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Pode a psicanálise de Winnicott ser a realização de um projeto de psicologia científica de orientação fenomenológica?

La psychanalyse de Winnicott peut-elle être un projet de psychologie scientifique d’orientation phénoménologique?

¿El psicoanálisis de Winnicott puede ser un proyecto de psicología científica de orientación fenomenológica?

Resumo

Neste artigo pretendo desenvolver a hipótese de que a obra de Winnicott pode corresponder a uma realização possível do projeto de elaboração de uma psicologia científica não naturalista, tal como indicado nas concepções filosóficas da fenomenologia e do existencialismo moderno. Depois de distinguir o que seriam os aspectos clínicos destas propostas filosóficas, procuro mostrar que Winnicott, por um lado, rejeita o uso de especulações metapsicológias naturalistas, e por outro, reformula o modelo ontológico da psicanálise, com a introdução da noção de ser; além de introduzir uma noção de saúde e redescrever a teoria do desenvolvimento socioemocional do ser humano focando-a nas suas relações de dependêndia.Tais modificações colocariam a psicanálise num quadro epistemológico não naturalista, mais de acordo com essas influências filosóficas citadas, modificando também a própria prática psicanalítica, seja em termos dos seus objetivos seja em termos do seu manejo.

Palavras-chave:
Psicanálise; fenomenologia; existencialismo; epistemologia; psicoterapia

Résumé

Dans cet article, j’ai l’intention de développer l’hypothèse selon laquelle l’oeuvre de Winnicott peut correspondre à une réalisation possible du projet d’élaboration d’une psychologie scientifique non-naturaliste comme on voit dans les conceptions philosophiques de la phénoménologie et de l’existentialisme moderne. Après la distinction des aspects cliniques de ces propositions philosophiques, je cherche à montrer, d’un côté, que Winnicott rejette l’utilisation de spéculations métapsychologiques naturaliste, de l’autre côté, qu’il reformule le modèle ontologique de la psychanalyse, avec l’introduction de la notion d’être ; au-delà d’introduire une notion de santé et de redécrire la théorie du développement socio-émotionnel de l’être humain en la recentrant sur ses relations de dépendance. Ces motifications mettraient la psychanalyse dans un cadre épistémologique non-naturaliste, plutôt alignée sur les influences philosophiques citées, modifiant par là la pratique psychanalytique elle-même, soit vis-à-vis de ses objectifs soit vis-à-vis de son maniement.

Mots-clés:
psychanalyse; phénoménologie; existentialisme; épistémologie; psychothérapie

Resumen

En este artículo, mi objetivo es desarrollar la hipótesis de que la obra de Winnicott puede corresponder a una realización posible del proyecto de elaboración de una psicología científica no naturalista, como se ve en las concepciones filosóficas de la fenomenología y del existencialismo moderno. Después de distinguir los aspectos clínicos de esas propuestas filosóficas, busco mostrar que Winnicott, por un lado, rechaza la utilización de especulaciones metapsicológicas naturalistas, por otro lado, reformula el modelo ontológico del psicoanálisis, con la introducción de la noción de ser; además de introducir una noción de salud y de redescribir la teoría del desarrollo socioemocional del ser humano, examinándola en sus relaciones de dependencia. Esas modificaciones pondrían el psicoanálisis en un marco epistemológico no naturalista, pero en conformidad con las influencias filosóficas citadas, modificando también la propia práctica psicoanalítica, sea con respecto a sus objetivos sea con respecto a su manejo.

Palabras clave:
psicoanálisis; fenomenología; existencialismo; epistemología; psicoterapia

Abstract

The purpose of this article is to develop the assumption that Winnicott’s work can correspond to a possible realization of the elaboration project of a non-naturalistic scientific psychology, as it is found in phenomenology and modern existentialism philosophical conceptions. After distinguishing the clinical aspects of these philosophical propositions, I try to show that Winnicott, on one hand, rejects the use of naturalistic metapsychological speculations, on the other hand, reformulates the ontological model of psychoanalysis, introducing the notion of being; additionally, he introduced a notion of health and redescribed the theory of socioemotional development of the human being, focusing on dependency relationships. Such changes would place psychoanalysis in a non-naturalistic epistemological framework, in accordance with the philosophical influences above mentioned, changing at the same time the psychoanalytical practice itself, both in its objectives and handling.

Keywords:
psychoanalysis; phenomenology; existentialism; epistemology; psychotherapy

Já em Kant a construção de um conhecimento do modo de ser do homem (seus comportamentos, sentimentos, suas leis e dinâmicas existenciais e relacionais) é um projeto que poder ser feito em dois quadros epistemológicos diferentes, dependendo do fato de considerá-lo ou não como um ente da natureza (ou da physys): “Uma doutrina do conhecimento do ser humano sistematicamente composta (antropologia) pode ser tal do ponto de vista fisiológico ou pragmático. - O conhecimento fisiológico do ser humano trata de investigar o que a natureza faz do homem; o pragmático, o que ele faz de si mesmo, ou pode e deve fazer como ser que age livremente” (Kant, 1798/1997aKant, I. (1997a). Crítica da razão pura. 1. ed. 1781 (A) e 2. ed. 1787 (B). Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian. (Trabalho original publicado em 1787), pp. 21-22). Tanto numa como noutra Antropologia (ou psicologia) temos uma metafísica que serve de base para a construção desse conhecimento: uma metafísica da natureza, na qual o homem é tão determinado como qualquer outro ente natural, nas suas leis de determinação causal, explicitada por Kant na Crítica da razão pura; e uma metafísica dos costumes, onde o homem pode determinar-se a fazer e a deixar que façam, explicitada por Kant na Crítica da razão prática (cf. Fulgencio, 2006Fulgencio, L. (2006b). O método analógico em Freud. Estilos da Clínica, XI(21), 204-223.a, 2008bFulgencio, L. (2005). Freud’s metapsychological speculations. International Journal of Psychoanalysis, 86(1), 99-123., Gabby Jr., 2004Gabby Jr., O. F. (2004). Resenha de Richard Thesein Simanke 2002: Metapsicologia lacaniana. Revista de Filosofia e Psicanálsie Natureza Humana, 6(1), 125-134., Loparic, 2003Loparic, Z. (2003). As duas metafísicas de Kant. Kant e-Prints, 2(5). ).

A psicologia como ciência foi fundada no século XIX, seja em Fechner, seja em Wundt, como proposta de ser uma ciência da natureza (uma Antropologia do ponto de vista fisiológico), ainda que certas reações a essa perspectiva, já em Brentano, tenham apontado outra direção. Nesse vasto quadro quero apontar para o fato de que a psicologia de Skinner e a de Freud são, ambas, propostas de construção de psicologias naturalistas, apesar de suas diferenças.

Retomarei suscintamente a posição de Freud, dado que parte das suas descobertas serão, mais tarde, ampliadas e inseridas por Winnicott num outro quadro epistemológico que difere do seu quadro naturalista. Suscintamente, para Freud, a psicanálise ofereceu à ciência a possibilidade de conhecer a vida da alma como qualquer outro objeto estrangeiro ao homem, sendo, pois, uma ciência da natureza como qualquer outra (1933/2001cFreud, S. (1998). Totem et tabú. In Oeuvres complètes (Vol. 11, pp. 189-385). Paris, France: PUF . (Trabalho original publicado em 1913)); seu modelo de homem, ou seja, sua maneira de conceber como é a vida psíquica, está construído numa lógica do como se, com a ajuda de uma série de especulações analógicas aplicadas ao psiquismo e sua dinâmica, a saber, a consideração do homem, no que se refere a sua ontologia psicológica, tal como se fosse um aparelho psíquico, movido por forças e energias1 1 Cf. Fulgencio, 2005; ver também Vaihinger 1911/2011, sobre a Filosofia do como se, como procedimento de pesquisa. .

No campo da filosofia fenomenológica, com Husserl, a consideração do homem como ente da natureza foi criticada, considerando que este tem outro modo de ser. No caso da construção de uma psicologia como ciência, ele critica o fato de que esta tem limitações naturalistas que deveriam ser ultrapassadas, justamente, pela fenomenologia: “a fenomenologia constitui o essencial fundamento eidético da psicologia e das ciências do espírito” (Husserl, 1986Husserl, E. (1986). Ideas relativas a una fenomenologia pura y una filosofia fenomenológica. Ciudad de México, México: Dondo de cultura Econômica., p. 47). Isto implica, necessariamente, uma ontologia, um telos e um modo de determinação causal, díspares daqueles que Kant explicitou na sua antropologia fisiológica. Numa direção harmônica com essa de Husserl, também podemos reconhecer na filosofia uma série de outras propostas que defendem esta especificidade do modo de ser do homem, por exemplo, em Kierkegaard, Jaspers, Heidegger e Sartre. Podemos reunir essas perspectivas, tal como fez Ellenberger, na rubrica do existencialismo moderno, ocupando-nos também de distinguir as propostas filosóficas das suas aplicabilidades no campo da ciência psicológica ou psiquiátrica, dado que os quadros epistemológicos e metodológicos da ciência e da filosofia se constituem de forma díspar (e meu interesse é mostrar, no campo da psicanálise como psicologia científica, que esta foi modificada por Winnicott, passando de um quadro naturalista para um existencialista). Diz Ellenberger, nesse sentido:

O que é a fenomenologia e a análise existencial do ponto de vista clínico? Talvez seja conveniente começar esclarecendo o que elas não são. Ao contrário de um juízo corrente, não representam uma introdução desconcertante da filosofia no campo da psiquiatria. É verdade que existe uma corrente filosófica denominada Fenomenologia, fundada por Edmund Husserl, e que existe outra corrente filosófica, chamada existencialismo, cujos principais representantes são Kierkegaard, Jaspers, Heidegger e Sartre. Mas existe um abismo entre a fenomenologia filosófica de Husserl e a fenomenologia psiquiátrica de Minkowski, tal como entre a filosofia existencialista e o método psiquiátrico chamado análise existencial. Analogamente, existe um ramo da física que se ocupa da investigação dos raios X, assim como existe um ramo da medicina, a radiologia, que se ocupa da aplicação dos raios X para fins médicos. E, sem dúvida, ninguém considera que a radiologia médica seja uma intromissão desconcertante da física nos domínios da medicina. De modo parecido, os psiquiatras fenomenologistas e os analistas existenciais são psiquiatras que utilizam certos conceitos novos da filosofia como instrumentos da investigação psiquiátrica. (1958Heidegger, M. (2000). Preleção. In M. Heidegger, Que é metafísica? (pp. 49-63). São Paulo, SP: Nova Cultural. (Trabalho original publicad em 1929), p. 92)

O que vai me interessar nessa minha análise são, portanto, muito mais os aspectos clínicos da fenomenologia e do existencialismo moderno - expressos em práticas de cuidado psicológico, encontráveis na fenomenologia psiquiátrica, na psicologia existencialista e na daseinanálise - do que uma análise dessas concepções no campo da filosofia, procurando colocar em evidência a presença de algumas dessas concepções na maneira como Winnicott concebe a psicanálise como ciência objetiva da natureza humana.

Em todos os existencialistas modernos há um ponto de partida comum, que diz respeito à caracterização da especificidade do modo de ser do ser humano. Retomarei, de maneira apenas indicativa, a posição de Kierkegaard e a de Heidegger, como dois exemplos centrais que procuram caracterizar essa ontologia.

Para Kierkegaard:

O homem não é um móvel pré-fabricado; o homem será o que ele fizer de si mesmo e nada mais. O homem se constrói a si mesmo por meio de suas decisões, pois possui liberdade para fazer escolhas vitais, sobretudo a liberdade de escolher entre as modalidades autenticas e inautênticas da existência. A existência inautêntica é a modalidade do homem que vive sob a tirania da plebe, da coletividade anônima. A autêntica é a modalidade na qual o homem assume a responsabilidade por sua própria existência. (Ellenberger, 1958Ellenberger, H. F. (1958). A Clinical Introduction to Psychiatric Phenomenology and Existential Analysis Existence. In May, R., Angel, E., & Ellenberger, H. F. (Eds.). A New Dimension in Psychiatry and Psychology. (pp. 92-124). New York, NY: Basic Books., p. 118)

Acrescente-se a isso o fato de que há, para ele, uma angústia constituinte do modo de ser humano, angústia que deriva do fato de que o homem é o único responsável por suas escolhas (ele é o responsável “livre” por decidir fazer e deixar que façam); ele é, na verdade, obrigado a escolher, e essa responsabilidade gera uma angústia existencial constitucional.2 2 Esta, pensando nas práticas psicoterápicas existencialistas, não deveria ser confundida com a angústia que advém da história afetiva do ser humano (as angústias edípicas, por exemplo).

Para Heidegger, o modo de ser específico do ser humano se diz Dasein, cuja principal característica é fazer (configurar, criar) a si mesmo, ao outro e o mundo no qual vive. No livro Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude e solidão (1983/2003Heidegger, M. (2003). Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1983)), ele procura caracterizar este modo de ser diferenciando o que é o mundo para os diversos tipos de entes: “1. A pedra (o material) é sem-mundo; 2. O animal é pobre de mundo; 3. o homem é formador de mundo” (p. 207)”. Ao longo da sua obra encontramos também uma série de expressões que visam descrever o que é esse modo específico de ser do ser humano, tais como: ser-ai, ser-com, ser-no-mundo, ser-junto-a, ser-um-com-o-outro, ser-para-a-morte etc. Todas essas expressões, antes de ser entendidas como conceitos, devem ser entendidas como descrições de modos de ser propriamente humanos.

O importante aqui, para minha análise, reunindo esses aspectos destacados, é muito mais apontar para o sentido empírico, fenomenológico, dessa concepção do que é o modo de ser do ser humano, do que fazer uma discussão conceitual filosófica, que nos remeteria ao campo da história analítico-crítica da história da filosofia, retirando-nos do foco de análise da psicologia como ciência. Num certo sentido estou marcando uma separação entre os problemas e as práticas filosóficas e entre os problemas e as práticas clínicas-psicoterápicas, recusando uma filosofia-clínica e uma clínica-filosófica.

Sabemos que Binswanger e Boss procuraram construir uma proposta de psicologia científica e uma prática de cuidado psicoterápico a partir dos fundamentos da analítica existencial de Heidegger. Uma das críticas feitas a Binswanger é que ele acabou por confundir os campos da filosofia e da ciência, fazendo ora uma pseudofilosofia, ora uma pseudociência (cf. a análise crítica dessa proposta no artigo de Loparic, 2002Loparic, Z. (2002). Binswanger, leitor de Heidegger: um equívoco produtivo? Revista de Filosofia e Psicanálise Natureza Humana, 4(2).). Independente de essa síntese poder ser avaliada como bem ou mal sucedida, quero defender aqui a hipótese de que a proposta de Winnicott, na sua reformulação teórico-prático-semântica da psicanálise, apresentou uma psicologia científica que estaria de acordo com o quadro conceitual e epistemológico dos existencialistas modernos, mantendo-se no campo da ciência, seja em termos da descrição de uma teoria do desenvolvimento emocional, seja em termos da sua redescrição do método de tratamento psicoterápico. Noutros termos, a minha hipótese também poderia ser enunciada na enunciação da seguinte pergunta: pode a psicanálise de Winnicott, na sua proposta de fazer com que a psicanálise seja uma ciência objetiva da natureza humana, ser considerada como a realização do projeto de construção de uma psicologia científica do ponto de vista dos fundamentos da fenomenologia e da analítica existencial?

Proximidade da semântica de Winnicott com a do existencialismo moderno. À procura de um método para o diálogo entre perspectivas teórico-semânticas díspares

Ao retomarmos o conjunto das inovações semântico-conceituais específicas de Winnicott, podemos listar uma série de termos e/ou expressões que não fazem parte da semântica psicanalítica clássica, tais como objetos e fenômenos transicionais, ação de brincar, espaço potencial, lugar em que vivemos, ilusão de onipotência, o paradoxo de criar-encontrar objetos, preocupação maternal primária, invasão e falha ambiental, dependência absoluta e relativa, objeto subjetivo, verdadeiro e falso self, elaboração imaginativa, solidão essencial, ser, continuidade de ser, tendência inata à integração, trauma como quebra na linha do ser, criatividade originária, elemento feminino e masculino puros, coração sagrado do self, comunicação silenciosa, comunicação profunda, capacidade de ter fé em…, privação e tendência antissocial, capacidade de ficar, mãe-objeto, mãe-ambiente, diferença entre necessidade e desejo, sobrevivência do analista, uso do objeto, angústia impensável, ação traumática, congelamento da situação traumática, descongelamento, sentir-se real, distinção entre psyqué, soma e mente, vida que vale a pena ser vivida, espontaneidade. Dentre estes quero destacar alguns que me parecem muito próximos, ainda que não idênticos, a concepções reconhecíveis no campo do existencialismo moderno, tais como as noções de ser, continuidade de ser, verdadeiro e falso self, trauma como quebra na linha do ser, lugar em que vivemos, vida que vale a pena ser vivida, espontaneidade.

Essa proximidade semântica não significa que Winnicott importou, numa ligação direta ou numa aplicabilidade direta, concepções de um sistema filosófico ou de um sistema clínico (por exemplo, da fenomenologia psiquiátrica, da psicologia existencialista ou da daseinanálise) e os inseriu na psicanálise. A influência da filosofia ou de outros sistemas teóricos da psicologia (e mesmo da psicanálise) no pensamento de Winnicott, não ocorre dessa forma. O próprio Winnicott diz como ele funciona, em termos das suas influências: “O que ocorre é que eu junto isto e aquilo, aqui e ali, volto-me para a experiência clínica, formo minhas próprias teorias e então, em último lugar, passo a ter interesse em descobrir de onde roubei o que” (1945/2000, p. 218).

Temos, aqui, um problema epistemológico-metodológico que diz respeito à maneira como serão concebidas as relações (de influência, comunicação, diálogo) entre a filosofia e a ciência, entre as diversas ciências entre si, entre os diversos sistemas teórico-semânticos da psicanálise entre si. Pode-se dizer, com apoio na obra de Thomas Kuhn (1970/1975Kuhn, T. S. (1975). A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, SP: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1970), 1977Kuhn, T. S. (1977). A tensão essencial. Lisboa, Portugal: Edições 70 ., 2000/2006Kuhn, T. S. (2006). O caminho desde A estrutura. Ensaios Filosóficos, 1970-1993, com uma entrevista autobiográfica. São Paulo, SP: Unesp. (Trabalho original publicado em 2000)) que um sistema filosófico (no caso, a fenomenologia, o existencialismo), um sistema teórico-clínico (fenomenologia psiquiátrica, psicologia existencialista, daseinanálise), são paradigmas díspares do proposto por Freud; e díspares, pois, da psicanálise. Nessa perspectiva, considerando que os paradigmas ou matrizes disciplinares constituem realidades díspares, devemos nos colocar a questão de saber se os mesmos termos (usados por paradigmas díspares) têm o mesmo referente, ou ainda, se termos diferentes podem estar referidos aos mesmos fenômenos, para saber se, ao nos colocarmos a questão da proximidade, semelhança, distância ou mesmo impossibilidade de comunicação entre sistemas teórico-semânticos díspares (paradigmas díspares), estamos ou não no campo em que um diálogo ou influência mútua pode ocorrer. Nessa direção, a comunicação entre sistemas teóricos díspares depende da compreensão dos referentes de suas concepções, ou seja, é via os fenômenos descritos ou tornados visíveis que se torna possível descrever e/ou explicar/entender o que um sistema pode contribuir ou comunicar com outro.

O próprio Freud apontou essa perspectiva quando comentou de que maneira a psicanálise e a antropologia poderiam contribuir uma com a outra, em Totem e tabú:

É uma falha necessária dos trabalhos que tentam aplicar os pontos de vista da psicanálise aos temas das ciências do espírito a de oferecer tão pouco dos dois ao leitor. Assim se restringem a ter um caráter de incitação; eles fazem ao especialista proposições que ele deverá tomar em consideração no seu trabalho.3 3 Esta passagem corresponde a uma parte do anexo “De quelques concordances dans la vie d’âme des sauvages et des névroses”, composto por 5 parágrafos publicados em março de 1912 na revista Imago, como uma introdução à primeira parte de Totem e tabú; eles foram substituídos quando do surgimento do livro por um prefácio escrito em setembro de 1913. Esse anexo foi omitido nas edições que se seguiram e só foram republicados em 1987 (Nachtragsband da Gesammelte Werke). Essa passagem foi aqui citada a partir do texto das Obras completas publicadas em francês (Freud, 1913/1998). (Freud, 1913/1998Freud, S. (1985). L’analyse avec fin et l’analyse sans fin. In Résultats, idées, problèmes II. Paris, France: PUF . (Trabalho original publicado em 1937), p. 283)

A meu ver, trata-se muito mais do que uma incitação um tanto quanto vaga, trata-se, na proposta de Freud, do uso de algo que conhecemos, num campo, como sendo útil para conhecer algo que não conhecemos, num outro campo, ou seja, a utilização de método analógico de pesquisa (cf. Fulgencio, 2006Fulgencio, L. (2006a). O lugar da psicologia empírica no sistema de Kant. Kant E-prints, 4(1), pp. 89-119. Recuperado de bit.ly/2pOPL5h.
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b, 2008bFulgencio, L. (2007). Winnicott’s rejection of the basic concepts of Freud’s metapsychology. International Journal of Psychoanalysis, 88(2), 443-461.)4 4 Talvez esse seja um caminho frutífero para o diálogo e a conjunção dos conhecimentos advindos de diferentes sistemas teórico-semânticos díspares na psicanálise, questão metodológica que tem sido objeto de preocupação da International Psychoanalytical Association (IPA), como mostra o artigo de Bohleber et al. (2013), bem como a recente publicação de Bernardi (2017) no International Jornal of Psychonalysis. .

Considerada essa distinção e essa proposta metodológica, posso esclarecer um segundo ponto correlato a este, referindo-me, agora, diretamente à relação entre Winnicott e o existencialismo moderno, seja em termos filosóficos, seja em termos científico-clínicos. Primeiro: não estou afirmando que Winnicott está de acordo ou é adepto ao sistema filosófico conceitual ou ideológico de um ou algum dos filósofos mais ou menos associados à rubrica do existencialismo. Winnicott não pode ser dito kierkegaardiano, dilthiano, sartriano, merleau-pontyano ou mesmo heideggeriano; da mesma maneira que Freud, mesmo utilizando e às vezes citando filósofos e filosofias, não pode ser enquadrado como schopenhaueriano, nietzschiano, kantiano etc. Nesse sentido, não se trata de fazer aqui uma projeção afirmando que Winnicott ou Freud construíram seus pensamentos a partir de algum sistema filosófico específico. Segundo: da mesma maneira, não cabe dizer que Winnicott abraça identitariamente o sistema clínico-teórico da fenomenologia psiquiátrica, da psicologia existencialista ou da daseinanálise.

O que estou defendendo e analisando é o fato de que Winnicott trouxe para a psicanálise o reconhecimento (nesse quadro e com essas ressalvas metodológicas) de alguns fenômenos, bem como a consideração de algumas concepções que estão de acordo e são similares às que os existencialistas modernos utilizam em seus sistemas de pensamento.

Esclarecido que não se trata de afirmar que Winnicott seja filiado a um ou outro sistema filosófico, é necessário considerar que ele também não é filiado a nenhuma das perspectivas clínicas existencialistas. Não é por filiação ou importação direta que ocorrem essas relações (ou “influências”), nem em Winnicott, nem em Freud. Assim, da mesma maneira que não é condizente com minha proposta retomar os sistemas filosóficos existencialistas, também não é necessário retomar os sistemas teórico-práticos da fenomenologia psiquiátrica, da psicologia existencialista e da daseinanálise, para considerar que Winnicott tem algumas concepções que se assemelham às dessas perspectivas. Remeter minha análise ou essa hipótese à necessidade de retomar esses sistemas teóricos, nessa perspectiva de análise que estou propondo, seria um erro epistemológico, metodológico e até mesmo um erro de entendimento do que estou propondo.

Me ocuparei agora de analisar, mais especificamente, como a noção de ser e a de falso e verdadeiro self aparece na obra de Winnicott, abrindo caminho para, mais à frente, analisar a noção de criar-encontrar a si mesmo e ao outro (criar o mundo em que se vive), bem como a noção de saúde, considerando que todas elas têm sentidos e referentes próximos aos que encontramos na filosofia e nas práticas psicoterápicas existencialistas.

A noção de ser na obra de Winnicott

A consideração de que a psicanálise tem no ser o seu foco de atenção e trabalho já foi ressaltada por Georges Amado (1978Amado, G. (1978). L’être et la psychanalyse. Paris, France: PUF., 1979Amado, G. (1979). De l’enfant à l’adulte. La psychanalyse au regard de l’être. Paris, France: PUF .). Nessa direção ele propôs uma psicanálise ontológica, da qual Winnicott teria tido a intuição, sem, no entanto, ter analisado a obra de Winnicott mais detalhadamente, procurando explicitar como essa noção foi inserida histórico-criticamente.

Outros psicanalistas também reconhecem o fato de que foi Winnicott quem, de maneira mais explícita, introduziu a noção de ser na psicanálise, seja como uma ação de desenvolvimento e ampliação da psicanálise, seja pra criticá-lo.

René Roussillon (2009Roussillon, R. (2009). Transitionnel et réflexivité. Les Lettres de La Société de Psychanalyse Freudiene, Winnicott, un psychanalyste dans notre temps (21), 123-140.) considera que Winnicott fez uma ruptura epistemológica com a inserção da noção de ser na psicanálise, abrindo um imenso canteiro de obras, dado que essa inserção implica em inúmeras modificações teórico-práticas (p. 123).

André Green (2011Green, A. (2011). Origines et vicissitudes de l’Être dans l’oeuvre de Winnicott. Revue Française de Psychanalyse, 4(75), 1151-1170.), por sua vez, também dedicou-se a analisar essa proposta de Winnicott, no entanto de forma extremamente crítica, considerando que ela corresponde muito mais a uma defesa emocional de Winnicott, um sintoma genial para evitar seus problemas pessoais relativos à agressividade e à detrutividade do ser humano: “Eu suponho que ao invés de aceitar a ideia de uma pulsão de morte, Winnicott reagiu introduzindo o conceito de ‘ser’, suficientemente potente para se opor à tentação de destruir inteiramente o objeto, ou ao menos ajudar a sobreviver a seus ataques” (p. 83). Green foca sua crítica em argumentos associados à história afetiva e à personalidade de Winnicott, interpretando-o como se este fosse seu paciente, sem propriamente desenvolver as questões teórico-clínicas e suas relações com os fenômenos-problemas que as propostas de Winnicott enunciam: sua teoria da agressividade, sua teoria da compulsão à repetição, sua consideração de que há fenômenos existenciais não redutíveis nem referíveis à vida pulsional etc. A meu ver, Green, amante da metapsicologia (1995Green, A. (1995). Propédeutique. La métapsychologie revisitée. Seyssel, France: Champ Vallon.) e da pulsão de morte (2010Green, A. (2010). Pourquoi les pulsions de destruction ou de mort? Sophia Antipolis, France: Ithaque.), não pôde ver com clareza os fenômenos descritos por Winnicott, reagindo em defesa de suas próprias concepções.

A inserção que Winnicott fez da noção de ser na psicanálise, a sua apreciação muito mais clínica do que filosófica, me parece ter duas fontes: por um lado sua experiência com pacientes psicóticos, dado que estes se debatem com o problema existencial de serem, com experiências de não-ser; e por outro, suas características pessoais, sua formação e uma influência advinda do horizonte de sua época, na qual o existencialismo surgiu como uma alternativa clínica, tal como podemos ver, por exemplo, num livro importante, publicado em 1958, que podemos supor ser de seu conhecimento (ainda que esta seja uma hipótese especulativa): Existence. A New Dimension in Psychiatry and Psychology (May, Angel, & Ellenberger, 1958May, R., Angel, E., & Ellenberger, H. F. (1958). Existence. A New Dimension in Psychiatry and Psychology. New York, NY: Basic Books .); essas concepções existencialistas faziam parte do horizonte da sua época e sabemos que havia muitos próximos a ele que compartilhavam essa perspectiva (dentre eles, por exemplo, Ronald Laing).

Fulgencio (2014Fulgencio, L. (2008a). Le rejet par Winnicott des concepts fondamentaux de la métapsychologie freudienne. L´Année Psychanalytique Internationale. Paris, France: Editions In Press.b) fez um recenseamento da presença e do uso da noção de ser na obra de Winnicott, constatando não só que a maior parte das referências ao termo é feita na década de 1960, mas que um uso mais conceitual só ocorre nessa década. Ele procurou mostrar que o que importa para Winnicott não é tanto o conceito de ser, mas a experiência de ser ou de não-ser que seus pacientes relatam no processo analítico. É justamente a partir dessa experiência que ele formulará a sua compreensão do que é a natureza humana.

Numa passagem, que me parece ser uma das mais diretas sobre a sua noção de ser, ele diz:

Gostaria de postular um estado de ser que é um fato no bebê normal, antes do nascimento e logo depois. Esse estado de ser pertence ao bebê, e não ao observador. A continuidade do ser significa saúde. Se tomarmos como analogia uma bolha, podemos dizer que, quando a pressão externa está adaptada à pressão interna, a bolha pode seguir existindo. Se estivéssemos falando de um bebê humano, diríamos “sendo”. (1988/1990, p. 148)

Na mesma direção, que caracteriza o Dasein como formador de mundo, temos a descoberta de Winnicott sobre a natureza dos fenômenos e objetos transicionais, dado que estes colocam em evidência a ação de brincar como sinônimo da própria continuidade de ser, como expressão da criação de si mesmo e do mundo em que vivemos, alçando a ação de brincar a um fundamento universal da natureza humana. Retomo algumas afirmações de Winnicott nesse sentido: “É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)” (1971/1975cWinnicott, D. W. (1975a). O brincar: uma exposição teórica. In O brincar & a realidade (pp. 59-77). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1968), p. 80); “Para mim, o brincar conduz naturalmente à experiência cultural e, na verdade, constitui seu fundamento” (1971/1975bWinnicott, D. W. (1975b). O lugar em que vivemos. In O brincar & a realidade (pp. 145-152). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1971), p. 147). Para Winnicott essa ação de brincar será mesmo um fundamento do processo psicoterapêutico:

A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em consequência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é. (1968/1975a, p. 59)

Winnicott defende a ação de brincar como um fundamento do existir humano (ainda que esta não seja uma capacidade inata, mas algo que passa a ocorrer depois que certas integrações emocionais já tenham ocorrido; ainda que alguns pacientes ou pessoas se mostrem doentes e não tenham essa capacidade). Diz Winnicott nesse sentido:

Em outros termos, é a brincadeira que é universal e que é própria da saúde; o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia; finalmente, a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros. O natural é o brincar, e o fenômeno altamente aperfeiçoado do século XX é a psicanálise. Para o analista, não deixa de ser valioso que se lhe recorde constantemente não apenas aquilo que é devido a Freud, mas também o que devemos à coisa natural e universal que se chama brincar. (1968/1975aFreud, S. (2001a). Two Encyclopaedia Articles. In The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 234-260). New York, NY: Vintage Classics. (Trabalho original publicado em 1923), p. 63)

Winnicott considerará, ainda, que é devido à expansão da atividade de brincar (expansão dos fenômenos transicionais) que o ser humano adentra no mundo da cultura, encontrando a si mesmo e ao outro. O brincar corresponde, pois, a ser-com, ser-com-o-outro, constituindo a si mesmo e ao lugar em que se é possível viver, o que parece corresponder (ou ser muito próximo) ao que Heidegger diz quando afirma que o Dasein cria a si mesmo, cria o mundo em que vive, dando sentido a si mesmo e ao outro.

A noção de falso e verdadeiro self em Winnicott

Winnicott reconhece que a sua concepção de verdadeiro e do falso self (como modos de ser do ser humano) tem sua origem em certas concepções da filosofia, em certos sistemas religiosos e na psiquiatria:

Este conceito em si não é novo. Aparece de várias formas em psiquiatria descritiva e especialmente em certos sistemas religiosos e filosóficos. Por certo existe um estado clínico real que merece estudo, e o conceito se apresenta à psicanálise como um desafio quanto à etiologia. (1965/1983d, p. 128)

Isso não significa que a sua concepção de falso e verdadeiro self corresponde a uma aplicação das concepções que estão na sua origem. Para ele, estes dois modos de ser são constitutivos do modo de ser humano, tal como seus pacientes relatam como se sentem, como, por vezes, sentem que levam uma vida por demais adaptada que se oporia a um modo de ser mais espontâneo:

O conceito de um falso self tem que ser contrabalanceado por uma formulação do que poderia, com propriedade, ser denominado self verdadeiro. No estágio inicial o self verdadeiro, o verdadeiro self é a posição teórica de onde vem a o gesto espontâneo e as ideias pessoais. O gesto espontâneo é o verdadeiro self em ação. Enquanto o self verdadeiro é sentido como real, a existência de um falso self resulta em uma sensação de irrealidade e um sentimento de futilidade. (1965/1983d, p. 135)

Poder-se-ia afirmar, usando uma metáfora com fins pedagógicos, que falso e verdadeiro self são como água e vinho misturados, portanto indissociáveis e constituintes do modo de ser do ser humano, ainda que um possa momentaneamente mostrar-se ou realizar-se de forma mais acentuada. O falso self faz parte da organização saudável, o falso self patológico corresponde a uma dominação (dos aspectos adaptativos do indivíduo), estabelecendo uma hegemonia no modo de ser do indivíduo.

Assim, paradoxalmente, a noção de falso e verdadeiro self tem origem em sistemas filosóficos, religiosos e psiquiátricos (no que me parece ser uma referência clara ao que podemos encontrar no existencialismo moderno), ao mesmo tempo que não corresponde a seus sentidos e referentes originários na filosofia (por exemplo o de vida autêntica, autenticidade) encontráveis nesses sistemas.

A psicanálise de Winnicott como uma ciência objetiva da natureza humana

Caberia, ainda, para finalizar esse item de minha análise, ressaltar que Winnicott coloca a psicanálise num quadro epistemológico muito mais próximo ao que esperava a fenomenologia e a analítica existencial, para a constituição de uma psicologia científica, do que propusera Freud com a criação da psicanálise como uma ciência da natureza.

Retomo algumas afirmações de Winnicott sobre a natureza humana: “Minha tarefa é o estudo da natureza humana” (1988/1990Winnicott, D. W. (1975c). O brincar: a atividade criativa e a busca do eu (Self) In O brincar & a realidade (pp. 79-93). Rio de Janeiro, RJ: Imago , 1975. (Trabalho original publicado em 1971), p. 21), “Qual é o estado do indivíduo humano quando o ser emerge do interior do não-ser?. Onde fica a base da natureza humana em termos do desenvolvimento individual? Qual é o estado fundamental ao qual todo ser humano, não importa sua idade ou experiências pessoais, teria que retornar se desejasse começar tudo de novo?” (1988/1990Winnicott, D. W. (1978). Memórias do nascimento, trauma do nascimento e ansiedade. In Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves, 1978. (Trabalho original publicado em 1958), p. 153), “A vida de uma pessoa consiste num intervalo entre dois estados de não-estar-vivo. O primeiro dos dois a partir do qual emerge o estar-vivo, dá colorido às ideias que as pessoas costumam ter sobre o segundo” (1988/1990Winnicott, D. W. (1983a). Teoria do relacionamento paterno-infantil. In O ambiente e os processos de maturação (pp. 38-54). Porto Alegre, RS: Artmed. (Trabalho original publicado em 1960), p. 154). Poderíamos, ainda nessa mesma direção, colocar lado a lado uma frase de Winnicott e outra de Heidegger, reconhecendo uma proximidade semântica e conceitual significativa entre elas: “O ser humano é uma amostra-no-tempo da natureza humana” [A Human Being is a time-sample of human nature] (1988/1990Winnicott, D. W. (1983b). Os objetivos do tratamento psicanalítico In O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre, RS: Artmed . (Trabalho original publicado em 1965), p. 11); “O homem é o lugar-tenente do Nada” [Der Mensch ist der Platzhalter des Nichts] (Heidegger, 1929/2000, p. 60).

Para Freud, a grande contribuição da psicanálise para a ciência foi ter colocado a vida da alma para ser compreendida como qualquer outro objeto estrangeiro ao homem, ou seja, como um objeto natural (1933/2001cFreud, S. (2001b). An Autobiographical Study. In The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (Vol. 20, pp. 3-74). New York, NY: Vintage Classics . (Trabalho original publicado em 1925), Lição 35). É nessa direção que ele considera a vida da alma como se esta fosse um aparelho psíquico. Para Winnicott, no entanto, temos outra ontologia: o ser humano é constituído e impulsionado pela necessidade de ser e continuar sendo. É no quadro dessa nova ontologia, recusando pensar o homem tal como se fosse uma máquina, reconhecendo determinações causais propriamente humanas (e não redutíveis ou análogas às determinações causais próprias dos sistemas naturais), que Winnicott considera a psicanálise como uma ciência objetiva da natureza humana, levando a psicanálise para um quadro epistemológico diferente daquele utilizado por Freud.

A posição de Winnicot em relação à metapsicologia

Fulgencio (2008Fulgencio, L. (2008b). O método especulativo em Freud. São Paulo, SP: Educ.b) dedicou-se a analisar a natureza e a função da metapsicologia enquanto modo de teorização freudiana, considerando-a, então, não tanto no seu sentido amplo como uma teoria do inconsciente, mas no seu sentido específico como um conjunto de conceitos auxiliares especulativos de validade apenas heurística, que o próprio Freud caracterizou como superestrutura especulativa da psicanálise (1925/2001bFreud, S. (2001c). New Introductory Lectures On Psycho-Analysis. In The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (Vol. 22, pp. 3-182). New York, NY: Vintage Classics . (Trabalho original publicado em 1933)). Os conceitos especulativos, centrais e estruturantes da metapsicologia freudiana, como todos sabem, são: as forças psíquicas ou pulsões, que Freud reconhece claramente como um tipo de mitologia; as energias psíquicas, na verdade a energia psíquica às vezes referida a um quantum de afeto, às vezes como libido; ambas energias supostas cujo valor heurístico justificaria seu uso como construção teórica auxiliar especulativa; e a própria ideia de um aparelho psíquico, que todos sabem que é uma ficção.

Na história do desenvolvimento da psicanálise, como já notou Assoun (1993Assoun, P.-L. (1993). Introduction à la métapsychologie freudienne. Paris, France: PUF , 1995., 2000Assoun, P.-L. (2000). La métapsychologie. Paris, France: PUF ., 2006Assoun, P.-L. (2006). Le symptôme humain: Winnicott a-métapsychologue. In La nature humaine à l´épreuve de Winnicott. Paris, France: PUF .), esse modo de teorização foi expandido e modificado em graus diversos (por exemplo: Abraham, Ferenczi, Klein, Federn, Anna Freud), substituído por outra de mesma natureza especulativa (por exemplo: Bion, Lacan), usado como caixa de ferramentas (Marty, Aulagnier) e, no caso extremo de Winnicott, que é para ele um autor indiferente à metapsicologia (cf. Assoun, 2000Winnicott, D. W. (1983c). Classificação: existe uma contribuição psicanalítica à classificação psiquiátrica? In O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre, RS: Artmed . (Trabalho original publicado em 1965), p. 114-116, 2006Winnicott, D. W. (1983d). Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self. In O ambiente e os processos de maturação (pp. 128-139). Porto Alegre, RS: Artmed , 1983. (Trabalho original publicado em 1965)).

Retomando, então, a posição de Winnicott, que vai numa direção aposta à dos que defendem a necessidade do uso de ficções teóricas tais como as que caracterizam a metapsicologia freudiana, temos uma explicação enunciada, por ele mesmo, da sua posição:

. . . estamos tentando expressar as mesmas coisas, só que eu tenho um modo irritante de dizer as coisas em minha própria linguagem, em vez de aprender a usar os termos da metapsicologia psicanalítica. Estou tentando descobrir por que é que tenho uma suspeita tão profunda para com esses termos. Será que é porque eles podem fornecer uma aparência de compreensão onde tal compreensão não existe? Ou será que é por causa de algo dentro de mim? Pode ser, é claro, que sejam as duas coisas. (1987/1990, carta enviada a Anna Freud em 1954, p. 51)

Fulgencio tem se dedicado a esse tipo de discussão perguntando-se sobre o lugar da teorização metapsicológica na obra de Winnicott, defendendo que ele rejeitou certos modos de teorização, tais como a utilização de metáforas especulativas (Fulgencio, 2005Fulgencio, L. (2010). Aspectos gerais da resdescrição winnicottiana dos conceitos fundamentais da psicanálise freudiana. Psicologia USP, 21(1), 99-125., 2007Fulgencio, L. (2012). Críticas e alternativas de Winnicott ao conceito de pulsão de morte. Ágora, XV(Especial), 469-480., 2008aFulgencio, L. (2013a). Ampliação winnicottiana da noção freudiana de inconsciente. Psicologia USP, 24(1), 143-164., 2015Fulgencio, L. (2013b). A redescrição da noção de Superego na obra de Winnicott. Rabisco. Revista de Psicanálise, 3, 153-168., Girard, 2010Girard, M. (2010). Winnicott’s foundation for the basic concepts of Freud’s metapsychology? The International Journal of Psychoanalysis, 91(2), 305-324., 2017Girard, M. (2017). Early and deep: two independent paradigms? The International Journal of Psychoanalysis (98), 963-984.); bem como, nessa mesma direção, procurou mostrar que Winnicott redescreveu diversos termos clássicos da metapsicologia freudiana, dando-lhes referentes empíricos que fazem com que estes não sejam mais construções teóricas especulativas (noutros temos, não sejam ficções heurísticas), afastando-se, assim, das especulações freudianas (Fulgencio, 2010Fulgencio, L. (2013c). A situação do narcisismo primário. Revista Brasileira de Psicanálise, 47(3), 131-142., 2012Fulgencio, L. (2014a). Aspectos diferenciais da noção de ego e de self na obra de Winnicott. Estilos da Clínica, 19(1), 183-198., 2013aFulgencio, L. (2014b). A necessidade de ser como fundamento do modelo ontológico do homem para Winnicott. In Birman, J., Cunha, E. L., & Fulgencio, L. A fabricação do humano (pp. 145-159). São Paulo, SP: Zagodoni., 2013bFulgencio, L. (2014c). A noção de Id para Winnicott. Percurso. Revista de Psicanálise, XXVI(51), 95-104., 2013cFulgencio, L. (2015). Discussion of the place of metapsychology in Winnicott’s work. The International Journal of Psychoanalysis, 96(5), 1235-1259. doi: 10.1111/1745-8315.12313
https://doi.org/10.1111/1745-8315.12313...
, 2014ªFulgencio, L. (2016). Por que Winnicott? São Paulo, SP: Zagodoni ., 2014c).

A proposta de Winnicott de apresentar uma teoria psicanalítica que difere e se afasta da metapsicologia naturalista freudiana também me parece reiterar a hipótese que nomeia este artigo, estabelecendo, por um lado, outra ontologia e, por outro, uma linguagem não naturalizante.

A noção de saúde para Winnicott

Em Freud e na maior parte dos sistemas psicanalíticos desenvolvidos a partir dele (Klein, Lacan, Bion), não há uma noção de saúde. No texto de Freud encontramos, por exemplo, a afirmação de que não há modo descritivo, mas tão somente teórico, para referir-se à noção de saúde: “A saúde, justamente, não se deixa descrever de outra maneira que metapsicologicamente, em referência às relações de força entre as instâncias do aparelho da alma que nós reconhecemos ou, se vocês quiserem, supomos, deduzimos” (1937/1985Winnicott, D. W. (1990). O gesto espontâneo. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1987), p. 241, nota 2). Assoun considera que Winnicott não é tanto um psicanalista, mas muito mais um pensador que fornece uma antropologia com recursos “psicodinâmicos” (2006Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1988), p. 67), dado que ele não parte propriamente do sintoma, mas de uma noção de saúde, o que constrastaria com o que deveria definir a posição de um psicanalista. Diz Assoun nesse sentido: “Um psicanalista parte do sintoma; nosso ‘antropólogo’, assumindo toda a dimensão desse termo, parte de uma outra coisa, a ‘saúde’’. É disto, justamente disso que se trata, portanto, no seu sentido mais literal, uma antropologia clínica” (2006Winnicott, D. W. (1994a). O uso de um objeto e o relacionamento através de identificações In Explorações psicanalíticas. Porto Alegre, RS: Artmed . (Trabalho original publicado em 1969), p. 67).

Winnicott, no entanto, sem correr o risco de desfazer as conquistas de Freud, (reintroduzindo uma concepção normatizante, moralizante, idealizada e ideológica dos sujeitos, tanto teórica como clinicamente, dado que sua noção é ampla o bastante para ser muito mais uma ética do ser do que uma moral do ser), apresenta uma noção descritiva da saúde:

A vida de um indivíduo são se caracteriza mais por medos, sentimentos conflitantes, dúvidas, frustrações do que por seus aspectos positivos. O essencial é que o homem ou a mulher se sintam vivendo sua própria vida, responsabilizando-se por suas ações ou inações, sentindo-se capazes de atribuir a si o mérito de um sucesso ou a responsabilidade de um fracasso. Pode-se dizer, em suma, que o indivíduo saiu da dependência para entrar na independência ou autonomia. (1971/1999a, p. 10) (cf. tb. Fulgencio, 2016Fulgencio, L. (2016). Por que Winnicott? São Paulo, SP: Zagodoni ., para uma análise da noção de saúde)

Aqui também a noção de saúde está muito mais próxima à maneira como o existencialismo moderno considera o modo de ser do ser humano, muito mais próxima à maneira como Heidegger caracteriza o Dasein, do que a considerar o ser humano como se fosse um aparelho, um ente da natureza.

A perspectiva desenvolvimentista de Winnicott

Winnicott é claro ao colocar-se como um desenvolvimentista: “Vocês já devem ter percebido que, por natureza, treinamento e prática, sou uma pessoa que pensa de modo desenvolvimental” (1984/1999bWinnicott, D. W. (1994b). O conceito de trauma em relação ao desenvolvimento do indivíduo dentro da família Explorações psicanalíticas. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1989), p. 42). Ele explicita sua posição:

Quando vejo um menino ou uma menina numa carteira escolar, somando ou subtraindo, e lutando com a tabuada de multiplicação, vejo uma pessoa que já tem uma longa história em termos de processo desenvolvimental, e sei que pode haver deficiências, distorções no desenvolvimento ou distorções organizadas para lidar com deficiências que têm de ser aceitas, ou que deve haver uma certa precariedade no que tange ao desenvolvimento que parece ter sido seguido. Vejo o desenvolvimento como indo em direção à independência e a significados sempre novos para o conceito de totalidade, que pode ou não se tornar um fato no futuro daquela criança, caso ela esteja e continue viva. Também tenho plena consciência do quanto se depende do meio ambiente, e do modo como esse meio, inicialmente importantíssimo, continua a ter significado e vai ter significado mesmo quando o indivíduo atinge a independência, por meio de uma identificação com características ambientais, como quando uma criança cresce, se casa e cria uma nova geração de filhos, ou começa a participar da vida social e da manutenção da estrutura social. (1984/1999bWinnicott, D. W. (1994c). A psicologia da loucura: uma contribuição da psicanálise. In Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott (pp. 94-101). Porto Alegre, RS: Artes Médicas , 1994. (Trabalho original publicado em 1989), pp. 42-43)

Mais ainda, para ele, a psicanálise é a única a nos apresentar essa teoria do desenvolvimento em função das relações de dependência: “Possuímos a única formulação realmente útil, que existe, da maneira pela qual o ser humano psicologicamente se desenvolve de um ser completamente dependente e imaturo para um estado maduro relativamente independente” (1989/1994cWinnicott, D. W. (1996). Treinamento para psiquiatria de crianças. In O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre, RS: Artmed . (Trabalho original publicado em 1963), p. 94).

O que eu gostaria, nesse contexto, é de destacar o quadro geral do processo de desenvolvimento para Winnicott, ou seja, a sua descrição do processo de desenvolvimento emocional focado na questão da dependência (ou, noutros termos, nas diversas maneiras de ser-com-o-outro), dado que tanto a ontologia por ele considerada (centrada na noção de ser) quanto a sua noção de saúde estão inseridas nesse contexto. No que se refere especificamente às fases do desenvolvimento do lactente, focadas na questão da dependência, Winnicott distingue três grandes períodos: (1) o da dependência absoluta, (quatro primeiros meses), na qual o lactente não tem, ainda, nenhuma possiblidade de reconhecer uma realidade não-self e o ambiente (a mãe-ambiente) como algo externo a ele; (2) dependência relativa (até aproximadamente 1,5 ano), na qual o lactente pode se dar conta da necessidade de detalhes do cuidado materno e pode de modo crescente relacioná-los ao impulso pessoal, fase em que surgem os fenômenos transicionais e que culmina como a conquista da integração ou do sentimento do EU SOU (Eu sou díspar do mundo), diferenciando-se de tudo que é não eu; e (3) fase rumo à independência (de 1,5 ano até o momento da chegada no fenômeno Édipo e seu cenário relacional), na qual o lactente começa a fazer uma série de integrações, até que chega a constituir-se como uma pessoa inteira (whole person) que tem, como uma de suas principais tarefas existenciais, a administração da vida instintual no cenário edípico, momento em que podem, enfim, ocorrer relações com objetos externos ao indivíduo (sentidos pelo indivíduo como externos) (1960/1983aWinnicott, D. W. (1999a). O conceito de indivíduo saudável. In Tudo começa em casa (pp. 3-22). São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1971), pp. 45-46).

Me parece terminologicamente adequado, com este tipo de análise, afirmar que a teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott é uma teoria do desenvolvimento do ser (dos diversos modos de ser consigo mesmo e com o outro, expressa nesses mesmos termos).

O tratamento psicoterápico do ponto de vista de Winnicott

O que visa o tratamento psicoterápico, seja no setting psicanalítico, seja noutros settings (ainda que construídos com base nessa teoria psicanalítica do desenvolvimento proposta por Winnicott)? Trata-se de levar o paciente a encontrar um lugar para viver, ter uma vida que sinta como real, sua, vivida a partir de si mesmo, aceitando aquilo que se é (com seus aspectos positivos, negativos, as limitações, qualidades etc.) e, por isso mesmo, que valha a pena ser vivida, seja com mais ou menos sofrimento. Trata-se de buscar, como ideal, aquilo que ele descreveu como saúde, sabendo, no entanto, que os indivíduos devem chegar a si mesmos, levar uma vida a partir de si mesmos, aceitando aquilo que são (nas suas potências, qualidades e limitações), podendo cuidar de si mesmos e dos outros ou do lugar em que vivem, podendo reparar danos que possam advir de si mesmos e também aproveitar o fato de ser responsável por fazer coisas de valor (para si e para os outros). Na saúde, o ser humano pode, então, adaptar-se ao mundo sem perda demasiada do senso de si mesmo e de sua espontaneidade (1965/2001Winnicott, D. W. (1999b). Sum: eu sou. In Tudo começa em casa (pp. 41-51). São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1984), p. 216), ou sem perda excessiva de seu impulso pessoal (1986/1999eWinnicott, D. W. (1999c). Variedades de psicoterapia. In Privação e delinquência. São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1984), p. 31).

E o que seria o tratamento psicoterápico, psicanalítico ou de base psicanalítica? Quais são seus objetivos e suas dinâmicas? Recolhendo as diversas maneiras como Winnicott caracterizou seu método de tratamento psicanalítico, podemos afirmar que: (1) a psicanálise torna possível ao paciente tratar de sua histórica, ocupando-se de uma coisa de cada vez (1958/1978Winnicott, D. W. (1999d). A cura. In Tudo começa em casa. São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1986), pp. 275-276); (2) o tratamento corresponde à realização de uma anamnese prolongada (1989/1994bWinnicott, D. W. (1999e). Vivendo de modo criativo. In Tudo começa em casa. São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1986), p. 109) ou a uma coleta de histórias (1965/1983cWinnicott, D. W. (2000). Desenvolvimento emocional primitivo. In Da Pediatria à Psicanálise: Obras Escolhidas(pp. 218-232). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1945), p. 121; 1984i, p. 264), tendo a terapêutica como subproduto (1963/1996Winnicott, D. W. (2001). Influências de grupo e a crianças desajustada A família e o desenvolvimento do individual. São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1965), p. 180); e, fundamentalmente, (3) a terapia deve ocorrer na conjunção da área de brincar do analista e do paciente (1971/1975c, p. 80).

Opondo-se à pergunta “quanto se deve fazer?” numa análise, Winnicott estabeleceu, na sua maturidade, outro lema: “quão pouco é necessário ser feito?” (1965/1983d, p. 152). Mas o que significa exatamente esse lema? Num determinado sentido, trata-se de esperar que o paciente faça as suas próprias descobertas, mas isso não significa não fazer nada; ao contrário, há que se criar as condições para que o paciente possa chegar, ele mesmo, às suas soluções: “Se pudermos esperar, o paciente chegará à compreensão criativamente, e com imensa alegria” (1969/1994a, pp. 121-122). Não se trata, no sentido estrito da expressão, apenas de revelar o inconsciente reprimido, de entender mentalmente a história e a própria condição existencial do paciente, mas de restituir as condições para que o paciente volte a ter autonomia para enfrentar seus problemas e viver sua vida por si mesmo, ainda que seja uma vida sofrida, mas sem falsas existências (falso self) e sem falsas soluções (uma solução falsa é aquela que não foi encontrada pelo próprio paciente). O tratamento psicoterápico visa criar condições ambientais e de comunicação para que o paciente possa amadurecer: “Num contexto profissional, dado o comportamento profissional apropriado, pode ser que o doente encontre uma solução pessoal para problemas complexos da vida emocional e das relações interpessoais; o que fizemos não foi aplicar um tratamento, mas facilitar o crescimento” (1986/1999d, pp. 113-114).

No final de um tratamento psicoterápico psicanalítico, ou de base psicanalítica, o paciente deveria conquistar a possibilidade de levar uma vida relativamente autônoma, podendo cuidar de si mesmo e dos outros - tal como deveria ocorrer com os filhos -, de modo que o psicoterapeuta, nesse sentido, passa a não ser mais um suporte ou uma sustentação ambiental necessária, a ponto de poder desaparecer: “Ao final de ramificações intermináveis em termos de fantasia hipocondríaca e delírios persecutórios, o paciente tem um sonho que expressa: Devoro-te. Eis aqui uma simplicidade marcante, como aquela do complexo de Édipo” (1965/1983b, p. 153).

Apontamento final

A retomada dessa série de referências - a ontologia, a saúde como telos, o processo de desenvolvimento descrito em termos das situações vividas e suas conquistas, alguns aspectos do processo psicoterápico -, aqui, serve para mostrar que Winnicott integrou todas as descobertas descritivas feitas pela psicanálise de Freud, Klein e outros de seus contemporâneos, com as concepções que considerei de acordo (conceituais e descritivas, ainda que não sendo propriamente as mesmas) com as encontráveis no existencialismo modermo, visando mostrar como elas surgem tanto nas descrições dos processos psíquico-emocionais quanto podem ser retomadas nos processos psicoterápicos e no manejo da relação entre o paciente e seu analista.

Com Winnicott, a ontologia, o telos desenvolvimentista (seja na saúde, seja nas organizações patológicas), a consideração dos modos de ser e de determinação inter-humana, está, pois, muito mais de acordo com aquilo que a fenomenologia e analítica existencial esperavam que pudesse ser o fundamento de uma psicologia científica de acordo com o Dasein, do que o modelo naturalista proposto inicialmente por Freud… sem deixar de ser psicanálise, dado que mantém os fundamentos empíricos da psicanálise (reconhecimento de processos psíquicos inconsciente, transferência, resistência, recalque, importância da sexualidade e do complexo de Édipo no processo de desenvolvimento e organização psíquica do ser humano), ainda que tenha reestruturado seu quadro epistemológico.

Referências

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  • 1
    Cf. Fulgencio, 2005; ver também Vaihinger 1911/2011Vaihinger, H. (1911/2011). A filosofia do como se. Chapecó, SC: Argos., sobre a Filosofia do como se, como procedimento de pesquisa.
  • 2
    Esta, pensando nas práticas psicoterápicas existencialistas, não deveria ser confundida com a angústia que advém da história afetiva do ser humano (as angústias edípicas, por exemplo).
  • 3
    Esta passagem corresponde a uma parte do anexo “De quelques concordances dans la vie d’âme des sauvages et des névroses”, composto por 5 parágrafos publicados em março de 1912 na revista Imago, como uma introdução à primeira parte de Totem e tabú; eles foram substituídos quando do surgimento do livro por um prefácio escrito em setembro de 1913. Esse anexo foi omitido nas edições que se seguiram e só foram republicados em 1987 (Nachtragsband da Gesammelte Werke). Essa passagem foi aqui citada a partir do texto das Obras completas publicadas em francês (Freud, 1913/1998).
  • 4
    Talvez esse seja um caminho frutífero para o diálogo e a conjunção dos conhecimentos advindos de diferentes sistemas teórico-semânticos díspares na psicanálise, questão metodológica que tem sido objeto de preocupação da International Psychoanalytical Association (IPA), como mostra o artigo de Bohleber et al. (2013Bohleber, W., Fonagy, P., Jiménez, J. P., Scarfone, D., Varvin, S., & Zysman, S. (2013). Towards a better use of psychoanalytic concepts: a model illustrated using the concept of enactment. The International Journal of Psychoanalysis, 94(3), 501-530.), bem como a recente publicação de Bernardi (2017Bernardi, R. (2017). A common ground in clinical discussion groups:Intersubjective resonance and implicit operational theories. International Journal of Psychoanalysis, 98(5), 1291-1309.) no International Jornal of Psychonalysis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2017
  • Aceito
    23 Fev 2018
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