2013). An invitation to cultural psychology. London, UK: Sage.
  • 1
    A versão original foi narrada por o líder comunitário Juan Perdiz em wounaan, depois traduzida para o espanhol, e deste ao português. Questões envolvendo essa "dupla tradução" estão sendo consideradas pelos pesquisadores, embora não discutidas neste texto.
  • 2
    Questões envolvendo essa "dupla tradução" estão sendo consideradas pelos pesquisadores, embora não discutidas neste texto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2015
  • Revisado
    22 Mar 2016
  • Aceito
    26 Abr 2016
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