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Em defesa da complexidade e das intercessões

Mandelbaum, M.. 2014. Trabalho com famílias na Psicologia Social. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo

Produto da grande experiência da autora como professora e como pesquisadora, o livro Trabalho com Famílias na Psicologia Social traz reflexões acerca da família como grupo social primário, destacando sua importância na formação psíquica e suas determinações históricas e sociais. Os seus textos atuam como intercessores de dimensões geralmente abordadas de forma dissociada, tanto pela academia quanto pelos profissionais. Nesse sentido, reúne Psicologia Social e Psicanálise, teoria e prática, indivíduo e coletivo, subjetividade e concretude, família e sociedade. Essas articulações sustentam, a meu ver, a complexidade da realidade do trabalho com famílias, sempre multideterminado e processual. Intercessores que trazem à tona a necessidade do diálogo dentro da própria Psicologia e com outros domínios conexos, em tempos sombrios nos quais ainda presenciamos a predominância de certezas e verdades.

Somos todos seres sociais e nossa socialização se inicia na família. Família imposta, família única. Grupo no qual crescemos e realizamos boa parte de nossa convivência. Espaço no qual tecemos nossa subjetividade: lá nascemos, aprendemos, crescemos, relacionamos e geralmente morremos. Grupo que faz parte de um contexto histórico e social. Sempre. Embora a veiculação de um modelo ideal de família, universal e a-histórico, a família nuclear, faça parte de nosso cotidiano. Os capítulos do livro abordam essas problemáticas, de diferentes maneiras, desmontando os riscos contemporâneos que assolam o grupo e muitas das vezes passam despercebidos por nós e pelos agentes sociais que atuam diretamente ou indiretamente com a família. Alguns desses riscos: a idealização da família, a privatização social, a homogeneização dos processos vividos pelo grupo, entre outros.

O livro se inicia com a apresentação teórica e metodológica contextualizando para o leitor o lugar do qual a autora fala, contribuindo para a compreensão dos estudos que se seguem. O primeiro capítulo começa problematizando o campo da psicologia social desvelando que "o encontro do psicológico e do social é um terreno fértil que se constitui como um laboratório para a produção em ciências humanas" (Mandelbaum, 2014, p. 17). Além de fértil, esse encontro é inevitável, uma vez que se dá de forma imanente não só em todos os objetos de estudo da Psicologia, mas, sobretudo, no grupo familiar. Concordo com Santos (2002Santos, B. de S. (2002). Um discurso sobre as ciências (13a ed.). Porto, Portugal: Afrontamento. (Trabalho original publicado em 1988)), que já no final da década de 1980 afirmava que "estamos no fim de um ciclo de hegemonia de certa ordem científica. As condições epistêmicas das nossas perguntas estão inscritas no avesso dos conceitos que utilizamos para lhes dar resposta" (p. 9). Questões que, a meu ver, permanecem atuais. Nesse contexto, a ciência deve cada vez mais considerar que a teoria não transcende a realidade e nem está dissociada da prática, também fazendo parte do processo de construção histórico-social da realidade. É essa a aposta dos escritos que compõem o livro.

Como balizador teórico, a Psicanálise é escolhida, com forte acento no hífen psicológico-social, cuja trama aparece tecida nas reflexões e estudos relatados ao longo do livro. Aliás, um dos grandes méritos do mesmo é a sustentação de uma Psicanálise que dialoga. Dialoga com a Psicologia Social, com outras teorias de família, com o fenômeno estudado, com o corpo, com a História, com a Literatura, entre outros, afastando-se deliberadamente de um uso impositivo e sinistro dessa teoria como verdade. Assim, a autora evita reducionismos e recusa uma abordagem fragmentada sustentada pelos especialismos, além de burlar a psicologização do social. Por outro lado, no aspecto metodológico a autora realiza a conexão da representação com a vida concreta. Não devemos nos esquecer que "cada método é uma linguagem e a realidade responde na língua em que foi perguntada." (Santos, 2002Santos, B. de S. (2002). Um discurso sobre as ciências (13a ed.). Porto, Portugal: Afrontamento. (Trabalho original publicado em 1988), p. 48). Nesse contexto, ela pergunta e responde a partir da hermenêutica, usada como um dispositivo para conhecer, e através da correlação entre interpretação e compreensão. Para tal, desvenda brevemente o campo da relação intersubjetiva mobilizada pela pesquisa com suas dificuldades e possibilidade, sustentando seus componentes a partir da sua escolha teórica.

Nesse sentido, seria possível arriscar dizer que a boa situação de pesquisa assenta-se sobre uma estrutura edípica: não se fundir, seja na vivência com o entrevistado ou com os conhecimentos teóricos, é manter um diálogo interno do qual o pesquisador, pesquisado e teoria . . . fazem parte sem que qualquer um dos termos anule o outro. (Mandelbaum, 2014, p. 62)

No primeiro texto reflexivo que se segue, a violência é discutida sob a ótica da alteridade, combatendo a tentação do individualismo, passeando por distintas correntes da psicanálise e desembocando na filosofia. Aqui, a constituição da psíquica só é possível mediante o encontro intersubjetivo, ou seja, é o outro que possibilita ao eu o ingresso no mundo social. Ser "com" geralmente é negligenciado na sociedade contemporânea. Tempos de barbárie. Ao estudar a violência dos coletivos, Mattéi (2002Mattéi, J. (2002). A barbárie interior: ensaio sobre o i-mundo moderno. São Paulo, SP: UNESP.) a relaciona à barbárie, que ele compreende como resultante da associação do sujeito a um movimento de interiorização que conduz ao individualismo. Segundo o autor, a barbárie "não remete a uma invasão da violência que viria do exterior revirar nossa intimidade, e sim a essa própria intimidade a partir do momento em que ela se apresenta como autônoma e arrogante" (Mattéi, 2002Mattéi, J. (2002). A barbárie interior: ensaio sobre o i-mundo moderno. São Paulo, SP: UNESP., p. 12), ou seja, é no interior do homem que devemos buscar esse fenômeno. A relação do eu consigo mesmo, experimentada pelo sujeito moderno, levada ao extremo, revela sua impotência para romper com essa fórmula e aceder à experiência da alteridade. O sujeito torna-se estranho a tudo que não é ele e suas relações passam a ser coextensivas a ele mesmo. Seu desejo e sua vontade passam a ser soberanos, e, sob esse pretexto, a violência se justifica, inclusive a violência familiar. Nesse contexto, nossa função como psicólogos não seria de forma alguma fortalecer a arrogância do eu igual a eu, mas sim desvelar para o eu sua pertinência necessária e vital no campo do outro, revelar a sua condição subjetiva de um ser que se estrutura nas relações "com", a partir de outras subjetividades.

No texto subsequente, a autora continua analisando a violência, mas esta agora experienciada na vivência do desemprego, ao apresentar os resultados de um estudo psicossocial acerca dos efeitos do desemprego nos trabalhadores pobres e em suas famílias, realizado em São Paulo, em que a vivência do trauma do desemprego repercute no grupo familiar que se torna o centro de elaboração do fenômeno. Ou seja, no interstício do campo subjetivo, histórico e social, focando no psíquico, sem excluir as outras dimensões, atesta que é a família que propicia uma elaboração subjetiva diante da exclusão do mundo do trabalho. Nessa perspectiva, o caráter inventivo do grupo familiar é ressaltado, processo através do qual, com seus arranjos singulares, pode-se favorecer o enfrentamento de situações despotencializadores.

Nos quatro capítulos seguintes, a dinâmica familiar é explorada a partir da análise de Kaspar Hauser, das cartas de Kafka acerca da educação dos filhos pelos pais e de um episódio vivenciado pela autora em sua própria família. Essa dinâmica aparece associada aos mitos de criação e na tensão entre o indivíduo e o grupo, à literatura e ao circuito psíquico. A autora examina nessas composições singulares as dimensões intrassubjetivas e intersubjetivas, passando do interior para o exterior, da proteção familiar à violência e desequilíbrio, do sintoma psicossomático aos processos de comunicação da família. Todas essas dimensões são mediadas pela linguagem, que circula entre a ação concreta e as representações e os símbolos, podendo inclusive fazer eclodir manifestações somáticas quando não se tem acesso à palavra.

No texto em que examina a ruptura de relações em família, o grupo familiar é visitado na imagem da casa como espaço. Na incansável e bem-sucedida proposta de conectar "dentro" e "fora", a autora examina como no processo histórico de nuclearização da família e institucionalização do predomínio do privado em detrimento do espaço público, as residências sofrem alterações arquitetônicas e se tornaram cada vez mais reservadas, restritas à convivência dos membros da família. A vida privada é interiorizada no reduto do espaço interno do lar. Por outro lado, as próprias tensões subjetivas que ocorrem no grupo em períodos de rompimento manifestam-se nas mudanças das configurações espaciais da casa. Nesse sentido, a casa efetua o amálgama entre memória e sonho.

Por fim, o livro termina com a análise do lugar da família na obra de Sylvia Leser de Mello, importante pesquisadora nacional, que na interface entre educação e trabalho realizou vários estudos acerca da família brasileira. Nesses estudos, como a autora do livro, essa pesquisadora realiza tessituras entre sociedade/cultura, família e subjetividade, buscando domínios conexos à psicologia para realizar esse percurso. De fato, diante dos impasses colocados para nós psicólogos e também para outros agentes sociais, torna-se cada vez mais premente buscar intercessões.

Referências

  • Mattéi, J. (2002). A barbárie interior: ensaio sobre o i-mundo moderno. São Paulo, SP: UNESP.
  • Santos, B. de S. (2002). Um discurso sobre as ciências (13a ed.). Porto, Portugal: Afrontamento. (Trabalho original publicado em 1988)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    03 Dez 2014
  • Aceito
    02 Fev 2015
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