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Imagem, corpo e linguagem em usos do aplicativo Grindr

Image, corps et langage dans utilisations de l’application Grindr

Image, cuerpo y lenguaje en usos de la aplicación Grindr

Resumo

O presente artigo aborda o aplicativo de busca por parceiros entre homens Grindr, em seus aspectos linguísticos e semióticos, enfatizando as produções imagéticas e discursivas de seus usuários, concebidas enquanto performatividades. Foram entrevistados onze homens que utilizam a rede social, com foco em suas composições fotográficas e interações textuais com outros membros do aplicativo, analisadas posteriormente a partir das perspectivas butlerianas e barthesianas sobre a linguagem e sua interface com a imagem. Constatou-se a composição de uma “gramática” produzida no interior do aplicativo, com significação particular de palavras e imagens e direcionamento comercial e midiático. Além disso, técnicas de composição e manipulação de fotografias, modulações do corpo e associação de práticas travadas no aplicativo a uma dimensão política foram abordadas pelos entrevistados. Desta forma, foi possível entender o Grindr como um “sistema de significação”, no qual tais dinâmicas são produzidas, negociadas e disputadas no seu próprio uso.

Palavras-chave:
fotografia; homossexualidade masculina; sexualidade; tecnologia, aplicativos de busca por parceiros

Résumé

Le présent travail discute l’application de recontres pour hommes Grindr, dans ses aspects linguistique et sémiotique, en mettant l’accent sur les productions imaginaires et linguistiques de ses utilisateurs, conçues comme des performativités. Onze hommes qui utilisent ce réseau social ont été interviewés, en se concentrant sur leurs compositions photographiques et leurs interactions textuelles avec les autres membres, analysées par la suite dans les cadres des perspectives butlerienne et barthesiennes sur la langue et sa relation avec l’image. On a identifié la composition d’une “grammaire” produite à l’intérieur de l’application, avec une signification particulière des mots et des images, avec ciblage commercial et médiatique. En outre, les interviewés ont abordé les techniques de composition et de manipulation des photographies, les modulations corporelles et l’association de pratiques enfermées dans l’application à une dimension politique. Ainsi, il a été possible de comprendre le Grindr comme un “système de signification” où ces dynamiques sont produites, négociées et contestées dans leur propre usage.

Mots-clés:
photographie; homosexualité masculine; sexualité; technologie; applications de rencontres

Resumen

El presente artículo discute la aplicación de citas entre hombres Grindr, en sus aspectos linguísticos y semióticos, enfatizando las producciones de imágenes y lenguaje de sus usuarios, comprendidas como performatividades. Once hombres usuarios de Grindr fueron entrevistados, con foco en sus composiciones fotográficas y interacciones textuales con otros miembros de la red social, posteriormente analizadas a partir de las perspectivas butlerianas y barthesianas sobre el lenguaje y sus relaciones con la imagen. Se constató la producción de una “gramática” en el interior de la aplicación, con la significación particular de palabras y imágenes com dirección comercial y mediatica. Además, técnicas de composición y manipulación de fotografías, modulaciones del cuerpo y la asociación entre prácticas en la aplicación a cuestiones políticas fueron abordadas por los entrevistados. De esta manera, fue posible comprender Grindr como un “sistema de significación”, dónde estas dinámicas son producidas, negociadas y disputadas en sus usos.

Palabras clave:
fotografía; homossexualidad masculina; sexualidad; tecnología; aplicaciones de citas

Abstract

In our study we discuss the gay dating app Grindr, considering its linguistic and semiotic aspects, emphasizing its users’ imagery and linguistic productions, conceived as performativities. Eleven users of this social network were interviewed, focusing on their photographic compositions and textual interactions with other members, subsequently analyzed under Butlerian and Barthesian perspectives on language and its relation to image. A “grammar” with particular meanings of words and images with commercial and mediatic target was found out to be used within the application. Furthermore, techniques of photography, body improvement, and associations between practices and political issues were addressed by the interviewees. Therefore, we could understand Grindr as a “meaning system”, where such dynamics are produced, negotiated and disputed in its uses.

Keywords:
photography; male homosexuality; sexuality; technology; dating apps

Introdução

Este artigo está relacionado a estudos desenvolvidos no Núcleo de Estudos e Intervenção Psicossocial à Diversidade (NEPSID), entre os anos de 2016 e 2018, acerca das possibilidades de autonarratividade e exercício da sexualidade entre homens mediadas por tecnologias móveis (Pizzinato, Hamman & Maracci-Cardoso, 2018Pizzinato, A., Hamman, C. & Maracci-Cardoso, J. (2018). Dinâmicas atuais na busca de sexo entre homens: o Grindr como ferramenta de gestão de práticas sexuais. In F. Machado, F. Barnart, & R. Mattos (Orgs.), A diversidade e a livre expressão sexual entre as ruas, as redes e as políticas públicas (pp. 179-194). Porto Alegre, RS: Reunida.). Acredita-se que essas plataformas performam enlaces para produções de si através de fotografias, textos e relações estabelecidas entre seus usuários. Por essa via, o estudo de tais tecnologias e de suas apropriações apresenta um profícuo caminho para a compreensão das performatividades de gênero e das relações entre sujeitos e tecnologias na contemporaneidade.

Assim, o presente trabalho visa a analisar como sujeitos produzem a si mesmos no campo da linguagem, especialmente por meio de fotografias, a partir dos usos do aplicativo Grindr. Para tanto, abordamos os usos de tal aplicativo em aspectos históricos e seus efeitos na cultura. Em seguida, discutimos o referencial teórico da “produção de si” e seus desdobramentos através da fotografia. Por fim, apresentamos as entrevistas realizadas neste processo de investigação, bem como a análise destas e a compreensão do aplicativo como agenciador prático e semiótico de relações entre homens.

O Grindr

O histórico das plataformas de mediação virtual do sexo diz respeito, inicialmente, à busca por relações entre homens, sendo o Grindr, lançado no ano de 2009, o primeiro aplicativo a conjugar a busca por parceiros ao mecanismo de geolocalização por satélite (Miskolci, 2014Miskolci, R. (2014). San Francisco e a nova economia do desejo. Lua Nova, (91), 269-295. doi: 10.1590/S0102-64452014000100010
https://doi.org/10.1590/S0102-6445201400...
). Hoje tal possibilidade tecnológica se expande em plataformas específicas para diversos públicos-alvo: heterossexual, gay ou lésbico.

Com o Grindr, o usuário pode visualizar as 99 pessoas mais próximas, trocar mensagens privadas, fotos e mapas. Este mecanismo alterou as dinâmicas do sexo entre homens e a relação estabelecida entre esta sexualidade e o espaço público (Miskolci, 2014Miskolci, R. (2014). San Francisco e a nova economia do desejo. Lua Nova, (91), 269-295. doi: 10.1590/S0102-64452014000100010
https://doi.org/10.1590/S0102-6445201400...
). O Grindr e os sucessores aplicativos com tal finalidade alteraram a lógica da busca por parceiros, sobrepondo as realidades on-line e off-line e rompendo assim com distinções anteriormente utilizadas para entender o “mundo virtual” em oposição ao “mundo real”, além de permitirem uma dinâmica de socialização mediante contatos individuais/particulares que se distanciam das possibilidades ofertadas pelas mediações do sexo entre homens quando não havia aplicativos (Oliveira, 2017Oliveira, T. L. (2017). Sobre o desejo nômade: pessoa, corpo, cidade e diferença no universo da pegação. Rio de Janeiro, RJ: Multifoco.).

Os smartphones e outros dispositivos móveis permitem uma conexão contínua com a internet, de modo a tornar o acesso à rede transversal à vivência do espaço público. Tal conjugação proporciona uma nova experiência da cidade, que passa a ser vivida conjuntamente com realidade on-line. De acordo com Oliveira (2017Oliveira, T. L. (2017). Sobre o desejo nômade: pessoa, corpo, cidade e diferença no universo da pegação. Rio de Janeiro, RJ: Multifoco.), esses espaços se produzem por meio das relações que ali se estabelecem, assim, são viabilizadas novas formas de engendramento das vivências dentro dos marcadores que cada sujeito representa.

Nas dinâmicas do Grindr, o perfil é a maneira disponibilizada pelo aplicativo para enunciar tais marcadores e identificações - desde atribuições identitárias até requisitos de busca por parceiros delimitados pelo usuário -, com campos disponíveis para preenchimento voluntário. Pode-se escolher uma foto, um nome e um about me (usando caracteres e emojis), inserir dados como idade, altura, peso, etnicidade, tipo de corpo, o que se procura, status de relação (solteiro, casado, relacionamento aberto, …..), tribos (na versão gratuita, só se pode escolher uma tribo), posição sexual de preferência, condição sorológica, além de associar no perfil um link para Instagram, Facebook ou Twitter. Todas essas opções são de preenchimento voluntário.

O Grindr difere-se das salas de bate papo (como os chats presentes nos portais Uol e Terra, muito utilizados na mediação do sexo gay nos primeiros anos do século XXI) pelo critério exclusivo de proximidade. Enquanto nesse outro momento da socialização gay por via da internet podia-se escolher uma sala por temática comum (fetiches específicos, idades, cidades etc.), com o aplicativo, são expostas apenas pessoas próximas ao usuário. Há um mecanismo de seleção que permite a visualização das pessoas que correspondem às “tribos” ou outras categorias escolhidas pelo sujeito, no entanto, como esta opção é dificultada para os não pagantes do serviço, não é um dispositivo usado corriqueiramente, ao menos no Brasil.

Desta forma, as informações expostas no perfil configuram-se pela função de expor ou não a maneira como os usuários se relacionam com o aplicativo, indicada a partir de códigos textuais e imagéticos em uma rede semântica compartilhada em maior ou menor nível pelos outros. Esta rede envolve emojis, estilos de fotos, números, palavras e frases que se articulam em sentidos específicos, usados para dizer quem se é e o que se busca por meio aplicativo.

Nesse sentido, Miskolci (2012Miskolci, R. (2012). A gramática do armário: notas sobre segredos e mentiras em relações homoeróticas masculinas mediadas digitalmente. In L. Pelúcio & L. Souza (Orgs.), Olhares plurais para o cotidiano: gênero, sexualidade e mídia (v. 1, pp. 35-55). Marília, SP: Cultura Acadêmica.) aponta que a criação de um perfil em uma rede social on-line articula um “eu privado” a uma “performance pública”, ou seja, parte da exteriorização de determinados elementos na constituição de uma “persona” pública. Este “eu” on-line, segundo o autor, opera como uma “versão idealizada de si mesmo” (p. 7), pela qual as pessoas produzem imagens melhoradas sobre quem são.

A constituição de um perfil gira, usualmente, em torno de três elementos: nome, foto e descrição, funcionando como um “cartão de visitas” do usuário na rede social específica (Illouz, 2011Illouz, E. (2011). O Amor nos Tempos do Capitalismo (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 2007); Miskolci, 2012Miskolci, R. (2012). A gramática do armário: notas sobre segredos e mentiras em relações homoeróticas masculinas mediadas digitalmente. In L. Pelúcio & L. Souza (Orgs.), Olhares plurais para o cotidiano: gênero, sexualidade e mídia (v. 1, pp. 35-55). Marília, SP: Cultura Acadêmica.). Para os autores, essa ação retoma uma lógica de consumo pela qual o “eu on-line” opera como a mercadoria exposta em uma vitrine. Neste sentido, Miskolci (2012)Miskolci, R. (2012). A gramática do armário: notas sobre segredos e mentiras em relações homoeróticas masculinas mediadas digitalmente. In L. Pelúcio & L. Souza (Orgs.), Olhares plurais para o cotidiano: gênero, sexualidade e mídia (v. 1, pp. 35-55). Marília, SP: Cultura Acadêmica. refere a centralidade do corpo no processo de visibilização de si, tornando a aparência física um dos principais elementos das produções fotográficas presentes nesses aplicativos. Além disso, aponta certa homogeneização na criação de perfis, de modo que estas ferramentas assumam um caráter “pedagógico” para seus usuários, delimitando a partir de quais informações se deve formular uma apresentação sobre si.

Miskolci (2017Miskolci, R. (2017). Desejos digitais: uma análise sociológica da busca por parceiros on-line. São Paulo, SP: Autêntica.), ainda, contrapõe a possível associação entre a criação de um perfil e um entendimento de sujeito anterior, estável, situado “por trás” da ferramenta. Pelo contrário, o uso do aplicativo envolve uma conexão entre elementos midiáticos e tecnológicos, na qual o sujeito, à medida que cria uma versão idealizada de si, também se produz nesse procedimento. Tal compreensão encontra respaldo em análises como a de Mowlabocus (2007Mowlabocus, S. (2007). Gaydar: gay men and the pornification of everyday life. In K. Nikunen, S. Paasonen, & L. Saarenmaa (Eds.), Pornification: sex and sexuality in media culture (pp. 61-72). Oxford, UK: Berg.), que aponta uma articulação entre a criação de perfis em um site de busca por parceiros entre homens e a pornografia voltada ao público gay, de modo que seja comum as categorias que descrevem vídeos pornográficos tornarem-se também categorias de entendimento e identificação entre os usuários, como nas nomenclaturas “daddy”, “twink” e “bear” - presentes nas “tribos” disponíveis no Grindr.

Sob esta via de compreensão, visamos a analisar esse aplicativo a partir da perspectiva da produção de si, tomada principalmente em referência às teorias da performatividade. Para tanto, buscamos conectar este arcabouço teórico às articulações nas quais o uso do Grindr é performado: entre as imagens, os textos, a dimensão erótica e também política, levando em consideração o campo discursivo que serve como condição de possibilidade para a emergência destas questões, sistematizado em instituições como gênero, sexualidade e masculinidade.

Produção de si

A ideia de produção de si é tomada em referência à obra de Butler (1990Butler, J. (1990). Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York, NY: Routledge.) acerca da performatividade, que propõe uma concepção de sujeito baseada na prática. Opondo-se aos dualismos que privilegiam a sociedade em detrimento do indivíduo ou vice-versa, a autora propõe uma noção de sujeito baseada no próprio fazer. A assujeição se dá, assim, através de práticas, circunscritas na discursividade vigente, em ações performativas interiores à normatividade, mas que a podem reorganizar em manifestações de si (Butler, 2015Butler, J. (2015). Relatar a si mesmo: crítica da violência ética (R. Bettoni, trad.). São Paulo, SP: Autêntica. (Trabalho original publicado em 2005)).

A concepção da performatividade pressupõe a ausência de um “eu” anterior à ação, ou seja, é a própria ação que constitui uma ideia de “eu”. Nesse sentido, entende-se o sujeito como performado em práticas de si relativas a um regime discursivo, relacionando-se a este por meio de reiterações, tensionamentos ou subversões, sempre interiores a ele (Butler, 1990Butler, J. (1990). Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York, NY: Routledge.). O sujeito funda-se, assim, pela resposta aos discursos que o interpelam, reorganizando-os em sua ação performativa, sua agência. O “eu”, para Butler, excede a narração do próprio sujeito, visto que sua origem jamais será plenamente explicada. O “eu” não se origina em um indivíduo por si, mas sim nas relações de interpelação e resposta que este estabelece com o outro (Butler, 2015Butler, J. (2015). Relatar a si mesmo: crítica da violência ética (R. Bettoni, trad.). São Paulo, SP: Autêntica. (Trabalho original publicado em 2005)).

Assim, a performatividade engloba diferentes produções do gênero e da sexualidade, bem como de outros marcadores sociais em diálogos e tensionamentos com a cultura. Refere-se a uma resposta a discursos prévios e interpeladores, também abalados e possivelmente modificados à medida que se os tensiona frente à multiplicidade das formas de produzir a si mesmo.

Deste modo, pensar o uso de mídias digitais sob a perspectiva da performatividade pressupõe entendê-las como um espaço para produções de si, no qual sujeitos expressarão de diversas formas a maneira como se entendem e entendem seu desejo, construindo uma condição própria de si mesmos. De formas mais ou menos explícitas, essas performatividades retomam valores sociais vigentes no contexto em que tais aplicativos são utilizados e nos processos comunicativos singulares ao uso das ferramentas.

Nessa direção, Couto, Morelli, Galindo e Souza (2016Couto, W., Morelli, F., Galindo, D., & Souza, L. (2016). Práticas sexuais em geolocalização entre homens: corpos, prazeres, tecnologias. Athenea Digital, 16(2), 169-193. Recuperado de https://bit.ly/2UrNjP2
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) apontam que dispositivos móveis de busca por parceiros entre homens “inauguram outras modalidades de sexo, suscitam outras afetações aos corpos e ressignificam práticas normatizadas” (p. 170). Os discursos que delimitam e regulam o gênero e a sexualidade continuam presentes no aplicativo, mas se apresentam em disputas e controvérsias entre os usuários. Dessa forma, pode-se entender o Grindr como um espaço possível de re-produção de normas e expressão de resistências acerca das vivências contemporâneas de homens que fazem sexo com homens, de modo que os usuários produzam a si mesmos a partir das dinâmicas de poder e resistência que estabelecem condições de possibilidade para suas vivências (Foucault, 2012Foucault, M. (2012) Historia de la sexualidad 1: la voluntad del saber (U. Guiñazú, trad.). Madrid, ES: Siglo Veintiuno. (Trabalho original publicado em 1970)).

A constituição de um perfil no Grindr, assim, não é redutível à mera exposição de uma versão idealizada do sujeito que utiliza a ferramenta, como apontado anteriormente. Pelo contrário, concebemos a elaboração do perfil como escolha performativa entre os códigos disponíveis, a partir da qual usuários narram quem são e o que buscam na sua relação com as ferramentas, produzindo a si mesmos nessa ação. A escolha, desse modo, se configura na reorganização daqueles atributos disponíveis para a manifestação de um “eu” no aplicativo. Este “eu”, no entanto, não pode ser entendido como restrito ao uso da rede social em questão, posto que, dado o nível atual de conectividade promovido pela tecnologia, ele se estende à vida cotidiana, em âmbitos privados ou públicos.

Nesse sentido, a composição de imagens parece ser um elemento importante para a produção de si de usuários de aplicativos móveis, dada a centralidade da fotografia nessas redes sociais. Fotografar a si mesmo, desse modo, configura-se como uma maneira de, também, produzir quem se é nesses aplicativos - e para além deles, dado o contexto de conectividade intensa no qual são utilizados.

Fotografia

Sontag (2011Sontag, S. (2011). Sobre fotografia (R. Figueiredo, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1973)), em sua análise sobre a fotografia na contemporaneidade, aponta que as sociedades pós-industriais teriam se tornado dependentes dessa produção imagética, de modo que ela tenha se composto como uma forma específica de ver, compreender e valorizar o mundo. Para a autora, “as fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar” (Sontag, 2011Sontag, S. (2011). Sobre fotografia (R. Figueiredo, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1973), p. 13).

Suas reflexões inspiram-se nas propostas de Barthes (2012a)Barthes, R. (2012a). A câmara clara: notas sobre fotografia. (J. Guimarães, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1980), que aponta o caráter tautológico da fotografia, apresentando-se sempre a partir do seu próprio repertório, tanto em relação à técnica quanto à cultura na qual se insere. Para o autor, o referente fotográfico - ou seja, o que configura a fotografia como um modo específico de produção de imagem, diferente de formas representacionais como a pintura ou o desenho - diz respeito àquilo que ela capta, o momento, algo que incontestavelmente ocorreu na realidade, em frente às lentes da câmera.

Para Barthes (1980Barthes, R. (1980). Rhetoric of the image. In A. Trachtenberg (Ed.), Classic essays on photography (pp. 269-285). New Haven, CT: Leete’s Island.), a mensagem fotográfica é dividida entre seu caráter denotativo - o referente, aquilo que efetivamente ocorreu em frente à lente da câmera - e o conotativo, com um código aberto e contingente. Segundo o autor, a mensagem conotativa é contínua, já que não diz respeito apenas à imagem contida nas fotos, mas também à relação que esta estabelece com enunciados linguísticos. Dessa forma, a conotação, paradoxalmente, desenvolve-se a partir de uma mensagem sem código, que adquire sentido à medida que é significada por elementos textuais. O texto, deste modo, parasita a imagem, podendo alargar ou até mesmo alterar o sentido de uma fotografia.

Analisando os discursos publicados sobre a fotografia, Barthes (2012a)Barthes, R. (2012a). A câmara clara: notas sobre fotografia. (J. Guimarães, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1980) aponta que estes usualmente dividem-se em dois: o primeiro, relacionado à técnica, toma a fotografia com uma visão “muito perto” (p. 16), enquanto o segundo, que diz respeito a seu aspecto sociológico, a vê de “muito longe” (p. 16). O autor, por sua vez, aposta em um empreendimento distinto, que busca analisar a fotografia baseando-se nos efeitos que ela produz no espectador: sensações que suscita, preferências, significados.

Nesta direção, conceitua dois campos de afetação diferentes provocados pela foto: o studium e o punctum. O primeiro diz respeito às condições sociais, culturais e materiais que a fotografia evoca, seu contexto, o que ela informa. Códigos estéticos, papéis sociais, referências culturais e inúmeras outras formas de organização podem ser notados através de uma foto - daí seu caráter sociológico, sua dimensão técnica, seu studium. O punctum, por outro lado, é conceituado pelo autor como um corte, algo que a fotografia não quer dizer, mas que se produz como efeito no espectador. Esse corte tem uma dimensão particular, relacionada à experiência de quem olha, no entanto, aponta também para um punctum transversal à fotografia, presente em toda imagem obtida por meio desta tecnologia, à medida que o ato fotográfico “repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente” (2012a, p. 14).

Em relação ao contexto contemporâneo de produção fotográfica, referente ao acoplamento sofisticado entre câmeras digitais e celulares, considera-se que a fotografia adquire o status de mídia de comunicação instantânea. Nesse sentido, o compartilhamento das imagens em plataformas digitais já se insere como parte do próprio processo fotográfico, de modo que os aplicativos para a postagem de imagens configurem-se como potencializadores dos sentidos retóricos que a fotografia pode exercer (Lemos & Rodrigues, 2014Lemos, A. & Rodrigues, L. (2014). Internet das coisas, automatismo e fotografia: uma análise pela Teoria Ator-Rede. Revista FAMECOS, 21(3), 1016-1040. Recuperado de https://bit.ly/2FXnfs0
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). Assim, como propõe Barthes (1980Barthes, R. (1980). Rhetoric of the image. In A. Trachtenberg (Ed.), Classic essays on photography (pp. 269-285). New Haven, CT: Leete’s Island.), são estabelecidos significados específicos na relação entre imagens, textos e redes sociais.

Considera-se que a conotação de uma fotografia no Grindr envolve a negociação entre o contexto do aplicativo e as informações textuais que a acompanham, promovendo uma significação específica da imagem nessa plataforma. Tal significação faz parte de um delineamento da produção de si, inserindo-se também na maneira como se constrói um “eu” contingente à ferramenta - que, como visto, não se restringe às fronteiras do aplicativo.

Dessa forma, será apresentada nossa proposta metodológica de abordar tais questões com usuários do Grindr, bem como, em sequência, as entrevistas referentes a tal procedimento.

Método

Para conduzir as entrevistas com usuários do Grindr, foi criado um perfil institucional do grupo de investigação no aplicativo, cujo nome era “Pesquisa”, a foto de exibição era o logotipo do grupo - com as iniciais NEPISD - e, na descrição, constava o seguinte texto:

Somos um grupo do Instituto de Psicologia da UFRGS e pesquisamos sobre a homossocialização via aplicativos, construção dos perfis e gestão do risco sexual. Caso aceite participar, podemos passar mais informações sobre nós e nossas pesquisas.

Figura 1
Foto e descrição do perfil institucional criado

A composição desse perfil decorreu de uma trajetória de tentativas de aproximação e experimentação do Grindr no âmbito da pesquisa. Inicialmente, realizamos a abordagem com contas pessoais no aplicativo - explicitando o caráter de investigação e enviando o “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido” no início da conversa. Tal configuração mostrou-se pouco eficiente, dado que a conta pessoal não gerava confiança nos entrevistados, além de limitar as entrevistas aos seus critérios de busca por parceiros, com ampla ausência de respostas.

Em seguida, criamos uma conta sem foto e sem informações de quem realizava a entrevista, contando apenas com referências à investigação. Esta proposta tampouco foi eficiente para a pesquisa, dado que a falta de imagem é tomada como negativa no contexto do aplicativo, incorrendo, novamente, em constante ausência de respostas ou dificuldade em dar continuidade às conversas.

Em função do acesso limitado aos entrevistados, utilizamos uma proposta metodológica inspirada no trabalho de Blackwell, Birnholtz e Abbot (2015Blackwell, C., Birnholtz, J & Abbot, C. (2015). Seeing and being seen: co-situation and impression formation using Grindr, a location-aware gay dating app. New Media and Society, 17(7), 1117-1136. Recuperado de https://bit.ly/2MGM0cv
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), de construção de um perfil institucional, com o logotipo do grupo de investigação e texto explicativo da pesquisa. Tal composição mostrou-se mais proveitosa em nosso movimento de aproximação com os usuários, à medida que estes passaram a iniciar conversas conosco, além de as ausências de respostas terem diminuído.

Sabemos, no entanto, que a delimitação institucional da conta também circunscreve o público disposto a participar da pesquisa, com enviesamento de pessoas mais escolarizadas, de classes média e alta e com familiaridade em relação à produção acadêmica. Não há como construir um perfil neutro, que seja agradável a todos os usuários, visto que as relações no aplicativo também são mediadas pelo desejo e pela sexualidade. Desta forma, toda escolha na composição do perfil delimita o público com que é possível entrar em contato - e, em função disso, optamos pela configuração que nos forneceu número maior de respostas.

A partir desse perfil, entrevistamos sete pessoas no chat disponível do Grindr, além de realizar quatro entrevistas presenciais, conforme a disponibilidade e interesse dos participantes. Seguimos o modelo semiestruturado de entrevista (Duarte, 2004Duarte, R. (2004). Entrevistas em pesquisas qualitativas. Educar em Revista, (24), 213-225. Recuperado de https://bit.ly/2DJgB6s
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), com algumas questões disparadoras para temáticas que buscávamos abordar na pesquisa. Tais perguntas diziam respeito à construção do perfil, em relação a textos e fotografias; uso de outras redes sociais na busca por parceiros; motivações para o uso do Grindr; produção de fotografias para o aplicativo; modos de relação na ferramenta; locais e horários para o uso; escolha de pessoas no aplicativo; dinâmicas de flerte de sedução; troca de mensagens, fotografias e mapas; formas específicas de comunicação no aplicativo; gerenciamento de riscos; experiências passadas etc.

Essa gama de assuntos possibilitou a elaboração de um panorama de usos do Grindr, a partir do qual enfocamos, neste trabalho, as imagens e os códigos linguísticos que são produzidos e circulam na rede social, com relação a temáticas como corpo, sexo e relações traçadas na ferramenta e para além dela. Tais entrevistas foram analisadas conforme os Estudos Críticos do Discurso, que compreendem os enunciados linguísticos através de sua relação com discursos socialmente compartilhados (Flick, 2009Flick, U. (2009). Introdução à pesquisa qualitativa. (J. E. Costa, trad.). Porto Alegre, RS: Artmed.).

Para pensar a fotografia, utilizamos a perspectiva barthesiana, a partir dos conceitos “Ancoragem” e “Retransmissão” (Barthes, 1979Barthes, R. (1979). The photographic message. In S. Sontag (Ed.), A Barthes reader (pp. 194-210). New York, NY: Hill and Wang.; Kasra, 2017Kasra, M. (2017). Digital-networked images as personal acts of political expression: new categories for meaning formation. Media and Communication, 5(4), 1-64. Recuperado de https://bit.ly/2FZwyHZ
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), que se referem, respectivamente, à função linguística pela qual informações textuais conduzem a uma interpretação particular na leitura de uma imagem, e a um conteúdo expandido, uma leitura que alarga os sentidos presentes na imagem sozinha. Nesse sentido, o contexto de compartilhamento e instantaneidade da fotografia promove sentidos específicos e contingentes para as imagens, referentes às articulações entre a plataforma em que é postada, como legendas, hashtags e algoritmos (Lemos & Rodrigues, 2014Lemos, A. & Rodrigues, L. (2014). Internet das coisas, automatismo e fotografia: uma análise pela Teoria Ator-Rede. Revista FAMECOS, 21(3), 1016-1040. Recuperado de https://bit.ly/2FXnfs0
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).

Dessa forma, as imagens são analisadas, neste trabalho, a partir dos elementos linguísticos que se relacionam com elas, como conteúdos textuais disponíveis nos nomes e descrições dos usuários, enunciados acessados pelas entrevistas, e as relações com outras imagens e textos no interior do aplicativo. Assim, esta análise permite acesso às fotografias em seu nível de studium (Barthes, 2012aBarthes, R. (2012a). A câmara clara: notas sobre fotografia. (J. Guimarães, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1980)), ou seja, sua dimensão sociológica e técnica, que possibilita uma compreensão da imagem enquanto contexto.

No entanto, buscamos também acessar as fotografias em outro nível de afetação, aquele nomeado pelo autor como punctum (Barthes, 2012aBarthes, R. (2012a). A câmara clara: notas sobre fotografia. (J. Guimarães, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1980)). Descrito como um “corte”, este nível diz respeito à afetação que a foto produz no espectador, no campo das sensações. Esta direção é tomada aqui pela compreensão de que, no aplicativo, circulam questões que excedem uma “racionalidade” do sujeito usuário, dado que a sexualidade também se produz em um âmbito não totalmente controlável, relacionado a sensações, emoções e desejos. Para tanto, elaboramos um questionamento sobre as fotografias que, para o participante, se destacavam de alguma maneira, chamavam atenção e se diferenciavam das outras em um nível de desejo. A partir dessas fotos, que os participantes mostravam na entrevista, conversávamos sobre as sensações por elas evocadas.

Além disso, como recurso metodológico para compreender a maneira como os entrevistados entendiam o uso do aplicativo, elaboramos uma pergunta que os convocava a nos explicar os modos de funcionamento sobre os quais deveríamos estar cientes para um uso da ferramenta. Questionamos, especificamente: “O que eu deveria saber se fizesse uma conta no Grindr agora?”.

Desse modo, a partir da temática das imagens, tentamos acessar as dinâmicas de produção de si dos usuários, que envolvem a maneira como se relacionam pelo aplicativo, como produzem seus corpos, como escolhem enunciados para seus perfis e outros elementos que serão vistos a seguir.

Entrevistas

Neste trabalho de campo, destacou-se, primeiramente, o conjunto de imagens acessado na visualização dos perfis disponíveis no Grindr e também nas narrativas dos entrevistados, enfocando, em especial, a predominância de fotos de corpo nessa rede social. Corpos esses que usualmente correspondem a um ideal de saúde, performado por músculos definidos em contraposição à gordura ou à magreza excessiva. As imagens de corpos contemplados por esse padrão se inserem nas dinâmicas de flerte como critério de maior desejabilidade, tanto na busca por encontros quando na produção de si dos usuários. Ou seja, tal norma estética incide no ideal referido aos parceiros e também nas estratégias e desenvolvimento de um corpo desejável para tais dinâmicas.

Esse processo pode ser acessado nas falas do usuário Gustavo1 1 São utilizados no texto nomes fictícios para preservar o sigilo e a privacidade dos participantes. , um jovem branco de 26 anos, que explica, primeiramente, os atributos de fotos que lhe despertam interesse e desejo quando usa o aplicativo. Para tanto, apresenta duas imagens de homens com quem conversou recentemente pelo Grindr, ambos brancos, magros e “sarados”, cuja foto de perfil exibia seus abdomens e um recorte de seus rostos. O entrevistado narra, em seguida, sua metodologia para criar boas imagens, assim como aquelas recentemente apresentadas. Sobre a selfie em frente ao espelho, que ilustra sua conta, Gustavo refere:

É uma luz que vem meio de lado e cria uma certa sombra. Vem meio de cima e de lado. Principalmente quando tu tira foto de corpo, porque cria certa sombra no peitoral que parece que tu é mais sarado que tu realmente é. . . . Sério, realmente é isso. Uma foto de lado, uma luz meio difusa, essa é a luz.

Os efeitos da iluminação e do ângulo do corpo, no entanto, acabam produzindo, também, um questionamento sobre a veracidade da imagem, dado que, sob outras posições e condições de luz, o corpo de Gustavo já não é mais aquele retratado pela fotografia.

Eu olho pra essa foto e esse corpo não é meu. É meu porque eu to ali e porque eu não editei a foto. Quer dizer, eu editei, claro, pela luz ou pelo filtro, mas tipo, eu não sou assim. Ó, essa aqui [mostra outra fotografia de seu corpo] é uma luz que vem de lado e aqui tem uma sombra que tipo, eu me olho de frente e não vejo essa covinha que eu tenho aqui. Mas é coisa da luz, entendeu? Daí eu vou postar essa foto no Grindr, porque, né, assim, a pessoa vai me ver ali e não é essa coisa assim, sabe?

O jogo de luzes, sombras e ângulos performam uma imagem de Gustavo que se assemelha àquelas por ele consideradas como ideais e desejáveis nos circuitos de busca virtual por sexo. No entanto, a realidade desse corpo é marcada pela contingência entre tais elementos, que, quando desfeita, revela um outro corpo, menos coerente com as expectativas da norma corporal. O entrevistado, desse modo, aponta outras formas de produzir seu corpo na busca por imagens que lhe favoreçam nas dinâmicas de flerte e sedução nos aplicativos, relacionadas a uma materialidade orgânica performada na alimentação e nos treinamentos em academias de ginástica:

Eu mudei muito minha rotina há um ano e meio, comecei a me alimentar melhor, fazer um pouco de academia. Meu corpo mudou, me sinto mais bonito, mais saudável, todas essas questões também e junto disso também uma vontade a mais, um motivo para eu querer estar mais exposto, né, nos aplicativos. . . . Todo esse estilo de vida da pessoa também vai configurando algum comportamento dela em termos da imagem no aplicativo.

Nesse sentido, o corpo e a imagem que o retrata são produzidos em relação à normatividade na qual se inserem, negociando modos de visibilidade contingentes nos elementos disponíveis: desde ângulos e formas de iluminação até aparelhos de academias de ginástica que performam um corpo ideal, ou pelo menos mais próximo do ideal. No entanto, o efeito da norma sobre o sujeito não é diretivo ou totalizante, pelo contrário, como aponta Foucault (2012Foucault, M. (2012) Historia de la sexualidad 1: la voluntad del saber (U. Guiñazú, trad.). Madrid, ES: Siglo Veintiuno. (Trabalho original publicado em 1970)), as relações de poder são estabelecidas conforme as possibilidades de resistência, de modo que as dinâmicas da norma contemplem também sua própria contradição.

A possibilidade de resistência, dessa forma, não se coloca no exterior da norma, mas sim em sua própria dinâmica, delimitando os contornos dentro dos quais é produzida. Nessa direção, as falas do participante Jorge - um homem negro de 28 anos - são ilustrativas para contemplar as contradições dos ideais estéticos, imagéticos e corporais que circulam nessa rede social. Para ele, os músculos definidos são reconhecidos como desejáveis dentro do contexto do Grindr, no entanto, afirma evitar relações com homens que os exibem em suas fotos de perfil, por considerá-los inseridos em uma dinâmica heterossexual: “Ah, sim, o bodybuilder, com certeza, a galera da academia. . . . Eles são mais heteronormativos”.

Segundo ele, a dita heteronormatividade se relaciona, também, a uma maior “voracidade” sexual, referida principalmente à posição de “ativo”, ou seja, aquele que penetra durante o sexo anal. Nesse sentido, aponta para uma percepção negativa comum entre os entrevistados, de que enunciados homofóbicos circulam no aplicativo, em frases como “não curto afeminados” ou “quero um lance entre machos”. Para Jorge, ainda, esses enunciados se relacionam às fotos com ênfase nos músculos e aos emojis utilizados. Quando questionamos sobre os significados específicos desses emojis, o participante refere:

Alguns, sim [têm significados específicos]. Quer dizer que tu é ativo, passivo . . . ou tem “top” também que também é uma coisa que eu já evito, aquele emoji do top porque pra mim já representa uma coisa mais de heteronormatividade, porque tem alguns caras que colocam “ah é top, não curto afeminados”. É essa galera assim que geralmente usa o emoji ali também, então eu já mantenho distância.

Constata-se a partir desse trecho a maleabilidade do significado em relação ao significante, processo já muito trabalhado no campo da linguística (Barthes, 2012bBarthes, R. (2012b). Elementos de semiologia. (I. Blikstein, trad.). São Paulo, SP: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1964)). O emoji “Top” é utilizado no contexto brasileiro de redes sociais, como Whatsapp e Facebook, no sentido de algo positivo ou comemorativo - e foi recentemente relacionado a uma linguagem “heterossexual” em memes que circularam no Instagram e Facebook. No entanto, a palavra “top”, em inglês, é usada como gíria para a posição sexual de “ativo”, penetrador, em oposição ao “bottom”, passivo. Nesse sentido, a compreensão de Jorge acerca do emoji mescla ambas as significações, conectado a posição sexual da língua inglesa à “linguagem heterossexual” brasileira. Não se pode afirmar que usuários do Grindr que utilizam tal marcação em seus perfis a tomam a partir de um ou outro sentido, mas sim que o significado, sempre relacional, é performado contingentemente em relação ao significante, e tal processo também envolve falhas e interrupções.

Desse modo, considera-se que os emojis são utilizados conforme significados específicos, que comumente diferem daqueles relacionados a outros contextos - como se pode perceber na controvérsia do emoji “Top”. Tais significados, assim, não pertencem ao significante em si, sendo desenvolvidos por meio das maneiras como são utilizados em relação a outras palavras, emojis e imagens, apresentando graus de maior ou menor estabilização conforme o reconhecimento dos usuários.

Nessa direção, Gustavo aponta:

Acho que é estabelecida uma gramática de emojis, meio que foi universalizado. Tem a flecha pra cima, que o cara é ativo, flechinha pra baixo o cara é passivo, flechinha pros lados o cara é versátil. Tem a berinjela, que é o pênis, a pêra que é a nádega, as nádegas. Mas eu não uso. Não faço muito uso. No máximo sorrisinhos.

Embora não utilize tal recurso, o entrevistado reconhece seus significados, inserindo-se assim na “gramática universalizada” dos emojis. Tomamos a metáfora da gramática não como uma normatização da língua, determinando o certo ou o errado para a escrita e a fala, mas sim como um agrupamento de práticas linguísticas reconhecível para os falantes de determinado idioma, de modo que o uso da linguagem exceda a delimitação normativa, restrita a uma temporalidade e espacialidade específicas. Nesse sentido, concordamos com Gustavo: há uma gramática, porém uma gramática aberta, que negocia sentidos com diferentes contextos - como outros aplicativos -, modifica-se conforme os usos e está sujeita a falhas e sulcos linguísticos (Butler, 2015Butler, J. (2015). Relatar a si mesmo: crítica da violência ética (R. Bettoni, trad.). São Paulo, SP: Autêntica. (Trabalho original publicado em 2005)), provocando desentendimentos como o anteriormente citado.

Para haver uma gramática, no entanto, um reconhecimento de sentidos em comum deve sobrepor as falhas de entendimento e interpretação. Nessa direção, destacamos que três entrevistados, quando questionamos sobre o que deveríamos saber para utilizar o Grindr naquele momento, referiram os significados específicos de palavras e emojis que circulam nas dinâmicas do aplicativo, como se pode ver nos seguintes fragmentos das entrevistas:

São várias possibilidades. Mas tu tem que saber desses códigos, tem que saber o que é ativo e passivo, essas coisas. . . . Essa coisa dos emojis. Tem algumas expressões tipo “no pelo”. Se um cara quer transar sem camisinha. Essa é uma informação importante de saber.

Tekar, eu descobri depois de muito tempo o significado de TK. É a prática de quem usa cocaína. O ato de cheirar eles chamam de TK, teko, tekar. São perfis que eu evito, não acredito que seja saudável.

A folhinha significa maconha, o raio cocaína. Tem expressões tipo “no pelo” que significam sexo sem camisinha.

Dessa forma, o reconhecimento de determinados termos a partir de seus significados contingentes ao aplicativo é tomado como fundamental para um bom uso da ferramenta. É preciso, assim, alfabetizar-se nessa gramática. Tal processo, no entanto, não diz respeito, simplesmente, ao reconhecimento e compreensão de códigos já estabelecidos e estabilizados em uma língua. O sujeito falante de um idioma é aquele que não apenas lê, mas também produz códigos a partir da linguagem na qual se estabelece. Nessa direção, a utilização do Grindr é indissociável da produção de sentidos para o uso -em imagens, textos ou emojis, dado que praticar uma linguagem é produzir a si mesmo através dela.

Ainda, é importante referir que os enunciados não são apreendidos necessariamente a partir de uma dinâmica racionalizada. A codificação de fotografias como referentes a uma conjuntura social ou política - procedimento que Jorge efetua ao associar os músculos com a heteronormatividade - se insere na leitura da imagem enquanto contexto, o modo de afetação que Barthes (2012a)Barthes, R. (2012a). A câmara clara: notas sobre fotografia. (J. Guimarães, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1980) nomeia studium. Este, seguramente mais acessível no desenvolvimento da presente investigação, toma as fotos enquanto informantes de um tempo, espaço e situação específicos. No entanto, quando questionamos sobre fotografias que despertam atenção dos entrevistados, obtivemos respostas que indicavam outro campo de afeto performado pela imagem.

Por exemplo, na narração do usuário Pedro, um homem branco de 36 anos, sobre uma fotografia que lhe despertava intenso interesse no aplicativo, sem que ele soubesse exatamente por quê. Era a foto de um homem de costas, deitado, coberto por um lençol que exibia apenas um pedaço de seu dorso. O entrevistado referiu acreditar que aquela imagem poderia ser pouco “funcional” na dinâmica do Grindr, uma vez que se diferenciava das outras comumente entendidas como desejáveis - apresentando músculos, abdômens e masculinidade exacerbada. No entanto - e talvez justamente por isso - causava nele um efeito que as outras não causavam, como no processo de “corte”, que Barthes (2012a)Barthes, R. (2012a). A câmara clara: notas sobre fotografia. (J. Guimarães, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1980) associa ao punctum. Segundo o autor, “o que posso nomear não pode, na realidade, me ferir” (p. 53).

Nesse sentido, o punctum é justamente o indizível, que afeta o sujeito em um campo não contemplado pelas palavras. Situando-se no limite da linguagem e da representação, o punctum excede a gramática, associando-se a sensações e emoções. Enfatizamos esse movimento para não cairmos em pretensões racionalizantes da experiência humana, especialmente relacionadas às dinâmicas eróticas travadas em aplicativos de busca por sexo. Consideramos que os sujeitos, embora aptos a produzirem relatos sobre si mesmos, não significam sua realidade de forma totalizante, de modo que haja sempre algo inacessível ou de mistério.

Reflexões

O panorama de usos do Grindr mapeado pelas entrevistas aponta para alguns eixos de análise, que serão desenvolvidos no presente capítulo. Inicialmente, as referidas fotografias do corpo musculoso, constituintes de uma norma estética que delimita critérios de desejabilidade, retomam as formulações de Miskolci (2016Miskolci, R. (2016). Strangers in Paradise: notes on the use of the dating apps for hookups in San Francisco. Cadernos Pagu, (47), 1-30. doi: 10.1590/18094449201600470011
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) acerca da primazia de critérios corporais no mercado de desejos que circulam nessas ferramentas. Segundo o autor, ser ou não reconhecido por atributos mais próximos ao “ideal” que vigora nos aplicativos implica, efetivamente, receber mais ou menos contato nas dinâmicas de flerte e sedução. Desse modo, marcadores sociais como raça e classe, somados a critérios de juventude e masculinidade, produzem uma hierarquia entre os perfis, que retoma valores sociais vigentes acerca da homossexualidade.

Tais valores se associam à imagem do corpo musculoso como norma estética, em relação ao que Santos e Zago (2013Santos, L. & Zago, L. (2013). Topologias dos Corpos de homens gays: deslocamentos na produção de sensibilidades biopolíticas. Nómadas, (39), 137-151. Recuperado de https://bit.ly/2sW0Tib
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) nomeiam como “imperativo de saúde”. Para os autores, tal imperativo diz respeito às imagens fortemente divulgadas nas décadas de 1980 e 1990 de corpos gays adoecidos em decorrência do vírus HIV, marcados pela magreza excessiva. O corpo musculoso, assim, seria uma resposta a tais enunciados imagéticos, inserindo-se na produção de um outro discurso para a homossexualidade na cultura contemporânea: não mais a doença, e sim a saúde. A delimitação de ideais estéticos e corporais para o aplicativo também retoma uma linguagem pornográfica, performada na erotização das fotografias e dos textos que as acompanham (Mowlabocus, 2007Mowlabocus, S. (2007). Gaydar: gay men and the pornification of everyday life. In K. Nikunen, S. Paasonen, & L. Saarenmaa (Eds.), Pornification: sex and sexuality in media culture (pp. 61-72). Oxford, UK: Berg.). Nesse sentido, o imperativo de saúde se traduz também em capital erótico, fundamental no contexto mercadológico da sexualidade, no qual os desejos são distribuídos de maneira desigual, de acordo com critérios de valoração sobre os corpos, as imagens e os perfis (Miskolci, 2017Miskolci, R. (2017). Desejos digitais: uma análise sociológica da busca por parceiros on-line. São Paulo, SP: Autêntica.).

Assim, o imperativo de saúde é constantemente perseguido, em um processo de aprimoramento contínuo do corpo em relação ao ideal estético. Tal direcionamento é perceptível na experiência de Gustavo, que passou a acessar um nível maior de desejabilidade nas ferramentas à medida que foi moldando seu corpo com academias de ginástica e uma alimentação saudável. Esse corpo, ainda, é negociado com manipulação de outros atores, como a iluminação e o ângulo de sua pose em frente à câmera.

O efeito desses atores é tomado inicialmente como falseamento da imagem, o que, em sua narração, logo é contraposto pela certeza de que era, sim, seu o corpo da fotografia e de aquilo de fato ocorreu em frente às lentes (Barthes, 2012aBarthes, R. (2012a). A câmara clara: notas sobre fotografia. (J. Guimarães, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1980)). No entanto, por apresentar um corpo mais próximo do ideal performado na rede social, o rapaz aciona outros elementos de negociação. Se a fotografia apresenta uma versão “melhorada” de si mesmo, ela não é estabilizada para Gustavo, e sim tomada como um ideal a ser perseguido e produzido na interconexão de elementos como a academia e a comida. Por essa razão, não concebemos o perfil como uma versão melhorada de um sujeito “por trás” do aplicativo, dado que esses elementos não se apresentam de modo estável, mas em um contínuo processo de aprimoramento e produção de si.

Jorge, por sua vez, aparenta produzir a si mesmo em uma relação de tensão frente aos ideais que circulam no aplicativo, performando uma resistência com a norma pela qual não é contemplado. O rapaz afirma já ter colocado em seu perfil a frase “fora heteronormativos!”, em uma produção de si que contrapõe o ideal vigente na ferramenta, invertendo performativamente a hierarquia na distribuição desigual do desejo. Nessa enunciação, Jorge posiciona-se como sujeito da escolha, não meramente passivo a um ideal do qual não faz parte, mas propositivo na modificação deste por meio de sua ação.

Isso não significa que o rapaz sempre performa a si mesmo na contraposição à norma percebida, em um exercício de valentia ou radicalidade. Buscamos, como aponta Pereira (2015Pereira, P. P. (2015). Queer decolonial: quando as teorias viajam. Contemporânea, 5(2), 2015, 411-437. Recuperado de https://bit.ly/2HFxNh5
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), compreender como a resistência também é performada para além de narrativas heróicas ou extraordinárias. O sujeito, tal qual concebemos, não é contínuo ou fechado, pelo contrário, produz-se em estabilizações momentâneas e contingentes, de modo que se reconheça, também, sua capacidade de transformação. Desse modo, o relato de Jorge aponta para um posicionamento em relação à norma contingente àquela narrativa, podendo alterar-se à medida que se associa a outros agentes. Se a norma nunca é performada em sua completude (Butler, 2015Butler, J. (2015). Relatar a si mesmo: crítica da violência ética (R. Bettoni, trad.). São Paulo, SP: Autêntica. (Trabalho original publicado em 2005)), a resistência tampouco o é.

A narrativa de Jorge é predominantemente queixosa a respeito do Grindr, em um posicionamento que se mostrou comum nas entrevistas, de constantes críticas ao funcionamento do aplicativo - seja pela presença de heteronormativos, pela busca de “fast foda” ou pela ausência de fotos de rosto. Esses usuários, embora produzindo relatos de descontentamento, não deixam de utilizar o aplicativo, mantendo suas contas ativas em um contexto de insatisfação. Por essa via, consideramos que os relatos e as reflexões acerca do Grindr tampouco se situam em um âmbito de racionalidade completa, em narrativas que poderiam totalizar uma experiência vivida. Ainda que existam modos de produzir a si mesmo e se relacionar com outrem perpassadas pelo raciocínio lógico, com expectativas de causa e efeito - como visto nas entrevistas citadas -, as racionalidades também se mostram frágeis na utilização do aplicativo, sendo facilmente compreendidas em um viés de contradição.

No entanto, pela via de uma concepção performativa do sujeito, apontamos que o relato de si não totaliza uma verdade sobre aquilo que é vivido, levando em consideração a impossibilidade de “dar conta” de si mesmo a partir de uma narrativa (Butler, 2015Butler, J. (2015). Relatar a si mesmo: crítica da violência ética (R. Bettoni, trad.). São Paulo, SP: Autêntica. (Trabalho original publicado em 2005)). Os relatos de um sujeito sobre sua vida, assim, são sempre perpassados por um grau de abertura, no qual o contraditório emerge não apenas como incoerência de um raciocínio lógico, mas também como a própria condição da narrativa - o que pode ser acompanhado também na angústia de Gustavo ao questionar se o corpo retratado por uma fotografia no aplicativo é realmente seu. É nessa abertura que reside um espaço possível de agência e, portanto, resistência - não uma resistência lógica e deliberativa, mas aquela mobilizada pela capacidade de produzir novos relatos e narrativas sobre quem se é.

Sobre a “gramática” que se desenvolve do aplicativo, conjugando imagens, palavras e emojis, considera-se o Grindr como um sistema de significação (Barthes, 2012bBarthes, R. (2012b). Elementos de semiologia. (I. Blikstein, trad.). São Paulo, SP: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1964)), ou seja, uma linguagem específica desenvolvida no interior de uma mídia, mas que se relaciona à linguagem geral como parasita, em um intercâmbio de significados. Para Barthes (2012b)Barthes, R. (2012b). Elementos de semiologia. (I. Blikstein, trad.). São Paulo, SP: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1964):

A conotação, vale dizer, o desenvolvimento de um sistema de sentido segundo, parasita, se se pode dizer assim, da língua propriamente dita; esse sistema segundo também é uma língua em relação à qual se desenvolvem fatos de fala, idioletos e estruturas duplas. (p. 39)

Desse modo, a “gramática do aplicativo” e a “linguagem geral” se relacionam contiguamente, sem delimitações precisas. A frase “não curto afeminado”, que circula nas redes de mediação virtual do sexo, por exemplo, já apresenta apropriações em outras mídias, como em páginas de ativismo LGBT que a utilizam para politizar as dinâmicas de busca por parceiros - como pode ser visto na postagem do site de conteúdos diversos BuzzFeed: “Por que é um problema ser gay afeminado?” (Giusti, 2015Giusti, I. (2015). Por que é um problema ser gay afeminado? Recuperado de: https://bzfd.it/2BdbSrN
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). Esse exemplo expõe a porosidade entre as duas linguagens, corroborando com nossa compreensão de que as dinâmicas do Grindr o transbordam, excedendo o limite do aplicativo em manifestações de outras redes sociais ou lugares do meio off-line.

Ainda, essa gramática que circula no aplicativo - tomada aqui pelo reconhecimento de sentidos comuns e não por pretensões normativas totalizantes - aponta à possibilidade inerente de falhas e interrupções na rede comunicacional. A linguagem, dessa forma, não é compreendida como uma completude, que age sobre os sujeitos de forma absoluta, pelo contrário, como aponta Butler (2009Butler, J. (2009). Lenguaje, poder e identidad. (J. Saéz & P. Preciado, trads.) Madrid, ES: Síntesis. (Trabalho original publicado em 1997), 2015Butler, J. (2015). Relatar a si mesmo: crítica da violência ética (R. Bettoni, trad.). São Paulo, SP: Autêntica. (Trabalho original publicado em 2005)), a linguagem falha, e tal falha é o que garante a possibilidade de agência frente a ela, na elaboração de novos significados e posicionamentos. O processo de alfabetização no aplicativo Grindr, assim, por mais que possa visar a uma apreensão completa de seus códigos imagéticos e linguísticos, é composto também pela possibilidade de falhar - e, por essa razão, utilizá-lo implica, inevitavelmente, produzir-se em conjunto com a ferramenta.

Considerações finais

Este processo de investigação permitiu-nos compreender dinâmicas de produção de si dos usuários do Grindr, principalmente com relação às práticas de produção imagética e linguística. Nesse sentido, tomamos a fotografia e os elementos textuais que a acompanham - possibilitando sentidos para a imagem, como aponta Barthes (1980Barthes, R. (1980). Rhetoric of the image. In A. Trachtenberg (Ed.), Classic essays on photography (pp. 269-285). New Haven, CT: Leete’s Island.) - como performatividades, ações pelas quais o sujeito diz quem é e se insere assim no campo linguístico e semiótico. Compreendemos, também, que o sujeito não é anterior à sua própria ação (Butler, 2015Butler, J. (2015). Relatar a si mesmo: crítica da violência ética (R. Bettoni, trad.). São Paulo, SP: Autêntica. (Trabalho original publicado em 2005)), fundando-se no mundo pelo modo como reorganiza os enunciados a partir de práticas de si - movimento que envolve, também, os limites da linguagem, suas falhas, seus lugares, em que não opera necessariamente uma razão.

Além disso, o trabalho de campo fomentou análises acerca das dificuldades e potenciais da realização de pesquisas em mídias digitais. Entrevistar pessoas a partir do aplicativo permitiu-nos acompanhar, na prática, o uso de nossos entrevistados, a maneira como escrevem, expressões que usam e tempo de resposta - em entrevistas que chegavam a durar dias. No entanto, a falta de pessoalidade do perfil, que não apresentava foto de quem realizava a entrevista, por um lado, gerou desconfiança e afastamento de alguns usuários e, por outro, fomentou abordagens sedutoras de usuários que frequentemente tentavam “desvendar” o mistério do perfil institucional e conduzir a conversa para um rumo sexual.

Por essa razão, as entrevistas mais proveitosas em termos de conteúdo foram as que iniciaram no chat e se estenderam a uma conversa pessoal, conforme a disponibilidade do participante. Nesse sentido, consideramos que o abandono metodológico de dicotomias entre “real” e “virtual” é vantajoso para o desenvolvimento de pesquisas na área, dado que, no seu uso, o próprio aplicativo contradiz o pretenso binômio (Miskolci, 2011Miskolci, R. (2011). Novas conexões: notas teórico-metodológicas para pesquisas sobre o uso de mídias digitais. Revista Cronos, 2(2), 9-22. Recuperado de https://bit.ly/2HC6JL3
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).

Além disso, tivemos o impasse de que, durante a realização das entrevistas, o aplicativo deletou nosso perfil institucional em função de uma denúncia que recebemos por “violação dos termos de serviço”. Tentamos recuperá-lo em contato com a empresa Grindr, mas, dada a dificuldade nesses trâmites, acabamos por compor um novo perfil, que, por ora, ainda se mantém ativo. Tais atravessamentos são inerentes às pesquisas na área, que apresentam a necessidade de negociação contínua de tais dificuldades. Por essa razão, apostamos no desenvolvimento de mais pesquisas em aplicativos móveis, que possam, a partir de tais impasses, produzir conteúdos acerca dessas temáticas, fundamentais para um entendimento complexo da vida contemporânea.

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    São utilizados no texto nomes fictícios para preservar o sigilo e a privacidade dos participantes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2018
  • Aceito
    23 Jan 2019
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