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A noção de trabalho na experiência psicanalítica

La notion de travail dans l'expérience psychanalytique

El concepto de trabajo basado en la experiencia psicoanalítica

Resumo:

A partir da pesquisa das diversas maneiras como a noção de trabalho aparece ao longo da obra freudiana, tomando como ponto de partida os termos psicanalíticos compostos com o sufixo "arbeit", que apontam principalmente para o esforço do psiquismo em lidar com o excesso pulsional, este artigo enfatiza a importância dessa noção para se pensar a experiência psicanalítica como um trabalho erótico em busca da mobilidade pulsional, da transformação subjetiva e de outros modos de ser e acontecer na vida.

Palavras-chave:
trabalho; pulsão; Eros; experiência; liberdade

Résumé:

À partir de la recherche des différentes manières dont la notion de travail apparaît dans l'œuvre de Freud, à partir des termes psychanalytiques composés par le suffixe arbeit, lesquels remarquent principalement les efforts du psychisme pour traiter l'excès pulsionnel, cet article souligne l'importance de cette notion pour penser l'expérience psychanalytique comme un travail érotique en recherche de la mobilité pulsionnelle, de la transformation subjective et d'autres modes d'être et de se placer dans la vie.

Mots-clés:
travail; pulsion; Eros; expérience; liberte

Resumen:

De la investigación de las varias maneras en las que aparece la noción de trabajo a lo largo de la obra de Freud y tomando como punto de partida los términos psicoanalíticos compuestos con el sufijo "arbeit" que apuntan, sobre todo, al esfuerzo de la psique/psiquismo para lidiar con el exceso pulsional, este artículo subrayó la importancia del concepto de trabajo para pensar en la experiencia psicoanalítica como un trabajo erótico en búsqueda de la movilidad pulsional, la transformación subjetiva y otras formas de ser y suceder en la vida.

Palabras clave:
trabajo; pulsión; Eros; experiencia; libertad

Abstract:

Based on the research of several ways in which the concept of work appears throughout Freud's work, beginning with the psychoanalytic terms composed with the suffix arbeit, which indicate the psyche's effort in dealing with the instinctual excess, this article emphasizes the importance of this concept, reflecting on the psychoanalytic experience as an erotic work searching for the instinctual trend, for the subjective transformation, and for other ways of experiencing life.

Keywords:
work; drive; Eros; experience; freedom

Introdução

Para quem exerce o ofício de psicanalista é bastante evidente a dimensão de trabalho e de esforço que está presente no processo de análise. É muito trabalhoso participar de uma experiência psicanalítica. Além do compromisso de frequentar as sessões, cabe ressaltar o trabalho de remexer em um passado que ainda não passou; o trabalho de lidar com o excesso de afetos que nos faz sofrer; o trabalho de colocar em palavras o que ainda está mudo e que nos acossa todo dia; o trabalho de denunciar nosso narcisismo e reconhecer o que de mais andrajoso compõe nossa imagem; o trabalho de afirmar nossa singularidade em um mundo forjado por normas e padrões; e o trabalho de encontrar caminhos e sentidos para a própria existência. Enfim, não resta dúvida quanto ao trabalho árduo de cada um que se aventura nessa arriscada experiência em busca da transformação do seu modo de vida.

Freud não se cansou de enfatizar a dimensão de trabalho presente na experiência psicanalítica. Em "Sobre a psicoterapia" (1905/1996dFreud, S. (1996d). Sobre a psicoterapia. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 7, pp. 241-254). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1905)) é possível observar essa questão em uma comparação bastante criativa entre a psicanálise e as artes da escultura. Nesse texto, ele afirma que a terapia analítica, assim como a escultura, trabalha per via di lavare, retirando da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua. O importante a ressaltar é a imagem do escultor se esforçando e trabalhando duro na forma que pretende dar à sua obra. Trazendo para o campo da psicanálise, é possível afirmar que o paciente é um escultor de si mesmo trabalhando para dar forma a sua obra mais importante: sua própria vida.

Tomando essa metáfora como ponto de partida, o objetivo deste artigo é apresentar a pesquisa realizada na obra freudiana em torno da noção de trabalho. Em todo seu percurso Freud utiliza diversos termos compostos com o sufixo "arbeit", que corresponde em português à palavra "trabalho", dentre eles: trauerarbeit ("trabalho do luto"), traumarbeit ("elaboração onírica" ou "trabalho do sonho"), bearbeitung, durcharbeitung e verarbeitung (estes últimos comumente traduzidos por "elaboração").

Além disso, a noção de trabalho está na base de um dos seus conceitos fundamentais: a pulsão. De acordo com (Freud, 1905/1996cFreud, S. (1996c). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 7, pp. 117-232). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1905)), a pulsão, conceito que articula o somático e o psíquico, é uma exigência incessante de trabalho para o aparelho psíquico. Enquanto força constante e estímulo para o psíquico, a pulsão é uma intensidade que obriga o psiquismo, para evitar o desprazer e o desamparo, a trabalhar para encontrar um caminho de expressão dessa energia no mundo material e psíquico. Considerando o aparelho psíquico um aparelho de captura das forças pulsionais, o trabalho psíquico é uma resposta à própria exigência de satisfação que a pulsão faz a esse aparelho.

Portanto, a partir da análise dos referidos termos, que apontam principalmente para o trabalho do psiquismo para lidar com o excesso pulsional, bem como da exploração das noções de bewältigen ("dominar"), bändigen ("amansar") e, principalmente, de Eros (pulsão de vida), o objetivo deste artigo é demonstrar que a experiência psicanalítica é um trabalho erótico de transformação de si.

Traumarbeit

O termo Traumarbeit é normalmente traduzido por "elaboração onírica" ou "trabalho do sonho", compreendendo as operações que transformam o conteúdo latente do sonho em sonho manifesto. Por meio de quatro mecanismos psíquicos - condensação, deslocamento, figurabilidade e elaboração secundária (sekundäre bearbeitung) - o trabalho do sonho deforma os pensamentos oníricos para que eles possam ser aceitos pela censura.

O sonho aparentemente sem sentido de que o sonhador se lembra e relata representa o seu conteúdo manifesto. Esse conteúdo é o resultado final do trabalho do sonho, que é responsável pela deformação dos pensamentos oníricos e por sua transformação em um quebra-cabeça imagético. Daí a incapacidade, à primeira vista, de se entender o propósito e o significado dos sonhos. Se o conteúdo manifesto é o resultado e a consequência, o conteúdo latente é a matéria-prima da qual os sonhos se originam, também denominado por Freud de "pensamento onírico". O conteúdo latente é anterior ao conteúdo manifesto, e o trabalho do sonho é justamente o que transforma um em outro.

A censura é uma função permanente que constitui uma barreira seletiva na fronteira entre os sistemas Ics (Inconsciente) e Pcs/Cs (Pré-consciente/Consciente) do aparelho psíquico, controlando as representações inconscientes que podem ou não se tornar conscientes. Dessa forma, a censura é a responsável principal pela deformação dos sonhos. Quanto maior a censura, maior será a deformação do sonho.

Existem dois mecanismos principais pelos quais a censura opera a deformação do conteúdo latente dos sonhos: a condensação e o deslocamento. A um só tempo são efeitos da censura e os meios de escapar dela.

A condensação opera uma síntese no pensamento onírico, complexificando-o, quer dizer, dobrando-o sobre si mesmo. "A primeira coisa que se torna clara para quem quer que compare o conteúdo do sonho com os pensamentos oníricos é que ali se efetuou um trabalho de condensação em larga escala". (Freud, 1900/1996bFreud, S. (1996b). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vols. 4-5, pp. 13-654). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900), p. 305, itálico nosso)

No deslocamento há uma mudança de acento entre as representações, ou seja, um desvio da intensidade de energia psíquica de uma representação latente, importante e suscetível a ser barrada pela censura, para outra representação sem tanta importância, ligada à primeira por meio de uma cadeia associativa. Um deslocamento de energia entre duas representações, caracterizado por um desinvestimento/re-investimento libidinal, é o trabalho realizado por esse mecanismo psíquico.

Portanto, parece plausível supor que, no trabalho do sonho, está em ação uma força psíquica que, por um lado, despoja os elementos com alto valor psíquico de sua intensidade, e, por outro, por meio da sobredeterminação, cria, a partir de elementos de baixo valor psíquico, novos valores, que depois penetram no conteúdo do sonho. Assim sendo, ocorrem uma transferência e deslocamento de intensidade psíquica no processo de formação do sonho, e é como resultado destes que se verifica a diferença entre o texto do conteúdo do sonho e o dos pensamentos do sonho. (Freud, 1900/1996bFreud, S. (1996b). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vols. 4-5, pp. 13-654). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900), p. 333, itálicos nossos)

Frisando que os trabalhos de condensação e deslocamento não são realizados apenas no contexto dos sonhos, mas também nas outras formações do inconsciente - chistes, lapsos, atos falhos e sintomas - é importante destacar o aspecto quantitativo desses mecanismos. Apesar de a ênfase deles costumeiramente recair sobre o trabalho que se faz em cima das representações, lembrando que no âmbito da "Interpretação dos sonhos" (1900/1996bFreud, S. (1996b). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vols. 4-5, pp. 13-654). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)) está no ápice de uma psicanálise enquanto técnica interpretativa, o que gostaríamos de destacar é a presença de um trabalho sobre as intensidades psíquicas.

Estamos diante da hipótese econômica do psiquismo, que aponta para uma energia de investimento passível de ser desligada de determinadas representações e de deslizar para outras representações pelos diversos caminhos associativos. Esse deslizamento caracteriza a maneira como o processo primário comanda o funcionamento do sistema Ics. Levando em consideração que o trabalho do sonho não é um trabalho criador, mas transformador, podemos concluir que essa transformação está ancorada na mobilidade das intensidades psíquicas, ou melhor, na mobilidade pulsional.

Bearbeitung

Bearbeitung é normalmente utilizado na expressão específica sekundäre bearbeitung, que é traduzida como "elaboração secundária", dentro do contexto da teoria dos sonhos. Esse termo designa o trabalho que o psiquismo realiza sobre o material onírico ainda em estado bruto, com o objetivo de ordenar os elementos do sonho de forma inteligível e apreensível. Em outras palavras, é um trabalho psíquico que, junto com os demais mecanismos do trabalho do sonho, participa da transformação do material onírico.

Estando a serviço do sistema Pcs/Cs, a elaboração secundária atua simultânea e conjuntamente com os demais mecanismos psíquicos do trabalho do sonho na tarefa de transformação do conteúdo latente. Assim como o pensamento em vigília, ela visa a estabelecer uma ordem e uma inteligibilidade no conteúdo manifesto, retirando a aparência de absurdo e a incoerência do sonho, a partir do preenchimento de lacunas e da realização de acréscimos.

Entretanto, o termo "bearbeitung" não foi utilizado por Freud apenas no contexto de sua teoria dos sonhos. Segundo (Hanns, 1996Hanns, L. A. (1996). Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago.), Freud utiliza esse termo em diversas passagens de sua obra em um sentido coloquial, como uma atividade de trabalho que se exerce sobre algo, conforme podemos encontrar nas expressões cotidianas: lapidar o diamante e cultivar a terra. A ênfase não está na qualidade do trabalho, não aponta para a ideia aperfeiçoamento, e sim para a própria ação de aplicar o trabalho, ou seja, para o trabalho enquanto atividade em si mesma.

Nessa direção, é possível observar Freud utilizando esse termo com o sentido de um trabalho de transformação e processamento das excitações psíquicas, objetivando seu escoamento e descarga.

Reconhecemos nosso aparelho mental como sendo, acima de tudo, um dispositivo destinado a dominar as excitações que de outra forma seriam sentidas como aflitivas ou teriam efeitos patogênicos. Sua elaboração (bearbeitung) na mente auxilia de forma marcante um escoamento das excitações que são incapazes de descarga direta para fora, ou para as quais tal descarga é, no momento, indesejável. (Freud, 1914/1996gFreud, S. (1996g). Luto e melancolia. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 243-266). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1917), p. 94)

Dessa forma, bearbeitung é uma maneira de lidar com as intensidades pulsionais, possibilitando sua mobilidade, e, assim, evitando o mal-estar provocado por sua acumulação no aparelho psíquico. Logo, podemos afirmar que estamos diante de uma relação direta entre um termo com o sufixo "arbeit" e o trabalho realizado na dimensão econômica desse aparelho.

Verarbeitung

A palavra "verarbeitung" significa, no uso corrente da língua alemã, lidar emocionalmente com; assimilar ou absorver física ou psiquicamente; digerir visceralmente; processar ou transformar, decompondo, dissolvendo e rearranjando. O prefixo alemão "ver", em diversos usos, indica uma ideia de "ir adiante", perdendo contato com sua origem. Não é à toa que se pode perceber, nos significados supracitados, uma ideia de movimento capaz de modificar algo. O termo em questão não guarda qualquer semelhança com os aspectos de sofisticação e de refinamento presentes na palavra "elaboração", utilizado comumente como sua tradução.

No contexto psicanalítico, podemos dizer que esse termo aponta para uma forma de lidar emocionalmente com o acúmulo de estímulos. Na concepção freudiana de um aparelho psíquico que transforma e transmite a energia que recebe, lidar com o excesso pulsional implica encontrar caminhos para sua ligação e escoamento.

Em termos gerais, o termo "verarbeitung" é um trabalho psíquico de processamento e ligação dos estímulos pulsionais. Mais especificamente, esse termo pode ser concebido como o conjunto de operações psíquicas que visam a dominar a pulsão, estabelecendo os circuitos pulsionais.

É possível observar Freud utilizando esse termo desde o início de sua obra como uma tentativa de lidar com um trauma psíquico, entendido como um excesso de excitação que ultrapassou as defesas do indivíduo e foi fixado em uma marca no aparelho psíquico que não encontra uma via de inscrição na cadeia de representações. "A propósito, um mecanismo psíquico sadio tem outros métodos de lidar com o afeto de um trauma psíquico, mesmo que lhe sejam negadas a reação motora e a reação por palavras - a saber, elaborando-o (verarbeitung) associativamente" (Freud, 1895/1996aFreud, S. (1996a). Estudos sobre a histeria. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 2, pp. 39-319). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1895), pp. 45-46). Nesse sentido, verarbeitung é um trabalho de ligação do excesso pulsional traumático, fornecendo um caminho de transição entre os registros econômico e simbólico do psiquismo.

Já bem perto do final de sua obra, mais uma vez, nos deparamos com a relação entre o termo verarbeitung e o conceito de pulsão. Nesse momento, fica clara sua característica fundamental de ser um trabalho orientado para a descarga pulsional, capaz de evitar a angústia e o desamparo. O trabalho psíquico ou a elaboração psíquica realizada pela verarbeitung diz respeito ao endereçamento, encaminhamento ou escoamento das quantidades de energia pulsional que acossam e desassossegam sem cessar o aparelho psíquico. "Constitui ainda um fato inegável que na abstinência sexual, na interferência imprópria no curso da excitação sexual, ou se esta for desviada de ser elaborada (verarbeitung) psiquicamente, a ansiedade surge diretamente da libido." (Freud, 1926/1996kFreud, S. (1996k). Inibições, sintomas e angústia. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 20, pp. 79-172). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1926 [1925]), p. 139)

Trauerarbeit

Trauerarbeit ou "trabalho do luto" pode ser considerado como o processo de desinvestimento ou retirada de libido das representações de um objeto de amor perdido. Em linhas gerais, trata-se de um trabalho lento e penoso de tentar se desapegar das memórias de uma história de amor que chegou ao fim.

Em que consiste, portanto, o trabalho que o luto realiza? . . . O teste de realidade revelou que o objeto não existe mais, passando a exigir que toda a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto. . . . Contudo, o fato é que, quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido. (Freud, 1917/1996gFreud, S. (1996g). Luto e melancolia. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 243-266). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1917), pp. 250-251, itálicos nossos)

De acordo com Freud, quando o trabalho de luto não se realiza, estamos diante de um quadro melancólico, no qual o sujeito se recusa a admitir a perda do objeto de amor e, consequentemente, a retirar a libido aprisionada à ideia desse objeto perdido. Nesse contexto, no qual "a sombra do objeto caiu sobre o ego" (Freud, 1917/1996gFreud, S. (1996g). Luto e melancolia. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 243-266). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1917), p. 254) e o investimento libidinal foi substituído por um vínculo identificatório com o objeto perdido, um eu apequenado e confundido com o próprio objeto é alvo de toda a agressividade do supereu. Ao se refugiar em uma identificação narcísica, por não conseguir renunciar o amor pelo objeto, o sujeito cava sua própria cova rumo à melancolia.

Toda relação amorosa cria laços e estabelece nós entre aquele que ama e seu objeto de amor. O trabalho do luto é justamente a tentativa incessante de desfazer esses laços e desatar esses nós. Mas por que é tão difícil e tão dolorosa essa tarefa de desligamento e deslocamento do investimento libidinal? Não é fácil fazer o ego abandonar os velhos e já conhecidos circuitos pulsionais, retirando a libido daquilo que um dia já foi investido. A adesividade da libido e a facilitação dos caminhos já muitas vezes trilhados são explicações razoáveis. Entretanto, o importante é que só é possível reinvestir essa libido depois que ela tiver sido liberada pelo trabalho de luto. "Não se trata de destruir os investimentos objetais, mas de 'desamarrar' e 'desatar' os laços, sem destruir seus fios, para poder refazê-los, de outra maneira, ou reempregá-los em novos investimentos." (Rocha, 2003Rocha, Z. (2003). Transferência e criatividade no tempo da análise. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 6(4), 80-101., p. 93)

Fazer o luto não é uma tarefa de esquecimento, mas de liberdade. Apenas uma libido livre de seus antigos investimentos poderá ser lançada uma vez mais no mundo. O trabalho de luto é, por conseguinte, um trabalho de libertação da pulsão, e não conseguir realizá-lo pode encarcerar o sujeito nas celas escuras da melancolia. Desse modo, não resta dúvida de que o termo trauerarbeit evidencia a conexão entre o trabalho psíquico e a pulsão, articulada aqui pela ideia de liberdade enquanto mobilidade pulsional.

Durcharbeitung

Durcharbeitung ou "elaboração/perlaboração" poderia ser traduzido literalmente por "trabalhar através de", já que o prefixo alemão "durch" significa "através de", não sendo à toa que a tradução inglesa optou por traduzir esse termo como working through. Além disso, durcharbeitung apresenta os seguintes significados: trabalhar sem interrupção, superar dificuldades através do trabalho, trabalhar com esforço até o final da tarefa.

Desde "Estudos sobre a histeria" (1895/1996aFreud, S. (1996a). Estudos sobre a histeria. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 2, pp. 39-319). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1895)), é possível encontrar a ideia de que o paciente também tem que realizar um trabalho durante o tratamento analítico. No entanto, é apenas em um de seus principais artigos sobre a técnica psicanalítica, intitulado "Repetir, recordar e elaborar" (1914/1996eFreud, S. (1996e). Recordar, repetir e elaborar. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 12, pp. 159-172). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1914)), que Freud sistematiza o conceito de durcharbeitung.

Esse conceito indica um trabalho feito pelo paciente sobre as suas resistências, depois que estas são interpretadas pelo analista. Durante esse trabalho, o paciente tenta enfrentar e superar suas resistências, tornando possível a recordação de uma memória até então inconsciente. Trata-se menos de uma aceitação intelectual das resistências e mais de uma convicção estabelecida pela experiência vivida no campo transferencial. O trabalho em questão não se fundamenta no campo da racionalidade, e sim na relação afetiva entre analista e paciente.

Essa elaboração (durcharbeitung) das resistências pode, na prática, revelar-se uma tarefa árdua para o sujeito da análise e uma prova de paciência do analista. Todavia, trata-se da parte do trabalho que efetua as maiores mudanças no paciente e que distingue o tratamento analítico de qualquer tipo de tratamento por sugestão. (Freud, 1914/1996eFreud, S. (1996e). Recordar, repetir e elaborar. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 12, pp. 159-172). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1914), p. 171)

É por meio desse trabalho (arbeit), realizado a quatro mãos através (durch) daquilo que se vive no setting analítico, que o sujeito é capaz de furar a atuação (acting out) repetitiva e recordar as representações recalcadas. É um trabalho capaz de libertar o sujeito de seus próprios mecanismos de repetição. E nessa batalha não basta comunicar as resistências ao paciente, "deve-se dar ao paciente tempo para conhecer melhor esta resistência com a qual acabou de se familiarizar, para elaborá-la, para superá-la". (Freud, 1914/1996eFreud, S. (1996e). Recordar, repetir e elaborar. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 12, pp. 159-172). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1914), p. 170, grifo nosso)

Em "Inibição, sintomas e angústia", Freud, já no âmbito da segunda tópica, estabelece a existência de cinco tipos de resistências espalhadas pelas instâncias psíquicas: três resistências do eu, uma resistência do isso e a última do supereu. Nesse novo cenário, Freud afirma que não devemos nos espantar se "depois de a resistência do ego ter sido removida, o poder da compulsão à repetição . . . ainda tenha de ser superado. Nada há a dizer contra descrever esse fator como a resistência do inconsciente" (Freud, 1926/1996kFreud, S. (1996k). Inibições, sintomas e angústia. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 20, pp. 79-172). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1926 [1925]), p. 155). O termo durcharbeitung, nesse contexto, é utilizado para indicar o trabalho de enfrentar e tentar furar a gagueira da compulsão à repetição, libertando o sujeito do jugo da pulsão de morte e abrindo a possibilidade de construção de novos caminhos pulsionais diante do inominável e do sem sentido.

A partir da análise do termo durcharbeitung, fica evidente que a transformação subjetiva só é possível mediante a realização de um trabalho árduo de alargamento do espaço de liberdade psíquica diante dos mecanismos de repetição que, muitas vezes, condenam o sujeito a uma sofrida mesmice.

A dimensão de trabalho nas noções de bewältigen e bändigen

Bewältigen em alemão corrente significa dar conta e levar a cabo uma tarefa; resolver e superar uma dificuldade; enfrentar algo difícil e maior do que o próprio sujeito; digerir e absorver emocionalmente, evocando o "aspecto de certa quantidade de trabalho e esforço a ser despendido" (Hanns, 1996Hanns, L. A. (1996). Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago., p. 176). É usualmente traduzido para português como "dominar". Entretanto, "dominar" aponta para certos significados não presentes no termo bewältigen, tais como, subjugar, manter sob vigilância, adquirir autoridade. Segundo (Hanns, 1996Hanns, L. A. (1996). Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago.), o radical de bewältigen remete ao verbo walten, que é normalmente utilizado no sentido de "exercer domínio" em uma situação que nem sempre está sob controle. Logo, de início, estamos diante de um tipo de domínio precário e instável.

Utilizado por Freud como a atividade do sujeito de lidar com os estímulos pulsionais, tentando tanto encontrar caminhos de escoamento quanto realizar um trabalho de ligação entre eles, bewältigen é um domínio sempre arriscado e problemático das forças avassaladoras da pulsão. Nesse sentido, reafirmamos que o aparelho psíquico visa a dominar (bewältigen), mesmo que precariamente, o excesso de intensidade capaz de produzir sensações de desprazer e um estado de desamparo. Em seu texto paradigmático "Além do princípio do prazer", (Freud, 1920/1996hFreud, S. (1996h). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 11-76). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1920)) exemplifica bem o uso desse termo:

Não há mais possibilidade de impedir que o aparelho mental seja inundado com grandes quantidades de estímulos: em vez disto, outro problema surge, o problema de dominar (bewältigen) as quantidades de estímulo que irromperam, e de vinculá-las, no sentido psíquico, a fim de que delas possa então desvencilhar. (p. 40)

Já o termo bändigen significa amansar e domar, no sentido de acalmar e refrear. Evoca imagens como "por rédeas" e "moderar", podendo ter a conotação de "colocar algo selvagem sobre certo controle" (Hanns, 1996Hanns, L. A. (1996). Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago., p. 184). Aqui, a tradução nos textos freudianos dos termos "domar" ou "amansar" também apresenta seus problemas, pois estas dão a entender que aquilo que foi domado ou amansado fica dócil e se torna inofensivo para todo o sempre. Nada mais falso em se tratando da pulsão.

No contexto psicanalítico, bändigen aponta para a tentativa do eu de refrear, direcionar e encaminhar a força constante da pulsão, sempre provocando um movimento rumo à satisfação. No entanto, ante o aspecto indomável da pulsão, bändigen denuncia o controle incerto do eu em sua tentativa de colocar rédeas nesse cavalo selvagem. Nesse jogo de forças entre o eu e a pulsão, não há vitória garantida e definitiva. Enquanto força constante, a pulsão desafia o eu a cada instante para esse duelo às cegas. Nessa guerra infinita e imprevisível, não se trata de enfraquecer a pulsão, mas de dobrá-la.

Esteja a ênfase no eu ou na força da pulsão, ambos os termos apontam para um esforço e um trabalho de tentar impedir que a pulsão, com toda a sua animalidade, atropele o sujeito em busca de satisfações imediatas e a qualquer preço. Essa é a exigência de trabalho que, desde os "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905/1996cFreud, S. (1996c). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 7, pp. 117-232). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1905)), Freud afirma que a pulsão, esse estímulo de origem corporal, faz ao aparelho psíquico.

Mais uma vez, perante o fator quantitativo do aparelho psíquico, podemos concluir que, na prática psicanalítica, não se trata de resolver ou de solucionar nada em busca de uma utópica cura para os conflitos e sofrimento do sujeito. Isso se deve ao fato de que existe sempre um resto de pulsão que escapa a qualquer tipo de amansamento ou domínio. (Freud, 1937/1996mFreud, S. (1996m). Análise terminável e interminável. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 23, pp. 223-270). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1937)), no final de sua obra, aponta a existência de três atividades impossíveis de serem realizadas: governar, educar e psicanalisar.

A consequência direta dessa afirmação freudiana é que a clínica psicanalítica não é uma terapêutica, visando à cura, ao bem-estar ou à harmonia do sujeito. Se assim fosse, essa seria uma atividade perfeitamente possível. A direção do trabalho analítico é muito mais no sentido de dissolver o que está cristalizado, mobilizar o que está estagnado e abrir novas possibilidades de satisfação erótica ante os poucos e velhos caminhos já tantas vezes percorridos. "A promessa da análise não é uma vida equilibrada, mas uma espécie de savoir faire com essa energia incalculável de nossa vida corporificada." (Rajchman, 1993Rajchman, J. (1993). Eros e verdade: Lacan, Foucault e a questão da verdade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 45)

Esse impossível, que de forma alguma indica qualquer tipo de impotência, mas apenas o infinito da tarefa, fica evidente na maneira como Freud descreve o trabalho da pulsão de vida (Eros) ante a pulsão de morte. A libido, energia da pulsão de vida, luta sem cessar para tentar amansar (bändigen) a pulsão de morte, por meio de um trabalho de ligação desta aos objetos. "Não dispomos de qualquer compreensão fisiológica das maneiras e meios pelos quais esse amansamento (bändigung) do instinto de morte pela libido pode ser efetuado." (Freud, 1924/1996jFreud, S. (1996j). O problema econômico do masoquismo. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 173-188). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1924), p. 181)

Conclusão: a experiência psicanalítica é um trabalho erótico

Abrindo mão de contar a história do desenvolvimento da teoria das pulsões e arriscando começar pelo seu ponto de chegada, é ponto pacífico que o trabalho de construir sentido à força pulsional, estabelecendo circuitos para a pulsão mediante sua inscrição na geografia psíquica dos objetos de satisfação, está a serviço de Eros. Já a pulsão de morte trabalha para a fragmentação e a separação das uniões eróticas, tentando assorear os fluxos pulsionais, desertificar o relevo psíquico e silenciar a vida.

Nesse território bélico, Eros e pulsão de morte estão quase sempre mesclados e fusionados. A fusão entre Eros e pulsão de morte é justamente o que permite a percepção desta última. A pulsão de morte é invisível e silenciosa, sendo através da pulsão de vida que aquela se tona visível.

Os perigosos instintos de morte são tratados no indivíduo de diversas maneiras: em parte são tornados inócuos por sua fusão com componentes eróticos; em parte são desviados para o mundo externo sob a forma de agressividade; enquanto em grande parte continuam, sem dúvida, seu trabalho interno sem estorvo. (Freud, 1923/1996iFreud, S. (1996i). O ego e o id. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XIX, pp. 13-80). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1923), p. 66)

Nessa passagem, podemos observar a importância que Freud dá ao trabalho de Eros sobre a pulsão de morte, como forma de preservação da vida em confronto com uma tendência mais primitiva e originária em direção à morte. Erotizar a vida é a melhor arma para enfrentar a morte nossa de cada dia. "E parece como se a vitória, de fato, via de regra esteja do lado dos grandes batalhões" (Freud, 1937/1996mFreud, S. (1996m). Análise terminável e interminável. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 23, pp. 223-270). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1937), p. 256).

Com relação a essa questão tão importante, vale lembrar que a obra freudiana está marcada pela concepção do anatomista francês Bichat, segundo a qual a vida é o conjunto de forças que lutam contra a morte. Nessa perspectiva, é contra a tendência de base em direção à morte que a vida deveria lutar com todas suas forças. A vida tem sempre, como condição de possibilidade, a marca de Eros a se afirmar contra a morte iminente, anunciada pela força constante, insistente e repetitiva da pulsão de morte.

Segundo Freud, a pulsão de morte não pode ser erradicada, já que a pulsão por excelência, antes de ser capturada pelo psiquismo em suas cadeias de representações, é pulsão de morte. A única forma de se contrapor à pulsão de morte é a partir de Eros como princípio de afirmação da vida. Não é sem propósito que em sua carta ao cientista Albert Einstein, discutindo os motivos pelos quais o homem faz a guerra, Freud afirma que:

Não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra. Nossa teoria mitológica dos instintos facilita-nos encontrar a fórmula para métodos indiretos de combater a guerra. Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros. . . . A psicanálise não tem motivo para se envergonhar se nesse ponto fala de amor. (Freud, 1933/1996lFreud, S. (1996l). Por que a guerra? In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 189-208). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1933), p. 205, itálicos nossos)

Esse tema é retomado pelo filósofo Jacques Derrida em seu pronunciamento nos Estados Gerais da Psicanálise, intitulado Estados-da-alma da psicanálise (2001Derrida, J. (2001). Estados-da-alma da psicanálise: o impossível para além da soberana crueldade. São Paulo, SP: Escuta.). Ao falar do tema da crueldade, ele destaca que Freud não compactuava com a ilusão da eliminação da pulsão de morte. Para Derrida, ratificando Freud, a única maneira de combater a crueldade que é efeito da pulsão de morte é: "Fazer jogar a força antagonista de Eros, o amor e o amor à vida, contra a pulsão de morte. Existe, então, um contrário à pulsão de crueldade mesmo que esta não conheça fim" (Derrida, 2001Derrida, J. (2001). Estados-da-alma da psicanálise: o impossível para além da soberana crueldade. São Paulo, SP: Escuta., p. 76).

No meio dessa guerra infinita, imprevisível e cotidiana é que a experiência psicanalítica faz todo o sentido e pode mostrar toda sua potência. Em um mundo repleto de guias de autoajuda e de receitas prontas e universais de felicidade, a má notícia anunciada pela psicanálise é que cada um tem que se esforçar muito e por si só para inventar, construir e renovar os caminhos de expressão da pulsão no mundo psíquico e material.

Agora é importante destacar um pressuposto que acompanhou, do início ao fim, nosso percurso de pesquisa: a subjetividade, categoria que evidentemente não é freudiana, seria constituída, recortada e contornada pelos sulcos dos circuitos pulsionais. Em outras palavras, a subjetividade, enquanto destino e produção dos circuitos pulsionais, seria marcada pelas experiências eróticas de satisfação, e atravessada pela alteridade, já que a presença do outro é fundamental para inaugurar os caminhos pulsionais de todos nós.

Os circuitos pulsionais seriam assim ordenados, sempre pela mediação de objetos, que constituiriam então diversas modalidades de experiência de satisfação. Ao lado disso, o psiquismo se ordenaria segundo diferentes formas de subjetivação, inscritas nas linhas de força dos diferentes destinos das forças pulsionais. (Birman, 2006Birman, J. (2006). Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira., p. 362)

Partindo desse pressuposto e na contramão de toda a lógica medicamentosa contemporânea, que promete soluções rápidas e definitivas para o sofrimento humano, podemos afirmar que a experiência psicanalítica responsabiliza o sujeito por um trabalho erótico que, ao possibilitar a mobilidade pulsional, alarga o seu espaço de liberdade existencial e possibilita a experimentação de novos modos de ser.

É fundamental jogar luz sobre a dimensão de experiência da psicanálise. Recorrendo ao dicionário encontramos que "experimentar" é "percorrer", "passar através", "vencer dificuldades", "abrir novas perspectivas", indicando toda sua dimensão de movimento, mudança e trabalho. Perdidos no emaranhado de conceitos obtusos e desgastados, os analistas muitas vezes se distanciam dessa dimensão, na qual reside todo o poder de transformação da psicanálise. A experiência é aquilo que desprende o sujeito de si mesmo, que faz que esse sujeito não se veja como sendo mais ele mesmo e que o impede de sê-lo sempre da mesma forma. "Uma experiência é algo do qual a própria pessoa sai transformada." (Foucault, 1994Foucault. M. (1994). Dits et écrits IV. Paris: Gallimard., p. 41, tradução nossa) Experimentar é transformar-se!

Aqui a experiência da transferência, que articula tão bem as noções de Eros e trabalho, deve ser colocada no centro da prática psicanalítica, estabelecendo-se como um território erótico de acolhimento, de prática de liberdade e de experimentação subjetiva. Manejando a transferência, diante das estagnações e da aridez de caminhos de satisfação, o analista aposta na possibilidade de incitar o movimento, promover fluxos e, junto com o paciente, construir novos enredos pulsionais. A transferência, esse vínculo erótico que se vive no encontro afetivo de duas subjetividades, mobiliza muitas forças, e o analista, com a força de sua presença e de sua palavra, deve entrar nessa guerra onde o resultado é imprevisível.

Quando o sujeito, soterrado pelas forças avassaladoras da sua economia psíquica, se encontra ou aprisionado em poucos, parcos e repetitivos caminhos de satisfação, ou sem forças para enfrentar aquilo que obstaculiza essa satisfação, ou até mesmo empobrecido de recursos simbólicos para construir caminhos para o que ainda jaz silencioso e mortífero no psiquismo, é que a psicanálise pode entrar em campo para tentar realizar um trabalho erótico de transformação de si.

Referências

  • Birman, J. (2006). Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.
  • Derrida, J. (2001). Estados-da-alma da psicanálise: o impossível para além da soberana crueldade. São Paulo, SP: Escuta.
  • Foucault. M. (1994). Dits et écrits IV. Paris: Gallimard.
  • Freud, S. (1996a). Estudos sobre a histeria. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 2, pp. 39-319). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1895)
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  • Freud, S. (1996d). Sobre a psicoterapia. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 7, pp. 241-254). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1905)
  • Freud, S. (1996e). Recordar, repetir e elaborar. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 12, pp. 159-172). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1914)
  • Freud, S. (1996f). Sobre o narcisismo: uma introdução. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 75-110). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1914)
  • Freud, S. (1996g). Luto e melancolia. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 243-266). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1917)
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  • Freud, S. (1996i). O ego e o id. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XIX, pp. 13-80). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1923)
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  • Freud, S. (1996l). Por que a guerra? In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 189-208). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1933)
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  • Rocha, Z. (2003). Transferência e criatividade no tempo da análise. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 6(4), 80-101.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2014
  • Revisado
    17 Dez 2014
  • Aceito
    15 Jun 2015
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