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Psicanálise: uma vocação utópica

Psychanalyse : une vocation utopique

Psicoanálisis: una llamada utópica

Resumo

Este trabalho surge com o intuito de problematizar a psicanálise como método de interrogação do sujeito, propondo uma reflexão sobre as formas como a própria psicanálise porta uma vocação utópica, enquanto ferramenta política, a partir de sua visão acerca do sujeito e da proposição de uma ética. Propomo-nos a analisar de que forma os regimes econômicos lapidaram as subjetividades. Movimentos de resistência a essas lógicas de silenciamento da vida têm surgido, abrindo novos espaços simbólicos para um pensamento de práticas utópicas e suas reverberações éticas para uma política de vida.

Palavras-chave:
utopia; política; psicanálise

Résumé

Ce travail vise à problématiser la psychanalyse en tant que méthode d‘interrogation du sujet, en proposant une réflexion sur la question de savoir sous quelles formes la propre psychanalyse porte une vocation utopique, comme un outil politique, à partir de sa vision du sujet et de la proposition d’une éthique. Nous proposons d‘examiner comment les régimes économiques ont taillé des subjectivités. Des mouvements de résistance à ces logiques de faire taire la vie ont émergé, en ouvrant de nouveaux espaces symboliques pour une pensée des pratiques utopiques et leurs réverbérations éthiques pour une politique de la vie.

Mots-clés:
utopie; politique; psychanalyse

Resumen

Este trabajo surge con el fin de problematizar el psicoanálisis como método de interrogación del sujeto, proponiendo una reflexión acerca de la forma en que el propio psicoanálisis conlleva una vocación utópica, en cuanto herramienta política, a partir de su visión acerca del sujeto y de la proposición de una ética. Nos proponemos a analizar la manera en que los regímenes económicos lapidaron las subjetividades. Movimientos de resistencia a esta lógica de silenciamiento de la vida han surgido, cediendo el paso a nuevos espacios simbólicos para un pensamiento de prácticas utópicas y sus repercusiones éticas para una política de vida.

Palabras clave:
utopía; política; psicoanálisis

Abstract

This study aims to problematize psychoanalysis as a method of interrogation of the subject, proposing a reflection on the ways that psychoanalysis itself carries a Utopian vocation, whilst being a political tool, from its view about the subject and the proposition of an ethic. We aim to examine how economic regimes formed subjectivities. Resistance movements to these types of life silencing logic have emerged, opening new symbolic spaces to think about Utopian practices and their ethical reverberations to the politics of life.

Keywords:
utopia; politics; psychoanalysis

“Que é este repentino silencio que é como uma linguagem que não podemos escutar?” (Robert Musil)

A psicanálise como método de interrogação e escuta na interlocução de uma dimensão utópica abre espaço para reflexão clínica como forma de tensionamento de saberes que tira o sujeito de um estado de letargia no qual o eterno retorno a este estado é a moeda corrente. É a capacidade de formular questões que desafiam os saberes e nos confrontamos com nosso “em falta” com o saber.

A conduta correta para um analista reside em oscilar, de acordo com a necessidade, de uma atitude mental para outra; em evitar especulação ou meditação sobre os casos, enquanto eles estão em análise; e em somente submeter o material obtido a um processo sintético de pensamento após a análise ter sido concluída. A distinção entre as duas atitudes seria sem sentido se já possuíssemos todo o conhecimento (ou, pelo menos, o conhecimento essencial) sobre a psicologia do inconsciente e a estrutura das neuroses que podemos obter do trabalho psicanalítico. Atualmente, ainda nos achamos longe desse objetivo e não nos devemos cercear a possibilidade de conferir o que já sabemos e ampliar mais nosso conhecimento. (Freud, 1912/1974aFreud, S. (1974a). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 12, pp. 131-206). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1912)., p. 128)

Considerando que o essencial na busca pelo conhecimento é a afirmação da própria insuficiência das categorias conceituais, lança-se o desafio de desfazer elos de saber já amalgamados em verdades totalizantes; é a aceitação do provisório mesmo no campo científico da construção do saber.

Sobre a pesquisa psicanalítica, Freud nos indica que as hipóteses aparecem no caminho do trabalho de investigação e, por vezes, somente no final dela. Também recomenda o devido afastamento do objeto de estudo - uma boa distância -, mas cujas fronteiras podem ser maleáveis.

Uma das reivindicações da psicanálise em seu favor é, indubitavelmente, o fato de que, em sua execução, pesquisa e tratamento coincidem; não obstante, após certo ponto, a técnica exigida por uma opõe-se à requerida pelo outro. Não é bom trabalhar cientificamente num caso enquanto o tratamento ainda está continuando - reunir sua estrutura, tentar predizer seu progresso futuro e obter, de tempos em tempos, um quadro do estado atual das coisas, como o interesse científico exigiria. (Freud, 1912/1974aFreud, S. (1974a). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 12, pp. 131-206). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1912)., p. 152)

Utopia iconoclasta é a concepção de que um ideal não pode ser colocado como imperativo, acionando algo que ainda não sabemos, um vazio, um não lugar, uma brecha que põe o sujeito em movimento desejante para a produção de algo novo. Contrapõe-se ao conceito da utopia projetista, em que há um ideal de perfeição inalcançável. Bauman, retomando Jacoby (2007Jacoby, R. (2007). Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.), explicita essa diferença:

é a intenção de desconstruir, de desmitificar e, em última instância, de desacreditar os valores da vida dominante e suas estratégias de tempo, através da demonstração de que, contrariamente às crenças atuais, em vez de assegurarem uma sociedade ou vida superior, constituem um obstáculo no caminho para ambas. . . . é sobretudo a afirmação de uma possibilidade de uma outra realidade social - possibilidade ainda aterrada na revisão crítica dos meios e formas de apresentar a vida. . . . é a possibilidade de uma alternativa à realidade social, apesar de o seu desenho estar pouco desenvolvido. . . . não se conduzem por meio de desenhos ou conselhos, mas sim por meio da reflexão crítica sobre práticas e crenças existentes de forma a - para recordar uma ideia de Bloch - explicitar que “uma coisa está faltando” e assim “inspirar a unidade para a sua criação e recuperação”. (Oliveira, 2009Oliveira, D. (2009, 4 de agosto). Entrevista: Zygmunt Bauman. Cult, 138. Recuperado de https://goo.gl/UZDxXq
https://goo.gl/UZDxXq...
, p. 16)

Jacoby (2007Jacoby, R. (2007). Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira., p. 25), em Imagem imperfeita, nos alerta: “as ideias utópicas estão mortas e enterradas, tanto para os prósperos, quanto para os destituídos”! De que utopia estaria falando? Aqui ele fala dessa utopia enquanto aquele ideal almejado, ou a utopia projetista, com um projeto de antemão que muito de nossos revolucionários já apostaram, mas cuja perfeição seria impossível alcançar.

Segundo ele, essa utopia precisa morrer, decompor-se e seus restos, transformar-se em adubo, aproveitado pela terra para que dali nasça outra coisa. O que vai brotar dessa terra ainda não sabemos. Só então será possível desenterrar uma outra utopia, que faça uma aposta no futuro em vez de uma promessa.

Dos fracassos da psicanálise às revoluções de 1960

Em uma tentativa de estabelecer uma hipótese, sob o prisma psicanalítico, acerca desse caldeirão contemporâneo, seus sujeitos e sintomas, é fundamental retornar a Freud, ressaltando os efeitos de ruptura utópicos, provocados a partir da criação de sua teoria, para depois chegar aos dias de hoje. Veremos que, desde então, a psicanálise já se anunciava com uma vocação utópica, o que contribuiu nos movimentos de revolução futuros.

A psicanálise, desde sua criação no século XIX, vem transmitindo sua mensagem conflitante através dos tempos. Na medida em que propõe uma nova visão de sujeito, fora de um regimento moral e normativo, estremece os interesses das instituições de domínio vigentes, balançando os poderes coercitivos da medicina, ciência e religião - citando apenas alguns.

Longe de ser uma prática “burguesa” - como muito já foi e ainda é criticada -, a psicanálise (e os locais onde ela se produz), por sua vertente crítica e analítica, tem um significativo potencial revolucionário. Delineando, sem fortes contornos, uma ferramenta de função política, a psicanálise reverbera por meio de uma vocação utópica1 1 Aqui fazemos uso da expressão de Fredric Jameson, retirada do texto “O utopismo depois do fim da utopia” (2006, p. 188). .

A revolução que a noção do sujeito dotado de inconsciente provoca é digna de um “furor apocalíptico” não só na área das ciências humanas, mas também no laço social. Por meio da proposição de uma ética do não saber, a psicanálise instaura um caráter subversivo de denúncia do aprisionamento do sujeito às instâncias disciplinadoras de sua época.

Mas o conflito não para por aí. Nos próprios movimentos de esquerda (sobretudo nas décadas de 1960 e 1970) surge a crítica à psicanálise como uma teoria despolitizada e, inclusive, acusando-a de compactuar com uma proposta conservadora - moralizante, familiocêntrica, adaptacionista2 2 É importante lembrar que a linha determinada como válida pelo Partido Comunista Internacional é a reflexologia oriunda da União Soviética, banindo a psicanálise como ciência burguesa e os psicanalistas das fileiras do Partido. ! Na época, a crítica era contundente ao uso da psicanálise e sua vertente americanizada pela “psicologia do ego”. O caráter político da obra Freudiana, no entanto, mesmo enfraquecido por essa prática, tomou nova força nos anos seguintes. Lacan, no seminário 17 O avesso da psicanálise, de 1969, quando desdobra toda uma reflexão sobre os quatro discursos, reafirma o caráter sorrateiro de seus efeitos. “Estes lugares nos despertam da paralisia de um ideal que se esqueceu de nós. É preciso buscar um pensamento que surja do precário, da insuficiência das categorias conceituais e que ainda se interesse pela dor dos outros” (Sousa, 2007Sousa, E. L. A. (2007). Uma invenção da utopia. São Paulo, SP: Lumme., p. 12).

O caráter político da psicanálise - em detrimento de uma noção de “neutralidade política” que há a seu respeito - foi questionado não somente pelos seus críticos, mas também pelos próprios psicanalistas. A dita neutralidade do psicanalista não implica um esvaziamento de suas posições políticas diante da pólis. Colocar-se em uma posição de escuta, e garantir a liberdade de um espaço de fala e experiência de construção da narrativa de um desejo do seu paciente sem os imperativos morais de um dever ser indica o princípio da política e da ética do psicanalista.

É na diversidade que a proposta da psicanálise se estende e se potencializa. A proposição de uma nova visão de sujeito e de uma ética da psicanálise vai além da proposição de ação direta política dos movimentos sociais e a atravessa. Podemos ver um pouco desse caráter nas palavras de Freud que seguem:

Em vista dos esforços extenuantes que se fazem hoje, no mundo civilizado, para reformar a vida sexual, será supérfluo advertir que a pesquisa psicanalítica está tão isenta de tendenciosidade quanto qualquer outra espécie de pesquisa. Não há nenhum outro objetivo em vista além de derramar alguma luz sobre as coisas, ao procurar que se revele o que está oculto. Será bastante satisfatório se as reformas fizerem uso dessas descobertas para substituir o que é prejudicial por algo mais vantajoso; mas não se pode predizer se outras instituições não redundarão em outros sacrifícios, talvez mais sérios. (Freud, 1912/1974bFreud, S. (1974b). Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor: contribuições à psicologia do amor II. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 11, pp. 159-174). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1912)., p. 112)

A formulação freudiana da teoria do inconsciente chega aos séculos XIX e XX desacomodando saberes e verdades, lançando não só uma nova concepção de sujeito, mas a proposição de uma ética. Freud, através de uma definição revolucionária de uma sexualidade desde a infância, coloca por terra a concepção consensual vigente da existência de uma “normalidade sexual” definida pela sexualidade genital do adulto, limitada à consumação do ato sexual com fins de reprodução.

Freud ouviu os sintomas de seus pacientes, apontando que esses eram desejos sexuais intoleráveis para a consciência moral daquelas pessoas e que, portanto, se manifestavam transformados em sintomas. O desejo continuava presente, mas irreconhecível enquanto tal, aparecendo na forma de paralisias, compulsões, fobias etc.

A grande clarividência de Freud foi que os sintomas estudados por ele eram uma denúncia do que não ia bem naquela lógica social, identificando o que chamou de mal-estar na civilização. O sintoma era, então, o êxito do inconsciente em enunciar um fracasso - o da tentativa de disciplinarização dos corpos e mentes. “Não seria esta a função ética da utopia de nos responsabilizar pelo que fracassa?” (Sousa, 2007Sousa, E. L. A. (2007). Uma invenção da utopia. São Paulo, SP: Lumme., p. 19).

No entanto, identificar o mal-estar não seria suficiente para uma “possível cura”; o paciente deveria ir além e analisar o que, em si, era conivente com essa produção de sintoma e responsabilizar-se por sua conservação. Do contrário, a psicanálise serviria apenas para apontar vítimas e vilões.

A clínica mostrava que, mesmo sem se dar conta, o neurótico estava comprometido ativamente na origem e manutenção dos sintomas de que padecia. A hipótese de uma etiologia inconsciente dos sintomas neuróticos nunca impediu Freud de falar em “escolha da neurose”. (Goldenberg, 2006Goldenberg, R. (2006). Política e psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 20)

Essa proposição utópica engendra o método freudiano elaborado em suas obras - elas estão permeadas por fracassos. A maioria dos casos publicados não teve, necessariamente, sucesso clínico.

Costumamos esquecer que os cinco grandes relatos clínicos de Freud são basicamente relatos de um sucesso parcial e de um fracasso definitivo. . . . Esse exame dos fracassos nos põe diante do problema da fidelidade: como redimir o potencial emancipatório de tais fracassos, evitando a dupla armadilha do apego nostálgico ao passado e da acomodação demasiado escorregadia às “novas circunstâncias”. (Žižek, 2011Žižek, S. (2011). Em defesa das causas perdidas. São Paulo, SP: Boitempo., pp. 21-22)

Aqui podemos apontar mais um viés utópico do nascimento da psicanálise: Freud, mesmo com uma pretensão científica, deixava-se guiar por seus fracassos clínicos como ponto de partida para a continuação de sua pesquisa acerca do inconsciente. “Não acredito mais em minha neurótica”, dizia ele na Carta 69 a Fliess, de 1897 (Freud, 1897/1986Freud, S. (1986). Carta 69: Viena, 21 de setembro de 1897. In J. M. Masson (Ed.), A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess: 1887-1904 (pp. 255-257). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1897).). E assim descobriu a noção de “realidade psíquica” e de fantasia.

Žižek (2011Žižek, S. (2011). Em defesa das causas perdidas. São Paulo, SP: Boitempo.) aproxima esse potencial utópico ao da psicanálise e ao do marxismo e afirma que estas são as duas únicas teorias que ainda praticam uma noção engajada de verdade. Não somente teorias de luta, mas a respeito da luta. Nas suas palavras:

sua história não consiste num acúmulo de conhecimentos neutros, pois é marcada por cismas, heresias, expulsões. . . . a relação entre teoria e prática é propriamente dialética; em outras palavras, é de uma tensão irredutível: a teoria não é somente o fundamento conceitual da prática, ela explica ao mesmo tempo por que a prática, em última análise, está condenada ao fracasso - ou, como disse Freud de modo conciso, a psicanálise só seria totalmente possível numa sociedade que não precisasse mais dela. Em seu aspecto mais radical, a teoria é a teoria de uma prática fracassada: “É por isso que as coisas deram errado…”. (Žižek, 2011Žižek, S. (2011). Em defesa das causas perdidas. São Paulo, SP: Boitempo., p. 21)

Como ferramenta de fomento a uma posição ética e utópica do sujeito, colabora para o reconhecimento de sua incompletude constitutiva - um sujeito partido. Sua tarefa é ser vigilante do lugar da falta. Mostrar que ela existe, que é constitutiva do psiquismo e que os discursos hegemônicos não responderão a tudo. “São estes tropeços que ainda restauram nossa humanidade e nos provocam o pensamento como pequenas pausas diante da fúria do bom funcionamento. Pensar é confrontar-se com o em falta da perfeição” (Sousa, 2007Sousa, E. L. A. (2007). Uma invenção da utopia. São Paulo, SP: Lumme., p. 12).

O sujeito pode se esforçar para manter o inconsciente calado e o sistema em mascarar uma ditadura de valores, mantendo os sujeitos acomodados, mas o próprio inconsciente e o próprio sistema fazem função de fratura, anunciando um fracasso dos corpos em silenciar aquilo que “não pode ser dito”. Conforme E. Sousa (comunicação pessoal, de dezembro de 2010) “A imagem utópica permite a enunciação daquilo que está silenciado”3 3 Anotações seminário Desfazer a forma – Utopia, arte e psicanálise. Professor Edson Sousa, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) . Pois, justamente, é a partir dessa falha que abrem-se possibilidades de intervenção e de corte, seja enquanto ato analítico ou político.

A felicidade, no sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo. Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem que descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo. (Freud, 1927-1931/1974cFreud, S. (1974c). O futuro de uma ilusão. O mal-estar na civilização e outros trabalhos (Coleção Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, J. Salomão, trad., Vol. 21). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1927-1931)., p. 33)

O fracasso das revoluções de 1960 e sintomas contemporâneos

Revolução de 1960

Já em meados do século XIX movimentos de mulheres começavam a se esboçar nos Estados Unidos, Nova Iorque, exigindo melhores condições de trabalho. Cinquenta anos depois, no início do Século XX, o movimento se internacionalizou com uma conferência em Copenhague que reuniu mulheres socialistas e organizadas em sindicato, firmando o Dia Internacional da Mulher. Mas somente em 1977 houve o reconhecimento internacional da ONU.

Figura 1
Protesto em 1857 (NY, EUA)

Em 1969, estoura a revolução feminista, liderada por Betty Friedan, junto com a revolução sexual da juventude. Essas revoluções também foram impulsionadas pelos movimentos que agitaram a Europa e o mundo em maio de 1968. O movimento se iniciou em Paris, na França, onde jovens estudantes que contaram com a adesão da classe operária saíram às ruas para protestar contra uma estrutura arcaica familiar, a disciplina rígida dos sistemas educacionais e a repressão sexual e de gênero. O cenário inicial foi a Universidade Paris Nanterre, liderada por Daniel, “le Rouge”5 5 Daniel Marc Cohn-Bendit foi o líder estudantil protagonista do Maio de 1968 em Paris. Atualmente é deputado e copresidente do parlamentar Grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia e membro do Partido Ecologista Alemão Die Grünen. (vermelho em francês), um dos estudantes, que incentivou o mesmo manifesto para os estudantes da Sorbonne.

Figura 2
Daniel, le Rouge, encarando a Guarda (maio de 1968)

Houve muitos confrontos com a polícia. Os estudantes ocuparam os prédios das principais universidades e muitos sindicatos de trabalhadores aderiram ao movimento decretando greve geral. Nessas manifestações ficam conhecidos os slogans “É proibido proibir”, “O poder está nas ruas” e “A imaginação no poder”. Centenas de fábricas foram ocupadas e o número de grevistas chegou a dez milhões. Bandeiras de Mao, de Fidel, de Che Guevara e de Lênin se juntaram às manifestações. Quase todos os setores da sociedade se envolveram. Pessoas de todas as idades discutiam em auditórios lotados e liam diariamente os boletins dos estudantes.

Uma nova eleição presidencial foi convocada na França para o mês seguinte, no entanto, o presidente De Gaulle se reelegeu, derrotando a esquerda. Apesar da derrota eleitoral, Daniel, le Rouge mostra que aquelas manifestações abriram uma brecha para um movimento social heterogêneo; perdeu-se no político, mas ganhou-se no sociocultural. O “Maio de 1968” repercutiu pelo mundo todo. No Brasil, a incipiente mas feroz Ditadura Militar já era altamente repressora e, por esta razão, os jovens brasileiros, por intermédio dos diretórios estudantis, de passeatas e de manifestações, também se fizeram ouvir. Protestavam contra um país governado pela falta de memória e ausência de ética. Tanto na França quanto no Brasil, uma juventude unida e consciente de seus direitos e de sua força conseguiu fazer grandes transformações na sociedade.

Alguns anos antes já se viam e ouviam movimentos de juventude precursores do “Maio de 1968”. Também como reação à Ditadura Militar as manifestações juvenis começam a invadir as artes.

O Cinema Novo com Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe, ambos de Glauber Rocha. O Teatro de Oficina comandado por Zé Celso Martinez, com, entre outras, a polêmica peça Rei da Vela. Na música, os intelectuais de esquerda produzem as chamadas canções de luta, e Geraldo Vandré grava “Pra não dizer que não falei de flores”, irritando profundamente a linha dura do exército que passa a censurar as obras dos artistas brasileiros. (Santos, 2006Santos, R. (2006). Tropicália ou Panis et Circenses. In Contraofensiva - Cultura, Comunicação e Conhecimento Livre. Disponível em: Disponível em: http://contraofensiva.blogspot.com . Acesso em: 29 out. 2006.
http://contraofensiva.blogspot.com...
, p. 8)

A música popular brasileira, o rock e o Tropicalismo lideram o espírito contestatório juvenil através da música. O Tropicalismo surge de forma alegórica, carnavalizada, com alegria e crítica satírica e irônica, especifica Santos (2006Santos, R. (2006). Tropicália ou Panis et Circenses. In Contraofensiva - Cultura, Comunicação e Conhecimento Livre. Disponível em: Disponível em: http://contraofensiva.blogspot.com . Acesso em: 29 out. 2006.
http://contraofensiva.blogspot.com...
), com o intuito de criar um estado subversivo, quase anárquico, de contestação dos paradigmas dominantes; tornando-se um processo de reinventar as formas de manifestações, sem cair em retóricas ultrapassadas e, por meio de metáforas artísticas, subverter a ordem cultural vigente.

Os protestos se alastraram por todo o planeta em 1968. Enquanto a oposição à Guerra do Vietnã dominava os protestos (pelo menos nos Estados Unidos), também se protestava por liberdades civis, a favor do feminismo e contra armas nucleares e biológicas.

Figura 3
Marcha para o Pentágono, contra a guerra do Vietnã, Washington, DC. Outubro de 1967

“A utopia morre no empobrecimento dos desejos” (Jacoby, 2007Jacoby, R. (2007). Imagem imperfeita: pensamento utópico para uma época antiutópica. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira., p. 216). Cidade do México, Berlim Ocidental, Roma, Londres e EUA viram muitas cidades pequenas em protestos contra administrações universitárias. Em alguns países, como Espanha, Polônia, Tchecoslováquia e Brasil, os principais protestos eram contra os governos repressivos. Em Paris, na Itália e na Argentina, os estudantes juntaram-se aos sindicatos nas manifestações.

Figura 4
Grafitti de Banksy “Follow your dreams”

É paradoxal pensar que o destino dessas revoluções produziu uma espécie de posição avessa às próprias utopias.

Como nossos pais . . . Minha dor é perceber Que apesar de termos Feito tudo o que fizemos Ainda somos os mesmos E vivemos Como os nossos pais (Belchior, 1976Belchior. (1976). Como nossos pais (Letra). Recuperado de https://goo.gl/VNypXh
https://goo.gl/VNypXh...
)

Elis Regina interpreta “Como nossos pais”, de Belchior, demonstrando todo seu desgosto de ver uma geração inteira cair num conformismo social depois de tantas batalhas e seu desejo em reacender a chama da luta por utopias.

A juventude dos anos 1960 e 1970 tinha como valores éticos e estilo de vida, conforme Birman (2006Birman, J. (2006). Tatuando o desamparo: a juventude na atualidade. In: M. R. Cardozo (Org.), Adolescentes (pp. 25-43). São Paulo, SP: Escuta.), a aventura e o risco. Queriam ocupar o poder político, mas também confrontar e romper com as hipocrisias cristalizadas dos pais. A adolescência começava mais tarde e terminava mais cedo. Com o advento dos anticoncepcionais, separa-se o erotismo da reprodução, conferindo assim outro domínio sobre o corpo e o desejo. A entrada das mulheres nas escolas e universidades produz outra inserção do universo feminino no espaço social. Há uma grande transformação na ordem da família nuclear moderna.

Uma nova era do capital no pós-guerra, em que a rebelião jovem tomou conta das democracias no mundo, se fez presente. Apesar disso, houve um refluxo do capital e cooptação dos sonhos nas décadas seguintes.

Mesmo com o declínio político de alguns estados totalitários, a tão sonhada liberdade se viu confrontada a novas formas de controle social. Deleuze e Guattari (1980/1997Deleuze, G., & Guattari, F. (1997). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 1). São Paulo, SP: Editora 34. (Trabalho original publicado em 1980 - Vol. 1)) pensam esse momento da história como a passagem da sociedade disciplinar à sociedade de controle: o sistema capitalista ganha novas forças e muda sua estratégia. Ao invés da coerção aberta, da docilização dos corpos, da disciplina impositiva, repressora e proibicionista, a lógica agora é de uma ditadura velada em que o capital é o comandante e as instâncias de poder são feitas por meio de uma sedução do sujeito pelo controle do fluxo de informações e das atitudes instituindo novos ideais sociais de acumulação.

Figura 5
Quadrinhos dos anos 10 (André Dahmer)

Outros movimentos surgem nas lutas antiglobalização, justamente quando se acreditava que nada novo ocorreria em termos de manifestação jovem. Um movimento inédito surgirá das filas dos jovens desempregados na Inglaterra: o punk. As lutas geracionais recolocam em pauta as questões dos valores simbólicos diante dos valores econômicos. Não que seja um problema “jovem”. Aliás, alguns fazem crer que se trata disso. É um problema da vida e da renovação de suas forças que a busca por utopias põe em cena. As modalidades pré-fabricadas do desejo procuram definir nossa entrada no mundo desenhando padrões de sexualidade, usos do corpo, estética, ética. E a juventude, como um dos alvos centrais dessa mudança estratégica, não sai ilesa:

as expressões de rebeldia juvenil foram controladas e manipuladas pelos grandes cartolas dos meios de comunicação de massa, criando um conjunto de estilos, modas e de modelos culturais especificamente juvenis. A rebeldia se transformou em consumo e o mercado veio ocupar o lugar da revolução. (Dick, 2006Dick, H. (Coord.). (2006). Discursos à beira dos sinos: a emergência de novos valores na juventude: o caso de São Leopoldo. Cadernos IHU, 4(18), 1-68., p. 5)

O fortalecimento do capitalismo avançado marca sorrateiramente a nova geração9 9 Vale lembrar que, na América Latina, a década de 1980 ficou conhecida como “a década perdida”, não só em termos econômicos, como também de desenvolvimento cultural e político. , o que incide nas novas formas de subjetivação do sujeito contemporâneo.

A cultura ocidental contemporânea foi dominada pelos meios de comunicação de massa e passa a ser regida pela lógica do capital. Seus discursos produzem saberes e verdades que dizem respeito a uma produção de posição subjetiva apática e seu consequente laço social. Dentro dessa lógica, pouco espaço é ofertado para as alteridades, para a inventividade, para que um sujeito se abra para novas significações e para que a juventude dê vazão ao seu caráter questionador da ordem. Nesse sentido, o sujeito contemporâneo está intimado a construir-se a partir desse desamparo.

Novos sujeitos são produzidos e novos sintomas eclodem a partir disso. Considerando-se este cenário, qual a importância de pensar o protagonismo político dos movimentos sociais?

Provocar furos nessa realidade é uma forma de convocar o sujeito a uma produção singular de sentidos para sua existência como forma de driblar a hegemonia da produção massificada de subjetividades. Entender essa ética como guia de movimentos contraculturais - portanto políticos - é assumir que temos responsabilidade acerca do sintoma social.

Figura 6
Grafitti de Banksy em Gaza, Palestina10 10 Oficializada pela ONU em 6 de dezembro de 2012.

Como se dá a produção subjetiva dentro desse contexto? No que se constitui a vocação utópica desses movimentos? O que eles dizem de um posicionamento ético enquanto político? Estas são algumas das perguntas que pretendemos aprofundar neste ensaio.

Inseridos no contexto de sociedade de massas, de revolução das comunicações e do império das indústrias culturais, uma boa parte dos sujeitos se vê crescentemente marginalizada dos processos de mudança estrutural da sociedade, sobretudo os jovens, passando a constituir grupos em transição que não têm muito claro o que querem e nem em que direção ir.

Na lógica perversa desse modelo que prioriza o consumo indiscriminado, os técnicos do investimento lucrativo descobriram a força de venda da “intensidade juvenil”. No entanto, essa intensidade é capturada, retirada de múltiplos lugares antes ocupados e colocada em outro, esvaziados de desejos e abundantes de demandas. O “novo” virou novidade! Foi posto à venda. É para comprar, vestir e jogar fora. Ao jovem passou a ser demandada a representação de um ideal de felicidade para adultos, crianças, velhos e para os próprios jovens, servindo de modelo narcísico para sua sociedade. Provoca-se, assim, um grande movimento de desterritorialização12 12 Expressão apresentada por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1980/1997). dessa juventude.

Houve uma inversão de valores em que, agora, é o jovem que serve como ideal do adulto, e não mais o contrário. Sendo postos nesse lugar de ideal social, pode-se criar uma onipotência nesse sujeito “modelo”, que não percebe estar sendo, de fato, modelado de forma a ser cegado e não se reconhecer mais nos lugares que ocupa.

Os estudos psicanalíticos de Lacan (1962-1963/2005Lacan, J. (2005). O seminário: livro 10: a angústia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-1963).) assinalam que, para se apreender na experiência inaugural de reconhecimento no espelho, a criança se volta para o adulto. Esse adulto representa o Outro. Dele depende o valor da imagem. Como podemos pensar então esta inversão de valores onde não mais o adulto, mas o jovem representa este lugar? Como apontado por M. D’Agord (comunicação pessoal, 2010) “A pergunta do Outro que retorna para o sujeito do lugar de onde ele espera um oráculo, formulada como um Che vuoi? - que quer você?, é a que melhor conduz ao caminho de seu próprio desejo”13 13 Anotações das aulas da disciplina Pesquisa Psicanalítica e Lógica Psicanalítica – Módulo I, de 2010, ministrada pela professora Marta D’Agord, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Disponível em: <https://goo.gl/RFYmPr>. Acesso em: 31 jan. 2018. . Segundo o que o laço social e os sintomas contemporâneos nos sinalizam, essa pergunta vem sendo calada pela “cultura dominante” e constitui o discurso do Outro. Não se incentiva a pergunta “que queres?”, mas afirma-se “queres isso” sob forma de consumo: oferecimento de “objetos-falo” como aquilo que completará o sujeito. Sabemos que isso é um engodo, pois esse é um desejo que não é o meu, mas que me fazem acreditar que é - neste sentido, os sujeitos se privam do contato com sua “verdade” e permanecem escravos de uma relação de objeto que não diz do seu desejo. Como consequência a função de alteridade/desejo desses sujeitos está enfraquecida.

A juventude tornou-se o resultado de uma cultura socioeconômica que os entende enquanto futuro (relacionados ao poder econômico) e, no presente, apenas como coadjuvantes. Nesse lugar em que são colocados (ou do qual são retirados) não têm direito à voz, vez, espaço, poder e direitos, e acabam, muitas vezes, aceitando e reproduzindo esse modelo em suas próprias consciências coletiva e individual.

Reproduz-se, assim, uma lógica perversa de um “sujeito ideal”, completo, alcançável através do consumo. Isso fala de um lugar desde onde se produz uma verdade, um saber. O que se está produzindo é uma alienação da falta fundamental que nos constitui. Assim reforça-se uma saída alienada da história do sujeito, porque é solitária e individualista.

Já não estamos mais falando de um sujeito social calcado, sobretudo na ideia de repressão da sexualidade como o da sociedade moderna: o neurótico de Freud. Agora estamos à frente de um sujeito sem referências de base sólida, de uma cultura que se modifica tão rapidamente que não há tempo hábil para se assentar em uma identidade territorializante. É um sujeito em desamparo. Agora, sua felicidade é mais que um direito, é uma obrigação que o perseguirá.

Figura 7
Calvin, tirinha de Bill Watterson

Diferentemente da forma moderna de constituição do supereu - mais castrador, moralista, no contemporâneo, é ele próprio quem passa a ditar um “imperativo do gozo”. O supereu não se enfraquece - ele continua rígido em ser categórico! - mas criam-se novas regras morais, novos valores e leis: a lei de que, quando se trata de sentir prazer, não há limites; vale tudo!

Segundo Lacan (1998Lacan, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 836), “A função do Supereu é mandar gozar e proibir o gozo. . . . O gozo só pode ser dito nas entrelinhas por quem quer que seja sujeito da lei, já que a lei se funda nessa proibição (inter-dito)”. Nesse caso, a “proibição” estaria em ser/mostrar-se infeliz, em sofrimento?

Para Kehl (1999Kehl, M. R. (1999). Fetichismo. In E. Sader (Org.), 7 pecados do capital (pp. 81-106). Rio de Janeiro, RJ: Record., p. 94), “O imperativo do gozo substituiu a interdição do excesso e, embora gozar plenamente seja impossível para o ser humano, é este gozo que o supereu, reproduzindo os discursos dominantes e os valores em circulação, exige dos sujeitos”.

Figura 8
“Quem barra o gozo perverso deles?”

Nessa lógica de pensamento, os ideais da sociedade contemporânea, veiculados pelos discursos hegemônicos, colaboraram para o fomento da alienação generalizada e a não implicação do sujeito no momento da construção de si mesmo e, por conseguinte, do social. Uma apatia típica da melancolia se reforça como modo de subjetivação.

Aproximando os conceitos de melancolia com o de ressentimento, Kehl (2004Kehl, M. R. (2004). Ressentimento. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., p. 19) coloca que o ressentimento é o avesso do arrependimento: “instalado no lugar de queixoso, o ressentido não se arrepende: acusa” e nos explica de onde vem essa condição:

Este é o afeto característico dos impasses gerados nas democracias liberais modernas, que acenam para o indivíduo com a promessa de uma igualdade social que não se cumpre, pelo menos nos termos em que foi simbolicamente antecipada. Os membros de uma classe ou de um segmento social inferiorizado só se ressentem de sua condição se a proposta de igualdade lhes foi antecipada simbolicamente, de forma que a falta dela seja percebida. . . . como privação. (Kehl, 2004Kehl, M. R. (2004). Ressentimento. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., p. 18)

Figura 9
Mensagem do Ocupa Lisboa que circulou na internet.

Essa imagem-mensagem que circula na internet, resume e explicita o sofrimento do qual muitos padecemos. Há uma libidinização excessiva do real e imaginário (em detrimento do simbólico), em que o ideal de eu e o eu ideal ficam engrandecidos. E se o desejo está em articulação com o simbólico, o resultado disso não poderia ser outro senão o enfraquecimento da capacidade de desejar.

O desejo se esboça na margem em que a demanda se rasga da necessidade: essa margem é a que a demanda, cujo apelo não pode ser incondicional senão em relação ao Outro, abre sob a forma da possível falha que a necessidade pode aí introduzir, por não haver satisfação universal (angústia)16 16 Anotações das aulas da disciplina Pesquisa Psicanalítica e Lógica Psicanalítica – Módulo I, ministrada em 2010 pela professora Marta D’Agord, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. . (D’Agord, comunicação verbal, 2010)

De outro lado, a reação ao desamparo que esses discursos vêm produzindo pode aparecer como uma sintomática depressiva, o que não quer dizer que seja um “transtorno depressivo” ou uma estrutura melancólica, apenas uma depressão. O que as pessoas tomam como depressão talvez não seja mais do que uma reação esperada a um discurso tão perseguidor. Nesse sentido, Maria Rita Kehl coloca que os atuais deprimidos seriam como as histéricas para Freud, que denunciavam o mal-estar da sua época: eles denunciam que os discursos pervertem o processo desejante, são um engodo, os adoecem e, assim, se recusam a compactuar com eles. A depressão está na contramão da euforia.

O depressivo é aquele que se retira da festa para a qual é insistentemente convidado. . . . A depressão, como sintoma social, é aquilo que resiste - ao imperativo do gozo, à fé na felicidade consumista, à própria oferta de possibilidades de traição da via desejante. (Kehl, 2009Kehl, M. R. (2009). Da melancolia às depressões. In O tempo e o cão: as atualidades das depressões (pp. 37-108). São Paulo, SP: Boitempo., p. 103)

Seria uma depressão ou um processo de luto por um ideal que fracassa? Assim como a proposta psicanalítica de responsabilizar o sujeito pelos seus sintomas e seu caráter de denúncia do mal-estar, o que os atuais movimentos sociais de ocupação vêm mostrando é uma contrapartida à lógica capitalística

Como uma alternativa a essas tendências, evidenciadas no laço social contemporâneo, os movimentos de ocupação - entre diversos outros - que vão às ruas, retomam uma potência utópica que estava soterrada desde as revoluções de 1960.

Os efeitos clínicos do fracasso das revoluções dos anos 1960, com a retomada capitalista a partir dos anos 1980, em toda sua forma subjetiva, tiveram consequências na estrutura social como um todo. O sistema político/econômico/subjetivo capitalista continua a se desenvolver, mas chega a um ápice cujos efeitos já não podem mais ser ignorados. É curioso que na era da globalização, em que a apatia parece ser o sintoma que captura os sujeitos, estamos presenciando um novo despertar de proporções mundiais. Sobretudo nos países ditos de “primeiro mundo”, onde a economia especulativa teve seu maior espaço, um processo de colapso se inicia, colocando, dessa forma, a lógica de funcionamento do atual sistema em xeque. Torna-se urgente pensar novas práticas sustentáveis de existência. Chegamos, então, a um outro momento histórico no qual a rua volta a ser palco de protestos.

Figura 10
Marcha Occupy, em algum lugar do Brasil

Referência

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  • 1
    Aqui fazemos uso da expressão de Fredric Jameson, retirada do texto “O utopismo depois do fim da utopia” (2006, p. 188).
  • 2
    É importante lembrar que a linha determinada como válida pelo Partido Comunista Internacional é a reflexologia oriunda da União Soviética, banindo a psicanálise como ciência burguesa e os psicanalistas das fileiras do Partido.
  • 3
    Anotações seminário Desfazer a forma – Utopia, arte e psicanálise. Professor Edson Sousa, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
  • 5
    Daniel Marc Cohn-Bendit foi o líder estudantil protagonista do Maio de 1968 em Paris. Atualmente é deputado e copresidente do parlamentar Grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia e membro do Partido Ecologista Alemão Die Grünen.
  • 9
    Vale lembrar que, na América Latina, a década de 1980 ficou conhecida como “a década perdida”, não só em termos econômicos, como também de desenvolvimento cultural e político.
  • 10
    Oficializada pela ONU em 6 de dezembro de 2012.
  • 12
    Expressão apresentada por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1980/1997).
  • 13
    Anotações das aulas da disciplina Pesquisa Psicanalítica e Lógica Psicanalítica – Módulo I, de 2010, ministrada pela professora Marta D’Agord, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Disponível em: <https://goo.gl/RFYmPr>. Acesso em: 31 jan. 2018.
  • 16
    Anotações das aulas da disciplina Pesquisa Psicanalítica e Lógica Psicanalítica – Módulo I, ministrada em 2010 pela professora Marta D’Agord, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2017
  • Aceito
    22 Set 2017
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