Falar de psicanálise e cinema é sempre uma tarefa delicada. Ao nos propormos realizar a leitura psicanalítica de um filme, de um livro ou de uma obra de arte de maneira geral, corre-se o risco de tornar a psicanálise uma espécie de Weltanschauungen, uma visão de mundo totalizante, perigo que Freud (1933/1976) insistiu que se deve evitar. Por outro lado, em inúmeras passagens, o autor indicou que a arte, principalmente a literatura, - Freud não era muito afeiçoado à música e em sua época o cinema estava dando seus primeiros passos - expõe questões sobre o inconsciente que a psicanálise só conseguiria conquistar à duras penas. Nesse sentido, como nos indica Rivera (2011), não se trata de aplicar a psicanálise às obras para desvelar uma realidade que somente a psicanálise poderia alcançar. Ao contrário, trata-se de olhá-las quase como um caso clínico, embora seja evidente que entre os dois haja diferenças intransponíveis2. Assim a um filme se torna interessante para um psicanalista na medida em que pode fornecer subsídios para se ter alguns insights quanto à questão humana, ajudando a iluminar impasses metapsicológicos. Nessa direção, o filme Sinédoque, New York, de 2008, com roteiro e direção de Charlie Kaufman nos coloca uma série de questões em relação à temporalidade da angústia em sua articulação com a hipocondria. Cabe ressaltar que o filme é de uma enorme riqueza, logo, não se pretende esgotar seus detalhes e muito menos traçar explicações psicanalíticas para os destinos de Caden Cotard, personagem principal. Nosso objetivo é tão simplesmente extrair considerações no que concerne à temporalidade da angústia hipocondríaca. Diante desse quadro, realizaremos um breve resumo do filme para então discutir as proposições metapsicológicas que este nos instiga a pensar.
Hipocondria e angústia em Sinédoque, New York
Uma voz de criança cantando surge ainda nos créditos. A canção que versa sobre a vida de um homem termina com estas estrofes: “e quando eu morrer/e for enterrado/vermes comerão minha cabeça/ . . . /Há sempre a última vez/que você vê todo mundo/Há sempre um nunca mais”. Nas últimas duas estrofes aparece a primeira imagem do filme: um relógio digital que marca a seguinte hora: 7h44. Em seguida, o personagem principal (Caden Cotard3, interpretado por Philip Seymour Hoffman) aparece deitado na cama. Caden é um renomado diretor de teatro casado com Adele, uma artista que faz pinturas em miniatura, sendo Olive a filha de quatro anos do casal. O filme pode ser dividido em três partes: a primeira fase, na qual a família vive na mesma casa, a segunda, quando Adele se separa de Caden, partindo com Olive para Berlim, e a terceira, na qual Caden constrói uma peça em que ocorre a verdadeira sinédoque4 do filme. Já na primeira parte, a rotina do casal é um tanto quanto conturbada. Cada um aparece centrado em sua vida. Adele em suas pinturas em miniatura e Caden nas suas peças. Ademais, o personagem principal é retratado desde o início com questões em torno de doenças que a princípio não sabemos se são reais ou fantasiosas, preocupações que curiosamente também são expressas por sua filha. Uma das primeiras cenas mostra Adele no banheiro com Olive afirmando que suas fezes estavam verdes e estranhas, o que gera uma comoção por parte da menina. Em seguida, Caden emite sua primeira frase no filme: “eu não me sinto bem”. Aí já se nota uma grande preocupação de Caden em torno de sua própria saúde e em uma espécie de centramento sobre si mesmo. Durante o café da manhã familiar (cena que se repete), Caden lê o obituário, vociferando as causas das mortes. Cabe ressaltar que, desde o início do filme, o diretor nos confronta timidamente com uma temporalidade que ficará evidente a partir da segunda parte, a saber: um tempo não linear, próximo de um eterno presente. Na primeira cena, o rádio anuncia que estamos em setembro, mas, logo em seguida, quando Caden sai para conferir a caixa de correio (de onde retira uma revista sobre doenças e medicamentos), vemos que já é outubro. Quando retorna a casa, a personagem abre a geladeira e, ao verificar que a validade do leite está vencida, para nossa surpresa, percebemos que mais alguns dias se passaram. Caden volta sua atenção ao jornal, abre na página dos obituários mais uma vez, e aí nos damos conta de que a data remete a novembro. Na próxima cena, Caden repete o gesto e vemos que o jornal já é do mês de maio do ano seguinte. Os fatos, portanto, se atropelam e mostram a passagem do tempo apenas nos detalhes. A sensação que temos é de que estamos no mesmo dia, apenas poucas horas mais tarde.
Embora a segunda parte do filme só se consolide quando Adele resolve definitivamente partir com Olive para Berlim, um episódio nos dá um presságio do que está por vir. Caden se machuca ao fazer a barba, o que desencadeia uma série de visitas a especialistas devido à queixa de que suas pupilas não estariam mais funcionando5. É curioso notar que o diretor nos deixa confusos quanto à veracidade de sua queixa, uma vez que o parecer dos médicos é sempre vago e aberto a interpretações. A última e primeira cena em que temos Caden e Olive sozinhos é curiosa, pois uma espécie de questão hipocondríaca parece ser compartilhada pelos dois. Olive pergunta a seu pai o que ele tem no rosto e ele afirma ser um problema dermatológico chamado “sicose”, que em inglês se pronuncia praticamente da mesma forma que “psicose”, explicando para a menina a diferença das duas expressões. Olive fala para o pai: “você pode ter os dois então”. O segundo momento do filme é consolidado. Adele vai para Berlim com Olive e desaparece de cena. A partir de então, somos deixados somente com Caden Cotard e, de certa forma, convidados a compartilhar de seu olhar. Ao longo da segunda parte, não se sabe quanto tempo se passou desde a ida de Adele (que supostamente ficaria somente um mês). O filme se concentra em Caden, no seu corpo, nas suas sensações de doença, nas visitas a diferentes médicos e a uma psicóloga completamente centrada em si. A única pessoa que nos informa sobre a passagem do tempo é Hazel, personagem que trabalha na bilheteria do teatro e tenta conquistar Caden. Enquanto Caden afirma que passaram-se doze dias da partida de Adele e Olive, Hazel indica que já se passou mais de um ano. A partir de então, Caden começa a ver a si mesmo em propagandas e desenhos animados, adquire mania por limpeza e, aparentemente, (nota-se que estamos compartilhando a visão da personagem e, por isso, digo aparentemente) desenvolve erupções cutâneas nas pernas, perde a capacidade fisiológica de salivar e de chorar, sofre de espasmos e, sobretudo, experimenta cada vez menos a passagem do tempo. O terceiro momento do filme se inicia quando Caden recebe um prêmio, uma grande quantidade de dinheiro para realizar uma obra própria. Logo na primeira reunião com o elenco, o diretor explica que sua atual reflexão sobre a morte o impulsiona a fazer uma peça que comporta uma “honestidade brutal” acerca da fatalidade da existência. Aluga-se um enorme galpão, palco em que vai se operar uma verdadeira sinédoque das personagens. Essa peça ganha uma dimensão megalomaníaca e passa a ter a pretensão de representar toda a sua vida e a das pessoas que o cercam; daí o nome do filme, que nos remete à figura de linguagem sinédoque. Aos poucos fica claro que a peça não é uma representação, uma vez que há simultaneidade entre o vivido e o que é encenado: estamos mais próximos de uma apresentação no tempo real sempre remetida a um passado que não se tornou passado6 (o sumiço de Adele e Olive).
A partir de então, a vida de Caden se confunde totalmente com as personagens escolhidas para encenar a peça. Logo na primeira cena Caden casa-se com a atriz principal que representa Adele e, com ela, tem uma filha chamada Ariel. Tudo se passa como se esse casamento fosse a repetição daquele que foi perdido, uma repetição encenada na grande peça. Caden chama frequentemente Ariel de Olive, e Claire (atriz com que se casou) pouco a pouco vai interpretando a si mesma na peça. O próprio Caden é representado por um ator, trata-se de Sammy, selecionado por afirmar que sabia mais sobre Caden do que ele próprio. A partir destes espelhamentos entre atores e seus personagens mediados por pequenos bilhetes distribuídos por Caden, os acontecimentos se embaralham e se confundem tanto quanto a noção do tempo. Como telespectadores, sentimos um enorme incômodo, estamos presos em uma confusão temporal: quando algo parece acontecer, volta-se ao mesmo instante. Os personagens confinam-se a um presente absoluto onde representam sua própria vida. O presente é, por vezes, entrecortado por alguns acontecimentos que marcam sua passagem, como um encontro com a sua filha (Olive) extremamente mais velha. A partir de então, Caden encena a faxineira de Adele marcando uma espécie de dissolução da sua identidade que passa a ser atravessada por diversos atores desta sinédoque em forma de peça. Após a morte da atriz que representava Hazel e da própria Hazel, Caden afirma: “estou morto” e deixa de ser o diretor da peça, posto tomado pela personagem que representava o próprio diretor. Já com certa idade, Caden vive seus últimos anos fazendo o papel da faxineira no apartamento cenográfico de Adele, cumprindo passivamente as instruções da nova diretora da peça que lhe dá ordens o tempo todo por meio de um fone de ouvido.
Caden vai envelhecendo até que, em certo momento, sai da casa onde representava/era a faxineira de Adele e percebe que tudo está destruído: o galpão, o livro de sua antiga psicóloga, tudo está em ruínas. É quando escuta, aparentemente da voz que vem de seu fone de ouvido, a seguinte passagem:
O que já esteve diante de você, um excitante e misterioso futuro, está agora atrás de você. . . . Essa é a experiência de todos. De cada um. As especificações não fazem diferença. Todos são todos. Então você é Adele, Hazel, Claire, Olive. Você é Hellen. Toda a tristeza dela é sua. Toda a solidão dela. O cabelo grisalho e ressecado. As mãos avermelhadas são suas. . . . Quando o mundo esquece você, quando reconhece a sua transitoriedade, quando você começa a perder suas características uma por uma. Quando você aprende que não há ninguém observando você e nunca houve. Você pensa em dirigir, não vindo de algum lugar, e não buscando chegar a algum lugar, mas apenas dirige para passar o tempo. Agora você está aqui, são 7h43, agora você está aqui, são 7h44.
Nesse momento, mesma hora em que o filme começa, o tempo para novamente. Caden encontra a mãe de Ellen - personagem que já havia visto em um sonho e que se destacava por ter uma ideia de futuro, uma aspiração em relação a sua neta. Sentados em um sofá, em meio à destruição, uma imagem se destaca na parede: trata-se do desenho de um relógio que marca justamente 7h44. Estamos de volta para o mesmo horário do começo do filme e o tempo não passou. Uma vida inteira é percorrida durante a narrativa, no entanto, é como se no começo e no final continuássemos às 7h44.
Hipocondria, angústia e desamparo em psicanálise
No filme Sinédoque, New York, nota-se uma espécie de presentificação do tempo desencadeada pela angústia hipocondríaca. O recurso do flashback, tão frequente no cinema, não é utilizado. Com o flashback, a narrativa, embora não seja descrita de maneira linear, é marcada por uma ideia de passagem do tempo por meio da associação de fatos passados a acontecimentos presentes. Esse recurso não é uma novidade da linguagem cinematográfica, muito embora o fato de contar uma narrativa por imagens tenha banalizado o flashback. Na literatura, por exemplo, Proust (1983) se utiliza de uma ferramenta parecida, sua narrativa é feita por uma associação entre signos do presente e de um passado esquecido, reconstruído através da experiência do encontro com estes signos. O próprio Freud (1918/1976) usou esse recurso na descrição do caso do Homem dos Lobos, quando não se propõe a narrá-lo de maneira linear, mas sempre revisitando, ou melhor, reconstruindo o passado a partir de associações com o discurso no presente (Laplanche, 2006). O filme Sinédoque, New York nos causa um estranhamento justamente neste ponto: ele não se utiliza em momento algum do recurso do flashback. O tempo do filme é sempre no presente, um presente que não se soma, mas que se repete, nos causando um enorme desconforto. A angústia desencadeada pelo estado hipocondríaco instaura um presente sem volta, uma vida na qual não se tem passado nem futuro e que a única “criação” possível é a reprodução idêntica da própria vida. O tempo passa através de instantes que se repetem e, por vezes, de dados que nos apontam a passagem do tempo como, por exemplo, o crescimento da filha que surpreende o personagem principal e a nós mesmos, uma vez que também ficamos confusos em relação a quanto tempo se passou desde a separação do casal. O recurso do flashback foi usado por Freud para discutir uma temporalidade característica de certos processos inconscientes: o Nachträglichkeit, na tradução francesa, a posteriori (Laplanche, 2006). Muito embora não caiba no escopo deste trabalho um maior aprofundamento desse conceito, cabe ressaltar que a angústia vinculada a essa noção temporal diz respeito a uma dimensão que comporta certa elaboração psíquica. Já a ideia de um tempo paralisado, um tempo sem a passagem do tempo, pode ser destacada na obra freudiana como o elemento que acompanha as diferentes acepções da angústia em seu aspecto traumático. A angústia foi discutida ao longo da obra de Freud por meio da vivência de dor no contexto do “Projeto para uma psicologia científica” (Freud, 1950/1977b), da angústia nas neuroses atuais, pela noção de terror (Schreck) trabalhada em 1917 (Freud, 1917/1976) e, também, da noção de angústia automática apresentada no texto “Inibição, sintoma e ansiedade”, de 1926 (Freud, 1926/1976). Distintamente da angústia sinal que pressupõe um tempo de elaboração do psiquismo através do pensamento, sendo mais próxima da temporalidade do a posteriori, a angústia automática é a repetição compulsiva e imperativa do desamparo, do terror. Nas neuroses atuais, por exemplo, a palavra “atual”, de acordo com Laplanche (1987) nos remete ao presente através de duas perspectivas indissociáveis, de uma problemática no presente que se atualiza em ato. Ou seja, não se trata de um conflito psíquico instaurado pelo recalque de impressões infantis, mas uma atualização de algo que não pode ser elaborado. Esse aspecto de atualização também pode ser entrevisto em relação às neuroses traumáticas por meio da noção de compulsão à repetição, em 1920. Segundo Cardoso (2011), foi a partir de então que a atualidade ganhou outro estatuto na obra freudiana, passando a ser concebida como uma impossibilidade de historicizar uma marca psíquica, de torná-la passado. Diferente de uma representação, de um traço, a compulsão à repetição nos remete a impressões impossibilitadas de se inscreverem no psiquismo. Ou seja, a palavra atual perde o sentido de algo que ocorre no presente e passa a privilegiar o aspecto de atualização de algo que se deu no passado, mas não pôde ser vivido como tal. Enquanto os traços mnêmicos se relacionam entre si e são retranscritos ao longo do tempo, as impressões permanecem isoladas, sem possibilidade de associação a outras marcas. Estas impressões remetem a uma espécie de buraco no psiquismo que pode ser entendida também pela noção de excesso (ce trou est un trop). Ademais, a insistência compulsiva constitui o avesso de uma memória representacional7. Trata-se de uma memória repetitiva, corporal, sempre igual a si mesma. Nas palavras de Knobloch (1998, p. 91), uma memória “imemorável, imutável e repetitiva”. Ora, não seria justamente dessa dimensão da angústia que o filme trata? A sensação de um eterno presente que Caden nos transmite surge em consonância com episódios hipocondríacos. Como poderíamos, então, articular metapsicologicamente a angústia hipocondríaca ao tempo do presente absoluto? Seguindo as indicações de Paraboni (2014), é esta dimensão temporal que comparece na hipocondria: as manifestações hipocondríacas parecem atualizar o que não pode se tornar passado. A hipocondria foi descrita por Freud como a terceira neurose atual ao lado da neurastenia e da neurose de angústia. Embora nos manuscritos enviados a Fliess e nos primeiros textos sobre as neuroses atuais as referências à hipocondria sejam escassas, no “Rascunho B” (Freud, 1950/1977) temos uma definição precisa desta manifestação sintomática inespecífica. Ela é definida como uma “angústia relacionada com o corpo” (Freud, 1950/1977, p. 260). De acordo com Fortes (2013), a angústia hipocondríaca foi concebida como um dos destinos corporais da angústia, no entanto, sem ser melhor desenvolvida no próprio texto freudiano. A justificativa para o seu estatuto de neurose atual é claro, uma vez que, assim como na neurose de angústia, trata-se de uma problemática atual que se manifesta no somático: a angústia que não pôde ser elaborada psiquicamente tem como alvo o corpo. O mecanismo que caracteriza a neurose de angústia, grosso modo, diz respeito a uma inadequação entre a excitação no nível somático e sua elaboração no psíquico. A excitação de origem somática, uma vez que não pôde ser elaborada, permanece no corpo. Ou seja, a questão da angústia nas neuroses atuais, e mais especificamente na neurose de angústia, engloba dois aspectos: um intensivo e outro que tem a ver com a possibilidade de elaboração do aparelho.
A discussão sobre as neuroses atuais, embora não desapareça totalmente, é pouco trabalhada ao longo da metapsicologia freudiana. O texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (Freud, 1914/1974), marco importante na teoria psicanalítica, resgata a problemática das neuroses atuais. Em relação à angústia, de acordo com as exigências que se impõem ao pensamento freudiano a partir de 1914 dão ensejo à formulação da segunda teoria sobre a angústia realizada em 1926, no texto “Inibições, sintoma e ansiedade”. As proposições apresentadas em 1914 retomam e exigem um resgate posterior da dimensão de angústia trabalhada no contexto das neuroses atuais. Não à toa que, também em 1914, a temática da hipocondria reaparece no texto freudiano.
Para teorizar a questão da hipocondria e a partir dela versar sobre o narcisismo, Freud (1914/1974) retoma primeiro a dor física para em seguida discutir a hipocondria. Segundo sua concepção, o doente retira a libido dos objetos e a redireciona para si mesmo. Nota-se que Freud afirma que o estatuto da realidade psíquica possibilita que tratemos a dor e a hipocondria por via do mesmo mecanismo. Em relação ao filme ocorre o mesmo: estamos sempre na dúvida se as idas aos médicos e os novos sintomas que surgem no personagem são reais ou imaginários. Na hipocondria, portanto, o mecanismo é o mesmo da dor: há uma espécie de retração da libido para o eu. Mas por que essa retração acontece? Retomando a noção de corpo erógeno apresentada em 1905, Freud (1905/1976) indica que o que ocorre na hipocondria é uma modificação na erogeneidade do órgão. A parte do corpo dolorida comporta-se como o órgão sexual em estado de excitação, isto é, como uma zona erógena. À medida que há modificação na erogeneidade dos órgãos, verifica-se uma modificação paralela na catexia libidinal no ego - a libido desloca-se para o eu. Fortes (2013) aponta que o deslocamento da energia dos objetos em direção a um retorno narcísico para o eu inscreve a angústia hipocondríaca ao lado da libido do eu, enquanto a angústia neurótica se aproxima da libido do objeto. Através da regressão da libido para uma zona erógena, experimenta-se o esfacelamento da unidade egoica que, de acordo com Freud (1914/1974), é forjada pelo investimento narcísico dos pais. Segundo Paraboni (2014), as queixas hipocondríacas dão mostras de um eu ameaçado em sua unidade, tentando se recompor e sanar suas feridas. O modo de funcionamento autoerótico seria parte de uma tentativa de restituir o narcisismo esfacelado. Quando essa lógica totalizante falha, ou melhor, quando há quebra da representação totalizada do corpo, dá-se um reinvestimento maciço do corpo fragmentado, investimento eminentemente autoerótico. Não se trata, portanto, de um silêncio do corpo8, os órgãos falam e denunciam essa falência de uma unidade corpórea forjada. Freud, nesse sentido, relembra o porquê de a hipocondria ser concebida como uma neurose atual: a angústia hipocondríaca é considerada como uma manifestação somática. Essa ocorre devido ao retorno da libido para o corpo que acontece como uma tentativa de recuperação da unidade egoica despedaçada. Os sintomas hipocondríacos podem ser entendidos como uma tentativa de recuperação da unidade egoica perdida, e a angústia uma consequência do encontro com o desamparo decorrente desta perda. Ademais, Freud, tanto no caso Schreber (Freud, 1911/1976) quanto no texto de 1914, traça uma estreita ligação entre hipocondria e paranoia. Seguindo as indicações de Paraboni e Cardoso (2013), o ponto de interseção entre a paranoia e a hipocondria reside no mecanismo de projeção. Como vimos, o personagem principal do filme, assim que começa a apresentar queixas hipocondríacas, busca uma série de especialistas e causas para sua sensação de despedaçamento corporal. Por meio do mecanismo de projeção, os males do sujeito são atribuídos a mecanismos exteriores como, por exemplo, a sensação relatada por Schreber de que seu corpo estava sendo controlado por raios divinos (Freud, 1911/1976).
A angústia relacionada à hipocondria deve ser entendida como um afeto ligado ao desamparo revelado pelo despedaçamento da imagem do eu (Paraboni, 2014). O narcisismo primário, projeção do narcisismo dos pais, é o resultado de uma nova ação psíquica que assegura uma primeira unidade corporal frente à fragmentação do corpo erógeno. De acordo com essa perspectiva, Jordão (2009) considera que o narcisismo é a contrapartida do desamparo9, ou seja, essa imagem forjada constrói-se como uma possibilidade de fazer frente ao estado de desamparo inicial do bebê. Como aponta Pereira (2008), embora o estado de desamparo possa ser depreendido através de três significados distintos10, um aspecto importante está na incapacidade do bebê de dar um destino às excitações que o invadem. Em um primeiro momento, essas são vividas passivamente e possuem um aspecto traumático, pois o bebê é incapaz de lhes dar um destino. O “homem ao lado”11 (Nebenmensch) ao interpretar essas excitações e apaziguá-las, também produz uma ação psíquica de modo que o corpo fragmentado se reúne em uma organização, uma unidade egoica. A fragmentação dessa unidade leva ao reencontro com o desamparo e é justamente aí que se localiza a angústia hipocondríaca. A angústia na hipocondríaca vincula-se ao estado de desamparo e de passividade, cuja base residiria em uma vivência traumática.
No texto de 1919, “O estranho” (Freud, 1919/1976), a vinculação da angústia com o desamparo é reafirmada, o que nos ajuda a esclarecer o estatuto da angústia na hipocondria. Para avançarmos na problemática da angústia e do estranho, cabe evocar o significado da palavra Unheimliche, discutido no início do texto por Freud. Esta expressão, como tantas outras na língua alemã, comporta outras palavras em sua composição, dentre elas está Heim. No alemão corrente atual, a palavra designa casa, abrigo. Freud indica, portanto, que a expressão Unheimliche “por um lado significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora de vista” (Freud, 1919/1976, p. 242). É afirmado que por meio da discussão semântica pode-se depreender que só há estranheza onde há familiaridade. Nesse sentido, poderíamos pensar o estranho como tributário do narcisismo. A relação do estranho com o narcisismo é indicada por Freud na discussão sobre o duplo, ou seja, sobre uma imagem que se sobrepõe a outra, como a famosa cena de Freud se olhando no reflexo do trem sem reconhecer a si mesmo. Trata-se do efeito de defrontar-se com a própria imagem, espontânea e inesperadamente. O narcisismo, aqui entendido como a constituição de uma imagem corporal, está diretamente relacionado a uma imagem especular do eu12. Grosso modo, através da indicação da mãe no espelho de uma imagem unificada é possível forjar uma unidade corporal onde só existia um corpo fragmentado. Trata-se, portanto, de um momento em que através da identificação, camufla-se o estado de desamparo ao se forjar uma unidade calcada em uma imagem de si especular. O estranhamento entendido como uma vacilação desta imagem de si, só é possível a partir da constituição do eu, ou seja, o narcisismo e o estranho são os dois lados da mesma moeda.
O fenômeno do estranho, de acordo com Freud (1919/1976), desencadeia a angústia. No entanto, de que angústia se trata? Nota-se que neste texto é possível observar duas dimensões da angústia presentes ao longo da obra freudiana: uma de aspecto traumático e outra, mais elaborada relacionada ao retorno do recalcado. Através da ideia de um retorno do recalcado, o fenômeno do estranho comportaria uma dimensão ligada à regressão a um estágio anterior ao narcisismo e a uma espécie de estranhamento desta imagem especular forjada, assim como aconteceria no fenômeno da hipocondria. Por um lado, o estranho é concebido como análogo ao fenômeno do retorno do recalcado e a angústia surgiria como decorrência deste. No entanto, podemos observar a oscilação de Freud entre a relação do estranho com uma angústia ligada ao recalque, e a relação deste fenômeno com outra dimensão que se desvincula deste mecanismo. O fenômeno do estranho familiar é discutido a partir de duas vertentes: através da ideia do retorno do recalcado, mas também remetida a “uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio do prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco” (Freud, 1919/1976, p. 298). Nesse sentido, o estranho familiar pode também ser resultado de uma dimensão intensiva ligada a uma pulsionalidade para além da representação que se aproximaria de uma experiência traumática da angústia. Não podemos deixar de marcar, aqui, que o texto “O estranho” (Freud, 1919/1976) foi publicado na mesma época em que Freud redigia “Mais além do princípio do prazer” (1920/1976). As ideias discutidas no primeiro texto trazem, portanto, o cerne daquelas que serão publicadas nesse último.
É justamente a dimensão traumática da angústia que se trata na hipocondria, uma neurose atual. Não à toa, Cardoso (2011) se propõe a traçar linhas de continuidade e ruptura entre as neuroses atuais e as neuroses traumáticas. Seguindo as indicações de Paraboni (2014), na hipocondria, o “estranho” se inscreve no corpo, objeto interno perseguidor que se infiltra na corporeidade do sujeito, lugar primordial de reconhecimento de si. Observa-se, como nos aponta a autora, que na hipocondria o silêncio do corpo é rompido, pontuando a existência de uma rotura na unidade narcísica. A quebra de uma espécie de “coerência” ilusória do sentido de si, a qual permitiria o sentimento de estar saudável. Para a autora, as sensações hipocondríacas atestam a presença de uma ferida narcísica primária, consistindo em uma tentativa de elaborá-la psiquicamente. O filme nos indica que, muitas vezes, essa tentativa de elaborar psiquicamente falha, o que ocasiona um eterno retorno do presente. Isso pode ser entrevisto no fato de a personagem principal contratar uma série de pessoas para elaborar sua vida e fazer dela uma encenação no mesmo momento em que está vivendo. Instaura-se, assim, uma vida totalmente voltada ao presente. Diante desse quadro, como poderíamos articular metapsicologicamente a angústia hipocondríaca e o tempo do presente? A hipótese de Paraboni (2014) é de que na hipocondria há um superinvestimento da percepção por meio de uma atenção voltada permanentemente para o corpo, ou seja, a impossibilidade de inscrição ocasiona um deslocamento para o campo da percepção. A hipervigilância exercida pelo hipocondríaco corresponde a uma defesa extrema contra a ação do traumático. Nesse sentido, haveria uma espécie de interrupção do processo do trabalho psíquico de elaborar outras impressões (Figueiredo, 2008). Logo, “as alterações corporais das quais se queixam os hipocondríacos se referem a uma pseudopercepção erigida a partir da desautorização do processo perceptivo no sentido processual” (Paraboni, 2014, p. 119). Há, portanto, um superinvestimento narcísico no corpo que pode ser entendido como um recurso para fazer frente à angústia automática, à morte psíquica. A onipotência narcísica, construída diante da impotência, viria a serviço de impedir a passagem do tempo para evitar a morte anunciada. Ao se situar fora do tempo, se instaura a recusa do movimento impedindo que algo possa advir. Arriscaríamos dizer que se trata de uma espécie de sinal caduco, ou seja, uma tentativa de anunciar a proximidade com a angústia de morte, mas que a própria tentativa leva a uma morte, ao fim da passagem temporal.
Considerações finais
Conforme apontamos no início deste artigo, pretende-se que uma obra cinematográfica nos traga questões sobre a condição humana, e não somente se conforme com uma visão psicanalítica. Sendo assim, uma série de indagações se depreende dessas considerações e merece uma pesquisa mais apurada; dentre elas ressaltamos: como se articula o tempo, a angústia e a criação da peça pelo personagem principal? Qual seria o estatuto dessa criação na hipocondria? Trata-se de uma sublimação? Como discutir a questão da fantasia nesse caso?
No filme, a dimensão temporal preponderante é presentificada, como uma espécie de “presente absoluto”, para utilizar o termo de Knobloch (1998), isto é, “um presente muito largo, que não tem nada antes nem depois.” (Knobloch, 1998, p. 141). A temporalidade do atual carrega o traço de um tempo primitivo, anterior à constituição de uma passagem do tempo, uma temporalidade que talvez remeta ao próprio funcionamento autoerótico característico dos sintomas hipocondríacos (Figueiredo, 2008). Em Sinédoque, New York, esse eterno presente é vivido de maneira crua, sem a possibilidade de desejo ou de fantasia. Caden não mais deseja, sua própria criação é uma repetição do mesmo. Para Freud (1908/1976), referindo-se mais especificamente à obra literária, a criação artística diz respeito ao processo de associação de algo no presente com uma lembrança de uma experiência anterior, mais especificamente, de um desejo infantil. A obra literária seria o resultado desse processo: uma espécie de realização do desejo por intermédio da fantasia. Trata-se de uma continuação, ou um substituto, do que foi o brincar infantil. Este evento reúne, portanto, ainda que virtualmente, o passado, o presente e o futuro. Nesses termos, a fantasia cumpre um papel importante, possuindo uma estreita relação com o tempo: é como se ela flutuasse entre três tempos, consistindo na expressão dos desejos mais arcaicos no presente, transformando o futuro. As fantasias não são estereotipadas ou inalteráveis, elas são adaptadas “às impressões mutáveis que o sujeito tem da vida, alterando-se a cada mudança de sua situação e recebendo de cada nova impressão ativa uma espécie de ‘carimbo de data de fabricação’” (Freud, 1908/1976, p. 153).
Essa espécie de dinamismo, ressaltada por Freud (1908/1976) como característica da fantasia, não pode ser observada na criação de Caden Cotard. Trata-se de uma criação artística nos mesmos moldes discutidos por Freud? Conforme discutido acima, o que encontramos na sinédoque criada por Caden não comporta sequer virtualmente os três tempos descritos por Freud. É preciso, contudo, não defini-la apenas pelo negativo: sua sinédoque aponta justamente para outra forma de fantasiar. Embora não faça parte do escopo deste escrito um maior aprofundamento nesta questão, pode-se dizer que a fantasia não cumpre sua função de articular os desejos arcaicos ao presente, modificando o futuro, mas se aproxima de uma paralização, de uma apresentação de uma marca traumática. A fantasia, nesse sentido, se articula ao presente absoluto vinculado à angústia diante do desfacelamento da imagem corporal.
Essa apresentação “crua” da marca traumática é consagrada no final do filme quando Caden, após constatar que está morto, nem mesmo pode tomar atitudes cotidianas: todos os seus atos são ditados pelo diretor por meio de um fone de ouvido. A partir de sua peça megalomaníaca que se distancia de uma representação e se aproxima da atualização do passado em um eterno presente, de uma sinédoque da vida, Caden Cotard reproduz literalmente o todo pela parte, ou vice-versa. Diferente de uma fantasia neurótica, conforme descrita acima, a criação de Caden não consiste em um mundo retocado a partir de desejos infantis, mas em uma reprodução literal do mundo vivido. Por fim, cabe destacar que o próprio filme nos causa certo incômodo, um desconforto que foi observado quando visto em uma seção de cinema pela inquietação do publico: levantava-se, sentava-se, comia-se pipoca, tudo isso mais do que é feito usualmente. Tal vertigem está sempre à espreita em nossa relação com a imagem (Rivera, 2011). Ou seja, mesmo quando a imagem se pretende encobridora, há brechas que nos apontam sua possibilidade de desfacelamento: não foi o próprio narciso que se afogou ao se encantar por sua imagem? Charlie Kaufman foi feliz em seu filme ao nos fazer mergulhar no estranho de Caden Cortard, e também convidando a nos confrontarmos com o nosso próprio, e tão familiar, estranho.