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Psicanálise e ciência: a equação dos sujeitos

Psychanalyse et la science: l’équation des sujets

Psicoanálisis y ciencia: la ecuación de los sujetos

Resumo

Pretendemos demonstrar que a afirmação de Jacques Lacan de que a ciência moderna foi a condição de possibilidade de surgimento da psicanálise deriva um conjunto de proposições: há ciência moderna; a psicanálise só pôde surgir na modernidade do pensamento; e entre psicanálise e ciência há uma lógica de compatibilidade. Para tanto, a partir da epistemologia procuramos definir o estatuto de um mundo afetado pela atividade científica moderna em oposição a um mundo antigo. Isso nos levou à axiomática do corte maior decorrente do pensamento de Descartes e da física matematizada, que propõe haver uma cesura que afeta todos os discursos compossíveis. Com a matematização do pensamento, as qualidades do existente são abolidas, fornecendo terreno propício para o surgimento do sujeito do inconsciente, que Lacan irá alocar entre significantes, promovendo uma teoria do sujeito essencialmente moderna.

Palavras-chave:
psicanálise; ciência; sujeito; significante

Résumé

Notre but est de démontrer que l’affirmation de Jacques Lacan qui dit que la science moderne a été la condition à la naissance de la psychanalyse résulte dans un certain nombre des propositions : il y a la science moderne ; la psychanalyse ne peut que surgir dans la modernité de la pensée ; et il y a entre la psychanalyse et la science une logique de compatibilité. Pour cela, à partir de l’épistémologie, nous avons cherché à définir le statut du monde affecté pour l’activité de la science moderne par opposition à un monde ancien, ce qui nous a amené à l’axiome de la coupure majeure de la pensée de Descartes et de la physique mathématique, qui propose l’existence d’une rupture qui touche tous les discours. Avec l’introduction de la mathématique dans la pensée les attributs de l’existant sont abolis et a laissé une place propice à l’apparition du sujet de l’inconscient que Lacan met entre les signifiants, ce qui a promu l’émergence d’une théorie moderne du sujet.

Mots-clés:
psychanalyse; science; sujet; signifiant

Resumen

Pretendemos demostrar que la afirmación de Jacques Lacan de que la ciencia moderna fue la condición de posibilidad de surgimiento del psicoanálisis constituye un conjunto de proposiciones: hay ciencia moderna; el psicoanálisis solo ha podido surgir en la modernidad del pensamiento; y entre el psicoanálisis y la ciencia hay una lógica de compatibilidad. Para tanto, desde la epistemología, tratamos de definir el estatuto de un mundo afectado por la actividad científica moderna en oposición a un mundo antiguo. Esto nos llevó a la axiomática del corte mayor resultante del pensamiento de Descartes y de la física matematizada que propone haber una censura que afecta todos los discursos composibles. Con la matematización del pensamiento, las cualidades de lo existente son anuladas, estableciendo el campo propicio para el surgimiento del sujeto del inconsciente, que Lacan situará entre significantes, promoviendo, así, una teoría del sujeto esencialmente moderna.

Palabras clave:
psicoanálisis; ciencia; sujeto; significante

Abstract

This article aims to demonstrate that Jacques Lacan’s assertion that modern science was the condition of possibility of the emergence of psychoanalysis derives a set of propositions: to modern science; psychoanalysis could only arise in the modernity of thought; and between psychoanalysis and science there is a logic of compatibility. To do so, from an epistemological point of view, the article aims to define the status of a world affected by modern scientific activity as opposed to the ancient world. This led research to the axiomatic, in a broader scope, from Descartes’ works and mathematical physics, which proposes a caesura that affects all existing discourses. With the mathematization of thought, the qualities of the existent were abolished, thereby providing the propitious ground for the emergence of the subject of the unconscious, which Lacan will allocate between signifiers, promoting an essentially modern theory of the subject.

Keywords:
psychoanalysis; science; subject; signifier

Psicanálise e ciência: a equação dos sujeitos

Este artigo é fruto de discussões que tangenciam psicanálise e pesquisa na universidade. Inserido em um projeto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cujo objeto inclui a investigação dos fundamentos da pesquisa clínica em psicanálise, o estudo em questão busca refletir sobre a relação entre psicanálise e ciência, visto que a última, na modernidade, passa a cumprir o lugar de ideal para atividade de pesquisa nas universidades. Deste modo, ao trazer a psicanálise para um debate com a atividade científica, pretendemos, conjuntamente com o projeto supracitado, lançar mais um ponto de articulação para pensar o campo de problemas da psicanálise e sua prática de investigação nos cursos de graduação e pós-graduação.

Portanto, devido à entrada da psicanálise no âmbito universitário, somos levados a interrogar que tipo de laço se estabelece entre a práxis inaugurada por Freud e a atividade científica moderna. O caminho mais premente empreendido por alguns teóricos, neste sentido, é a busca por coordenadas que estabeleçam o estatuto de cientificidade para a práxis psicanalítica. Nós, por nosso turno, seguiremos o caminho empreendido por Lacan (1964/2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-1973).), que deposita nos trabalhos de Alexandre Koyré a possibilidade de pensar um terreno teórico profícuo para esta discussão. Desse modo, partiremos da tese de que responder à demanda de ciência na psicanálise pode se configurar em erro epistemológico, pois acabaria por homogeneizar campos que tentam tornar inteligíveis problemáticas diferentes.

Assim, Lo Bianco (2003Lo Bianco, A. C. (2003). Sobre as bases dos procedimentos investigativos em psicanálise. Psico-USF, 8(2), 115-123.) aponta que muitos dos projetos para afirmar a cientificidade da psicanálise se centram ora sob tomada metodológica que privilegia a pesquisa quantitativa, cujos desdobramentos são análises da eficácia terapêutica baseadas em critérios mercadológicos de custo-benefício; ora são empreendimentos que buscam localizar a teoria psicanalítica no seio da ciência positiva, em que o objetivo central é buscar a comprovação empírica da metapsicologia freudiana. Ambos os projetos, como afirma a autora, desconsideram a especificidade do objeto da psicanálise: o sujeito do inconsciente.

Desse modo, não procuraremos assumir as coordenadas de ideal de ciência sobre as quais a prática e o campo conceitual psicanalíticos venham se assentar, mas buscar interrogar o tipo de relação que se estabelece entre psicanálise e ciência moderna. Para tanto, utilizaremos o campo da epistemologia cujo ponto nodal, a nosso ver, é aquilo que se unifica sob a seguinte axiomática: “não só há cortes, mas há cortes maiores” (Milner, 1980/1996Milner, J.-C. (1996). A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1980)., p. 67).

O desenvolvimento deste axioma nos levará a abordar o surgimento da modernidade, o que se faz em concordância com a afirmação de Lacan de que a condição de possibilidade do surgimento da psicanálise foi a fundação do que se estenografa como ‘moderno’, e que, por sua vez, podemos demarcá-la em “um momento historicamente definido, sobre o qual talvez tenhamos de saber se ele é rigorosamente passível de repetição na experiência: o que foi inaugurado por Descartes e que é chamado cogito (Lacan, 1965/1998Lacan, J. (1998). A ciência e a verdade. In Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 869-892). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1965), p. 870).

Seguindo este percurso, podemos localizar a afirmação emblemática de Lacan (1965/1998Lacan, J. (1998). A ciência e a verdade. In Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 869-892). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1965)) de que “o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência” (p. 873). Valendo-nos de Jean-Claude Milner (1980/1996Milner, J.-C. (1996). A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1980).), procuraremos demonstrar a possibilidade de analisar este axioma lacaniano naquilo que engendra de equação dos sujeitos, ou seja, a existência de uma compatibilidade lógica, tal como afirma Calazans (2006Calazans, R. (2006). Psicanálise e ciência. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 9(2), 273-283.), entre a forma de encaminhar os problemas pela psicanálise e pela ciência moderna. O caminho que traçaremos com este intento nos permitirá afirmar que tanto a psicanálise quanto a ciência promovem um esvaziamento de qualidades no existente.

Epistemologia da ciência: a matematização da física é um corte maior

Antes de adentrar propriamente na epistemologia da ciência, é necessário defender nossa posição em afirmar que há ciência moderna e que a concebemos a partir de um corte maior. Lacan (1965/1998Lacan, J. (1998). A ciência e a verdade. In Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 869-892). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1965), p. 871) não deixa de afirmar que o nascimento da ciência deve ser tomado no sentido absoluto, fazendo referência explícita aos trabalhos de Koyré. Milner (1980/1996Milner, J.-C. (1996). A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1980).) encontrará nisto a razão “pela qual a ciência é essencial à existência da psicanálise” (p. 32).

Apreenderemos o surgimento da ciência no que se inscreve como moderna a partir do corte operado por Galileu com a matematização da física. Veremos depois como isto instala uma nova ordem no pensamento, mas antes nos cabe a tarefa de assumir que o fundamento para esta afirmação se centra no que Milner (1980/1996Milner, J.-C. (1996). A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1980)., p. 63) chamou de “linguagem do corte”. Trata-se da axiomática de que há cesuras nos discursos que fundam novos campos de problemas. Assim, recorrendo aos trabalhos de Koyré e Kojève, Milner (1980/1996Milner, J.-C. (1996). A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1980).) encontra uma combinação de proposições que não só indicam a existência de cortes, mas também um corte que afetaria todos os discursos compossíveis, ou seja, um corte maior. Assim, ao afirmarmos que “não só há cortes, mas há cortes maiores” (Milner, 1980/1996Milner, J.-C. (1996). A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1980)., p. 67), estamos seguindo um caminho na epistemologia que considera o surgimento da ciência moderna o fruto de uma cisão que afeta não somente localidades específicas de discursos, mas sim todo o universo. O que está em jogo, desse modo, é a criação de um novo mundo em oposição a um mundo antigo.

Visto isso, seguiremos, neste trabalho, o intuito de abordar dois pontos que se articulam e que nos auxiliam a ratificar a tese de Lacan de que o surgimento do sujeito do inconsciente se deve ao advento da ciência dita moderna. São eles: a matematização da física e o despojamento de propriedades do sujeito a partir da incidência do significante.

O surgimento da ciência moderna não só implicará novas coordenadas para pensar o universo, mas também a possibilidade de nova vetorização de leitura para a epistemologia ler e tornar inteligíveis os modos de encaminhar problemas na atividade científica. É o que Gaston Bachelard (1971/2006Bachelard, G. (2006). A epistemologia. Lisboa, Portugal: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1971).) demonstra ao afirmar que a ciência, contrariamente ao que pregaria o positivismo clássico e o idealismo, não se constituiria através de continuísmo constante, cujo desdobramento seria uma acumulação gradual e restrita do saber científico. Para o filósofo, o pensamento científico é formado a partir de cortes epistemológicos que, longe de se darem a partir do desenvolvimento acumulativo de seus princípios, produzem-se pela reorganização da razão, com a instalação de campos de problemas diferentes do que se tinha em momento anterior.

Assim, a tomada de posição para pensar o desenvolvimento da ciência seria contrária à evocação de uma narrativa contínua. O que está em jogo nesta recusa é a possibilidade de não rechaçar o movimento dialético da investigação científica. Aqui nos afastamos dos historiadores da ciência de base positivista, que advogam um estatuto continuísta e evolutivo para a ciência. O grande problema desta tomada de posição é que pressupõe uma supremacia dos órgãos dos sentidos como via para apreender o real científico. Nossa posição, nessa medida, é abordar a estrutura do fazer científico não pelo experimento do positivista, mas pelo caráter lógico-abstrato inaugurado com a física moderna a partir do corte maior: a inserção das matemáticas como campo de produção dos fenômenos científicos.

É neste sentido que Bachelard (1971/2006Bachelard, G. (2006). A epistemologia. Lisboa, Portugal: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1971).) também demarcará que, no campo da filosofia, a ciência era balizada por princípios unificados como meios absolutos de apreender o real. Assim, tanto para os adeptos do positivismo clássico, cuja uniformidade se encontrava na experiência sensível, quanto para os idealistas, cuja uniformidade se justificava pela separação absoluta da experiência e da razão, o que se configurava no campo científico-filosófico era um saber homogêneo que ora preconizava o uso dos órgãos do sentido, ora os quadros apriorísticos da razão, sem possibilidade de dialetização.

No entanto, os modos de operação de leitura da atividade científica passam a sofrer intensos abalos quando se passa a considerar o surgimento de um mundo microfísico. O espírito científico de antes se torna ineficaz para dar conta do estabelecimento de um mundo desconhecido à experiência sensível do cientista, o que também corrobora para a instalação de uma crise no racionalismo - que chamaremos aqui de “dogmático”. Conforme nos traz Robert Blanché (1967/1983Blanché, R. (1983). A ciência atual e o racionalismo. Lisboa, Portugal: Res. (Trabalho original publicado em 1967)., p. 65-66), “o conhecimento de que os velhos conceitos fundamentais da ciência não são aplicáveis senão para a região das grandezas médias, eis a revolução copernicana do nosso tempo”. É neste sentido que o mundo do infinitamente pequeno passa a exigir mudança substancial no modus operandi da ciência para abordar o novo campo de problemas.

Com isso, temos o que podemos demarcar como novo estatuto do objeto da ciência, levando em consideração outra tomada de lentes epistemológicas para observar seu campo de problemas. Para Bachelard (1934/1985Bachelard, G. (1985). O novo espírito científico. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro. (Trabalho original publicado em 1934).) o advento da física moderna, que engendra o mundo do infinitamente pequeno, promove mudança fundamental na maneira de encaminhar a investigação científica, qual seja, “a realização do racional ou mais precisamente a realização do matemático” (p. 13), de forma que o que se estabelece é a matematização da física, na qual um novo campo de problemas e de abordagem do objeto científico se configura, articulado a um processo de produção que vai da teorização ao real, e não ao contrário, como pensavam os realistas.

Nesse sentido, Alexandre Koyré (1973/1991Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1973).) nos fornece uma distinção entre experiência e experimentação. Enquanto a primeira se aproxima do campo do senso comum e da física aristotélica, que, como veremos, é não-matemática, a segunda é mais próxima do pensamento afetado por Descartes e Galileu. A experimentação estava vinculada ao uso de uma linguagem metodicamente constituída para interrogar fenômenos.

Um ponto fundamental nos é apontado: o uso da linguagem matemática como modalidade formal de abordagem da natureza. Assim, para circunscrever a magnitude de um corte epistemológico maior precisamos fazer um esforço de pensamento para entender as consequências da matematização da física. Segundo Koyré (1973/1991Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1973).), isto nos direciona ao rompimento com a cosmologia aristotélica, cujos princípios delineavam um mundo hierarquizado (em ordem decrescente: de Deus para as coisas), composto de qualidades e finitude; e ao surgimento da “matematização (geometrização) da natureza e, por conseguinte, a matematização (geometrização) da ciência” (Koyré, 1973/1991Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1973)., p. 155).

Neste plano, a consequência primeira oriunda da destruição do cosmo aristotélico é a produção de um corte na maneira de pensar as coordenadas do mundo. Com os processos de matematização do pensamento, a ideia de um mundo ordenado por qualidades, finitude e hierarquias é substituída por novas coordenadas, tais como:

Um Universo aberto, indefinido e até infinito, unificado e governado pelas mesmas leis universais, um universo no qual todas as coisas pertencem ao mesmo nível do Ser, contrariamente à concepção tradicional que distinguia e opunha os dois mundos do Céu e da Terra (Koyré, 1973/1991Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1973)., p. 155).

Vale dizer que o que estava em jogo neste corte era menos a absoluta desqualificação do modo de encaminhar os problemas no mundo antigo do que a reestruturação da razão para dar conta das novas coordenadas que se estabeleciam. Os novos princípios que se delineavam não buscavam aprimorar os antigos, mas sim ultrapassá-los, criando, assim, um novo universo.

Como frisa Koyré (1973/1991Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1973).), a física de Aristóteles - mesmo que condizente com uma ciência elaborada e sistemática - abdica absolutamente do pensamento matemático. A consequência desta maneira de analisar o campo de fenômenos naturais é a “(a) crença na existência de ‘naturezas’ qualitativamente definidas; e (b) a crença na existência de um Cosmo” (Koyré, 1973/1991Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1973)., p. 157). Passaremos a analisar como isto se estabelece no pensamento aristotélico a partir da sua distinção entre movimentos naturais e movimentos violentos e de que forma esta distinção instaura a existência de um mundo hierarquizado, dotado de qualidades e finitude, ou seja, um mundo dotado de substância.

A ideia de cosmo em Aristóteles se estrutura a partir de uma ordem harmoniosa, na qual as coisas são pertencentes a um lugar pré-determinado, de maneira que só poderá se localizar em seu lugar natural. Isto nos leva a uma concepção ordenada e estática do universo. Neste sentido, a qualquer movimento com o intuito de deslocá-la de seu lugar, uma resistência se imporia com a finalidade de manter a posição primeira. Este movimento de deslocamento, Aristóteles chamou de “violência” (Koyré, 1973/1991Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1973).).

Assim, tudo que é do movimento implica ou desorganização na ordem do universo, violência, ou uma retomada na harmonia das coisas que voltariam aos seus respectivos lugares. Haveria um esforço do Ser em se movimentar com o intuito de reordenar a hierarquia do universo, em que cada elemento possui um lugar que lhe é destinado antecipadamente. “É esse retorno à ordem que constitui, precisamente, o que chamamos movimento ‘natural’” (Koyré, 1973/1991Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1973)., p. 158).

Dessa forma, com o equilíbrio cósmico estabelecido entre movimento natural e movimento violento, a física aristotélica se configuraria fundando um mundo dotado de hierarquias, em que as coisas se movimentam em torno de um eixo imutável, de forma que “o movimento é o ser - ou actus - de tudo o que não é Deus” (Koyré, 1973/1991Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1973)., p. 159). Com isso, os lugares naturais de cada coisa se encontrariam numa posição abaixo de um lugar superior, cuja figura central é divina, e que, por seu turno, age como a causa, como o motor dos movimentos.

Ainda neste panorama, o mundo seria dotado de finitude na medida em que cada coisa teria sua correspondência em um lugar determinado, não podendo, portanto, ocupar mais de um lugar ao mesmo tempo ou ainda impossibilitada de ocupar outro espaço que não lhe condiz segundo ordem estabelecida a priori.

O pano de fundo para estas coordenadas, segundo Koyré (1973/1991Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1973).), é a negação do vácuo, ou melhor, seu total desconhecimento. Considerá-lo seria um obstáculo para a compreensão de movimento na física de Aristóteles. Ora, se levarmos em consideração que em uma situação de vacuidade o nada do ambiente seria incapaz de deter o movimento de um corpo, o desdobramento seria a destituição do equilíbrio cósmico, de forma que este corpo lançado no vazio de matéria se movimentaria infinitamente.

Em Galileu temos, em contrapartida, a consideração de um espaço vazio de matéria, de conteúdo e de atividade. Como afirma Koyré (1973/1991Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1973)., p. 161), “um espaço vazio (o da geometria) destrói inteiramente a concepção de uma ordem cósmica: num espaço vazio, não só não existem lugares naturais; não existem lugares de espécie alguma”. É, portanto, na ciência de Galileu e na filosofia de Descartes,1 1 Visto que Descartes foi o pensador que inaugurou a modernidade justamente na medida em que foi o primeiro a rechaçar todo o saber anterior e a considerar as transformações da física Galileana como verdades. segundo Koyré (1973/1991Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1973).), que foi possibilitado que ultrapassássemos e refinássemos nossas noções de movimento e espaço. Com o advento da lei da inércia, por exemplo, passamos a operar com um conjunto de teoremas e axiomas que seriam inoperantes em um mundo aristotélico.

As consequências, portanto, da matematização da física são, em primeira ordem, o rompimento com a noção substancialista de Aristóteles em que cada ente possuía lugar correspondente dentro de uma hierarquia finita. Podemos pensar o grande impasse que encontraria o físico aristotélico ao se deparar com a impossibilidade de verificação de um corpo em eterno movimento. Assim, “não é surpreendente que o aristotélico se tenha sentido pasmado e perdido diante desse alucinante esforço para explicar o real pelo impossível ou, o que dá no mesmo, para explicar o ser real pelo ser matemático” (Koyré, 1973/1991Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1973)., p. 166).

É nesta medida que podemos ratificar a tese de que a física moderna surge a partir de sua matematização, cujos efeitos mais precisos são a constituição de um mundo matemático (geometrizado) em que os critérios de qualidades subjetivos fornecidos às coisas são abolidos. Assim, o golpe sofrido pela ciência diz respeito ao advento do abstrato da matemática que derroga a apreensão dos problemas científicos pela percepção dos sentidos. Vemos surgir, portanto, fenômenos a partir de um a priori das operações do pensamento que fundam, ou, mais precisamente, que criam o objeto científico.

Valendo-nos de François Châtelet (1994), podemos perceber que se trata de uma mudança fundamental na utilização da linguagem para interrogar a realidade. Se com Aristóteles a verificação da realidade estava dada a partir de uma linguagem cotidiana, em que à matéria eram atribuídas as mesmas características do espírito, com o projeto galileano o que se visualiza é o esvaziamento de sentido a partir da linguagem matemática, no seu rigor de exatidão e inteligibilidade. A partir da física de Galileu, “a linguagem matemática é a linguagem da racionalidade integral” (Châtelet, 1994, p. 65).

Assim, podemos afirmar que o advento da ciência moderna, com as operações de matematização da física, faz emergir um mundo destituído de qualidades. Trata-se de um esvaziamento do universo e do existente que corresponde ao início do projeto cartesiano de utilizar a dúvida de todo o saber ulterior para inaugurar um sujeito esvaziado de qualidades intrínsecas.

Psicanálise e ciência: o surgimento do sujeito sem qualidades

Neste tópico, percorreremos um caminho que parte de uma afirmação de Lacan que se encontra em escritos como A ciência e a verdade (1965/1998), Do sujeito enfim em questão (1966/1998) e no Seminário sobre os conceitos fundamentais da psicanálise (1964/2008), de que só é possível conceber o sujeito do inconsciente a partir do surgimento da ciência moderna articulada ao pensamento cartesiano.

Quanto a isso, Jean-Claude Milner (1980/1996Milner, J.-C. (1996). A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1980).) indica que se trata de uma equação na qual Lacan articula três afirmações ao enunciar que o sujeito da ciência é o sujeito da psicanálise, a saber, “(1) que a psicanálise opera sobre um sujeito (e não, por exemplo, sobre um eu); (2) que há um sujeito da ciência; (3) que estes dois sujeitos constituem apenas um” (Milner, 1980/1996Milner, J.-C. (1996). A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1980)., p. 28).

Podemos reiterar com Lacan (1965/1998Lacan, J. (1998). A ciência e a verdade. In Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 869-892). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1965)) que a modernidade do pensamento se inaugura com Descartes e este momento inaugural se correlaciona com a possibilidade de surgimento do sujeito da psicanálise na sua articulação com o advento da ciência a partir da matematização (geometrização) do espaço, como bem assinalamos com Koyré (1973/1991Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1973).). O que se faz fundamental aqui é aquilo que diz respeito ao advento do Cogito, lugar de toda a sustentação do pensamento cartesiano. Milner (1980/1996Milner, J.-C. (1996). A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1980).) preconiza que este Cogito é justamente aquilo que se vale de testemunho para o pensamento científico: o edifício cartesiano é o sustentáculo filosófico das descobertas galileanas.

A esse respeito, temos o que Milner chama de “cartesianismo radical” de Lacan, do qual podemos derivar um conjunto de proposições:

se Descartes é o primeiro filósofo moderno, é pelo Cogito; Descartes inventa o sujeito moderno; Descartes inventa o sujeito da ciência; o sujeito freudiano, na medida em que a psicanálise freudiana é intrinsecamente moderna, não poderia ser outra coisa senão o sujeito cartesiano (Milner, 1980/1996Milner, J.-C. (1996). A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1980)., p. 33).

Desses axiomas é válido decorrer que não se trata de uma linearidade cronológica; não é em relação a um período na história do pensamento que Lacan se refere ao traçar estas correlações. Trata-se, antes, de analisar como se estabelece uma zona de compatibilidade entre o sujeito da ciência e o sujeito freudiano, na medida em que o surgimento do cogito é originário de um corte maior, tributário da constituição de um universo infinito.

O que o início do projeto cartesiano provoca no campo do conhecimento é um rechaço de todo o saber por meio da dúvida radical. Podemos observar isto na primeira parte da obra O discurso do método. Descartes se vale de todo o conhecimento que lhe era destinado dos altos colégios da Europa somado a tudo que lhe fora possível apreender dos campos de saberes como a matemática, a filosofia, a física, as artes, para então inserir no seu pensamento a necessidade de examinar todas, “mesmo as mais supersticiosas e mais falsas, a fim de conhecer seu justo valor e evitar ser por elas enganado” (Descartes, 1637/1996Descartes, R. (1996). Discurso do método (Coleção Os pensadores, 6a ed.). São Paulo, SP: Nova cultural. (Trabalho original publicado em 1637)., p. 9-10).

Nesta medida, o projeto cartesiano parte do centro da filosofia, cujo estado de coisas não deixava de se encontrar massivamente sob o crivo das incertezas - se furtando assim de uma sustentação resolutamente crível -, para o das ciências, “na medida em que tiram seus princípios da filosofia” (Descartes, 1637/1996Descartes, R. (1996). Discurso do método (Coleção Os pensadores, 6a ed.). São Paulo, SP: Nova cultural. (Trabalho original publicado em 1637)., p. 12), não podendo, desse modo, estabelecer princípios suficientemente fundamentados. Devemos ter em relevo, aqui, a que ciência Descartes se refere e com isso sermos levados diretamente ao tópico em que abordamos o que era constituído enquanto cosmologia aristotélica: finita, descritiva, dotada de qualidades e hierárquica.

Decorre disto que da dúvida hiperbólica de Descartes surge a certeza do Cogito. O ato de pensar, portanto, instaura a certeza da existência do sujeito. Todavia, trata-se mesmo do ato do pensar no momento de sua enunciação, o que nos direciona ao grande impasse cartesiano: a verdade, no que tange ao existente, só é garantida no momento em que se enuncia o pensar. Com isso, temos um sujeito evanescente e o problema do filósofo seria encontrar uma saída que sustentasse a validade do existir ao longo do tempo.

Para Alain Badiou (1988/1996Badiou, A. (1996). O ser e o evento. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1988).), a questão do sujeito em Descartes deve ser pensada a partir do lugar que o próprio sujeito precisamente ocupa, a saber, o lugar da enunciação. A certeza da existência do ser virá, portanto, do próprio sujeito ao dizer: eu penso. Desse modo, “o ponto do sujeito é ali onde se pensa que pensando ele deve ser, ele é. A conexão entre o ser e o lugar funda a radical existência da enunciação como sujeito” (p. 336).

Assim, o pensamento cartesiano promove esvaziamento de substância no existente. Nada do que era suposto pode adquirir o estatuto de verdade; ao sujeito só lhe caberá uma certeza: a de que ao pensar, ele é. No entanto, o sujeito que só se afirma no momento da enunciação, é um sujeito evanescente, que não tem materialidade tampouco durabilidade no decorrer do tempo, o que veremos ser compatível com o uso que Lacan faz do significante na sua articulação com a produção do sujeito.

Em A ciência e a verdade, Lacan (1965/1998Lacan, J. (1998). A ciência e a verdade. In Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 869-892). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1965)) chega a indicar uma nova escrita para o aforismo de Descartes, propõe que à segunda oração sejam acrescentadas aspas, formando assim um penso: “logo existo”. Estas aspas tomam a função de indicar que o pensamento só institui o ser na medida em que se vincula à fala, assim, “toda a operação toca na essência da linguagem” (p. 879).

A relação entre a emergência da dúvida radical de Descartes e o surgimento da física de Galileu pode ser circunscrita com o advento da categoria do infinito. Conforme nos traz Dunker (2008Dunker, C. I. L. (2008). Descartes e o método psicanalítico. Estudos Lacanianos, 1(1), 169-186.), ao se deparar com a insuficiência do saber medieval que se centrava em uma ordem fechada - o cosmos finito -, a filosofia cartesiana, a partir das descobertas astronômicas e matemáticas que fundam novas modalidades de encaminhar o problema científico, passa a buscar “um ponto certo, seguro e indubitável que defina essa nova ordem (mathesis universalis) de saber, e que será a forma moderna do conhecimento” (p. 5).

Dessa forma, a este sujeito inaugurado por Descartes:

Não lhe convirão as marcas qualitativas da individualidade empírica, seja ela psíquica ou somática; tampouco lhe convirão as propriedades qualitativas de uma alma; ele não é mortal nem imortal, puro nem impuro, justo nem injusto, pecador nem santo, condenado nem salvo; não lhe convirão nem mesmo as propriedades formais que durante muito tempo havíamos imaginado constitutivas da subjetividade como tal: ele não tem nem Si, nem reflexividade, nem consciência (Milner, 1980/1996Milner, J.-C. (1996). A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1980)., p. 33).

Nesta medida, é a Koyré (1973/1991Koyré, A. (1991). Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1973).) que devemos a afirmação de que a dúvida enquanto método, ou o período do ceticismo que inaugura o Cogito, foi responsável pela produção do racionalismo na ciência moderna. Conforme já afirmamos neste trabalho, o corte sofrido pela ciência se constitui com a passagem da natureza dotada de qualidades para o universo da precisão matemática, ou ainda, se quisermos, com a inserção do significante, do simbólico, na produção do conhecimento científico. Assim, Ramos e Alberti (2013Ramos, M. & Alberti, S. (2013). Psicanálise e ciência: a emergência de um sujeito sem qualidades. Psicanálise & Barroco em revista, 11(2), 210-224., p. 211-212) nos indicam que “isso significa que a formalização do real, própria da prática científica, é na verdade um arranjo simbólico. A prática científica consiste numa matematização do real, o que se dá na contramão de uma quantificação”.

O sujeito entre significantes: Lacan e a linguística 2 2 Não pretendemos com este tópico afirmar uma posição final e absoluta de Lacan quanto ao seu diálogo com a linguística. O que visamos aqui é unicamente mostrar como a linguística foi uma das ferramentas para Lacan pensar o sujeito, não promovendo homogeneização entre os campos ou tomando este encontro como o único possível.

Vimos anteriormente que a ciência moderna operou no universo a abolição das qualidades, ou seja, ao se matematizar destituiu o mundo de substância. De certa forma, os processos de matematização do objeto científico passaram a tomar o estatuto de ideal de ciência, estendendo seu campo para além das ciências naturais. É com isso que observamos se configurar no pensamento moderno uma discursividade científica que estendia cada vez mais seus limites: trata-se de um galileísmo ampliado.

Podemos mencionar aqui, como exemplo, o paradigma da estrutura, ou melhor, do estruturalismo. Se desde Galileu o programa científico se comprazia do campo simbólico das matemáticas, de figuras geométricas e referências numéricas, veremos surgir no horizonte de outras áreas de saber um projeto investigativo similar. Evidentemente que, como nos adverte Milner (1980/1996Milner, J.-C. (1996). A obra clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1980).), não se trata de uma transposição absoluta, pois ao sair do campo da natureza e adentrar o objeto social e humano deve-se partir de adaptações. É neste panorama que se inscreve o estruturalismo.

Dessa forma, é válido frisar que o estruturalismo, quando aplicado à linguística, opera uma redução das qualidades sensíveis e não sua total abolição, visto que especificamente neste campo temos a matéria fonética, sobremaneira dependente dos aparelhos sensoriais. Todavia, ainda assim, o programa estrutural se constituiu como método que buscava promover tratamento científico aos seus objetos.

Neste panorama, cabe-nos a pergunta: qual foi o doutrinal da ciência que estabeleceu coordenadas científicas para a linguística? Seguindo Lévi-Strauss em seu texto sobre linguística e antropologia, temos evidência do destaque que o estudo linguístico tomou em relação às outras áreas que respondiam ao título de ciências sociais ou ciências humanas. A linguística foi “aquela que, de longe, realizou os maiores progressos; é certamente a única que pode reivindicar o nome de ciência e que conseguiu ao mesmo tempo formular um método positivo e conhecer a natureza dos fatos que lhe cabe analisar” (Lévi-Strauss, 1958/2012Lévi-Strauss, C. (2012). Antropologia estrutural. São Paulo, SP: Cosac Naify. (Trabalho original publicado em 1958)., p. 43).

Podemos afirmar que foi o programa estruturalista o responsável em conceder à linguística o título de ciência, na medida em que se fiava em um método de redução das qualidades sensíveis, promovido por um corte epistemológico operado por Ferdinand de Saussure. Buscaremos tornar isto inteligível ao analisarmos como o método de redução das qualidades e de introdução dos fatos da língua em um sistema de oposições é capital para apreender a natureza do signo linguístico. Este nosso caminho se justificará como ferramenta para abordar o significante na psicanálise e de que forma se correlaciona com o significante saussuriano e também em que medida o subverte ao inserir a categoria do sujeito.

Ora, a noção de sujeito, a princípio, impediria o tratamento científico que o programa estrutural procura promover. Todavia, veremos que, com Lacan, se trata de um sujeito sem qualidades, rebelde à categoria como a consciência de si, ou seja, para o psicanalista, o estruturalismo inaugurara “uma modalidade muito especial do sujeito” (Lacan, 1965/1998Lacan, J. (1998). A ciência e a verdade. In Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 869-892). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1965), p. 875). Veremos como isto se ordena a partir da aproximação de Lacan com a linguística estrutural.

O estudo da língua antes de Saussure preconizava, em suma, que sua função era a comunicação através da formatação das palavras a partir das coisas presentes na natureza. É sobre este fato que a linguística estrutural irá se rebelar, visto que, nesta perspectiva, “o signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica” (Saussure, 1916/2012Saussure, F. (2012). Curso de linguística geral. São Paulo, SP: Cultrix (Trabalho original publicado em 1916)., p. 106). Assim, como nos afirma François Dosse (1991/1993Dosse, F. (1993). História do estruturalismo: o campo do signo, 1945/1966 (Vol. 1). São Paulo, SP: Ensaio. (Trabalho original publicado em 1991).), o que Saussure promove é o surgimento de um método de leitura da língua que unificará diversos saberes sob o crivo da estrutura e que se constitui a partir de “uma interpretação da língua que a coloca resolutamente do lado da abstração para melhor a separar do empirismo e das considerações psicologizantes” (p. 66-67).

O conceito de signo em Saussure, com isso, passa a indicar a relação entre uma imagem acústica e um conceito, que também podemos chamar, respectivamente, de significante e significado. O surgimento deste corte epistemológico no modo de pensar o signo será sustentado por dois princípios fundamentais, a saber, o princípio de arbitrariedade e o princípio de linearidade significante.

O primeiro princípio, como nos indica Saussure (1916/2012Saussure, F. (2012). Curso de linguística geral. São Paulo, SP: Cultrix (Trabalho original publicado em 1916).), diz respeito ao fato de que a relação estabelecida entre significante e significado, no signo linguístico, não é necessária, mas arbitrária. “Assim, a ideia de ‘mar’ não está ligada por relação alguma interior à sequência de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente bem por outra sequência, não importa qual” (Saussure, 1916/2012Saussure, F. (2012). Curso de linguística geral. São Paulo, SP: Cultrix (Trabalho original publicado em 1916)., p. 108).

Para dar um exemplo deste princípio, Saussure se vale da palavra bouef, que podemos traduzir por ‘boi’, em português. Se pegarmos a variação do francês em outras regiões, encontraremos significantes para a palavra boi como “b-ö-f de um lado da fronteira franco-germânica, e o-k-s (Ochs) do outro” (Saussure, 1916/2012Saussure, F. (2012). Curso de linguística geral. São Paulo, SP: Cultrix (Trabalho original publicado em 1916)., p. 108). Com isso, somos levados a perceber como o princípio de arbitrariedade revoga qualquer tentativa de atribuir uma relação natural e necessária entre significante e significado.

Quanto ao princípio do caráter linear do significante devemos entendê-lo a partir do fato de que “o significante, sendo de natureza auditiva, desenvolve-se no tempo, unicamente, e tem as características que toma do tempo: (1) representa uma extensão, e (2) essa extensão é mensurável numa só dimensão: é uma linha” (Saussure, 1916/2012Saussure, F. (2012). Curso de linguística geral. São Paulo, SP: Cultrix (Trabalho original publicado em 1916)., p. 110).

O que depreendemos desses dois princípios do signo linguístico é o que podemos encontrar na teoria do valor de Saussure. O significante e o significado, ou, se quisermos, o som e o pensamento, não constituem um sistema de valores puros. A substância fônica não é uma fôrma sobre a qual o pensamento se acomoda. Trata-se, portanto, de considerar o som como uma massa amorfa, “uma matéria plástica que se divide, por sua vez, em partes distintas, para fornecer os significantes dos quais o pensamento tem necessidade” (Saussure, 1916/2012Saussure, F. (2012). Curso de linguística geral. São Paulo, SP: Cultrix (Trabalho original publicado em 1916)., pp. 158-159).

Neste sentido, Benveniste (1976Benveniste, É. (1976). Problemas de linguística geral. São Paulo, SP: Editora Nacional., p. 56) nos afirma que:

o significante e o significado, a representação mental e a imagem acústica são, pois, na realidade as duas faces de uma mesma noção e se compõem juntos como o incorporante e o incorporado. O significante é a tradução fônica de um conceito; o significado é a contrapartida mental do significante. Essa consubstancialidade do significante e do significado garante a unidade estrutural do signo linguístico.

Colocar isso em evidência é adotar uma postura abstrata em relação à língua, ou seja, a língua passa a ser tomada a partir da noção de sistema que, por sua vez, é inapreensível pela observação, mas que não deixa de se fazer operar em todo ato de fala. Desse modo, não há relação direta entre significante e significado, mas sim produção de sentido através de um jogo de oposições.

Vejamos o famoso exemplo de Saussure (1916/2012Saussure, F. (2012). Curso de linguística geral. São Paulo, SP: Cultrix (Trabalho original publicado em 1916).) sobre a palavra “carneiro”. Sabemos que se trata tanto de um animal, quanto de um alimento (quando a relacionamos com a possibilidade de se alimentar). Assim, no francês, mouton (carneiro), e no inglês, sheep (carneiro), temos a mesma significação, mas não temos o mesmo valor: enquanto o francês usa mouton indiscriminadamente, o inglês se utiliza da palavra mutton - e não sheep - quando necessita se referir a um carneiro posto à mesa para alimentação. Isto significa que “a diferença de valor entre sheep e mouton ou carneiro se deve a que o primeiro tem a seu lado um segundo termo, o que não ocorre com a palavra francesa ou portuguesa” (Saussure, 1916/2012Saussure, F. (2012). Curso de linguística geral. São Paulo, SP: Cultrix (Trabalho original publicado em 1916)., p. 163).

O que a teoria do valor de Saussure advoga é a ilusão em que se cairia se passássemos a analisar a natureza do signo apenas no que diz respeito à união de determinado som com determinado conceito. Se assim o fizéssemos, estaríamos isolando o signo linguístico do sistema a que pertence, o que seria o mesmo que “acreditar que é possível começar pelos termos e construir o sistema fazendo a soma deles, quando, pelo contrário, cumpre partir da totalidade solidária para obter, por análise, os elementos que encerra” (Saussure, 1916/2012Saussure, F. (2012). Curso de linguística geral. São Paulo, SP: Cultrix (Trabalho original publicado em 1916)., p. 160).

Podemos, a partir desses delineamentos, afirmar que o significante linguístico, em Saussure, não é de modo algum tomado por substancialidade: ele é incorpóreo, destituído de propriedades intrínsecas, só podendo ser apreendido como aquilo que se constitui a partir de um jogo de oposições com outros significantes. É aqui que nos autorizamos trazer à luz do nosso trabalho o axioma de Lacan, emprestado de Roman Jakobson (1974Jakobson, R. (1974). Linguística e comunicação. São Paulo, SP: Cultrix.), e apresentado no seminário sobre psicoses: “o significante, como tal, não significa nada” (Lacan, 1956/1985Lacan, J. (1985). O seminário: livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-1956), p. 209).

O que Lacan promove ao trazer o significante esvaziado de propriedades para o interior da experiência analítica diz respeito, em certa medida, à sua preocupação com a relação da psicanálise com o campo da ciência e o seu consequente distanciamento das tendências de naturalização do inconsciente. É assim o que se observa na física moderna, por exemplo: o significante não cumpre ali a função de significação. Desse modo, Lacan nos adverte: “vocês estarão errados em crer que as pequenas fórmulas de Einstein que põem em relação a massa de inércia com uma constante e alguns expoentes tenham a menor significação. É um puro significante” (Lacan, 1956/1985Lacan, J. (1985). O seminário: livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-1956), p. 211).

Com isso, Lacan, no seu retorno à Freud, nos fornece uma chave de leitura ao indicar que o que se trata na experiência da psicanálise não é a busca por significações, mas sim a prevalência da materialidade significante, rebelde a qualquer rigidez de acoplamento ao significado. Desse modo, “o sentido da descoberta analítica não é simplesmente o de ter achado significações, mas o de ter estado muito mais longe do que jamais esteve em sua leitura, a saber, até o significante” (Lacan, 1956/1985Lacan, J. (1985). O seminário: livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-1956), p. 225).

Quanto a isto, caberia à teoria psicanalítica, se valendo da ciência da linguística, delimitar a leis gerais que regem o estatuto do significante. É aqui que nos reportamos à teoria do valor de Saussure para indicar que o significante, impedido de valor intrínseco, só se apreende em um jogo de relações opositivas:

o significante-homem como o significante-mulher são coisas diferentes de uma atitude passiva e atitude ativa, atitude agressiva e atitude cedente, outra coisa que comportamentos. Há sem dúvida um significante escondido aí atrás que, é claro, não é absolutamente em parte alguma encarnável, mas que está assim mesmo encarnado o mais justo possível na existência da palavra homem e da palavra mulher. (Lacan, 1956/1985Lacan, J. (1985). O seminário: livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-1956), p. 226, grifo nosso)

Assim, o axioma “o significante, como tal, não significa nada”, indica o “fato de ser em si mesmo sem significação própria” (Lacan, 1956/1985Lacan, J. (1985). O seminário: livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-1956), p. 227), ou seja, o significante não presta à produção da identidade, mas única e exclusivamente à produção da diferença. Lacan, com isso, irá encontrar nos desenvolvimentos de Jakobson (1974Jakobson, R. (1974). Linguística e comunicação. São Paulo, SP: Cultrix.) o que concerne à leitura dos fonemas que se dão não pela materialidade em si, mas por sua oposição lógica, na medida em que a dado fonema se tornaria inevitável a presença de outro que se opõe.

Ora, não vemos aqui ponto de compatibilidade com a assim chamada ciência moderna que, por seu turno, opera no mundo um esvaziamento da substância? Podemos nos autorizar a responder afirmativamente se levarmos em consideração que a física matemática passa a ser sua referência maior. Para Marco Antonio Coutinho Jorge (2000/2008Jorge, M. A. C. (2008). Fundamentos de psicanálise de Freud a Lacan: as bases conceituais (Vol. 1). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 2000)., p. 69), o encontro de Lacan com a linguística se insere em uma “busca de cientificidade para a psicanálise, almejada por Lacan de modo muito particular, ou seja, ao situar de maneira nova a questão do sujeito do inconsciente” (itálico nosso). Então vejamos que ao se aproximar do estruturalismo linguístico, Lacan não procurava enquadrar a psicanálise em um programa científico restrito, mas sim delimitar as coordenadas de seu objeto: o sujeito do inconsciente.

Para tanto, para tornar esse intento possível, foi necessário que o psicanalista subvertesse a linguística saussureana em dois pontos fundamentais: inserindo no signo linguístico a categoria de sujeito e concedendo primazia ao significante no signo linguístico.

O sujeito sem qualidades da psicanálise

A subversão que Lacan promove no signo linguístico de Saussure é o que nos leva a afirmar que o significante lacaniano não é homólogo ao saussuriano. Quanto ao primeiro ponto, se, para Saussure, o advento do sentido no signo linguístico deve ser inserido em sua teoria do valor, indicando que a matéria fônica, amorfa por natureza, e o pensamento, também amorfo e indistinto, se relacionam a partir de um princípio arbitrário - “trata-se, antes, do fato, de certo modo misterioso, de o ‘pensamento-som’ implicar divisões e de a língua elaborar suas unidades constituindo-se entre duas massas amorfas” (Saussure, 1916/2012Saussure, F. (2012). Curso de linguística geral. São Paulo, SP: Cultrix (Trabalho original publicado em 1916)., p. 159, itálico nosso) -, para Lacan, a este misterioso podemos reportar a atividade do sujeito do inconsciente.

Paul-Laurent Assoun (1996Assoun, P.-L. (1996). Metapsicologia freudiana: uma introdução. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.) nos afirma que é justamente ali que Lacan retorna a Freud, que estabelece uma conjugação epistemológica entre a metapsicologia freudiana e a linguística estrutural de Saussure. Todavia, o que se estrutura é uma articulação que não pretende incluir a psicanálise no interior da teoria linguística ou vice-versa. O problema que aqui se coloca pode ser resumido no seguinte projeto:

trata-se, pois, de determinar cuidadosamente o ponto preciso onde se legitima a contribuição da psicanálise e onde se esboça a necessidade de implicá-la num debate cujos termos, de partida, ela não define, mas cujas tramas ela reencontra por suas vias próprias (Assoun, 1996Assoun, P.-L. (1996). Metapsicologia freudiana: uma introdução. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 77).

É desse modo, quanto à inserção do sujeito no campo da linguística, que Lacan, no seu seminário Mais, ainda, irá propor uma cisão com o linguista Jakobson, fundando o neologismo linguisteria, campo propriamente psicanalítico, na medida em que não se trata de outra coisa senão de priorizar a descoberta freudiana: o sujeito do inconsciente. Assim:

se consideramos tudo que, pela definição da linguagem, se segue quanto à fundação do sujeito, tão renovada, tão subvertida por Freud, que é lá então que se garante tudo que de sua boca se afirmou como o inconsciente, então será preciso, para deixar a Jakobson seu domínio reservado, forjar alguma outra palavra. Chamarei a isto de linguisteria. (Lacan, 1972/2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1972-1973)., p. 22)

Articulado a isso podemos trazer um segundo axioma de Lacan - “o significante é o que representa o sujeito para outro significante” - e ressaltar nele a subversão que se opera ao isolar no signo linguístico de Saussure a primazia do significante que, como tal, não possui realidade intrínseca e a inserção do sujeito entre significantes esvaziados de qualidades.

A representação em algoritmo do signo linguístico que Saussure (1916/2012Saussure, F. (2012). Curso de linguística geral. São Paulo, SP: Cultrix (Trabalho original publicado em 1916)., p. 161) nos fornece é: significado/significante. Que podemos ler significado sobre significante. Como é sabido, o que promove Lacan é sua inversão, concedendo maior valor ao significante. Podemos notar que em seu escrito A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, Lacan (1957/1998Lacan, J. (1998). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 496-536). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957), p. 500) tomou o algoritmo saussuriano já no seu avesso: “S/s, que se lê: significante sobre significado, correspondendo o “sobre” à barra que separa as duas etapas”.

Assim:

o inconsciente é, no fundo dele, estruturado, tramado, encadeado, tecido de linguagem. E não somente o significante desempenha ali um papel tão grande quanto o significado, mas ele desempenha ali o papel fundamental. O que com efeito caracteriza a linguagem é o sistema do significante como tal. O jogo complexo do significante e do significado coloca questões à beira das quais nos mantemos, porque não fazemos aqui um curso de linguística, mas vocês entreviram sobre isso bastante até aqui para saber que a relação do significante e do significado está longe de ser, como se diz na teoria dos conjuntos, biunívoca. (Lacan, 1956/1985Lacan, J. (1985). O seminário: livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-1956), p. 139)

Desse modo, chegamos ao fato de que pensado o sujeito do inconsciente como a consequência dos jogos significantes, Lacan está promovendo a emergência de um sujeito sem qualidades, tão caro à descoberta de Freud e sobremaneira distinto das vertentes filosóficas e psicologizantes. Assim, se, como vimos, é da natureza do significante, quando tomado como tal, nada significar, ao alocarmos o sujeito entre os significantes, como no axioma de Lacan (1960/1998Lacan, J. (1998). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In Escritos (V. Ribeiro, trad., p. 807-842). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1960)), estamos a afirmar que não há significante que dê conta de promover a assunção do que é o sujeito, do que é composto, se rebelando a qualquer tentativa de substancializá-lo.

O que se estabelece, dessa forma, no tocante à articulação entre os dois axiomas de Lacan supracitados, pode ser vinculado à tese de que o sujeito da psicanálise e o sujeito da ciência são compatíveis: ambos são destituídos de qualidades. Eis o motivo da descoberta freudiana só ter sido possível em um mundo em que o sujeito foi inaugurado pelo cogito cartesiano afetado pela atividade científica. É nesse sentido que o estatuto do sujeito se encontrará “no âmago da diferença” (Lacan, 1965/1998Lacan, J. (1998). A ciência e a verdade. In Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 869-892). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1965), p. 871); diferença propriamente significante; um sujeito que se encontra no intervalo de S1 (o significante-mestre) e S2 (a bateria significante). Demonstração que se estrutura a partir da implicação de Lacan no debate com a linguística estrutural.

Com isso, concluímos que, antes de nos perguntarmos se a psicanálise se enquadra em um ideal de ciência, observamos em sua construção teórica um encaminhamento que possui compatibilidade lógica com a forma como a ciência moderna encaminha seu campo de problemas. Dessa maneira, não se trata de homogeneizar psicanálise e ciência, mas seguir os passos de Lacan, que afirma ser o esvaziamento de qualidades operado pela ciência moderna a condição de possibilidade de surgimento do sujeito do inconsciente inaugurado pela metapsicologia freudiana.

Porém, ainda nos resta uma pergunta, que pretendemos deixar em aberto para suscitar um campo de investigação a seu respeito: pensando a articulação que Lacan propôs entre psicanálise e ciência durante seu ensino, podemos transpô-la tal e qual para a atualidade? Qual a situação da psicanálise com a ciência atualmente? Como se insere no debate científico tão intensamente presente no âmbito universitário? O debate em torno das classificações nosográficas de tipo DSM e CID, o surgimento de novos campos de problemas científicos presentes na psicologia, principalmente na psicologia cognitiva-comportamental e seu campo de pesquisa altamente baseado em evidências, dotado de novas tecnologias, nos leva a interrogar qual a posição que a psicanálise ocupa neste debate. Assim, com o caminho que desenvolvemos aqui, pretendemos não o esvaziar e dá-lo por encerrado, mas lançar as coordenadas para um debate que está por se fazer a cada dia, tal qual a psicanálise se reinventa a cada encontro clínico.

Referências

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  • 1
    Visto que Descartes foi o pensador que inaugurou a modernidade justamente na medida em que foi o primeiro a rechaçar todo o saber anterior e a considerar as transformações da física Galileana como verdades.
  • 2
    Não pretendemos com este tópico afirmar uma posição final e absoluta de Lacan quanto ao seu diálogo com a linguística. O que visamos aqui é unicamente mostrar como a linguística foi uma das ferramentas para Lacan pensar o sujeito, não promovendo homogeneização entre os campos ou tomando este encontro como o único possível.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2016
  • Aceito
    13 Mar 2017
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