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Freud e o judaísmo: luto, trauma e transmissão

Freud et Judaïsme: deuil, trauma et transmission

Freud y Judaísmo: duelo, trauma y transmisión

Resumo

Este artigo almeja discutir a relação entre o conceito de transmissão na psicanálise e a posição do judaísmo no desejo de Freud. Interessa-nos compreender a operação subjetiva pela qual é possível tornar-se herdeiro, partindo do pressuposto de que a própria obra freudiana testemunha o modo como seu autor pôde apropriar-se da herança, tanto da cultura judaica quanto de sua genealogia familiar. Para isso, examinaremos a escritura de três de seus textos em contraponto a suas experiências pessoais, sugerindo que a articulação entre trauma, luto e transmissão fornece uma chave de leitura para a constituição de uma teoria psicanalítica da história.

Palavras-chave:
trauma; trabalho de luto; transmissão; judaísmo

Résumé

Cet article veut discuter la relation entre le concept de transmission en psychanalyse et la position du judaïsme dans le désir de Freud. Il nous intéresse de comprendre l’opération subjective à partir de laquelle c’est possible devenir héritier, en assumant que l’œuvre freudienne elle-même témoigne la façon dont l’auteur a pu s’approprier de son héritage, autant de la culture judaïque que la généalogie familiale. Pour cela, nous exploitons l’écriture de trois de ses textes, tout en les opposant à ses expériences personnelles, afin de soutenir que l’articulation entre trauma, deuil et transmission fourni une clef de lecture pertinente à la constitution d’une théorie psychanalytique de l’histoire.

Mots-clés:
trauma; deuil; transmission; judaïsme

Resumen

Este artículo pretende discutir la relación entre el concepto de transmisión en el psicoanálisis y la posición del judaísmo en el deseo de Freud. Nos interesa comprender la operación subjetiva por la cual uno puede convertirse en heredero, a partir del presupuesto de que la propia obra freudiana atestigua el modo como su autor pudo apropiarse de la herencia, tanto de la cultura judía como de su genealogía familiar. Para ello, analizaremos la escritura de tres de sus textos en contrapunto con sus experiencias personales, sugiriendo que la articulación entre trauma, duelo y transmisión aporta una clave de lectura para la constitución de una teoría psicoanalítica de la historia.

Palabras clave:
trauma; duelo; transmisión; judaísmo

Abstract

This article aims to discuss the relationship between the concept of transmission in psychoanalysis and the position of Judaism in Freud’s desire. We are interested in understanding the subjective operation through which it is possible to become an heir, based on the assumption that the Freudian work itself bears witness to how its author was able to appropriate the heritage both of the Jewish culture and his family genealogy. To this end, we will examine the writing of three of his texts in contrast to his personal experiences, suggesting that the relationship between trauma, mourning, and transmission provides a key to comprehend the constitution of a psychoanalytic theory of history.

Keywords:
trauma; work of mourning; transmission; Judaism

Ouvi dizer que na água havia

uma pedra e um círculo

e sobre a água uma palavra

que põe o círculo à volta da pedra.

Paul Celan

Os encontros e desencontros com a religião judaica tiveram um impacto profundo na vida pessoal de Freud, influenciando também, nem sempre de maneira explícita, os percursos que o levaram a sua maior criação, a psicanálise. Se, por um lado, ele empregou muitos esforços em não deixar a psicanálise associada à imagem de uma ciência judia - ao tentar, por exemplo, confiar a Jung sua sucessão -, por outro lado, ele mesmo confessa em algumas correspondências certo orgulho do fato de ela brotar do espírito de um judeu (Gay, 2002Gay, P. (2002). Freud, une vie. Vanves, França: Hachette.). Essa ambivalência, longe de se prestar a reduções simplistas acerca de uma negação defensiva frente à herança de seus ancestrais, parece demonstrar o espaço de alteridade que o judaísmo ocupa no desejo do próprio Freud.

Desta feita, este artigo almeja discutir a conexão entre a elaboração do conceito de transmissão na psicanálise e a relação de Freud com o judaísmo. Interessa-nos, de modo específico, compreender como se opera subjetivamente o processo pelo qual se torna possível herdar algo, partindo do pressuposto de que a própria obra freudiana testemunha o modo como seu autor pôde, ao seu tempo e em face aos acontecimentos de sua época, tornar-se herdeiro, tanto da cultura do seu povo quanto de sua genealogia familiar.

Tentaremos demonstrar como alguns escritos de Freud possuem uma forte ligação com suas experiências traumáticas e de perda, sendo parte constitutiva do tempo de construção de certos operadores conceituais. De acordo com Peter Gay (2002Gay, P. (2002). Freud, une vie. Vanves, França: Hachette.), por exemplo: “A morte de seu pai [Jacoh Freud] . . . foi uma profunda experiência pessoal da qual Freud extraiu implicações universais; ela funcionou como um seixo atirado a um lago tranquilo, provocando sucessivos círculos de raio insuspeitado” (p. 96). As continuidades e descontinuidades da obra de Freud, a exemplo da provocação de Paul Celan (2004Celan, P. (2004). Obras completas. Madrid: Trotta.), convocam-nos a recuperar o ato de lançamento dessa pedra, numa tentativa de resgatar o frescor da emergência de certos conceitos freudianos. A pedra, de fato, não a recuperaremos, visto que se encontra no fundo do lago, tempo perdido da história de cada sujeito e da cultura. Não obstante, seus círculos na superfície são como partituras a serem lidas a posteriori como palavras, cujo efeito de leitura pressupõe sua inscrição1 1 Agradecemos a Edson de Sousa pela oferta generosa desta imagem. .

Metodologicamente, propomos explorar algumas nuances entre a obra e vida freudiana através de dois ângulos complementares: (1) a partir de Luto e melancolia, demonstrar a assimetria presente entre as formulações metapsicológicas acerca do trabalho de luto e as experiências de perda de Freud retratadas em suas correspondências; (2) pela releitura de seus textos socioantropológicos, ler a elaboração de sua condição de herdeiro através de dois tempos: a escritura de Totem e tabu - quando Freud desenvolve um mito de origem da cultura baseada no assassinato do Pai - e de O homem Moisés e a religião monoteísta - quando a narrativa bíblica da libertação do povo judeu é examinada à luz da teoria do traumatismo. Ao fim, ainda, sugerimos que a articulação entre trauma, luto e transmissão fornece uma chave de leitura fundamental para a constituição de uma teoria psicanalítica da história.

Trabalho de luto em Freud

A noção de trabalho de luto (trauerarbeit) foi teorizada tão somente uma vez em toda obra freudiana; não obstante, ela conheceu uma enorme difusão tanto junto aos sucessores de Freud quanto por outras disciplinas. No célebre texto de 1915, Luto e melancolia, lemos que após um período de retração narcísica - que pode variar de caso a caso - o sujeito poderia eleger objetos substitutos a sua perda, encontrando assim uma justa elaboração ao seu sofrimento (Freud, 1915/2011Freud, S. (2011). Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify. (Trabalho original publicado em 1915)). Acontece, explica Freud, que mesmo que a realidade aponte a inexistência do objeto e, ainda, um possível substituto, o Eu levanta-se contra a realidade, “numa rebelião compreensível”, e não abandona tão facilmente aquilo que outrora lhe forneceu satisfação. Caso essa substituição não seja possível, segundo Freud, tudo indica que, diante da dificuldade em “recomeçar novamente”, o sujeito encontra-se em um luto patológico ou em uma melancolia.

Como buscamos explorar anteriormente (Indursky & Oliveira, 2016Indursky, A. C., & Oliveira, L. E. P. (2016). Sobre a melancolização do exílio. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 19(2), 242-258. Recuperado de https://goo.gl/qaEsy1
https://goo.gl/qaEsy1...
), em 1915 o luto normal em Freud pode ser definido a partir de três eixos principais: (1) uma situação na qual um sujeito adulto perde um de seus parentes, omitindo-se de pensar as vicissitudes de uma inversão genealógica; (2) um trabalho psíquico e individual (deve-se fazer o seu luto!), no qual o social é esquecido ou negligenciado enquanto parte constitutiva na elaboração da passagem da vida à morte; (3) um trabalho que busca oferecer condições psíquicas para que o sujeito possa encontrar um substituto ao objeto perdido, retornando assim a seu “status anterior”. Operação que se assemelha ao mecanismo obsessivo de reparação da ação através do retorno à situação anterior. Se é verdade que Freud assinala a “incorporação” do objeto perdido no Eu, o luto, em 1915, permanece ainda como uma operação sem resto (restloos), na qual o objeto substituto atestaria a excelência do trabalho simbólico do enlutado.

Como já demonstrou Jean Allouch (2004Allouch, J. (2004). L’érotique du deuil au temps de la mort sèche. Paris: EPEL.), essa noção individualizante e romântica do luto em Freud parece ter trazido uma série de generalizações acerca de sua compreensão e apropriação posterior. Talvez seja pertinente lembrar aqui que, em seu texto de 1915, Freud procurava, antes de tudo, solucionar o enigma da melancolia, cuja ausência de substituto inquietava a psiquiatria ocidental sobremaneira. Freud parte de uma noção de luto normal para propor, como contraponto, que a melancolia se situaria na ligação da libido narcísica ao objeto perdido. Ao perdê-lo, “sua sombra recairia sobre o eu”, que a vivenciaria como perda de uma parte de si. No entanto, uma vez que define esse conceito, Freud não retorna a noção de base do luto normal a fim de observar se tais pressupostos coincidiam com sua experiência clínica. Ora, não precisamos ir longe para notar que aí há uma imprecisão, senão uma omissão. Basta pensarmos na experiência de perda de um filho (inversão da anterioridade genealógica) para concluirmos que é impossível não haver ligações narcísicas entre um progenitor e seu descendente, entre enlutado e “enlutador”. Se muitas vezes um luto é de tão difícil elaboração, ele o é precisamente porque há na perda algo de insubstituível (um filho, por exemplo) que não pode, nem quiçá devesse, ser substituído.

É possível, ainda, que o próprio Freud não possuísse palavras para tematizar tal inversão. Dentre os aspectos que balizam a definição de 1915, talvez o da não transformação do enlutado a partir da eleição de um objeto substituto seja a mais lacunária no estudo freudiano, mesmo que permaneça coerente à sua teoria de desinvestimento objetal, investimento narcísico e reinvestimento objetal. O trabalho de luto, cujo principal objetivo consiste em tornar o sujeito novamente livre e sem inibições para novos investimentos pulsionais, deixa inexplorado todo o desenvolvimento de uma teoria da identificação e suas relações com o estatuto da transmissão em psicanálise.

Desta forma, Freud parece cair em contradição com observações clínicas a propósito das modificações psíquicas e sociais de todos aqueles que perfazem a travessia do luto. Não precisamos nos estender muito aqui: não é mera coincidência que existam nomes socialmente empregados para se referir àqueles que ficam: órfãos, viúvas etc. A perda de um parente demanda uma per-laboração da posição do sujeito frente a sua genealogia familiar; fato que marcará de forma incontornável suas escolhas de objeto e suas identificações simbólicas. Resumidamente, toda travessia do luto deságua em uma subjetivação da perda infligida, transformando as escolhas de objeto, os apoios narcísicos e a posição genealógica do enlutado. Sobre esses aspectos do luto, Freud não nos informa nada, senão que o sujeito pode “recomeçar do zero”, livre e sem inibições.

Não é sem surpresa, portanto, que o exaustivo trabalho pelo qual ele mesmo passou quando da perda de sua primogênita, Sophie, contradiga essa afirmação. Na carta de 11 de abril de 1929, Freud (1929Freud, S. (1929). Lettre à Binswanger. In Correspondance: 1873-1939. Paris: Gallimard.) escreve a Binswanger respondendo uma carta do amigo: “É sabido que o luto agudo causado por uma tal perda encontrará um fim, mas permaneceremos inconsoláveis, sem jamais encontrar um substituto” (p. 431). Com efeito, a postulação de um objeto substituto não é tão evidente como pretendia Freud. Jean Allouch (2004Allouch, J. (2004). L’érotique du deuil au temps de la mort sèche. Paris: EPEL.) sublinha uma possível razão: antes de escrever essa carta, Freud confessa a Binswanger que ele havia efetivamente pedido à sua cunhada, Mina, que enviasse à Binswanger uma carta solicitando que ele rescrevesse a primeira enviada, pois sua grafia era ilegível. Ora, Binswanger havia por que tremer! A carta comunicava a perda de seu filho, no mesmo dia em que a falecida primogênita, Sophie, festejaria seus 36 anos. Tudo nos leva a crer que a carta de Binswanger evocara em Freud a perda de sua filha. Assim sendo, ele faria retornar, à sua revelia, uma carta que lhe tocava numa ferida aberta há nove anos, “sem jamais encontrar substituto”.

Dito de outra forma, é possível que haja aí algo de traumático na perda, cuja elaboração não se limitaria à tomada de consciência sobre a transitoriedade da vida ou no encontro de um substituto. Hipótese que atiça nossa curiosidade, sobretudo quando a justapomos com outra carta, dessa vez de Sandor Ferenczi, que confessa a Freud: “Caro Professor, eu ab-reagi o luto de meu irmão, completamente, durante a evolução de sua doença” (Freud & Ferenczi, 1992Freud, S., & Ferenczi, S. (1992). Correspondance, 1908-1914. Paris: Calmann-Levy., p. 365). Três anos antes de Luto e Melancolia, Ferenczi emprega um velho linguajar do repertório da traumatologia charcotiana para descrever a operação de luto. Precisamente o discípulo que insistirá em retornar sobre o “evento traumatógeno”, em especial sobre os aspectos exógenos de sua etiologia, chama nossa atenção: é possível trauma e luto virem em par; ou, ainda, um seguir o outro. O traço de uma perda traumática só poderia ser simbolizado a partir de uma operação de luto, cujo destino não passaria necessariamente por um substituto. Não há objeto a tapar o furo deixado: como sugere Lacan, a perda convoca toda trama simbólica, real e imaginária para reposicionar o sujeito (Lacan, 1959-1960/2016Lacan, J. (2016). O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-1960)).

Freud não parece aplicar seu modelo do luto a sua experiência de perda pessoal. Entre 1915 - quando da escritura de Luto e melancolia - e 1929 - ocasião da carta de Binswanger - teria ele mudado de opinião, após perder Sophie e seu neto, Heinz, entre 1920 e 1923, respectivamente? E, ainda, seria possível que no luto anterior houvesse um resto a ser atualizado pela nova perda? Nesse caso, poderíamos pensar que a perda do filho de Binswanger reanima a perda da filha Sophie que, por sua vez, põe em questão a posição do pai Freud, que outrora também foi filho.

Longe de pretender exaurir a questão, propomos que a noção de objeto substituto não apenas é insuficiente para descrever em termos metapsicológicos o estatuto da perda, mas que esconde ou omite a dimensão da transmissão, a saber, a operação de tornar-se herdeiro. A estrutura da frase de Freud na carta a Binswanger não nos deixa dúvida: frente ao peso da perda de uma pessoa “sem substituto”, a montagem do desmentido (verleugnung) aponta os destinos do investimento de objeto. É impossível não escutar no “é sabido que, mas…”, do enlutado Freud, um eco à elegante equação de Octave Mannoni (1969Mannoni, O. (1969). Clefs pour l’imaginaire. Paris: Seuil.), “Eu sei bem, mas mesmo assim…”, caracterizando a impostura perversa de recusa à verdade da castração. Ora, é porque o objeto é insubstituível que um luto pode revelar-se tão agudo e inconsolável, sobretudo quando de uma inversão genealógica. Nada, nem ninguém, podem pretender substituir a perda, senão sob a rubrica do desmentido: “eu sei que ele é insubstituível, mas mesmo assim eu tento substituí-lo”. Parece-nos claro que se deve abandonar esse preconceito que paira em torno das discussões psicanalíticas, no qual o fim do luto encontrar-se-ia no reencontro romântico com um objeto que forneceria tanto ou mais satisfação como o objeto de outrora; menos para assinalar no escrito de Freud uma impostura perversa, do que demonstrar (1) que o trabalho de desinvestimento libidinal do objeto perdido pode passar por um momento de recusa, cuja temporalidade não é cronológica, mas subordinada à posição de herdeiro que a perda implica; (2) que a perda de seus filhos possa ter atualizado em Freud a tarefa de tematizar seus antigos lutos. Em outras palavras, que a operação do luto implica a relação do sujeito e sua finitude que não cessa de se atualizar em sua historicidade.

O luto do pai e o judaísmo: um movimento em après-coup

Para entendermos essa posição tomada em 1915, lembremos que a perda de seu próprio pai provocou “uma reação bastante surpreendente da parte de um filho próximo dos cinquenta” (Gay, 2002Gay, P. (2002). Freud, une vie. Vanves, França: Hachette., p. 176). Com efeito, na bibliografia de Peter Gay, lemos que a morte do pai de Freud (23 de outubro de 1896) provoca no filho uma tendência marcada ao sentimento de culpa. Sabemos que Freud nutriu uma relação ambivalente com seu pai e a religião de seus ancestrais. A lembrança que aflora em sua autoanálise pouco tempos após a morte de Jacoh (na qual este lhe conta sobre um incidente nas ruas de Viena, quando um cristão joga seu gorro no estrume, gritando “Judeu, fora da calçada”), parece ilustrar a figura ao mesmo tempo frágil e heroica do pai (Gay, 2002Gay, P. (2002). Freud, une vie. Vanves, França: Hachette., p. 28). Mediante a submissão do jovem Jacoh, que se limita a recuperar o gorro e seguir seu caminho, Freud compara-se imaginariamente ao herói semita, Aníbal, que viria vingá-lo em um segundo momento.

Na esteira desse movimento, o historiador Yosef Hayim Yerushalmi (1993Yerushalmi, Y. H. (1993). O Moisés de Freud: judaísmo terminável e interminável. Rio de Janeiro: Imago.), em seu livro O Moisés de Freud: judaísmo terminável e interminável, descreve um episódio pouco explorado da biografia de Freud, no qual Jacoh lhe oferece uma bíblia como presente de seu aniversário de 35 anos. Essa, todavia, não era qualquer bíblia; tratava-se da mesma que ele havia ofertado ao filho aos sete anos, quando este começava seus estudos sobre o judaísmo. Na contracapa, encontra-se uma dedicatória dele redigida inteiramente em melitzhá; o que significa que ela era composta de um mosaico de passagens da Bíblia e da literatura rabínica2 2 Vale lembrar que este era um artifício empregado amplamente na poesia e prosa hebraicas medievais e que foi apropriado pelo Iluminismo Judaico (Haskalá); o que sugere, portanto, que o próprio Jacoh já se identificava a uma linhagem não ortodoxa do judaísmo. . Fato curioso, pois Freud não sabia mais ler em hebraico. Por que, no seu presente, Jacoh empregava um código desconhecido ao filho?

Em sua pesquisa, Yerushalmi (1993Yerushalmi, Y. H. (1993). O Moisés de Freud: judaísmo terminável e interminável. Rio de Janeiro: Imago.) descobre na frase de Jacoh (“Desde então o Livro tem sido guardado como os fragmentos das Tábuas em uma arca comigo3 3 “Filho que me é querido, Shelomoh, No sétimo dos dias dos anos de tua vida o Espírito do Senhor começou a te animar e falou em ti: Vai, lê meu Livro que eu escrevi e nele irromperão para ti as fontes da compreensão, do conhecimento e da sabedoria. . . . Desde então, o Livro tem sido guardado como os fragmentos das Tábuas em uma arca comigo. Para o dia em que os seus anos chegarem a cinco mais trinta pus nele uma capa de pele nova e chamei-o: ‘Brota, é poço! Entoai-lhe Cânticos!’”. (Yerushalmi, 1993, p. 164) ”) a mesma estrutura utilizada no Deuteronômio (32,34), na qual se lê a postura de Moisés após descer do Sinai com as tábuas da lei e encontrar seu povo adorando o bezerro de ouro (p. 117). Lido através da voz de Moisés, o presente parece constituir-se como desejo do pai de incitar o pequeno Sigismund a reconciliar-se com o judaísmo, tal como o povo judeu. Solicitação à qual Freud não parece obedecer de forma ortodoxa, mas psicanalítica, por assim dizer! Não por acaso, a figura de Moisés permanece-lhe enigmática. Em 1913, em seu ensaio sobre o Moisés de Michelangelo, Freud (1973Freud, S. (1973). “Moises” de Miguel Angel. In Obras completas: 1876-1894 (Vol. XIII, pp. 213-243). Madrid: Nueva Biblioteca. (Trabalho original publicado em 1914)) propõe, no contrafluxo das leituras críticas correntes, uma nova compreensão estética da estátua de Moisés na capela de San Pietro in Vicoli. Ao invés da atitude raivosa do pai do judaísmo, segundos antes de quebrar as tábuas da lei que se encontram em sua mão direita, Freud vê o ato de suspensão da destruição enquanto esforço psíquico contra as pulsões mais primitivas em favor da causa que ele, Moisés, se dedicava. Seria essa a forma que ele havia empregado para compreender a mensagem, cujo código lhe era estranhamente familiar, de seu próprio pai, ao lhe ofertar sua velha bíblia? Como sabemos, esse ensaio não será suficiente para exorcizar do espírito freudiano a imagem enigmática de Moisés.

É ao longo da construção de A interpretação dos sonhos que Freud (1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vols. 4 e 5, pp. 11-650). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)) começa a perceber o sentido “subjetivo” que a escrita e o luto possuem para si. A escrita desse livro foi “parte de minha própria autoanálise, minha reação à morte de meu pai - isto é, ao evento mais importante, à perda mais pungente da vida de um homem” (p. 32). Ele retorna à metáfora do conquistador, cujo objetivo é tomar Roma, através de sua obra - testemunhal por excelência - sobre a vida onírica. Em um de seus próprios sonhos, encontramos novamente a cena do pai, desta vez em seu leito de morte, no qual acorda sem saber que tinha morrido. Pensamento que Freud (1950/1974Freud, S. (1974). Extratos dos documentos dirigidos a Fliess. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 3, J. Salomão, trad., pp. 251-385). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1950)) interpreta como: ele não sabia que o filho havia outrora desejado sua morte. “O sonho, é claro, mostra a realização do meu desejo de encontrar um pai que seja o causador da neurose e, desse modo, pôr fim às dúvidas que ainda persistem em mim sobre esse assunto” (p. 350). Freud parece oscilar: entre a primeira teoria do trauma (na qual o pai real ocupava um lugar decisivo na etiologia exógena do fator traumático) e a escrita do conceito de fantasma, seu inconsciente leva-o a procurar, através da análise do sonho, os restos do desejo do pai; restos não inumados que fazem “ressuscitar” uma dívida de reconciliação do filho para com o progenitor.

Se a ambivalência de Freud com relação à figura do pai e o desejo de morte do filho transparecem na escrita de Interpretação dos Sonhos, ela continuará se desenvolvendo na escrita de Totem e tabu. A gênese dos estudos sociais de Freud deu-se a partir de dois conceitos oriundos do campo da antropologia - o “tabu” e o “totem” - e o modo como eles permitiriam realizar uma série de “correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e dos neuróticos”. Diferentemente da maior parte dos estudos antropológicos citados como inspiração, Freud enxergou nos tabus da endogamia e do incesto a estrutura originária das relações edípicas dos neuróticos. Estes seriam, de acordo com a hipótese darwiniana, interiorizações filogenéticas que se atualizariam na ontogênese do sujeito. Para dar conta dessa cena originária, Freud monta um mito científico, dividido em três tempos, para explicar como a estruturação da Cultura engendra o sujeito inconsciente. Primeiro tempo: uma horda primitiva é dominada por um pai tirânico que controla a posse de todas as mulheres e aplica a violência como forma de controle sobre os filhos. Segundo tempo: a insurreição conduzida pela união destes leva ao parricídio e à devoração do pai em um banquete canibal comemorativo. Terceiro tempo: movidos pela angústia e pelo sentimento de culpa, a doravante fratria - a fim de evitar que algum dos irmãos viesse a ocupar o lugar do pai - institui interdições sexuais para estipular os limites do acesso às mulheres da tribo.

Freud (1913/1971Freud, S. (1971). Totem et tabou: quelques concordances dans la vie d’âme des sauvages et des névrosés. Paris: Payot. (Trabalho original publicado em 1913)) explicita, então, a chave de leitura que permite a operação de luto dos irmãos: “O morto torna-se . . . mais forte do que ele tinha sido quando vivo; . . . O que ele havia outrora impedido pela sua existência, [os irmãos] se interditavam agora eles mesmos na situação psíquica da obediência après-coup” (itálicos nossos) (p. 363). Em 1913, é a partir de uma espécie de obediência après-coup ao mandamento parental, causada pelo sentimento de culpa de sua morte, que Freud inscreve a temporalidade - fundamental, ao menos para ele mesmo - para compreensão da per-laboração da posição do sujeito frente à sua genealogia familiar: somente a partir de sua morte é que o desejo do pai pode ser internalizado enquanto uma herança. No entanto, vale lembrar, essa obediência não se dá de forma passiva. No capítulo IV do mesmo estudo, ao citar o Fausto I de Goethe, ele estipula a forma da transmissão em psicanálise: “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu” (Freud, 1913/1971Freud, S. (1971). Totem et tabou: quelques concordances dans la vie d’âme des sauvages et des névrosés. Paris: Payot. (Trabalho original publicado em 1913), p. 160).

Freud parece inscrever, assim, em sua teoria, a chave para que ele próprio pudesse realizar seu luto. Em 1913, os três tempos da instauração da Cultura/Lei Simbólica somente são possíveis a partir da obediência après-coup, cuja transmissão se realiza a partir de uma apropriação da herança. Não há uma simples assimilação passiva do herdado, mas apropriação, cujos efeitos de transformação e criação pressupõem a transmissão. No entanto, como não lemos sequer uma menção dessa operação de luto em 1915, sustentamos a hipótese de que lhe são necessários dois tempos para tanto: primeiro Totem e tabu (1913), depois Moisés e o monoteísmo (1938).

Na sua última semana em Viena, antes de partir para o exílio, Freud escreve a seu filho Ernst: “Eu me comparo alguma vezes ao velho Jacob4 4 A mudança na grafia do nome do pai de Freud corresponde às diferenças das próprias referências bibliográficas utilizadas. que foi levado do Egito por seus filhos, já com uma idade muito avançada. . . . Esperemos que o Êxodo do Egito não se repita como outrora. É tempo que Ahasvérus encontre repouso em algum lugar” (Freud & Freud, 1966Freud, S., & Freud, E. (1966). Correspondance 1873-1939. Lettres choisies et présentées par Ernst Freud. Paris: Gallimard.). Sua comparação com a figura mítica do “Judeu errante”, cujo nome é homônimo ao de seu pai, sugere-nos que a escritura de O homem Moisés e a religião monoteísta, esboço de “romance histórico” sobre a origem do judaísmo, não deixa de ocupar também uma função de elaboração da morte desse, por meio de um retorno à religião da qual Freud anteriormente se afastara.

Moisés e a escritura do trauma

O homem Moisés e a religião monoteísta é considerado um dos mais estranhos e obscuros textos da bibliografia freudiana, tanto pelo conteúdo revolucionário e não-ortodoxo, que atravessa diferentes disciplinas sem reduzir-se a nenhuma delas, quanto por sua estrutura emaranhada. A obra divide-se em três ensaios de extensões consideravelmente díspares, publicados separadamente em um intervalo de quatro anos, sendo o primeiro e o segundo precedidos por um prefácio e o terceiro por dois. Esse último ensaio ainda é dividido em duas grandes seções, entrecortadas por uma espécie de recapitulação.

Apesar de ter sido publicado de forma integral apenas em 1939, Freud já havia elaborado um primeiro rascunho geral em 1934, visto que nesse mesmo ano enviara uma longa carta a seu amigo Arnold Zweig descrevendo as suas principais hipóteses. Nesta carta evidencia-se, também, a urgência do contexto histórico e o modo como a rápida ascensão do Nazismo e a perseguição aos judeus acompanhava sua escrita. Freud diz:

O ponto de partida do meu trabalho é um assunto que lhe é familiar. . . . Diante de novas perseguições, torno a me perguntar como foi que nasceu o judeu e qual é o motivo pelo qual ele atrai para si este ódio inextinguível. Rapidamente encontrei uma fórmula. O judeu foi criado por Moisés. (Freud & Zweig, 1974Freud, S., & Zweig, S. (1974). Correspondência Freud-Zweig. Buenos Aires: Granda., p. 99)

A imersão em um dos textos bíblicos mais importantes para o judaísmo acontece justamente quando Freud se vê em perigo em virtude da ascensão do Nazismo, que representava uma ameaça não apenas à sua existência física enquanto judeu, mas também um questionamento profundo sobre os fundamentos de sua própria identidade. Ao defender a ideia de que Moisés era um egípcio e, consequentemente, de que o povo judeu fora criado por alguém que a princípio a ele não pertencia, Freud buscava mostrar de forma precisa, e paradoxalmente, que é a própria condição de alteridade que ocupa o cerne da identidade judaica. A inexorável Outridade levara seu povo a encarnar diversas vezes o personagem de “estrangeiro” para outras culturas, tela sobre a qual se projetara o que mais temiam em si mesmas e que assim tornou os judeus muitas vezes alvo de ódio e violência. De forma mais ampla, Freud retomava suas teorizações iniciadas em Psicologia das massas e análise do Eu (1921/2013) para reafirmar que “até para as mais definíveis, as mais identificáveis, as mais obstinadas identidades comunais . . . existem limites inerentes, que as impedem de ser totalmente incorporadas em uma, apenas uma, Identidade” (Said, 2004Said, E. W. (2004). Freud e os não-europeus. São Paulo: Boitempo., p. 81).

Nitidamente, Freud rompia também com as formas tradicionais de leitura do texto bíblico, de acordo com as quais o Êxodo dos judeus - sua libertação da escravidão no Egito - reproduziria uma dinâmica calcada na oposição entre o exílio e a redenção; a diáspora e o retorno à terra prometida (Friedländer, 1994Friedländer, S. (1994). Memory of the Shoah in Israel: symbols, rituals, and ideological polarization. In J. E. Young (Org.), The art of memory: holocaust memorials in History. New York: Prestel.). Moisés, nesse sentido, é normalmente retratado como um herói que liberta seu povo e o conduz de volta a sua terra de direito, Canaã. Contudo, se o Moisés de Freud criou os judeus, então, ao menos do ponto de vista psicanalítico, não poderíamos falar propriamente de um retorno às origens, mas de uma saída em direção à alteridade. A história do povo Hebreu torna-se a história da nação Judaica justamente através do ato de partir (Caruth, 1996Caruth, C. (1996). Unclaimed experience: trauma, narrative and history. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press.).

Cabe lembrar que Freud também estava partindo: com a anexação da Áustria pelo III Reich em 1938, ele ruma, após muito relutar, aos recônditos territórios ingleses. Abalado pelo exílio forçado e pela deterioração de sua condição de saúde, Freud voltava a se preocupar com a questão da transmissão da disciplina que desenvolvera durante sua vida. Tal inquietação refletir-se-ia na escrita do terceiro ensaio de Moisés, quando se depreende uma investigação sobre os modos pelos quais a tradição monoteísta teria sido transmitida, de geração em geração, desde a saída do Egito até sua contemporaneidade. O olhar dirigido ao passado de seu povo é concomitante à sua preocupação com o futuro da psicanálise. Nesse sentido, podemos pensar que se tornar herdeiro, esta operação de duas mãos no decurso do tempo, foi necessária para que ele mesmo pudesse partir.

Freud estuda o texto bíblico da mesma forma como investiga os mecanismos inconscientes de seus casos clínicos (Lemérer, 1999Lemérer, B. (1999). Los dos Moisés de Freud (1914-1939): Freud y Moisés, escrituras del padre (Vol. 1). Barcelona, Espanha: Serbal.). Atento às distorções (entstellung), aos processos de negação (verneinung) e desmentido (verleugnung) da sua verdade histórica (historische wahrheit), ele lê o texto como a escrita de um trauma herdeiro do mito da origem da cultura, que se atualiza no êxodo dos judeus e se repete indefinidamente pela história - inclusive na criação do cristianismo - para chegar às perseguições aos judeus no século XX. “Na distorção de um texto, a situação lembra um assassinato. A dificuldade não está na execução do ato, e sim na eliminação de seus rastros” (Freud, 1939/2014Freud, S. (2014). O homem Moisés e a religião monoteísta. Porto Alegre: L&PM. (Trabalho original publicado em 1939), p. 76). Freud assume, assim, que o texto bíblico esconderia, por meio de uma distorção, que os próprios judeus teriam se revoltado contra o tirânico líder e o assassinado. O ato teria sido reprimido, desmentido e sufocado, mas após duas gerações as características do Deus único de Moisés teriam sido deslocadas a um Deus vulcânico chamado Yahweh e os feitos de Moisés teriam sido assimilados ao seu sacerdote correspondente, também chamado Moisés. Esse processo de distorção e deslocamento atualizaria, assim, o mito do assassinato do pai descrito 25 anos antes em Totem e tabu, sob a mesma temporalidade da obediência après-coup.

Freud (1939/2014Freud, S. (2014). O homem Moisés e a religião monoteísta. Porto Alegre: L&PM. (Trabalho original publicado em 1939)) chama atenção, todavia, ao fato de que entre o assassinato do primeiro Moisés e o retorno de suas características associadas a um segundo Moisés haveria se passado um longo período durante o qual não é possível achar qualquer traço da fé monoteísta. Para explicar esse intervalo enigmático, ele retoma a teoria do traumatismo com um exemplo:

Ocorre que um homem deixe aparentemente ileso o lugar em que sofreu um terrível acidente - por exemplo, uma colisão de trens. Porém no decorrer das semanas seguintes ele desenvolve uma série de graves sintomas psíquicos e motores que só podemos derivar de seu choque . . . . Agora ele tem uma “neurose traumática”. O tempo que transcorreu entre o acidente e a primeira manifestação dos sintomas é chamado de “período de incubação” . . . . Apesar da diferença fundamental dos dois casos, chamará nossa atenção a posteriori que entre os problemas da neurose traumática e do monoteísmo judaico exista no entanto uma correspondência em um ponto. A saber, na característica que se poderia chamar de latência. (p. 104)

A latência explicaria tanto o período em que o sujeito simplesmente “esquece” o acidente de trem, quanto as duas gerações que viveram sem guardar qualquer relação com a religião mosaica. Para Cathy Caruth (1996Caruth, C. (1996). Unclaimed experience: trauma, narrative and history. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press.), o ponto mais interessante nesta comparação diz respeito ao fato de que a experiência traumática, seja o acidente de trem ou o assassinato de Moisés, simplesmente não é vivida conscientemente. “Um homem deixa aparentemente ileso o lugar em que sofreu um terrível acidente”, diz Freud, como se o sujeito não tivesse a mínima ideia do que acabara de vivenciar. A dimensão histórica do trauma referir-se-ia justamente ao fato de que o sujeito - ou o povo - só tem acesso à experiência traumática nas suas repetições - nos “graves sintomas psíquicos e motores” ou no próprio retorno das características do Deus único e da figura de Moisés. Essas repetições, no entanto, se dão sempre em outro tempo e outro espaço; a experiência histórica só é acessível mediante sua própria distorção.

O caráter testemunhal do texto freudiano é evidente. Tudo se passa como se a escritura confusa e recursiva - permeada por prefácios, repetições e retomadas teóricas - fosse também um reflexo da própria condição do autor em uma Europa ocupada pelos Nazistas. E, no entanto, quando Freud se refere às repetições que se seguirão na segunda parte do terceiro ensaio, encontramos uma frase aparentemente paradoxal: “Não fui capaz de apagar as marcas da história genética, em todo caso insólita, deste trabalho” (Freud, 1939/2014Freud, S. (2014). O homem Moisés e a religião monoteísta. Porto Alegre: L&PM. (Trabalho original publicado em 1939), p. 101). Freud parece querer reproduzir em seu texto as mesmas distorções encontradas e analisadas na bíblia. Como compreender esse lamento da tentativa falha de apagar seu traço? Ora, conforme o próprio Freud já havia ensinado, somente podemos apagar aquilo que já identificamos e conhecemos.

Como sustenta Carina Basualdo (2015Basualdo, C. (2015). Um Moisés real: o traço freudiano. Trivium: Estudos Interdisciplinares, 7(2), 152-162. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/trivium/v7n2/v7n2a01.pdf
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), lemos no fracasso de apagar seus traços a relação intrínseca entre o luto do pai e sua escritura. Lembremos aqui da metáfora da bailarina utilizada por Freud ao descrever o esforço de apropriar-se do assassinato do primeiro Moisés, deixado de fora da escritura sagrada. A figura movente e lábil da bailarina que, ao saltar, não toca o chão senão com a ponta dos pés, parece refletir o esforço de escrita de cernir imaginariamente o traço simbólico deixado pelo povo judeu, pelo pai Jacoh na orientação de seu interesse. A metáfora da bailarina parece ocupar, assim, a função do conceito de Real que inexiste em Freud. A ponta dos pés da bailarina é o topos de inscrição entre o evento histórico - traumático - e a não identidade a si do sujeito inconsciente, que somente pode ser traduzido pela distorção da marca deixada e que doravante servirá como traço de sua transmissão. Primeiro há a inscrição da marca, somente depois advém o traço. Essa tensão seria recuperada por Lacan, passadas algumas décadas, em seu seminário sobre a Identificação, no qual lemos que a marca deixada pelo objeto se oferece como suporte à emergência do significante: “se é do objeto que o traço surge, de algo do objeto que o traço retém, justamente sua unicidade, o apagamento, a destruição absoluta de todas essas outras emergências” (Lacan, 1961-1962Lacan, J. (1961-1962) O seminário, livro 9: a identificação. Seminário inédito.).

Ao tecer esse comentário, Freud parece ainda lamentar a impossibilidade de cernir a unidade do acontecimento originário do povo judeu, mas não deixa, por isso, de testemunhar a unicidade da inscrição de seu desejo no texto e na história de seus ascendentes.

Sustentamos que uma das chaves de compreensão para o Moisés de Freud encontra-se na assinatura desse traço de transmissão, no qual a elaboração da perda de seu pai se dá pari passu com a apropriação - não ortodoxa, mas psicanalítica - de sua herança judaica. Não há como ler Moisés sem Totem e tabu, um pressupõe o outro. Mais ainda, Freud “cria” a fórmula teórica para poder aplicá-la a sua vivência pessoal. Reaproximar-se do judaísmo não é um movimento religioso, mas sua reapropriação cultural frente ao movimento desenraizante e, portanto, traumático, do exílio.

Nesse sentido, acrescentemos que, em 1935, já iniciada a escritura de Moisés, ele insiste em introduzir duas frases corrigindo sua Autobiografia de 1925, na qual podemos ler: “O fato de me debruçar precocemente na história bíblica, tido recém aprendido a arte de ler, determinou de forma persistente, como eu o reconheci muito mais tarde, a orientação de meu interesse” (itálico nosso) (Freud, 1925/2001Freud, S. (2001). Autobiografia. Madrid: Alianza. (Trabalho original publicado em 1925), p. 56). A correção tardia, dez anos após a escrita de sua autobiografia, parece vir comprovar materialmente essa obediência après-coup da “orientação do seu interesse”.

O real da história: trauma, luto e escritura

O problema da história inscreve-se no lugar desse sujeito que é, em si mesmo, dinâmica da diferença, historicidade da não identidade a si.

Michel de Certeau

Com base na leitura dos textos freudianos Totem e tabu e O homem Moisés e a religião monoteísta através dos conceitos de trauma e luto, e em contraposição a alguns eventos que marcaram a vida de seu autor, é possível assinalarmos alguns elementos para a composição de uma teoria psicanalítica sobre a história.

A partir do conceito de trauma, o passado deixa de ser algo finalizado em si, um objeto bruto a ser “descoberto” e compreendido em sua totalidade, para tornar-se uma substância viva que retorna e habita o presente, inadvertidamente, cuja inscrição sempre apontará a insuficiência do significante e a dimensão de meio-dizer a verdade (Lacan, 1973-1974/1992Lacan, J. (1992). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1973-1974)). Em sua leitura cruzada entre psicanálise e história, Michel de Certeau (2011Certeau, M. (2011). História e psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica.) lembra que o passado se repete como uma virtualidade sem significado até que, conjugado ao presente, de forma análoga às associações livres de um paciente em análise, revela-se enquanto “verdade”; temporalidade do après-coup cujos sentidos tratamos de elucidar anteriormente. A metáfora da bailarina freudiana seria, nesse sentido, a dimensão de impossível inscrição do Real que Freud parece roçar com a ponta de sua pena. Se a história bíblica é escrita como a tentativa de elaboração do assassinato traumático de Moisés posterior ao êxodo, se o próprio texto sobre Moisés é escrito por Freud em decorrência de seu exílio, pode-se dizer, então, que é do assassinato do pai à edificação do Totem, da morte à escrita, que o trauma converte-se na própria condição da história (Rabinovitch, 2000Rabinovitch, S. (2000). Escrituras del asesinato: Freud y Moisés, escrituras del padre (Vol. 3). Barcelona, Espanha: Serbal.).

A relação entre trauma e história não deixa de evocar algumas problemáticas de natureza ética. Para Dominick LaCapra (2014LaCapra, D. (2014). Writing History, writing trauma. Baltimore, MD: John Hopkins University Press.), historiador norte-americano também interessado no diálogo com a psicanálise, uma das principais aporias do campo refere-se justamente às possibilidades e aos limites da historiografia de grandes catástrofes, como o Holocausto. Uma abordagem de pesquisa histórica documental e autossuficiente, cuja forma extrema é o positivismo, diz LaCapra, dificilmente daria conta de descrever a dimensão traumática desses eventos, uma vez que não se pode ter acesso direto e consciente a esse conteúdo. Uma abordagem radicalmente oposta seria o “construtivismo radical”, que enfatiza a importância dos aspectos performativos, figurativos, estéticos e ideológicos, somente a partir dos quais se poderiam auferir sentido e significância aos fatos. A abordagem de Cathy Caruth (1996Caruth, C. (1996). Unclaimed experience: trauma, narrative and history. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press.), citada anteriormente, identifica-se, de certa forma, a esse segundo modelo, visto que a autora sustenta que a experiência traumática só é possível através de sua própria desfiguração. Em termos histórico-políticos, esse modelo também acarretaria resistências; afinal, se só podemos “conhecer” o trauma por meio de sua própria distorção, como poderíamos responder, por exemplo, às teorias negacionistas das grandes catástrofes sem recorrer a uma suposta “realidade dos fatos”? Para LaCapra, esse paradoxo assinala a importância de pensarmos a condição ética da historiografia que, em termos psicanalíticos, o autor define como a relação transferencial que se estabelece entre o historiador e seu objeto de estudo. Nesse sentido, é apenas dentro da transferência - considerando os diferentes lugares de onde se estuda e se é estudado, bem como as dinâmicas projetivas e as implicações políticas intrínsecas a esse processo - que se torna possível, de fato, escrever a história como trauma.

Para Freud, a condição de escrita da história passa pelo tempo mítico, enquanto tentativa de supor, decifrar e finalmente escrever a verdade presente no real da origem do sujeito/cultura. Se Freud já havia conceituado a noção de recalcamento originário em sua clínica e abandonado sua primeira teoria do trauma, na qual o fator exógeno é determinante para a compreensão do traumático, em seus escritos socioantropológicos a investigação e escritura do originário retorna “no mesmo lugar”, ou seja, enquanto tentativa de desvendar a origem da cultura e do monoteísmo. Sustentamos que aí subjaz a operação de luto do próprio Freud, que se realiza em dois tempos: primeiro Totem e tabu, depois, Moisés.

A escrita do trauma pressupõe, assim, a per-laboração do luto, enquanto operação de tornar-se herdeiro, cujo fim não está posto na substituição metonímica do objeto perdido. Ao explorar por que essa operação tenha se invisibilizado na escrita de Luto e melancolia, levantamos a possibilidade de que, em sua investigação metapsicológica, Freud ainda não tivesse se confrontado com a inversão genealógica da perda de seus filhos. E, sobretudo, de que ele precisava de um segundo tempo, após Totem e tabu, para cumprir o “mandamento parental” de obediência après-coup com o judaísmo, por intermédio de Moisés. Se nesse segundo tempo há uma repetição estrutural do mito científico, ele o faz, por um lado, porque o recalcado da morte de seu pai retorna, tal qual uma alma penada na figura de Moisés. Na própria escritura do texto, a incompletude e a impossibilidade do significante em simbolizar o evento do traumático parecem atestar a insistência freudiana, transformando-se na assinatura de seu desejo no corpo do texto. Por outro lado, porque a partir das investigações sobre o real do pai do judaísmo, Freud empreende igualmente a escrita do lugar estrutural do pai na psicanálise. Dito de outra forma, esse processo consiste em não procurar mais na figura do objeto substituto um fim à operação do luto, mas um lugar simbólico de inscrição, no qual a operação de herdar traduz seu lugar simbólico.

O lamento de Freud sobre o fato de não conseguir apagar seus traços parece dessa forma consagrar, a sua revelia, os destinos de toda historiografia por vir. Doravante, todo acontecimento será tributário de sua narrativa, cujo traço de proveniência inscreve-se nesse encontro entre a impossibilidade de sua apreensão total e o esforço de nomeá-lo.

Referências

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  • Yerushalmi, Y. H. (1993). O Moisés de Freud: judaísmo terminável e interminável. Rio de Janeiro: Imago.
  • 1
    Agradecemos a Edson de Sousa pela oferta generosa desta imagem.
  • 2
    Vale lembrar que este era um artifício empregado amplamente na poesia e prosa hebraicas medievais e que foi apropriado pelo Iluminismo Judaico (Haskalá); o que sugere, portanto, que o próprio Jacoh já se identificava a uma linhagem não ortodoxa do judaísmo.
  • 3
    “Filho que me é querido, Shelomoh, No sétimo dos dias dos anos de tua vida o Espírito do Senhor começou a te animar e falou em ti: Vai, lê meu Livro que eu escrevi e nele irromperão para ti as fontes da compreensão, do conhecimento e da sabedoria. . . . Desde então, o Livro tem sido guardado como os fragmentos das Tábuas em uma arca comigo. Para o dia em que os seus anos chegarem a cinco mais trinta pus nele uma capa de pele nova e chamei-o: ‘Brota, é poço! Entoai-lhe Cânticos!’”. (Yerushalmi, 1993Yerushalmi, Y. H. (1993). O Moisés de Freud: judaísmo terminável e interminável. Rio de Janeiro: Imago., p. 164)
  • 4
    A mudança na grafia do nome do pai de Freud corresponde às diferenças das próprias referências bibliográficas utilizadas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2016
  • Revisado
    06 Out 2016
  • Aceito
    17 Out 2016
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