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Pesquisa e ação local: sobre bússola e outros instrumentos de viagem 1 1 O trabalho de pesquisa aqui retratado foi feito numa parceria entre Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas (CEAPG/FGV) e Universidade Federal do ABC (UFABC), com o professor e pesquisador Lucio Bittencourt, bem como dos pesquisadores Roberth Miniguine Tavanti da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Guilherme Vasconcelos do CEAPG/FGV, Murilo Silva e Bruna Moreira da UFABC. Pertencemos a um grupo de pesquisadores que se debruça sobre o tema das vulnerabilidades urbanas e da ação pública nas bordas do município de São Paulo (particularmente, M’Boi e Campo Limpo), em meio à região metropolitana de mesmo nome, nas fronteiras incertas com as demais municipalidades em seu entorno (Cotia, Embu das Artes, Itapecerica da Serra e Embu Guaçu). Nesta etapa de pesquisa, contamos com a colaboração das organizações da região, entre as quais A Banca e as três escolas estaduais, cujos nomes foram alterados por questões institucionais. Nossa perspectiva de investigação das vulnerabilidades e potencialidades enfrentadas pela juventude local elegeu os eixos das práticas culturais e socioeducativas como perspectivas privilegiadas de ação e investigação.

Recherche et action locale : sur le compas et d’autres instruments de voyage

Investigación y acción local: sobre brújula y otros instrumentos de viajen

Resumo

A partir de uma experiência de atuação numa região metropolitana afastada do centro da cidade de São Paulo, discutimos o método de pesquisa utilizado, pautado na proposta de pesquisa-ação. Em 2016, realizamos junto a duas escolas estaduais e uma organização voltada à educação e cultura, 33 oficinas e rodas de conversa com jovens, professores, gestores e agentes culturais. Como resultado, constatamos a fecundidade de ações pautadas pela escuta e reconhecimento de cada um como sujeito de direitos e capaz de posicionamento próprio. Para a formulação da estratégia de ações conjuntas, constatamos que os resultados dependem da construção de vínculos de parceria, de disponibilidade para escuta e da configuração de cada contexto social e institucional. Não sendo possível estabelecer um parâmetro único para todas as situações, a postura do pesquisador se torna a diretriz de seu percurso: sua ética é a bússola necessária para caminhar no mapa do território.

Palavras-chave:
método; pesquisa-ação; educação; cultura; ética

Résumé

À partir d’une expérience d’action dans une région métropolitaine loin du centre de la ville de São Paulo, on discute la méthode de recherche utilisée, basant dans la proposition de recherche-action. En 2016, on a fait avec deux écoles d’état et une organisation d’éducation et culture, 33 ateliers et cercles de conversation avec des jeunes, professeurs, gestionnaires et agents culturels. Par conséquent, on constate la fécondité d’actions ponctuées par l’écoute et reconnaissance de chacun comme sujet avec droits et capables de se positionner lui-même. Pour la formulation de la stratégie d’actions conjointes, on constate que les résultats dépendent de la construction de liens de partenariat, de disponibilité à l’écoute et de la configuration de chaque contexte social et institutionnel. Compte rendu qui n’est pas possible d’établir un paramètre unique pour toutes les situations, la position du chercheur devient la directrice de son parcours : son éthique est le compas nécessaire à la marche dans le carte du territoire.

Mots-clés :
méthode; recherche-action; éducation; culture; éthique

Resumen

A partir de una experiencia de actuación en una región metropolitana apartada del centro de la ciudad de São Paulo, discutimos el método de investigación utilizado, pautado en la propuesta de investigación-acción. En 2016, realizamos en dos escuelas estaduales y una organización orientada a la educación y cultura 33 oficinas y rodas de conversa con jóvenes, profesores, gestores y agentes culturales. Como resultado, constatamos la fecundidad de acciones pautadas por la escucha y reconocimiento de cada uno como sujeto de derechos y capaz de posicionamiento propio. Para la formulación de la estrategia de acciones conjuntas, constatamos que los resultados dependen de la construcción de vínculos de colaboración, de la disponibilidad para escucha y de la configuración de cada contexto social e institucional. No siendo posible establecer un parámetro único para todas las situaciones, la postura del investigador se vuelve la directriz de su recorrido: su ética es la brújula necesaria para caminar en el mapa del territorio.

Palabras clave:
método; investigación-acción; educación; cultura; ética

Abstract

From an experience in a region away from downtown São Paulo, Brazil, we discuss the research method used, based on the action research proposal. In 2016, along with two State schools and an organization devoted to education and culture, we developed 33 actions between workshops and round-table discussions with young people, teachers, managers, and cultural agents. As result, we could see the fruitfulness of actions guided by the listening and recognition of each person as a subject of law, capable of standing up for themselves. For the creation of the joint action strategy, we found out that the results depend on constructing partnership bonds as well as a willingness to listen and the configuration of each social and institutional context. Since it is not possible to establish a single parameter for all situations, the researcher’s position becomes their guideline: their sense of ethics is the compass needed to travel through the map of the territory.

Keywords:
method; action research; education; culture; ethics

Introdução

A questão do método é um tema que segue em debate em diferentes campos das ciências humanas sobretudo quando são utilizadas estratégias ditas menos estruturadas. Entre esses campos, existem modos de investigação que se propõem a incluir a participação ativa e a intervenção do pesquisador no meio suscitaram discussão, demandando análise sobre o tema. Na tentativa de contribuir com o debate, este texto pretende definir e caracterizar o método de pesquisa-ação praticado numa experiência de trabalho voltado ao campo-tema (Spink, 2003Spink, P. K. (2003). Pesquisa de campo em psicologia social: uma perspectiva pós-construcionista. Psicologia & Sociedade, 15(2), 18-42. doi: 10.1590/S0102-71822003000200003
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) da juventude, desenvolvido há quatro anos na região de M’Boi Mirim e proximidades. Trata-se de um contexto marcado por distintas vulnerabilidades (Spink, 2014), mas também por potencialidades, que não serão aqui desenvolvidas (para caracterização geral, ver Matheus & Daidone, no prelo; Spink, 2014), mas não deixarão de se fazer presentes como elementos determinantes do território investigado e, consequentemente, da trajetória construída.

Como Becker (1993Becker, H. S. (1993). Métodos de pesquisa em ciências sociais (2a ed., M. L. Borges, trad.). São Paulo, SP: Hucitec.) propõe, apostamos na importância de cada pesquisador assumir a tarefa de não apenas discutir os resultados obtidos, delegando a outrem a discussão sobre o método utilizado, mas, inversamente, incluir na discussão as questões metodológicas que dizem respeito a sua prática. Entendemos que cada configuração metodológica é uma construção singular e cabe a cada pesquisador, em sua artesania, discutir sua especificidade, conforme seus caminhos, o entendimento que constrói e a perspectiva de análise que assume.

É sobre esse fazer, pelas veredas da zona sul da capital paulistana, que aqui nos detemos, a fim de refletir sobre o método utilizado, no qual a perspectiva de pesquisa se atrela à ação social. Almejamos, com isso, construir sentidos para nossa trajetória, contribuindo com a visibilidade das ações dos agentes envolvidos e apontar os desafios que acompanham encontros improváveis entre sujeitos de diferentes regiões da cidade, nós e eles, se assim destacamos as duas margens do rio que nos separa.

O método

Ao nos aproximarmos da região, logo notamos uma recorrente postura de ressalva por parte dos moradores de M’Boi Mirim diante dos vários pesquisadores que relatavam procurá-los, tendo em vista a alardeada vulnerabilidade civil da região (em 1996 foi noticiada como a região mais violenta do mundo, pela OMS). Um dito ali repetido serviu como alerta: “nós formamos doutores, mas não nos formamos doutores”. Teriam eles lido Bourdieu e estariam vacinados contra o risco da reprodução da desigualdade por meio do capital simbólico produzido no meio científico (Bourdieu, 2004Bourdieu, P. (2004). Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico (D. B. Catani, trad.). São Paulo, SP: Unesp.)? Relataram que muitos pesquisadores passam por ali, mas poucos permanecem na região, que pouco se modifica com a formação dos novos especialistas em dilemas sociais ali geridos.

A queixa é uma reação dos moradores ao estigma de violência que marca a região na cena urbana paulistana, a qual enfrenta cotidianamente experiências de ameaças e medo. Com a crítica aos pesquisadores que lá circulam, denunciam práticas reprodutoras de desigualdade como a violência simbólica que muitos pesquisadores, de modo deliberado ou não, acabam causando àqueles que são objeto de seu estudo, confirmando assim uma tradição de pesquisa no campo social, como lembra Haguette (1999Haguette, T. M. F. (1999). Metodologias qualitativas na sociologia (6a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.). Alerta a autora que, quando a construção de conhecimento no campo social se dá de modo unilateral, por meio da separação entre sujeito e objeto, de modo que o pesquisador assume o lugar do sujeito da investigação e atribui ao pesquisado a função de objeto passivo, mantém-se uma hierarquia de posições na produção do conhecimento que vem confirmar e revalidar a desigualdade social que impera no corpo social. Na posição de portador do saber produzido naquele contexto, o pesquisador incorpora o valor de sua produção a espaços já privilegiados da estrutura social, sem contribuir com a transformação das realidades investigadas, reproduzindo assim a equação de forças aí atuantes (Haguette, 1999).

Seja como vítimas de um processo de urbanização conturbado e segregador seja como ameaça ao bem-estar e desenvolvimento social, fruto de dilemas sociais (tais como gravidez precoce, drogadição e crime organizado), os moradores veem-se reiteradamente descritos em sua condição de vulnerabilidade, analisada e retratada por estrangeiros que se tornam detentores de um saber-poder acerca de suas realidades. Ainda que possam estar munidos de boas intenções, pesquisadores externos que assumem o lugar de portadores do saber acerca da realidade vivida por outrem, delegando a estes exclusivamente a função de fornecedores dos dados a serem analisados, acabam por contribuir para a vulnerabilidade dos sujeitos locais, pois negam a capacidade destes de produzir saberes e de formular saídas para os dilemas ali enfrentados. Trata-se, pois, do processo de reificação do fenômeno estudado.

Tornou-se premente construir outra trajetória. Almejamos, então, estabelecer uma relação entre pesquisador e pesquisado capaz de romper com esta lógica e encontrar uma forma de produção de conhecimento que sirva como recurso de combate à desigualdade e não opere a favor de seu incremento. A perspectiva da pesquisa atrelada à ação social foi o caminho escolhido para tanto.

Segundo Haguette, o termo pesquisa-ação foi cunhado por Kurt Lewin na década de 1940, no campo da psicologia social, a partir da crítica à metodologia de pesquisa tradicional nas ciências sociais, tornando-se uma referência na psicologia latino-americana no último quarto do século XX, quando ganhou um caráter político claro, diferente de sua formulação inicial (Haguette, 1999). Tripp (2005Tripp, D. (2005). Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educação e Pesquisa, 31(3), 443-466. doi: 10.1590/S1517-97022005000300009
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), por sua vez, considera incerta a origem do termo e aponta a diversidade de usos em vários campos de pesquisa - como educação, administração, desenvolvimento comunitário, agricultura ou práticas organizacionais -, sem, no entanto, constatar uma uniformidade nas diferentes condutas praticadas. Ainda assim, Tripp (2005) defende a manutenção do termo, a partir de uma perspectiva crítica de seus usos; propõe a pesquisa-ação como “uma forma de investigação-ação que utiliza técnicas de pesquisa consagradas para informar a ação que se decide tomar para melhorar a prática” (p. 447), que está submetida, por sua vez, à avaliação comum a outras práticas de pesquisa acadêmica, como a avaliação entre pares.

Ao buscar o rompimento com a pretensa neutralidade do pesquisador e com a separação entre sujeito e objeto, esse método de trabalho defende não somente a participação ativa e deliberada no campo de pesquisa, mas, em última instância, sua transformação efetiva, levando-se em conta as demandas locais e a participação ativa dos sujeitos pesquisados, tanto neste processo de transformação quanto na produção de conhecimento que daí venha a resultar. É uma forma de atuação na realidade local na qual a dimensão política torna-se parte da construção do conhecimento, ou melhor, a produção do conhecimento passa a fazer parte dos processos políticos e sociais, como lembra M. J. Spink (2007Spink, M. J. P. (2007). Pesquisando no cotidiano: recuperando memórias de pesquisa em psicologia social. Psicologia & Sociedade, 19(1), 7-14. doi: 10.1590/S0102-71822007000100002
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; ver também Melo, Maia Filho, & Chaves, 2016Melo, A. S. E., Maia Filho, O. N., & Chaves, H. V. (2016). Lewin e a pesquisa-ação: gênese, aplicação e finalidade. Fractal: Revista de Psicologia, 28(1), 153-159. doi: 10.1590/1984-0292/1162
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).

Mas qual seria a transformação social propriamente dita? Quais parâmetros seriam necessários e suficientes para conceber a efetiva transformação de determinada realidade social? A questão foi e é tema de debate entre pesquisadores, extrapolando os propósitos deste trabalho. De nossa parte, defendemos que mudanças sociais implicam em processos que ocorrem em diferentes âmbitos e, com Rancière, consideramos como ação política aquela que põe em xeque a lógica da desigualdade, vindo afirmar e realizar em ato a condição de igualdade entre os humanos (1996). Entendemos que, apesar da prevalência de uma estrutura social desigual produtora de segregação, o momento de suspensão de sua lógica opera como ação que atua em favor de uma transformação local entre os agentes envolvidos em cada contexto social, conforme os sentidos produzidos por tais experiências pelos e para os diferentes sujeitos. Como tal ação pode ocorrer e até que ponto ela se efetiva são algumas das questões que aqui pretendemos discutir.

Cada método de pesquisa se sustenta, fundamentalmente, numa ética, conforme seus supostos, fundamentos e determinações. No caso da pesquisa articulada com a ação social, que não estabelece previamente os passos da investigação, mas busca construí-los ao longo do processo, seus parâmetros irão depender, em última instância, da posição assumida pelo pesquisador nas redes de relações estabelecidas diante das realidades das quais participa, conforme o entendimento que faz dos dilemas sociais que as configuram e das apostas que sustenta em sua ação e na de seus interlocutores. A ética é, portanto, e em última instância, a bússola do pesquisador: com ela poderá guiar-se em territórios estrangeiros, determinando o caminho a ser trilhado num mapa incompleto e em constante mudança.

Atento à importância da questão, o poder público brasileiro buscou há alguns anos instrumentos legais capazes de estabelecer parâmetros comuns às diferentes condutas de pesquisa, o que resultou no código de ética instituído por meio da Plataforma Brasil. É uma estratégia de regulamentação que visa, de modo geral, evitar qualquer tipo de dano às pessoas direta ou indiretamente envolvidas na pesquisa. Mas o compromisso não está ali garantido, apenas os limites da atitude do pesquisador em sua prática de pesquisa, de um ponto de vista legal. Entendemos que “mais do que obedecermos às normas e procedimentos impostos por comitês de ética (ou seja, à ética prescrita), constantemente temos que nos questionar sobre os efeitos que nossas pesquisas produzem”, pois uma pesquisa é, antes de tudo, “uma prática que interfere em outras práticas” (Cordeiro, Freitas, Conejo, & Luiz, 2014Cordeiro, M. P., Freitas, T. R., Conejo, S. P., & Luiz, G. M. (2014). Como pensamos ética em pesquisa. In M. J. P. Spink, J. I. M. Brigagão, V. L. V. Nascimento & M. P. Cordeiro (Orgs.), A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas (pp. 31-56). Rio de Janeiro, RJ: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais., pp. 36-41). Tal posicionamento não dispensa o cuidado com prescrições éticas (como explicitação da proposta da pesquisa e dos pedidos de concordância), mas indica que estes não são suficientes para a prática do pesquisador em seu campo de trabalho.

Spink, ao redefinir o campo de pesquisa não como lugar propriamente dito, mas como método, lembra que o trabalho de pesquisa ganha envergadura quando pode explorar as diversas materialidades simbólicas, discursos ou sinais que possam surgir em torno de um determinado tema, que então se configura como campo-tema (Spink, 2003). No entanto, as possibilidades de investigação vão depender, por sua vez, do compromisso do pesquisador com seu campo-tema, tornando-o mais ou menos disponível para identificar os sinais que venham a surgir no percurso de sua pesquisa, aproveitando-os como brechas de investigação. Seu compromisso não está garantido pela seriedade diante de sua tarefa, nem pelo rigor com as práticas de pesquisa, estabelecidas institucionalmente ou não, pois dizem respeito, em última instância, aos princípios, valores e compromissos éticos que o pesquisador está imbuído e que o inserem na função social que se atribui em sua ação. Nesse sentido, a visão de homem e de mulher e a visão de mundo cultivadas pelo pesquisador e, consequentemente, a concepção de ordem social e interação entre bem público e Estado acabam por ser determinantes nas estratégias de ação e pesquisa adotadas. Por isso estudamos, lemos e dialogamos com autores que abordam a condição humana e seu contexto histórico e, assim, operam como interlocutores dos dilemas sociais que desafiam a realidade urbana brasileira.

Entendemos o humano a partir de alguns aspectos prementes, que não propomos nem como universais nem como objetivamente melhores (o que nos levaria a uma imposição de força; ver Cordeiro et al., 2014Cordeiro, M. P., Freitas, T. R., Conejo, S. P., & Luiz, G. M. (2014). Como pensamos ética em pesquisa. In M. J. P. Spink, J. I. M. Brigagão, V. L. V. Nascimento & M. P. Cordeiro (Orgs.), A produção de informação na pesquisa social: compartilhando ferramentas (pp. 31-56). Rio de Janeiro, RJ: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais., p. 42), mas como nossos, aqueles que nos balizam em nossas ações e que se mostram favoráveis à promoção da democracia (Rancière, 2014Rancière, J. (2014). O ódio à democracia (M. Echalar, trad.). São Paulo, SP: Boitempo.).

Em primeiro lugar, entendemos o sujeito social como sujeito ativo, capaz de tomar a palavra, posicionando-se diante de sua realidade, bem como de criar alternativas para os impasses que vive. Esse é um dos fundamentos de nossa empreitada. Certeau (2005Certeau, M. (2005). A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. (18a ed., E. F. Alves, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. ) é um dos autores que trabalham nesta perspectiva. Com ele, entendemos que as forças sociais preponderantes podem exercer um domínio político e social sobre cada sujeito, mas este não se submete de modo passivo, na medida em que tem a capacidade de criar cotidianamente táticas de enfrentamento: com seu discurso, sua memória, com lendas e ditos populares subverte a lógica do poder dominante, nos caminhos informais de viabilização econômica, ante a violência policial ou em tantos desafios enfrentados localmente. A condição de anonimato dos sujeitos de tais ações se evidencia na invisibilidade que encontram nos meios de comunicação hegemônicos em nossas sociedades e nas instâncias sociais que deliberam sobre as diretrizes das políticas sociais implementadas no meio urbano. Buscamos entender a lógica desses sujeitos anônimos, considerando-os, desde sempre, agentes criativos em sua ação cotidiana, em potência ou em ato, e que estabelecem, nas palavras de Certeau (2005), a “arte de viver no campo do outro” (p. 81). Na disputa desigual nos territórios, sujeitos anônimos mantêm-se vivos ao buscarem, de tantas formas quanto o enfrentamento exigir, a conquista de espaços para sua circulação (geográfica e social), a construção de laços sociais, a afirmação simbólica de sua cultura e o sentido de sua existência particular e coletiva.

Segundo ponto: entendemos que igualdade é o fundamento que sustenta a condição humana - como propõe Rancière, e sua defesa é um ato político diante do qual não há posição neutra. Inspirado na bandeira da ilustração, o autor argumenta a favor da igualdade por meio da aposta na capacidade mental que seria equitativamente distribuída a todos os humanos, em igual proporção. Entende que, se não é possível comprovar cientificamente qual a capacidade mental de qualquer indivíduo - a não ser seus efeitos, conforme as condições de vida experimentadas -, melhor será apostar na igualdade entre as inteligências, considerando os efeitos deste princípio, em detrimento daquele que advoga em favor da diferença. Isso porque anunciar a inteligência humana de alguém é, sobretudo, um ato de nomeação, a partir do qual cada sujeito é reconhecido por um outro e pode então ele próprio reconhecer-se em suas capacidades, conforme o uso de sua vontade e as necessidades a que está exposto (Rancière, 2013Rancière, J. (1996). O desentendimento: política e filosofia (A. L. Lopes, trad.). São Paulo, SP: Editora 34.). O anúncio da igualdade, então, é a aposta que se faz na capacidade de cada sujeito poder responder por sua ação, poder agir de acordo com sua vontade caso o meio lhe dê condições para fazer uso de seus recursos próprios. Finalmente, a defesa da condição de igualdade se dá frente à desigualdade que impera em cada cena social, conforme o jogo de forças que separa uns e outros em cada contexto, e da impossibilidade de neutralidade diante desta dimensão da existência humana.

O movimento a partir do qual cada sujeito se reconhece como agente, na acepção primeira do termo (sujeito de sua ação), configura a experiência de emancipação. Ocorre quando cada um reconhece sua capacidade de ação e toma a palavra, posicionando-se diante do Outro, assumindo-se possuidor de direitos e em condição de igualdade mediante qualquer outro (Rancière, 2013Rancière, J. (2013). O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual (3a ed., L. Valle, trad.). Belo Horizonte, MG: Autêntica.). Como lembra o autor, essa tomada de consciência dependerá, no entanto, da reciprocidade do reconhecimento que cada um pode experimentar, pois o humano é uma vontade dotada de inteligência, mas esta depende de um meio que permita sua realização.

Entendemos que nosso olhar não é ingênuo nem neutro e o uso que dele fazemos produz efeitos na cena social. Como pesquisadores, entendemos que nossa ação possui uma dimensão política, que se explicita em nossa prática e em nosso discurso, quando estes sustentam ou não o reconhecimento da igualdade dos agentes sociais que somos e com os quais trabalhamos. Posto isso, tomamos a emancipação do sujeito social como meta de nosso trabalho, perspectiva que adotamos tanto para nós mesmos quanto para todos aqueles com os quais interagimos.

Essa é nossa bússola. Spink (2003Spink, P. K. (2003). Pesquisa de campo em psicologia social: uma perspectiva pós-construcionista. Psicologia & Sociedade, 15(2), 18-42. doi: 10.1590/S0102-71822003000200003
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), em sua perspectiva pragmática, propõe a construção do método como sendo a possibilidade de responder a três perguntas: como, onde e o que está sendo pesquisado. Sim, esse é um caminho fecundo para a narrativa de percurso, que permite localizar as variáveis necessárias para compor o mapa do viajante. Porém, acreditamos que a bússola da trajetória dependerá de uma quarta questão: por quê. É em função da finalidade de uma ação, regida pelo compromisso de cada pesquisador diante do modo como percebe sua realidade e como se posiciona mediante seus dilemas que a diretriz de seu percurso irá se definir. É ali que a direção do trabalho será construída, definindo-se assim os parâmetros em torno dos quais estratégias específicas serão construídas e redefinidas, conforme o transcorrer do percurso e as surpresas que este venha a trazer. Entendemos que a visão de mundo e os valores e princípios com os quais nos comprometemos serão determinantes no entendimento que fazemos de cada realidade, bem como de nosso compromisso diante desta, estabelecendo assim os sentidos de nossa trajetória.

Para o ajuste fino de nosso equipamento de pesquisa serão necessários outros recursos. Nossa bússola tem nos levado a atuar na dimensão local e cotidiana do território, pois entendemos que neste âmbito é possível passar do anonimato do sujeito social às potências das táticas artesanalmente construídas. Sobre o cotidiano, entendemos que é no percurso extensivo das relações localmente construídas que se podem acessar os sentidos das produções locais junto a seus autores. Apostamos nessa diretriz como estratégia necessária para alcançar os “códigos e expectativas” nas redes de relações, no cotidiano em que estas se realizam; desta perspectiva, como lembra Spink (2007Spink, M. J. P. (2007). Pesquisando no cotidiano: recuperando memórias de pesquisa em psicologia social. Psicologia & Sociedade, 19(1), 7-14. doi: 10.1590/S0102-71822007000100002
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), não se trata de uma investigação do cotidiano, mas, fundamentalmente, no cotidiano.

Entendemos, porém, que a participação no cotidiano não nos torna parte da comunidade local, como se fôssemos um de seus membros. Por mais que possamos compartilhar “interesses e afetos” (Kluckhohn, 1940, citado em Haguette, 1999Haguette, T. M. F. (1999). Metodologias qualitativas na sociologia (6a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes., p. 70) em determinadas atividades, seguimos em alguma medida estrangeiros a cada realidade local, conforme o histórico de nosso percurso. Todavia, tal posicionamento não é em si um obstáculo para a pesquisa, mas um posicionamento a partir do qual nossa análise se dá, pois entendemos “o estranhamento como elemento fundamental para entender o outro”, como propõe a tradição da etnografia (Menezes & Costa, 2010Menezes, J. A., & Costa, M. R. (2010). Desafios para a pesquisa: o campo-tema movimento hip-hop. Psicologia & Sociedade, 22(3), 457-465. doi: 10.1590/S0102-71822010000300006
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, p. 460). Como a tradição de pesquisas em ciências humanas tem alertado, não teremos então a perspectiva de instigar uma realidade social em si, nem a rede de relações que em cada localidade se estabelece, mas sim nossa interação com cada um destes universos. O estranhamento, portanto, é traço que acompanha a experiência de compartilhamento entre sujeitos que não são propriamente pares num dado contexto, mas se aproximam em torno de propostas afins.

Entendemos que a relação entre nós pesquisadores e os sujeitos pesquisados está marcada, concomitantemente, pela diferença e pela igualdade. Pela igualdade, tendo em vista o fundamento ontológico de nossa condição primeira, pois, a partir de Rancière, entendemo-nos como iguais em direito (à palavra) e em capacidade (de ação e posicionamento) a cada ente humano. A igualdade, portanto, é o modo como nos dispomos a escutar nossos semelhantes. A diferença, por sua vez, se dá em função do histórico particular e da inserção sociocultural que cada um de nós carrega como sua bagagem, inscrevendo-nos nas distintas realidades que compõem cada cena social.

É da perspectiva de compartilhar estranhamento e igualdade com diferenças que buscamos estabelecer relações de reciprocidade nas trocas estabelecidas com os agentes locais: buscamos conhecer hábitos, códigos, fluxos e conflitos vividos, e dispomos, em contrapartida, da escuta da palavra e das ações, nos sentidos que estes portam, implicando-nos com os desafios das demandas locais, conforme as possibilidades de nossa ação. Almejamos assim, como possibilidade de nossa presença, realizar uma intervenção que ocorre em dois planos: no primeiro, reconhecemos cada sujeito como um ser igual em capacidade de pensamento e de posicionamento próprio, na aposta de oferecer melhores condições a cada um que, no anonimato da cena urbana, busca fazer ato à potência de suas vontades. Num segundo plano, nos dispomos a escutar as demandas locais em suas particularidades e, conforme seu sentido, oferecer apoio às ações almejadas, conforme nossas possibilidades de atuação, de entendimento e a circunscrição de nosso campo-tema (Spink, 2008Spink, P. K. (2008). Pesquisador conversador no cotidiano. Psicologia & Sociedade, 20, 70-77. Edição especial. doi: 10.1590/S0102-71822008000400010
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), como ilustraremos adiante. Quando é possível estabelecer uma relação de troca (entre saberes e ações), conquistamos uma dimensão de reciprocidade nas relações estabelecidas. Tensões, impasses e obstáculos são vividos tanto num quanto noutro plano e a pesquisa se constrói conforme a possibilidade de significação desses percursos.

A bússola é necessária para que um lugar seja alcançado, conforme o tempo disponível e o campo a ser trilhado, contudo, sem material de apoio não tem serventia, pois seu uso depende de outros recursos. O diário de campo é exercício do registro da caminhada, apoio para a inscrição no mapa (sempre mutante) do caminho percorrido. É o lugar onde o exercício fortuito da fala e a tradição oral ganham registro e longevidade; onde a inquietação, a incerteza e ambivalência são possíveis. Para sua depuração, demanda um trabalho de compilação e triagem para que o material heterogêneo e disperso possa articular as contradições

O mapa de viagem, por sua vez, será composto pelo conjunto de elementos que permitem transcrever a trajetória realizada num determinado universo, são eles: os objetivos específicos da pesquisa, definidos em torno do campo-tema eleito; o contexto que deste se depreende; a interação entre pesquisadores e demais agentes envolvidos, mediados pelas anotações dos pesquisadores. Cada um destes elementos contribui para a configuração de uma superfície de entendimento a partir da qual o pesquisador e seus pares podem estabelecer um olhar sobre o universo vivido/investigado, mediado pela construção simbólica coletivamente estabelecida. As realidades do cotidiano são interpretadas, conforme os parâmetros de pesquisa estabelecidos, tornando-se tangíveis ao uso de pesquisadores e demais agentes.

Como anteparos que servem ao registro das experiências de pesquisa, diário e mapa servem tanto ao exercício reflexivo e investigativo do percurso de pesquisa quanto à lembrança da diferença que cada um possui diante das realidades investigadas. Nesse aspecto, servem ao posicionamento ético do pesquisador a quem cabe lembrar, a cada passo, a impossibilidade de apreensão das realidades propriamente ditas, não sendo então passíveis de apropriação por qualquer suposto especialista.

Tais recursos, no diálogo que estabelecemos, têm sido essenciais para a depuração do material coletado em nossa circulação pela região. Escutamos os discursos por meio de conversas (Spink, 2008Spink, P. K. (2008). Pesquisador conversador no cotidiano. Psicologia & Sociedade, 20, 70-77. Edição especial. doi: 10.1590/S0102-71822008000400010
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) ou de entrevistas abertas, bem como nos momentos imprevistos que surgem em nossa circulação, que então nos dão pistas sobre os sentidos (de vida) artesanalmente construídos na experiência cotidiana dos moradores, sejam eles os jovens ou os agentes locais. É o caminho de acesso à palavra viva que surge na prática oral, palavra inusitada, fragmentada ou irreverente, que é a expressão ou mesmo realização das táticas de enfrentamento às injunções do instituído (Certeau, 2005Certeau, M. (2005). A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. (18a ed., E. F. Alves, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. ). É um método de pesquisa e de ação social que demanda tempo e ação conjunta, em que o resultado depende de uma confluência de fatores não de todo previsíveis, de modo que cada análise será fruto da depuração do percurso realizado, como a precipitação de um processo que se torna tangível somente a posteriori.

Um recorte da experiência de campo

Estamos há cerca de quatro anos atuando na região de M’Boi Mirim como pesquisadores, buscando participar e contribuir com a possibilidade de articulação entre os equipamentos locais. Para tanto, buscamos primeiramente identificar os atores locais envolvidos com práticas democráticas, conforme nossa bússola, voltadas a ações culturais e socioeducativas, a fim de construir um entendimento acerca de suas atividades, objetivos, desafios e possibilidades. Constatamos que nossa aproximação não se tornou possível de imediato, mas gradualmente, à medida que mostrávamos nossa disposição pudemos contribuir e enfrentar os desafios. Foi um caminho construído durante anos, com obstáculos e desvios que não serão aqui detalhados, que resultaram na proposição de relações de parcerias entre nosso grupo de pesquisadores e os agentes locais envolvidos. Tais relações com as organizações e os coletivos adiante descritos se deram a partir de uma perspectiva de troca: aceitavam nossa proposta de pesquisa (produção de saber acadêmico a partir das experiências ali obtidas, calcadas no saber local) ao nos comprometermos na colaboração mediante demandas que apresentavam e que, por algum motivo, não haviam tido a possibilidade de sanar.

Em nossa investigação, percebemos que cada equipamento contatado não apresentava apenas problemas e desafios a serem enfrentados, mas também saberes e estratégias de ação criados e praticados no exercício do combate à condição de vulnerabilidade vivida por jovens e moradores. Constatamos tais recursos na região, de modo geral, mas particularmente nesses equipamentos de educação, cultura e assistência social e decidimos concentrar nossa ação na porção leste de M’Boi Mirim, região intermediária entre Jardim São Luís e Jardim Ângela (Figura 1)2 2 A região de M’Boi Mirim possui 563 mil habitantes (Dados…, 2016) e se divide entre os distritos Jardim Ângela e São Luís. Trata-se de uma porção da cidade cujo adensamento populacional continua aumentando e onde o índice de homicídios, principalmente de jovens, está entre os mais altos do município enquanto as taxas de saneamento básico estão entre as mais baixas (Universidade Estadual de Campinas, 2014). Dada sua grande extensão territorial, elegemos trabalhar em uma parcela intermediária da subprefeitura da região, entre os dois distritos assinalados, conforme consta no mapa apresentado na Figura 1. . Cultura e educação foram eleitos campos privilegiados para a investigação da juventude pois executavam, apesar das dificuldades enfrentadas, ações propositivas com jovens que podiam promover perspectivas para estes em formação que não se reduziam a estigmas de infortúnio. Na etapa inicial da pesquisa, pudemos identificar e sistematizar algumas das estratégias e saberes voltados à educação e formação complementar juvenil, resultando num ensaio que visa contribuir para sua visibilidade (Matheus & Daidone, no preloMatheus, T. C., & Daidone, L. (No prelo). Saberes locais sobre formação de jovens em vulnerabilidade social na região de M’Boi Mirim e proximidades. Revista Pro-Posições.).

Figura 1
Para ilustração espacial, estão assinaladas as localidades das ações realizadas.

Este ano trabalhamos com duas escolas estaduais que possuíam os ciclos do fundamental II e médio e que haviam sido contatadas anos anteriores, em nossa proposta de aproximação de agentes locais voltados à formação de jovens da região e que se dispunham a promover ações em favor de seus objetivos comuns. Quando promovemos encontros entre gestores escolares e da assistência social surgiu a proposta de trabalharmos no universo interno das escolas que mostravam disposição para tanto (Matheus & Daidone, no prelo). Nomeamos aqui com nomes fictícios E. E. Pedro Bardo e E. E. Mariano de Souza, ambas localizadas na porção média da região de M’Boi Mirim, as duas escolas que se dispuseram a este outro trabalho. Cada uma apresentava suas dificuldades internas, tanto em relação à sua equipe profissional, com professores que lecionavam em diferentes escolas, exercendo por vezes diferentes funções, precariedade de recursos materiais, demandas constantes da diretoria regional, como em relação ao entorno adverso, pouco assistido pelo poder público. Os desafios ali enfrentados não eram poucos, mas, ainda assim, havia disposição de vários professores e parte das respectivas equipes gestoras para uma ação que oferecesse melhores perspectivas de aprendizagem aos alunos e apoio aos professores.

A terceira experiência de trabalho conjunto que realizamos este ano se deu com uma organização local com foco em educação e ação cultural. Estratégica por sua localização na posição intermediária na região de M’Boi Mirim, próxima às escolas com as quais trabalhamos, essa organização vinha atuando na região na articulação entre educação e produção cultural - seja promovendo eventos que viessem a promover a cultura local, com seu discurso marcado pela defesa dos direitos humanos e combate à desigualdade, seja promovendo atividades com escolas públicas e particulares voltadas à promoção da cidadania - liberdade de expressão e educação política e social (Banca, 2017Banca, A. Quem somos. (2017). Recuperado de http://www.abanca.org/quem-somos/
http://www.abanca.org/quem-somos/...
). Trata-se de um dos poucos grupos de ação cultural da região que conseguiu se organizar formalmente, possuindo CNPJ, marca de status institucional daquele que está autorizado a negociar com entidades e fontes financiadoras do outro lado do rio.

Nosso contato com a Banca se deu também gradualmente, a partir de encontros em fóruns da região (encontros organizados pela sociedade civil em favor da mobilização social e formação de demandas da região com os poderes públicos). Identificando na ação daquela organização um potencial ímpar para a promoção do desenvolvimento local e do fortalecimento dos discursos de jovens, educadores e agentes culturais, buscamos acompanhar o trabalho do grupo que conduz suas atividades. Numa situação bastante diversa das escolas, notamos a versatilidade de suas ações, a coesão entre seus membros (na época cinco, já tendo sofrido algumas mudanças em seus 16 anos de existência), mas também a fragilidade de sua situação institucional.

Nesta etapa de nosso trabalho, realizada durante o ano de 2016, estabelecemos como perspectiva a realização de ações (oficinas) conjuntas entre nós, pesquisadores, e os agentes locais de quem nos aproximamos, ações que promovessem a troca e construção de saberes visando o combate às vulnerabilidades vividas por jovens na região (sobre vulnerabilidades, ver Spink, 2014Spink, P. K. (2014). Bringing the horizon back in: the mid-range approach to Organizational Studies. Revista Brasileira de Estudos Organizacionais, 1(1), 1-26.). Tal proposta visava levar atividades universitárias para regiões menos providas desse recurso, bem como promover a construção de conhecimento compartilhado, por meio do que chamamos de encontros improváveis, entre atores oriundos de segmentos sociais desiguais e provenientes de territórios afastados entre si numa mesma metrópole (sobre a segregação na metrópole, ver Caldeira, 2000Caldeira, T. P. R. (2000). Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo (F. Oliveira & H. Monteiro, trads.). São Paulo, SP: Editora 34.). Na utopia de nossa proposta, apostamos na construção de relações que permitissem a realização de experiências favoráveis ao reconhecimento mútuo entre sujeitos, que se identificassem numa ação conjunta e então estabelecessem um vínculo de reciprocidade (Ricoeur, 2006Ricoeur, P. (2006). Percurso do reconhecimento (N. N. Campanário, trad.). São Paulo, SP: Loyola.).

O desafio era grande. Defrontávamo-nos com nossos próprios cacoetes, ao pretender dar visibilidade às questões sociais prementes na região e dar voz a nossos interlocutores locais. Como se não tivessem voz ou visibilidade própria, como se estivessem numa condição passiva aguardando um agente externo que os retirasse de sua suposta imobilidade ou de produzirmos transformação numa realidade, o que denunciava nossa fantasia de sermos os protagonistas desta ação. A disposição para uma relação de compartilhamento e de reciprocidade exigiu a desconstrução de vícios que portávamos, incluindo-nos na realidade a ser transformada. Por outro lado, tal constatação nos permitiu ver o preço da desigualdade diante das possibilidades dos vínculos sociais, na propensão à inércia que caracteriza uma sociedade marcada pela segregação social.

Percebemos que cada relação com cada equipamento enfrenta suas questões específicas, exigindo tempo para que demandas se manifestem e possam se desdobrar (ou não) em atividades que se configurem como oficinas (este nome tão genérico), como rodas de conversa (com temas de discussão específicos), ou simples conversas. Por motivos de concisão, não nos deteremos em cada um deles, fazendo um recorte das atividades em seu conjunto. Foram três percursos distintos que realizamos com diferentes organizações locais (as duas escolas públicas estaduais e uma organização de educação e ação cultural), cada qual conforme o diálogo que possuíamos com seus agentes e da abertura que nos deram em função do compromisso que perceberam em nossa conduta.

Considerações sobre os resultados e conclusão

O significativo aumento das atividades realizadas em relação às inicialmente previstas (oito) indica que a escuta das demandas locais e a disposição para a realização de ações conjuntas entre pesquisadores e agentes locais são condições particularmente favoráveis para a realização de ações específicas nas organizações parceiras. Em outras palavras, a escuta das demandas gera demandas de ação a serem implementadas. Isso vale sobretudo para as organizações de educação investigadas, premidas por dificuldades de várias espécies, tanto interna quanto externamente (ver Matheus & Daidone, no prelo); de modo que a oferta de suporte, para estes, vem atender desafios prementes. No caso da ação junto à organização de cultura e educação, a demanda não tinha a mesma premência e, portanto, a atividade promovida (mapas) funcionou como uma experiência complementar para os participantes do encontro.

Quadro 1
Quadro das oficinas

Do ponto de vista da mobilização dos participantes para cada atividade, o principal resultado indica a demanda por escuta: os diferentes participantes mostraram disposição e aspiração por serem escutados em suas questões específicas: alunos sobre as dificuldades que enfrentam em seu cotidiano para poder construir projetos de vida; professores sobre os desafios de seu ofício, que visa promover a formação escolar de alunos sem tradição familiar de estudo formal extensivo; e, finalmente, jovens moradores de regiões localizadas nas bordas do município por se verem pertencentes à cidade, na qualidade de cidadãos. Tal constatação condiz com a perspectiva de reconhecimento de cada um como sujeito de direitos, com demandas e capacidade de posicionamento próprias. Nesse sentido, a sustentação de uma política de equidade como diretriz de trabalho se mostra particularmente mobilizadora, quando se traduz no modo como as relações são estabelecidas a cada encontro: apresentação dos participantes entre si, oportunidade de escuta e de reciprocidade conforme cada proposta de atividade e manutenção de acordos estabelecidos previamente ou a cada encontro, atribuindo assim legitimidade e peso simbólico às palavras enunciadas.

Num plano específico, a disposição para a ação, entre os participantes, teve variações: mostraram-se mais mobilizados aqueles que não se encontravam premidos por disputas entre pares, com educadores ou agentes locais, vivendo uma situação de conflito que compromete sua disposição para a ação. Em contrapartida, momentos de expressão de aspirações ou tensões favoreceram a identificação entre pares, favorecendo a mobilização para a realização de ações coletivas.

Buscamos assim, neste ensaio, retratar e refletir sobre nossa prática de pesquisa. Entendemos que as ações conjuntas que realizamos com parceiros locais dependem particularmente da qualidade de relação estabelecida com estes, que, por sua vez, é resultado da disponibilidade que possuem para a construção da relação, da interação que praticamos e de nossa capacidade de escuta e mediação diante das demandas, conflitos e sentidos das experiências vividas, conforme o contexto (social e institucional) em que se dá o percurso de trabalho.

Do ponto de vista extensivo, as ações realizadas visam um trabalho a médio e longo prazo, conforme permite a relação estabelecida com cada uma das organizações locais. Os objetivos alcançados, por sua vez, dependem dos desdobramentos das ações que possam ser construídas junto aos parceiros locais, fazendo maior ou menor uso dos resultados obtidos nas respectivas atividades. Da perspectiva pontual, cada ação visa trazer benefícios aos atores envolvidos: reconhecimento na escuta e interlocução; fortalecimento da referência identitária local por meio do diálogo entre pares sobre sua realidade e desafios, ou por meio de recursos como o mapa, que oferecem legitimidade simbólica à existência social de moradores de uma região que encontra pouca visibilidade na rede de relações sociais da metrópole.

Como prática de pesquisa, a estratégia de ação adotada, em sua dimensão plural e voltada à comunidade, traz vários desafios a serem enfrentados, tanto pontual quanto extensivamente, desde a incerteza em relação à condução das atividades, até a labilidade da pesquisa diante das vicissitudes de um contexto social em vulnerabilidade institucional, material e social (Spink, 2014Spink, P. K. (2014). Bringing the horizon back in: the mid-range approach to Organizational Studies. Revista Brasileira de Estudos Organizacionais, 1(1), 1-26.), que atinge moradores e organizações, vulnerabilizando-os de diferentes modos. Num contexto social em que os desafios sociais se encontram particularmente em destaque, as ações desenvolvidas também se tornam mais desafiadoras e frágeis, sofrendo os efeitos da condição de vida de seus agentes e moradores. Em contrapartida, entendemos que o combate à desigualdade depende do enfrentamento dessas tensões, que explicitam direta ou indiretamente a amplitude do dilema social a ser enfrentado. A proposição e desenvolvimento de práticas de pesquisa voltadas à promoção de ações sociais, comprometidas com os efeitos na realidade local, tornam-se prementes. Sua formulação e condução, porém, dependerão não somente do mapa utilizado para tanto, mas da bússola estabelecida para a direção do caminho a ser trilhado.

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  • 1
    O trabalho de pesquisa aqui retratado foi feito numa parceria entre Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas (CEAPG/FGV) e Universidade Federal do ABC (UFABC), com o professor e pesquisador Lucio Bittencourt, bem como dos pesquisadores Roberth Miniguine Tavanti da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Guilherme Vasconcelos do CEAPG/FGV, Murilo Silva e Bruna Moreira da UFABC. Pertencemos a um grupo de pesquisadores que se debruça sobre o tema das vulnerabilidades urbanas e da ação pública nas bordas do município de São Paulo (particularmente, M’Boi e Campo Limpo), em meio à região metropolitana de mesmo nome, nas fronteiras incertas com as demais municipalidades em seu entorno (Cotia, Embu das Artes, Itapecerica da Serra e Embu Guaçu). Nesta etapa de pesquisa, contamos com a colaboração das organizações da região, entre as quais A Banca e as três escolas estaduais, cujos nomes foram alterados por questões institucionais. Nossa perspectiva de investigação das vulnerabilidades e potencialidades enfrentadas pela juventude local elegeu os eixos das práticas culturais e socioeducativas como perspectivas privilegiadas de ação e investigação.
  • 2
    A região de M’Boi Mirim possui 563 mil habitantes (Dados…, 2016Dados demográficos dos distritos pertencentes às prefeituras regionais. (2016). São Paulo, SP: Prefeitura de São Paulo. Recuperado de https://goo.gl/FSF3KZ
    https://goo.gl/FSF3KZ...
    ) e se divide entre os distritos Jardim Ângela e São Luís. Trata-se de uma porção da cidade cujo adensamento populacional continua aumentando e onde o índice de homicídios, principalmente de jovens, está entre os mais altos do município enquanto as taxas de saneamento básico estão entre as mais baixas (Universidade Estadual de Campinas, 2014Universidade Estadual de Campinas. (2014). Mapa da juventude da cidade de São Paulo: relatório final. Campinas, SP: Unicamp. Recuperado de https://goo.gl/mE5M9T
    https://goo.gl/mE5M9T...
    ). Dada sua grande extensão territorial, elegemos trabalhar em uma parcela intermediária da subprefeitura da região, entre os dois distritos assinalados, conforme consta no mapa apresentado na Figura 1.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2017
  • Revisado
    09 Nov 2017
  • Aceito
    22 Dez 2017
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