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O ensaio e as bombas

Para este editorial, havíamos decidido expor a importância da forma ensaio para expressão da produção acadêmica. Gostaríamos de defender que a publicação de ensaios não é uma atividade menor quando comparada à escrita de relatos de pesquisa; ao contrário, muitas vezes, são os ensaios em psicologia e áreas afins que definem o sentido da atividade de pesquisa no campo. Os ensaios representam tentativas de produzir conhecimentos de forma crítica, atenta às contradições do conhecimento e da realidade, evitando-se, com isso, a afirmação irrefletida da ordem estabelecida nas ciências e na vida.

Não obstante a necessidade de que o tema inicialmente delimitado para este editorial pudesse ser tratado como objeto exclusivo de análise, dada a sua relevância e complexidade, optamos por articulá-lo a outro assunto, de cunho institucional, de certa forma interno à Universidade de São Paulo. Ao fazê-lo, pensamos que não estaremos tão longe do editorial que, inicialmente, havíamos cogitado escrever. Isto porque a publicação de ensaios não comporta uma escolha apenas técnico-científica, mas a ideia de que a ciência pode contribuir para a criação de um tipo de sociedade no qual o livre-pensamento seja assumido e em que a mera reprodução de supostas verdades desvinculadas dos objetos aos quais se referem não mais convença.

Diante do delineamento inicialmente apresentado, talvez seja possível supor que tratamos aqui do fato de que, em uma repetição fajuta da violência sofrida pela universidade à época da ditadura militar, bombas tenham sido detonadas dentro do campus da Universidade de São Paulo por uma organização de caráter militar. Se ainda assim são trágicos os efeitos dessa intervenção acionada pela própria reitoria, a farsa, contudo, não tarda a se revelar, além do que “a farsa é mais terrível do que a tragédia à qual ela segue” (Marcuse, 1965/2011Marcuse, H. (2011). Prólogo [O 18 de brumário de Luís Bonaparte]. In K Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte (N. Scheider, trad., pp. 9-16). São Paulo, SP: Boitempo. (Trabalho original publicado em 1965)).

A recorrência ao uso da força repressiva, caracterizada pela detonação de bombas no ambiente universitário, onde dever-se-ia cultivar a universalidade dos direitos e do acesso ao livre-pensamento, revela a afinidade funesta das bombas com o conhecimento produtivista que serve ao imediato e, portanto, à reprodução, na instituição universitária, do poder engendrado pela estrutura da sociedade antagônica. O pacto entre ciência e dominação, ideologicamente justificado pela racionalidade tecnológica (Marcuse, 1964/1967Marcuse, H. (1967). O fechamento do universo da locução. In H. Marcuse, A ideologia da sociedade industrial (G. Rebuá, trad., pp. 92-121). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)), corrobora o cerceamento ao pensamento crítico; alia-se às demais condições opressivas que hoje caracterizam o ambiente acadêmico e tolhem as disposições de espírito necessárias ao trabalho intelectual, sobretudo aquelas que se realizam no ensaio. A opressão que ora nos assombra já fora de muito anunciada pela hegemonia da racionalidade que, igualmente, serve à dominação e à produção de conhecimentos avessos à promoção de condições existenciais dignas para todos.

Apesar dos esforços que temos empregado para manter viva a consciência acerca da descontinuidade de ciência e política (Crochík, Massola & Svartman, 2016Crochík, J. L., Massola, G. M., & Svartman, B. P. (2016). Ciência e política [Editorial]. Psicologia USP, 27(1), 1-5. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/pusp/v27n1/1678-5177-pusp-27-01-00001.pdf
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), a realidade cotidiana parece nos desafiar a termos de enfrentar esse relevante tema em suas diversas formas de expressão. Também no que concerne à forma da comunicação do pensamento, por meio da redação de textos que não apenas comuniquem resultados do que já fora pensado, mas sejam eles mesmos expressões do pensamento, essa relação se impõe como dimensão a ser refletida.

Admitir que forma e conteúdo não são esferas independentes, mas mantêm relações intrínsecas, remete-nos à necessidade de refletirmos sobre o porquê de nossa escolha política por uma forma de expressão do pensamento capaz de promover reflexão teórica e interpretação da realidade. A experiência intelectual propiciada pela tradição do pensamento crítico tem nos indicado que o ensaio é a forma textual que apresenta maior comprometimento com esse objetivo, pois concede primazia ao objeto e convoca a interpretá-lo por meio do trabalho conceitual. Outras formas textuais como artigo empírico também podem superar o caráter meramente descritivo conservado pela ciência positivista e apresentar elaboração teórica significativa, mas, com esse movimento, se aproximam do ensaio, de seu potencial de ruptura com a ciência administrada. Como se pode depreender das reflexões de (Adorno, 1958/2003Adorno, T. W. (2003). O ensaio como forma. In T. W. Adorno, Notas de literatura I (J. de Almeida, trad., pp. 15-45). São Paulo, SP: Duas Cidades; Editora 34. (Trabalho original publicado em 1958)) a respeito do ensaio, considerar as implicações de sua forma para a expressão do conhecimento compreende também refletirmos sobre as consequências dessa eleição para o debate atual sobre a difusão da pesquisa acadêmica:

O ensaio não segue as regras do jogo da ciência e da teoria organizadas, segundo as quais, como diz a formulação de Spinoza, a ordem das coisas seria o mesmo que a ordem das idéias. Como a ordem dos conceitos, uma ordem sem lacunas, não equivale ao que existe, o ensaio não almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva. Ele se revolta sobretudo contra a doutrina, arraigada desde Platão, segundo a qual o mutável e efêmero não seriam dignos da filosofia; revolta-se contra essa antiga injustiça cometida contra o transitório, pela qual este é novamente condenado no conceito. O ensaio recua, assustado, diante da violência do dogma, que atribui dignidade ontológica ao resultado da abstração, ao conceito invariável no tempo, por oposição ao individual nele subsumido. A falácia de que a ordo idearum seria a ordo rerum é fundada na insinuação de que algo mediado seja não mediado. (p. 25-26)

No que concerne aos motivos, podemos iniciar pelo mais elementar interesse na crítica efetiva aos temas tratados. Distintamente das formas de divulgação que pressupõem uma única forma de interpretação sobre a qual não há mais o que refletir, mas sim a necessidade premente de apreendê-lo como verdade sobre um determinado fato, o ensaio resguarda a possibilidade de o autor posicionar-se diante da problemática por ele delimitada, evidenciando, com isso, a condição histórica do objeto e o caráter incompleto do conhecimento. Por meio do exercício do pensamento possibilitado pelo ensaio, é possível reconhecer e assegurar a expressão da experiência intelectual presente nas diferentes formas de conhecimento com as quais pode dialogar: a ciência, a filosofia e a arte. Essa experiência, que compreende o sujeito do conhecimento, mas também a objetividade da realidade na qual ele está inserido, requer liberdade de pensamento. Para além da dicotomia entre a liberdade interna, subjetiva, e a falta de liberdade objetiva que permeou o pensamento iluminista de autores como Kant e Hegel (Marcuse, 1936/1981Marcuse, H. (1981). Estudos sobre autoridade e família. In H Marcuse, Idéias sobre uma Teoria Crítica da Sociedade (F. Guimarães, trad., pp. 56-159). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . (Original publicado em 1936)), o reconhecimento de que não há pensamento se não houver sujeito confere ao ensaio uma qualidade que remonta à sua origem em pensadores como Montaigne, que, conforme a análise de (Auerbach, 1932/2010Auerbach, E. S. (2010). O escritor Montaigne. In M. A. Screech, Michel de Montaigne: os ensaios - uma seleção (R. F. D’Aguiar, trad., pp. 8-22). São Paulo, SP: Penguin; Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1932)), concebia a virtude como volúpia; segundo ele, Montaigne “mergulha fundo na sensualidade da vida, pois somente na sensualidade vital do mundo ele pode cingir e desfrutar a si mesmo” (p. 21). Com isso, ele teria exercitado em seus ensaios uma liberdade de espírito que elevou o eu a objeto de seus ensaios:

... o mundo em que nasceu e que abandonará a contragosto, mas sem medo, dá-lhe, com a plenitude da vida, a plenitude da liberdade. A vida oferece-lhe inúmeras possibilidades de examinar a si mesmo, mas não lhe impõe leis. A virtude de que desfruta não é uma lei, não é de modo algum “a lei moral em mim”. Ela não serve nem a Deus nem aos homens, mas à própria pessoa que a detém. Não obriga a nada nem a ninguém. Deixa o homem livre, mas só. (Auerbach, 1932/2010Auerbach, E. S. (2010). O escritor Montaigne. In M. A. Screech, Michel de Montaigne: os ensaios - uma seleção (R. F. D’Aguiar, trad., pp. 8-22). São Paulo, SP: Penguin; Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1932), p. 21)

Essa característica dos ensaios de Montaigne, que consiste em um dos elementos centrais da forma ensaio tal como compreendida por importantes pensadores que a ela recorreram para a crítica da cultura (Adorno, 1958/2003Adorno, T. W. (2003). O ensaio como forma. In T. W. Adorno, Notas de literatura I (J. de Almeida, trad., pp. 15-45). São Paulo, SP: Duas Cidades; Editora 34. (Trabalho original publicado em 1958); Lukács 1910/1975Lukács, G. (1975). Sobre la esencia y forma del ensayo (carta a Leo Popper). In G. Lukács, El alma y las formas (M. Sacristán, trad., pp. 15-39). Barcelona, España: Grijalbo. (Trabalho original publicado em 1910) ), a liberdade de experiência intelectual, parece revelar a possibilidade de, por meio do ensaio, exercitarmos uma liberdade de pensamento que a ciência contemporânea comumente tende a negar. O cerceamento do pensamento pela ciência positivista e pela racionalidade tecnicista que nela tem se apoiado para gerir formas de organização da pesquisa e das instituições acadêmicas não condiz com a liberdade de espírito suscitada pelos bons ensaios, ainda que admita características como a centralidade no ponto de vista e o caráter transitório do conhecimento, hipostasiados nos ensaios ruins - “os ensaios ruins não são menos conformistas que dissertações ruins” (Adorno, 1958/2003Adorno, T. W. (2003). O ensaio como forma. In T. W. Adorno, Notas de literatura I (J. de Almeida, trad., pp. 15-45). São Paulo, SP: Duas Cidades; Editora 34. (Trabalho original publicado em 1958), p. 20) -, assim como no artigo acadêmico e em outras formas de comunicação científica produzidas sem o devido comprometimento com a crítica teórica. Tanto o relato de experimentos quanto a descrição de fenômenos percebidos como fatos sociais podem prescindir da pretensão que outrora, na tradição europeia, fora criticada por (Adorno, 1958/2003Adorno, T. W. (2003). O ensaio como forma. In T. W. Adorno, Notas de literatura I (J. de Almeida, trad., pp. 15-45). São Paulo, SP: Duas Cidades; Editora 34. (Trabalho original publicado em 1958)) por conservar preconceitos em relação ao ensaio:

Apesar de toda a inteligência acumulada que Simmel e o jovem Lukács, Kassner e Benjamim confiaram ao ensaio, à especulação sobre objetos específicos já culturalmente pré-formados, a corporação acadêmica só tolera como filosofia o que se veste com a dignidade do universal, do permanente, e hoje em dia, se possível, com a dignidade do “originário”... (p. 16)

Em sua defesa do ensaio, Adorno destacou que a resistência a ele decorria do fato de evocar a liberdade de espírito, não permitindo que determinantes externos circunscrevessem seu “âmbito de competência”. Quase seis décadas depois da publicação do texto de Adorno, a rejeição ao ensaio permanece intensa no campo acadêmico, mas já não se observa igual preocupação com a “dignidade” do universal, do permanente e do originário. A atual ênfase na ciência empírica incorporou o transitório - não como expressão do caráter histórico dos objetos, mas como negação da experiência - e o ponto de vista, que cultiva a lógica do sujeito em detrimento do confronto com o objeto, como recursos suficientes ao funcionamento da máquina acadêmica. Na ânsia por ampliar o volume da produção acadêmica, de modo a atender às demandas de tecnologia e do que equivocadamente se denomina inovação, ou seja, a regulamentação de todos os âmbitos da vida, o malfadado produtivismo acadêmico admite sem má consciência a produção em série tanto de artigos quanto de ensaios desde que seus respectivos “âmbitos de competência” permaneçam determinados pelo interesse do sistema produtivo. A liberdade de espírito que inspirava Montaigne e assombrava a corporação acadêmica que há algumas décadas conserva-se refratária ao ensaio foi sacrificada em prol do culto positivista dos fatos ou do relativismo extremo; em ambos os casos sujeito e objeto são radicalmente cindidos: “Uma vez radicalmente separado do objeto, o sujeito já reduz este a si; o sujeito devora o objeto ao esquecer o quanto ele mesmo é objeto” (Adorno, 1968/1995Adorno, T. W. (1995). Sobre sujeito e objeto. In T. W. Adorno, Palavras e sinais: modelos críticos 2 (M. H. Huschel, trad., pp. 181-201). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1969), p. 183).

Para além das limitações impostas pela hegemonia do cientificismo que nega à escrita acadêmica sua proximidade com a filosofia, com a arte e com a experiência, a imposição de uma racionalidade tecnológica à administração da vida acadêmica tende a encarcerar a linguagem em um âmbito de locução absolutamente fechado e subordinado aos interesses da dominação. Como bem notou (Marcuse, 1964/1967Marcuse, H. (1967). O fechamento do universo da locução. In H. Marcuse, A ideologia da sociedade industrial (G. Rebuá, trad., pp. 92-121). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1964)), em sua análise da ideologia da sociedade industrial, uma ideologia da racionalidade tecnológica, a linguagem reduzida ao operacionalismo serve à administração total. Lamentavelmente, é esse tipo de administração que parece ser a meta do atual projeto de universidade operacional que está sendo implantado na Universidade de São Paulo. O apelo feito à racionalidade administrativa revela a coincidência funesta entre a linguagem utilizada na política acadêmica e a que atende aos propósitos do cientificismo, fomentando a mentalidade e o comportamento tecnológicos:

Na expressão desses hábitos de pensar, a tensão entre aparência e realidade, fato e fator, substância e atributo, tende a desaparecer. Os elementos de autonomia, descoberta, demonstração e crítica recuam diante da designação, asserção e imitação. Elementos mágicos, autoritários e rituais invadem a palavra e a linguagem. A locução é privada das mediações que são as etapas do processo de cognição e avalição cognitiva. Os conceitos que compreendem os fatos, e dêsse modo transcendem êstes, estão perdendo sua representação linguística autêntica. Sem mediações, a linguagem tende a expressar e a promover a identificação imediata da razão e do fato, da verdade e da verdade estabelecida, da essência e da existência, da coisa e de sua função. (p. 93)

A linguagem operacional serve ao cientificismo de modo semelhante a como serve à universidade operacional que, “definida e estruturada por normas e padrões inteiramente alheios ao conhecimento e à formação intelectual” (Chauí, 2003Chaui, M. (2003). A universidade pública sob nova perspectiva. Revista brasileira de educação, 21, 5-15. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n24/n24a02.pdf
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, p. 7), volta-se para o desempenho produtivo engendrado por interesses mercantis. Essa linguagem funcional, que identifica as coisas e suas funções, e funde palavra e conceito, obstruindo a percepção de que a tensão existente entre sujeito e objeto é também indicativa da não identidade entre o conceito e a coisa, é cultivada pela racionalidade tecnológica. É ela que permeia o universo da produção acadêmica alienada que se afasta do conhecimento em favor da técnica e o submete aos interesses administrativos. É contra ela que o ensaio ainda pode se insurgir.

O ensaio implica o reconhecimento de que, apesar da descontinuidade entre ciência e política, a relação entre essas duas esferas da vida nos impele a assumirmos as diferentes articulações por elas compostas como um frequente e necessário objeto de reflexão. É política a opção pelo ensaio, assim como também é política a decisão pelo cerceamento do pensamento como se observa na produção científica atual. As bombas lançadas pela tropa de choque da polícia militar paulista, acionada pela reitoria de uma das principais universidades da América Latina, sobre professores, funcionários e estudantes que, no dia 7 de março deste ano, protestavam contra um modelo de administração calcado numa racionalidade alheia à experiência da universidade pública, revela que a racionalidade tecnológica contra a qual o ensaio se insurge está concretizada na administração acadêmica.

(Lukács, 1910/1975Lukács, G. (1975). Sobre la esencia y forma del ensayo (carta a Leo Popper). In G. Lukács, El alma y las formas (M. Sacristán, trad., pp. 15-39). Barcelona, España: Grijalbo. (Trabalho original publicado em 1910) ), que compreendia o ensaio como um gênero artístico e via no confronto com a vida que este possibilita o mesmo gesto com que tal confronto é provocado pela obra de arte, destacou que essa forma de expressão configura um processo de julgamento, com isso concedendo perenidade ao que teve uma existência particular e fugaz: “El ensayo es un juicio, pero lo esencial en él, lo que decide de su valor, no es la sentencia (como en el sistema), sino el proceso mismo de juzgar” (p. 38). Nesse mesmo sentido, é interessante considerar que essa atitude do ensaísta implica a coragem esclarecida de fazer uso do próprio entendimento sem uma orientação alheia (Kant, 1784/2009Kant, I. (2009). Resposta à pergunta: que é o iluminismo? In I. Kant, A paz perpétua e outros opúsculos (A. Mourão, trad., pp. 9-18). Lisboa, Portugal: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1784)).

É visível a contradição entre a disposição de espírito necessária para a produção de ensaios teóricos e as atuais condições opressivas do ambiente acadêmico. Não obstante seu impacto deletério, as bombas não podem silenciar os intelectuais mais do que a racionalidade que as engendra, bem como a reprodução cega da realidade. A mentalidade científica que meramente constata supostos fatos sucumbe à identidade entre a coisa e o conceito; a comunicação científica que resignadamente relata os empobrecidos achados dessa ciência sucumbe à identidade entre palavra e conceito. É por meio da negação desse tipo de identidade que o ensaio possibilita, nos termos de (Adorno, 1958/2003Adorno, T. W. (2003). O ensaio como forma. In T. W. Adorno, Notas de literatura I (J. de Almeida, trad., pp. 15-45). São Paulo, SP: Duas Cidades; Editora 34. (Trabalho original publicado em 1958)), explorar os “pontos cegos de seus objetos” (p. 44). Para ele, o ensaio revela-se dialético na medida em que desvela por meio de conceitos os conteúdos que não cabem em conceitos. A expressão da experiência intelectual propiciada pelo ensaio permite-lhe acompanhar e confrontar as contradições da realidade, assim como as contradições entre os conceitos e a realidade. Com isso, ele favorece a crítica da sociedade por meio da crítica ao conhecimento. Sem se colocar como imediatamente político, o ensaio articula ciência e política, possibilitando o desenvolvimento do espírito livre inspirado por Montaigne, o processo de julgamento destacado por Lukács e a crítica dialética pretendida por Adorno:

O ensaio devora as teorias que lhe são próximas: sua tendência é sempre liquidar a opinião, incluindo aquela que ele toma como ponto de partida. O ensaio continua sendo o que foi desde o início, a forma crítica par excellence, mais precisamente, enquanto crítica imanente de configurações espirituais e confrontação daquilo que elas são com o seu conceito, o ensaio é crítica da ideologia. (Adorno, 1958/2003Adorno, T. W. (2003). O ensaio como forma. In T. W. Adorno, Notas de literatura I (J. de Almeida, trad., pp. 15-45). São Paulo, SP: Duas Cidades; Editora 34. (Trabalho original publicado em 1958), p. 38)

Se é lícito compreendermos o ensaio em consonância com o entendimento de Adorno, então, sua incompatibilidade com as bombas que ora oprimem o pensamento e cerceiam a formação que a universidade deveria produzir é condição de seu fortalecimento; é motivo para que ele possa se exercer com todo seu potencial negativo: denunciando a irracionalidade da racionalidade técnico-administrativa que fundamenta o cientificismo e a produção acadêmica indiscriminada, e o autoritarismo subjacente à democracia formal de uma instituição que encontra dificuldades, para não dizer impossibilidade, para que as diversas posições existentes possam ser discutidas de forma democrática, sem necessidade de intervenção da polícia e da tropa de choque, cuja presença indica que a questão política se torna policial.

A opção pelo ensaio, portanto, é também uma opção pela liberdade de pensamento. Se a racionalidade que fundamenta o atual modo de produção científica e também de administração acadêmica cumpre uma função ideológica e, por vezes contraditoriamente a essa própria racionalidade, favorece a organização autoritária desses setores, a priorização do ensaio como forma de expressão do pensamento representa ao menos um esforço de desvelamento dessa ideologia; representa a possibilidade de exercer a crítica teórica das condições opressivas:

É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria converte-se em força material quando penetra nas massas. (Marx, 1844/2005Marx, K. (2005). Crítica da filosofia do direito de Hegel - introdução. In K. Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel (R. Enderle; L. Deus, trads., pp. 145-156). São Paulo, SP: Boitempo . (Original publicado em 1844), p. 150)

A lucidez do jovem Marx, que há 173 anos reconhecera o poder da crítica que se materializa como uma arma contra o poder material voltado à dominação, ilumina o potencial do ensaio não apenas diante do poder material que oprime o corpo, mas primeiramente do poder ideológico que tolhe o pensamento e prepara o espírito para a subordinação: o ensaio é também uma “arma dialética”; uma “bomba” que destrói o que está petrificado e liberta o pensamento: se o poder da bomba material é a preservação dos interesses que paulatinamente dizem respeito a uma proporção menor da população, o poder da crítica, que o ensaio contém, almeja a liberdade e a justiça.

Referências

  • Adorno, T. W. (2003). O ensaio como forma. In T. W. Adorno, Notas de literatura I (J. de Almeida, trad., pp. 15-45). São Paulo, SP: Duas Cidades; Editora 34. (Trabalho original publicado em 1958)
  • Adorno, T. W. (1995). Sobre sujeito e objeto. In T. W. Adorno, Palavras e sinais: modelos críticos 2 (M. H. Huschel, trad., pp. 181-201). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1969)
  • Auerbach, E. S. (2010). O escritor Montaigne. In M. A. Screech, Michel de Montaigne: os ensaios - uma seleção (R. F. D’Aguiar, trad., pp. 8-22). São Paulo, SP: Penguin; Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1932)
  • Chaui, M. (2003). A universidade pública sob nova perspectiva. Revista brasileira de educação, 21, 5-15. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n24/n24a02.pdf
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  • Crochík, J. L., Massola, G. M., & Svartman, B. P. (2016). Ciência e política [Editorial]. Psicologia USP, 27(1), 1-5. Recuperado de http://www.scielo.br/pdf/pusp/v27n1/1678-5177-pusp-27-01-00001.pdf
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  • Lukács, G. (1975). Sobre la esencia y forma del ensayo (carta a Leo Popper). In G. Lukács, El alma y las formas (M. Sacristán, trad., pp. 15-39). Barcelona, España: Grijalbo. (Trabalho original publicado em 1910)
  • Kant, I. (2009). Resposta à pergunta: que é o iluminismo? In I. Kant, A paz perpétua e outros opúsculos (A. Mourão, trad., pp. 9-18). Lisboa, Portugal: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1784)
  • Marcuse, H. (2011). Prólogo [O 18 de brumário de Luís Bonaparte]. In K Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte (N. Scheider, trad., pp. 9-16). São Paulo, SP: Boitempo. (Trabalho original publicado em 1965)
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  • Marx, K. (2005). Crítica da filosofia do direito de Hegel - introdução. In K. Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel (R. Enderle; L. Deus, trads., pp. 145-156). São Paulo, SP: Boitempo . (Original publicado em 1844)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017
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