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Psique e ética em C. G. Jung: o lugar do irracional na constituição do etos

Psyche et l’ethique dans le C. G. Jung: la place de l’irrationnel dans la constitution de l’ethos

Psique y ética en C. G. Jung: el lugar del irracional en la constitución de los etos

Resumo

O artigo põe em questão uma afirmação de Jung de que a ética se resumiria na relação entre homem e Deus. Tomando-a como problema, busca uma articulação entre os conceitos junguianos para uma resposta do que se entende por ética nessa perspectiva. Esboçamos um percurso que passa pelos problemas dos opostos morais, pelo confronto com a sombra e, por fim, abordamos a questão que inicia a pesquisa. Ao final, argumentamos que tal relação aduzida por Jung é, em termos psicológicos, a relação entre o eu e o si-mesmo. A ética seria nesse sistema uma resposta a uma outra voz suprarracional, “a voz de Deus”, que, para além da pura estética da imagem, conjuga consciente e inconsciente; demanda a totalidade da personalidade.

Palavras-chave:
ética; C. G. Jung; alteridade

Résumé

L’article remet en question l’affirmation de Jung selon laquelle l’éthique serait résumée dans la relation entre l’homme et Dieu. Prenant cela comme un problème, il cherche une articulation entre les concepts jungiens pour une réponse de ce que l’on entend par éthique dans cette perspective. Nous décrivons un parcours qui passe par les problèmes d’opposés moraux, la confrontation avec l’ombre, et enfin, nous abordons la question qui lance la recherche. En fin de compte, nous affirmons qu’une relation telle que Jung est, en termes psychologiques, la relation entre le soi et le soi. L’éthique serait dans ce système une réponse à une autre voix supra-rationnelle, “la voix de Dieu”, qui, au-delà de la pure esthétique de l’image, se combine consciemment et inconsciemment; demande toute la personnalité.

Mots-clés:
ethique; C. G. Jung; altérité

Resumen

El artículo pone en cuestión una afirmación de Jung de que la ética se resumiría en la relación entre hombre y Dios. Tomándola como problema, busca una articulación entre los conceptos junguianos para una respuesta de lo que se entiende por ética en esa perspectiva. Esbozamos un recorrido que pasa por los problemas de los opuestos morales, por el enfrentamiento con la sombra y, por fin, abordamos la cuestión que inicia la investigación. Al final, argumentamos que tal relación planteada por Jung es, en términos psicológicos, la relación entre el yo y el sí mismo. La ética sería en ese sistema una respuesta a otra voz, suprarracional, “la voz de Dios”, que más allá de la pura estética de la imagen, conjuga consciente e inconsciente; demanda la totalidad de la personalidad.

Palabras clave:
ética; C. G. Jung; alteridad

Abstract

The article calls into question Jung’s assertion that ethics would be summed up in the relationship between man and God. Taking it as a problem, it seeks an articulation between the Jungian concepts for an answer of what is meant by ethics in this perspective. We outline a course that goes through the problems of moral opposites, the confrontation with the shadow, and finally, we approach the question that starts the research. In the end, we argue that such a relationship referred to by Jung is, in psychological terms, the relationship between the ego and the Self. Ethics would be in this system a response to that other supra-rational voice, “the voice of God,” which, beyond the pure aesthetics of the image, combines conscious and unconscious; demands the entire personality.

Keywords:
ethics; C. G. Jung; alterity

Apresentação

É frequente na obra de Carl Gustav Jung que encontremos uma diferenciação entre moral e ética. Mesmo que em muitos pontos a palavra moral ganhe o sentido geral de comportamento ético, o psiquiatra suíço, em vários momentos, marca uma diferença clara entre as duas noções. É o que se verifica na seguinte passagem:

Mas, com um autoconhecimento mais profundo, muitas vezes se é confrontado com os problemas mais difíceis de todos, nomeadamente conflitos de dever, que simplesmente não podem ser decididos por preceitos morais, nem os do decálogo nem de outras autoridades. É aí que as decisões éticas realmente começam, pois a mera observância de um codificado “Tu não deves” não é, em qualquer sentido, uma decisão ética, mas apenas um ato de obediência e, em determinadas circunstâncias, uma válvula de escape conveniente que não tem nada a ver com ética. (Jung, 1958/1964Jung, C. G. (1973). Transformation symbolism in the mass. In Psychology and religion: West and East: collected works. (Vol. 11, pp. 203-296). Princeton, NJ: Princeton University Press. (Trabalho original publicado em 1942/1954) 1 1 Para as referências das obras de Jung, usamos a data de publicação do texto original seguida da data de publicação da edição utilizada, que aqui foram as Obras Coletadas (Collected Works) por ser a mais aceita internacionalmente para pesquisa, embora ainda apresente problemas, como toda tradução. As citações são feitas pelo parágrafo a que se refere, o que facilita a pesquisa em qualquer das traduções disponíveis. Cabe esclarecer ainda, que as traduções são de nossa responsabilidade. , § 677, tradução nossa)

A ética, logo, surgiria da própria diferenciação entre o indivíduo e a coletividade, isto é, do aumento do autoconhecimento e da responsabilidade sobre as próprias ações.

Para tratarmos com mais detalhes dessa questão, em Jung, precisamos passar por algumas discussões que consideramos fundamentais. Naturalmente, em sua obra, a ética será atravessada pelo problema dos opostos, notadamente, bem e mal. Esta é uma questão inevitável para Jung, pois que é parte integrante da confrontação com o inconsciente que se dá no início do desenvolvimento de qualquer análise ou mesmo na individuação em sentido lato.

E se a ética deve passar pela tensão entre bem e mal, ela se conecta, por consequência, ao problema da sombra2 2 Como veremos adiante, trata-se de um conceito de Jung que circunscreve uma fenomênica bem distinta na dinâmica psíquica. . Pois que esse conceito obriga-nos a pensar tal polaridade presente igualmente em nosso próprio peito.

A questão envolve, para Jung, elementos que não são estritamente da ordem da racionalidade e da consciência, tornando-se assim muito mais complexa do ponto de vista psicológico. Sua constatação é que há um fator irracional ligado a esse problema, o que em uma primeira leitura da obra desse autor parece inusitado e mesmo “obscuro”.

Entretanto, encontramos numa carta de Jung a um americano, à época calouro do curso de Filosofia, que perguntava sobre o problema da ética e dos valores morais:

A questão ética se resume à relação entre homem e Deus. Qualquer outro tipo de decisão ética seria convencional, o que significa que dependeria de um código tradicional e coletivo de valores morais. . . . A grande dificuldade, é claro, é a “Vontade de Deus”. Psicologicamente, a “Vontade de Deus” aparece na sua experiência interior na forma de um poder de decisão superior, ao qual você pode dar vários nomes, como instinto, destino, inconsciência, fé, etc. (Jung, 1990Jung, C. G. (1970) The philosophical tree. In Alchemical studies: collected works. (Vol. 13, pp. 251-350). Princeton, NJ: Princeton University Press. (Trabalho original publicado em 1945/1954), p. 300, tradução nossa)

Dessas leituras emergiram algumas questões que justificaram esse trabalho. Como entender estas últimas ideias trazidas por Jung de que a “ética se resume à relação entre homem e Deus”? Estaria ele fazendo proselitismo? Decerto que não. Então, como se articulam essas afirmações ao conjunto maior de sua obra? Como podemos pensar sua concepção de ética com relação à alteridade?

Para nos aproximarmos de uma solução a essas perguntas, traçamos um percurso metodológico que irá passar pelos conceitos junguianos aventados até aqui: em primeiro lugar, a questão do bem e do mal e o seu lugar nesta psicologia. Em segundo, abordaremos o arquétipo da sombra, que se acha intimamente ligado aos opostos citados. Avançaremos, por fim, ao problema da relação entre o homem e Deus (ou a imago Dei), quando tentaremos elucidar as afirmações de Jung anteriormente citadas.

Uma teoria antinômica da psique

Uma etapa imprescindível para chegarmos ao problema dos opostos morais em Jung é entender sua concepção de psiquismo, pois esta noção é o que parece sustentar seu argumento sobre os polos morais bem e mal - e sobre qualquer outro par de opostos psíquicos -, bem como sobre a atitude do indivíduo diante deles.

Num artigo de 1935, Jung (1935/1988Jung, C. G. (1976). Psychological types: collected works (Vol. 6). Princeton, NJ: Princeton University Press. (Trabalho original publicado em 1921)) discute uma questão epistemológica que ainda hoje acompanha a psicologia. Ele compara a situação da psicoterapia da época àquela da física moderna, então em desenvolvimento, com suas teorias contraditórias sobre um mesmo fenômeno - a exemplo da luz, sobre a qual acabou-se aceitando, não sem grande resistência, uma teoria de sua natureza dual: ondulatória e corpuscular -, e assume que não há razão para se entender o fenômeno psíquico diferentemente.

A verdade é que a psicologia está numa situação muito mais crítica do que a física, a qual ainda pode dispor de medidas materiais, não tão dependentes do sujeito, e objetos consideravelmente mais estáveis do que os das psicologias. Entretanto, no nível de uma física de partículas, é provável que a comparação de Jung ainda seja válida. Mas, muito além de simplesmente considerar a psique uma realidade complexa, para Jung ela só pode ser descrita satisfatoriamente por meio de paradoxos, ou melhor, de antinomias. Para ele, uma das antinomias fundamentais da psicologia:

É a proposição: A psique depende do corpo, e o corpo depende da psique. Para ambas as afirmações desta antinomia existem provas óbvias, de tal maneira que um juízo objetivo não poderá decidir-se pela preponderância da tese sobre a antítese. (Jung, 1935/1988Jung, C. G. (1978). O eu e o inconsciente (Vol. 7, part 2). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1928), § 1, grifos do autor)

Para Jung, isso destaca outra característica sobre o estado atual de nossa ciência, qual seja, a de que podemos tecer afirmações válidas apenas relativamente. “É que a afirmação só é válida na medida em que for indicado a que sistema psíquico o objeto da indagação se refere” (Jung, 1935/1988Jung, C. G. (1975) The real and the surreal. In The structure and dynamics of the psyche. collected works (Vol. 8, pp. 382-384). Princeton, NJ: Princeton University Press. (Trabalho original publicado em 1933), § 1). Essa tese não resvala, no entanto, num relativismo absoluto. Na medida em que a própria individualidade não é singularidade, isto é, absoluta individualidade, é possível ainda falar de um ser genérico e assim fazer afirmações científicas. “Consequentemente, estas afirmações podem referir-se unicamente às partes do sistema psíquico conformes, isto é, às que podem ser comparadas, e, portanto, apanhadas estatisticamente, e não ao individual, ao único dentro do sistema” (Jung, 1935/1988Jung, C. G. (1973) Psychology and religion. In Psychology and religion: West and East: collected works (Vol. 11, pp. 5-106). Princeton, NJ: Princeton University Press. (Trabalho original publicado em 1938), § 1). É então que chegamos a outro paradoxo, que necessariamente requer uma segunda antinomia fundamental:

O individual não importa perante o genérico, e o genérico não importa perante o individual. Como é sabido, não existe um elefante genérico; apenas elefantes individuais. Mas, se o genérico não existisse, e houvesse uma constante multiplicidade de elefantes, um elefante único e individual seria extremamente inverossímil. (Jung, 1935/1988Jung, C. G. (1980). Conscious, unconscious and individuation. In The archetypes and the collective unconscious: collected works (Vol. 9, part 1, pp. 275-289). Princeton, NJ: Princeton University Press. (Trabalho original publicado em 1939), § 1, grifos do autor)

Essas considerações de Jung (1935/1988Jung, C. G. (1980). The psychology of the child archetype. In The archetypes and the collective unconscious: collected works (Vol. 9, part 1, pp. 151-181). Princeton, NJ: Princeton University Press. (Trabalho original publicado em 1940).) nos informam claramente que, desde cedo, ele solucionou de forma bastante elegante a questão da profusão de teorias e métodos de tratamento psicológico que surgiam com o tempo3 3 Não podemos deixar de notar, entretanto, que Jung não passou ileso à (quase) irresistível pretensão de criar, se não uma teoria, no mínimo, uma linguagem geral para as ciências psicológicas, como o descreve Shamdasani (2011). . Apesar da notável semelhança com nossa atual forma de lidar com os diferentes pressupostos teórico-metodológicos - identificamos psicologias e não mais uma psicologia (Figueiredo & Santi, 2010Figueiredo, L. C. M. & Santi, P. L. R. (2010). Psicologia: uma (nova) introdução. São Paulo, SP: Educ.) -, Jung vai além da simples aceitação dessas diferenças, mas identifica aí, talvez, a forma mais correta de lidar com o fenômeno, isto é, caracterizando-o de forma antinômica. Temos assim um método próprio à psicologia analítica, que conduz a clínica junguiana, o qual ele irá denominar nesse momento de método dialético:

Tenho que optar necessariamente por um método dialético, que consiste em confrontar as averiguações mútuas. Mas isto só se torna possível se eu deixar ao outro a oportunidade de apresentar seu material o mais completamente possível, sem limitá-lo pelos meus pressupostos. (Jung, 1935/1988Jung, C. G. (1980) Psychology and alchemy: collected works (Vol. 12). Princeton, NJ: Princeton University Press. (Trabalho original publicado em 1944), § 2)

O “pressuposto” junguiano é, portanto, o de que, enquanto psicoterapeuta, eu não posso escolher entre uma ou outra visão de mundo, entre um ou outro preceito moral, pois assim fecho as possibilidades de desenvolvimento, imponho previamente um dado valor à vida daquela individualidade, e assim reatualizo o que é próprio da neurose, isto é, a limitação das possibilidades de vida, o insulamento da pessoa e o engessamento das significações.

Esse princípio explicativo que admite uma reversibilidade, um contraponto nas afirmações sobre o psíquico, é reafirmado em diversas partes da obra de Jung. Por exemplo, ao discutir a oposição entre as próprias funções da consciência - isto é, entre pensamento e sentimento, e entre intuição e sensação - ele conclui o seguinte:

Tendo para mim que os problemas dos opostos aqui apenas tocados de leve constituem a base de uma psicologia crítica, necessária sob muitos aspectos. Uma crítica desta espécie seria de imenso valor não só para o círculo mais estreito da psicologia, como também para o círculo mais vasto das ciências em geral. (Jung, 1936/1986Jung, C. G. (1977) Mysterium coniunctionis: collected works (Vol. 14). Princeton, NJ: Princeton University Press. (Trabalho original publicado em 1956), § 260, grifos do autor)

O referido problema dos opostos parece ser, portanto, o cerne para nossa discussão, pois ocupará a maior parte da obra de Jung, seja manifestamente pela abordagem direta, seja como fundamento empírico de suas teorias, incluída aí a própria argumentação anteriormente exposta sobre as antinomias fundamentais.

Os opostos morais

Num artigo em que trata diretamente do tema, o psiquiatra suíço aponta de antemão que sobre isso não se pode ter acesso em última análise, pois que “Bem e mal são em si princípios; e devemos ter em mente que princípios existem bem antes de nós e perdurarão depois de nós” (Jung, 1959/1964Jung, C. G. (1964) A psychological view of conscience. In Civilization in transition: collected works (Vol. 10, pp. 437-455). Princeton, NJ: Princeton University Press. (Trabalho original publicado em 1958), § 859, tradução nossa), embora, como o leitor deve ter objetado, temos uma ideia geral do que seja o mal objetivamente, isto é, coletivamente entendido como tal. Certamente podemos dizer que, por exemplo, as pessoas que convivem com a violência constante e a pobreza nas áreas marginalizadas de Fortaleza ou em qualquer metrópole brasileira não estão vivendo uma “boa vida”, como o argumenta acertadamente Harris (2013Harris, S. (2013). A paisagem moral: como a ciência pode determinar os valores humanos (Claudio Angelo, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.). No entanto, não é disso que Jung está tratando, mas das escolhas e das ações do sujeito diante da vida.

Assim, só podemos dizer de forma muito limitada que essa situação específica é má para esta dada pessoa nesse momento de sua vida. E, mesmo assim, corremos o risco de presunção, pois não o sabemos em última análise. Jung (1959/1964Jung, C. G. (1988) Princípios básicos da prática da psicoterapia. In A prática da psicoterapia: obras completas de C. G. Jung (Vol. 16, part 1, pp. 13-31). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1935)) especula inclusive que para dada pessoa a experiência do mal pode ser essencial para seu desenvolvimento moral.

O confronto com os tais extremos da vivência humana vem acompanhado de muita tensão emocional. São realmente aquelas situações em que nos deparamos com uma encruzilhada, com um beco sem saída. Não conseguimos decidir exatamente o que fazer nem julgar a situação objetivamente. Jung (1959/1964Jung, C. G. (1986). Determinantes psicológicas do comportamento humano. In A natureza da psique: obras completas de C. G. Jung (Vol. 8, part 2, pp. 60-71). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1936)) afirma que “A realidade do bem e do mal consiste em coisas e situações que acontecem com você, que são grandes demais para você, onde você está sempre como se estivesse enfrentando a morte” (§ 871, tradução nossa). Por isso, identifica nessa esfera da experiência o que chama de numinoso.

O caráter numinoso é, para Jung, a característica de toda experiência em que uma imagem arquetípica é constelada, isto é, em que o indivíduo se confronta com aquilo que é estruturante de si. O numinoso, termo adotado de Rudolf Otto, é ao mesmo tempo o fascinosum e o tremendum. É por isso que Jung eleva o problema do bem e do mal ao nível de um princípio coletivo e, por conseguinte, um dado objetivo, na medida em que ultrapassa a vontade e o julgamento do sujeito. Nesse aspecto coletivo, o bem e o mal são princípios cuja experiência se atualiza no humano através do conflito moral.

Insisto nesse aspecto coletivo, pois há ainda, como em toda experiência humana, um aspecto individual, que se opõe e é a conditio sine qua non do aspecto objetivo, coletivo. São realidades antinômicas, como vimos, e ainda assim lógica e empiricamente dependentes entre si.

Marie-Louise von Franz ilustra a antinomia individual-coletivo ao analisar contos de fadas, procurando entender como o tema do mal é retratado e resolvido nesse material da fantasia coletiva. Ela nota que, nesses contos, as formas de lidar com o mal são totalmente contraditórias - entre elas, fugir, lutar, simplesmente sofrer o mal, contra-atacar, e mesmo mentir ao diabo ou manter-se honesto diante dele (Von Franz, 1985Von Franz, M.-L. (1985). A sombra e o mal nos contos de fada. São Paulo, SP: Paulinas.). Mas por que é assim? Poder-se-ia perguntar. Von Franz (1985) encontrou uma saída para essa questão justamente na natureza coletiva dos contos de fadas. Porquanto, se podemos encontrar tantas maneiras possíveis de se lidar com o mal na literatura e na imaginação coletiva, isto diz respeito a uma disposição moral coletiva básica, que torna possível a decisão individual.

Então podemos dizer que na natureza humana estaria certo fazer isto ou aquilo, mas eu farei isso, o tertium, a terceira coisa, que é minha individualidade. Não existiria individualidade se o material básico não fosse contraditório. Este foi o meu conforto após ter descoberto a terrível verdade da estrutura contraditória! (Von Franz, 1985Von Franz, M.-L. (1985). A sombra e o mal nos contos de fada. São Paulo, SP: Paulinas., p. 155)

Entendemos, portanto, que a escolha individual - a escolha ética - decorre do confronto com a realidade do bem e do mal. Antes disso não podemos falar de ética ou de comportamento ético, pois o que impera é a identidade da atitude geral do eu, do sujeito, com um ideal coletivo, unilateralmente alinhado moralmente. A identidade (ou identificação) com o ideal coletivo é inconsciente, pois só há consciência quando há diferença, oposição. Consciência é, por definição, discriminação de um outro.

Este comportamento, entretanto, é em geral um estágio posterior do processo muito mais doloroso, que é admitir que o mal não vive apenas numa exterioridade apartada de mim, no bandido, na religião que não é a minha, naquele partido corrupto ou no estrangeiro. É confrontar-se com um lugar de sombras em si mesmo.

O confronto com a sombra

Tratamos desse tópico na seção anterior sem que o tivéssemos anunciado. Pois a sombra é justamente, num sentido amplo, o próprio inconsciente. Empiricamente a sombra é, para Jung, antes de tudo, um dos arquétipos mais destacados na experiência cotidiana, pois seus conteúdos se referem em grande medida ao primeiro contato com o inconsciente, chamado por ele de inconsciente pessoal (Jung, 1951/1979Jung, C. G. (1979) Aion: researches into the phenomenology of the self: collected works (Vol. 9, part 2). Princeton, NJ: Princeton University Press. (Trabalho original publicado em 1951)). Entretanto, embora seus conteúdos sejam acessados sem muito esforço, a integração da sombra é um grande desafio à personalidade egoica, pois “Tornar-se consciente disso envolve reconhecer os aspectos obscuros da personalidade como presentes e reais” (Jung, 1951/1979Jung, C. G. (1964) Good and evil in analytical psychology. In Civilization in transition: collected works. (Vol. 10, pp. 456-468). Princeton, NJ: Princeton University Press. (Trabalho original publicado em 1959), § 13-14). E isso encontra enorme resistência, exigindo frequentemente um longo período de grande esforço moral.

Esses “aspectos obscuros” são empiricamente tudo que foi retirado da vida consciente e desvalorizado. Por isso o confronto com a sombra exige tamanho esforço moral, pois relacionar-se com isso é entrar em contato com o que se rechaçou consciente e/ou inconscientemente durante a vida toda, com o que me é inferior, com o que excluo como desnecessário. É caminhar por onde desconheço e não possuo domínio. Para Jung (1939/1980Jung, C. G. (1990). C. G. Jung Letters: 1951-1961 (G. Adler & A. Jaffé, eds., R. F. C. Hull, trad., Vol. 2). Brighton, UK: Routledge.) “A sombra personifica tudo o que o sujeito se recusa a reconhecer sobre si mesmo e, no entanto, está sempre se lançando sobre ele direta ou indiretamente - por exemplo, traços inferiores de caráter e outras tendências incompatíveis” (§ 513, tradução nossa).

Como a maioria de seus conceitos psicológicos, o termo sombra tenta conciliar territórios dissociados, ciência e símbolo vivo, buscando não alijar o caráter eminentemente empírico, isto é, simbólico, dos conceitos científicos. Jung (1939/1980) explica: “O fato de que o inconsciente personifica espontaneamente certos conteúdos afetivamente tonificados nos sonhos é a razão pela qual tomei essas personificações em minha terminologia e as formulei como nomes” (§ 514, tradução nossa).

Merkur (2017Merkur, D (2017). Jung’s ethics: moral psychology and his cure of souls (Jon Mills, ed.). Abingdon, Oxon: Routledge.), num trabalho bastante recente sobre a moral em Jung, em que propõe uma avaliação de seus textos sobre a ética e a moral num diálogo inusitado com a psicanálise, situa o conceito de sombra como um equivalente ao inconsciente freudiano. Segundo ele, a teoria da sombra tem raízes na teoria do recalque (repression), de Freud. Porém, o autor incorre num erro comum: interpretar o conceito de sombra como o mal. “A equação do inconsciente com o mal, que levou à sua designação como a sombra, adveio do empirismo de Jung” (Merkur, 2017, p. 8, tradução nossa).

Não encontramos em Jung essa equação aludida por Merkur (2017Merkur, D (2017). Jung’s ethics: moral psychology and his cure of souls (Jon Mills, ed.). Abingdon, Oxon: Routledge.). Pelo contrário, para o psiquiatra suíço, nem a sombra, e muito menos o inconsciente, devem ser entendidos exclusivamente como o mal. Ele se opõe a isso textualmente:

Se as tendências reprimidas, a sombra como eu as chamo, fossem obviamente más, não haveria problema algum. Mas a sombra é apenas um pouco inferior, primitiva, inadaptada e desajeitada; não totalmente ruim. Ela ainda contém qualidades infantis ou primitivas que de certa forma revitalizariam e embelezariam a existência humana, mas - a convenção proíbe! (Jung, 1938/1973, § 134, tradução nossa)

Em resumo, o espectro da sombra engloba aquilo que Jung irá chamar de função inferior, termo advindo de seus estudos sobre a tipologia psicológica, nos quais concebeu a existência de atitudes e funções de adaptação da consciência. Para Jung (1921/1976), função psicológica é “uma forma particular de atividade psíquica que permanece a mesma, em princípio, sob condições variadas” (§ 731, tradução nossa). Ele distingue quatro funções básicas, duas racionais e duas irracionais4 4 Jung defende que irracional tem o sentido não de contrário a razão, mas de além da razão. Para ele, o irracional é um fator existencial, como por exemplo o fato de a Terra ter uma Lua, de o hidrogênio ser um elemento ou de um símbolo nos ocorrer num sonho. “Uma explicação completamente racional de um objeto que realmente existe (não aquele que é meramente postulado) é um ideal utópico. Somente um objeto postulado pode ser completamente explicado por motivos racionais, uma vez que não contém nada além do que foi postulado pelo pensamento racional.” (Jung, 1921/1971, § 775, tradução nossa). . A função inferior é denominada assim, pois se opõe à chamada função superior, isto é, aquela mais diferenciada e sobre a qual o eu tem mais domínio, enquanto que a função inferior é mais inconsciente e por conseguinte, mais autônoma. Logo, pode-se depreender que a função inferior está mais à sombra. No entanto, ela continua sendo uma função de orientação como qualquer outra, sua situação de inadaptação não a classifica como má, pelo contrário, ela é vital e necessária para a adaptação, como as outras. Em geral, porém, é desvalorizada pelo indivíduo e também pela cultura. É assim, por exemplo, no caso da introversão e da função sentimento em nossa época. Não é difícil observarmos como, por um lado, os alunos são incentivados na maioria das escolas a rechaçar qualquer traço de introversão, de fechamento em si, e, por outro, também a não demonstrar seus sentimentos, e muito menos a pautar suas decisões com base na função valorativa.

Para Jung, uma etapa normal e necessária do confronto com essas partes inferiores da personalidade é que elas serão projetadas no outro e no mundo. Para ele, aliás, todo o inconsciente aparece projetado (1921/1976), pois não é difícil ao outro perceber em mim o exagero em meu julgamento sobre um desafeto, meu mau humor, ou minha dependência excessiva diante do outro etc. O outro é objeto e denunciante de minha projeção, e o que me exige resposta. Destarte, a alteridade tem um papel crucial no problema que tratamos, pois sem o Outro, seja este uma exterioridade, no sentido levinasiano5 5 Na obra de Lévinas, deparamos com uma extensa discussão sobre a alteridade, que se impõe em sua filosofia como o princípio ético por excelência. Nela, o “Outro . . . é transcendente e pré-originário com relação até mesmo ao plano ontológico. Sua dimensão é ética.” (Freire, 2001, p. 76), por isso, Lévinas afirma que a ética é a filosofia primeira. Em Lévinas, Freire (2003) destaca, “se faz necessária uma ida do eu na direção de sua exterioridade [do outro] e uma implicação do eu pela vinda do Outro que exige uma responsabilidade irrecusável. O outro instaura a possibilidade do eu, e este, por sua vez, se faz necessário para a sujeição ao Outro.” (p. 13). , seja a alteridade absoluta da qual a consciência nasce, não há possibilidade ética.

A confrontação com os conteúdos imediatos do inconsciente gera inicialmente o que Jung chama, inspirado no Fausto, de Goethe, de um sentimento de “semelhança a Deus”, que pode significar tanto uma inflação como uma deflação psíquica, mas, após, o que há é uma estagnação pelo retorno do conflito (Jung, 1928/1978). Jung compara este processo com as imagens da alquimia:

O confronto com a sombra produz, a princípio, um equilibro morto, uma paralisação que dificulta as decisões morais e torna as convicções ineficazes ou mesmo impossíveis. Tudo fica duvidoso, e é por isso que os alquimistas chamavam esse estágio de nigredo, tenebrositas, caos, melancolia. (1956/1977, § 708, tradução nossa)

A estagnação ocorre, pois retirou-se a diferença que antes havia entre os lados opostos. Não há mais domínio de uma posição sobre a outra e assim não há decisão, e o conflito é sofrido por um longo tempo, tanto quanto é a força moral do indivíduo, isto é, enquanto ele não fugir dele ou reprimi-lo. Jung (1956/1977) descreve esse processo entre duas possibilidades. Na primeira, o confronto com o inconsciente se limita a aspectos parciais do inconsciente, isto é, o conflito é limitado moralmente e a solução geralmente é simples: seguir a razão e os costumes. Embora a solução dada não seja totalmente satisfatória ao inconsciente, o indivíduo será compelido a viver de acordo com seus princípios e a conviver com a existência do reprimido por meio de suas repercussões sentimentais, como ressentimentos indesejados. Na segunda possibilidade, por outro lado, se o sujeito conseguir reconhecer sua sombra o mais completamente possível, o conflito e a desorientação resultam em um Sim e um Não igualmente fortes, que não podem ser simplesmente reprimidos numa solução racional ou de acordo com a moralidade coletiva. Dito de outra forma, ele não pode esconder o conflito por trás de uma máscara (Jung, 1956/1977). Para Jung, nesse caso há a necessidade de uma solução real que exige um terceiro que una os opostos. “Aqui a lógica do intelecto geralmente falha, pois em uma antítese lógica não há terceiro. O ‘solvente’ só pode ser de natureza irracional.” (Jung, 1956/1977, § 705, tradução nossa).

Nesse ponto, retomamos o que falamos no início deste ensaio, isto é, que a ética para Jung se insere especialmente onde há um conflito de deveres. Pois esse é o conflito sentido como insolúvel no indivíduo, e assim o é do ponto de vista da racionalidade. Apenas a introdução de um terceiro, o qual foge a qualquer lógica, parece trazer uma solução.

Deus: tertium non datur

Nossa reflexão nos leva, então, ao problema do terceiro excluído. Em que consiste isso? Se essa é a resposta para a estagnação do conflito de deveres, a questão é apresentada igualmente ao terapeuta pelo paciente. O que fazer diante desse cul-de-sac? A isso Jung (1944/1980) responde:

Eu não faço nada; não há nada que eu possa fazer senão esperar, com certa confiança em Deus, até que, de um conflito suportado com paciência e coragem, surja a solução destinada - embora não possa prever - para aquela pessoa em particular. (§ 37, tradução nossa)

Também aqui, Jung espera em “Deus”, por assim dizer, a solução para o conflito. É algo muito próximo do que ele diz em outra passagem, a qual já citamos, embora de forma muito mais incisiva: “Se a pessoa for suficientemente conscienciosa, o conflito é suportado até o fim, e surge uma solução criativa que é produzida pelo arquétipo constelado e possui aquela autoridade irresistível que não é injustamente caracterizada como a voz de Deus” (Jung, 1958/1964, § 856, tradução nossa).

Antes de assumirmos que, para todos os casos de análise junguiana, o paciente chega num momento em que começa a ouvir a voz de Deus, observemos a atitude proposta por Jung (1944/1980) diante do conflito do paciente:

Não que eu seja passivo ou inativo enquanto isso: eu ajudo o paciente a entender todas as coisas que o inconsciente produz durante o conflito. O leitor pode acreditar em mim que estes não são produtos comuns. Pelo contrário, eles estão entre as coisas mais significativas que já atraíram minha atenção. O paciente também não é inativo; ele deve fazer a coisa certa e fazê-la com todas as suas forças, a fim de evitar que a pressão do mal se torne poderosa demais nele. (§ 37, tradução nossa)

Isso nos indica outra articulação conceitual. Pois se a solução exige a consideração do material inconsciente, ou seja, do tertium non datur, este, em certos aspectos, pode ser identificado em algumas culturas, a exemplo da judaico-cristã, como um fator nomeado como vontade de Deus. Assim, temos que lançar a hipótese de que a caracterização da vontade de Deus e o tertium non datur, a solução irracional do conflito, mantêm forte ligação. Na conclusão de um texto sobre a simbologia da árvore na alquimia, Jung sintetiza todo esse processo que tratamos até aqui, de um ponto de vista da análise clínica. A relevância dessa passagem nos obriga uma citação extensa:

Como eu disse, o confronto com o inconsciente geralmente começa no reino do inconsciente pessoal, isto é, de conteúdos adquiridos pessoalmente que constituem a sombra, e daí leva a símbolos arquetípicos que representam o inconsciente coletivo. O objetivo do confronto é abolir a dissociação. Para alcançar esse objetivo, a própria natureza ou a intervenção médica precipitam o conflito de opostos sem o qual nenhuma união é possível. Isso significa não apenas trazer o conflito para a consciência; envolve também uma experiência de tipo especial, a saber, o reconhecimento de um “outro” alheio em si mesmo ou a presença objetiva de outra vontade. Os alquimistas, com surpreendente precisão, chamavam essa coisa dificilmente compreensível de Mercúrio, conceito no qual incluíam todas as afirmações que a mitologia e a filosofia natural haviam feito sobre ele: ele é Deus, daemon, pessoa, coisa e o segredo mais íntimo do homem; psíquico e somático. Ele mesmo é a fonte de todos os opostos, já que é duplex e utriusque capax (“capaz de ambos”). Essa entidade indescritível simboliza o inconsciente em cada particular, e uma avaliação correta dos símbolos leva ao confronto direto com ele. ([1945/1954]/1970, § 481, tradução nossa)

Encontramos discussão semelhante sobre esse outro influenciando o sujeito consciente noutro ponto em que Jung (1958/1964) apresenta a ideia de que a Gewissen6 6 Que ele difere de Bewusstsein, isto é, a consciência como estado psicológico. Utilizaremos o termo em alemão nas nossas citações, pois em ambas as traduções portuguesa e anglo-americana o termo é ambíguo e pode gerar confusão. , a consciência moral, é um elemento psíquico culturalmente reconhecido como voz de Deus e que, portanto, seria anterior ao próprio código moral. Diz ele:

Desde tempos antigos, a [Gewissen] tem sido entendida por muitas pessoas menos como uma função psíquica do que como uma intervenção divina; de fato, seus ditames eram considerados vox Dei, a voz de Deus. Essa visão mostra que valor e significado foram, e ainda estão, atrelados ao fenômeno da [Gewissen]. O psicólogo não pode desconsiderar tal avaliação, pois ela também é um fenômeno bem autêntico que deve ser levada em conta se quisermos tratar psicologicamente a ideia de [Gewissen]. (1958/1964, § 839, tradução nossa)

Para Jung (1958/1964), a validade dessa assertiva recai simplesmente porque constitui-se ela em uma realidade psíquica. O que é real, para ele, é o que atua sobre o sujeito (Jung, 1933/1975). Nesse contexto, ele toma esta asserção como base para uma discussão sobre as características da Gewissen.

A primeira derivação, pondera ele, é que o fato de que os antigos assumiam que a Gewissen era a própria vox Dei informava sobre um dado da experiência cotidiana que é o de que esse fenômeno goza de certa autonomia na dinâmica psíquica. “A [Gewissen] é uma exigência que se afirma a despeito do sujeito, ou pelo menos lhe causa dificuldades consideráveis” (Jung, 1958/1964, § 842, tradução nossa).

Uma segunda derivação desta ideia é que a voz de Deus não é fácil de ser reconhecida. Lado a lado com a consciência “reta” está a consciência “falsa”, que possui a mesma autonomia que aquela. Assim, ao passo que a primeira “de acordo com a conveniência, é chamada daimon do homem, gênio, anjo da guarda, melhor eu, coração, voz interior e homem interior ou superior, e assim por diante”, a segunda é tida como “demônio, sedutor, tentador, espírito maligno etc. (Jung, 1958/1964, § 843, tradução nossa). Tal constatação leva ao discernimento de que a Gewissen pode oscilar entre as polaridades morais: “Uma consciência mais desenvolvida traz à luz o conflito moral latente, ou então aguça os opostos que já são conscientes.” (§ 843). Ademais, a Gewissen é, para Jung (1958/1964), o fenômeno que mais claramente explicita a polaridade da psique.

Um terceiro ponto que a concepção da Gewissen como vox Dei torna evidente é que, se ela é tida como tal, isso nos diz do caráter numinoso da reação moral, como já tangenciamos acima. O numinoso, como aludimos, é uma categoria presente na obra de Rudolf Otto, que define o sentido mais específico da experiência do que ele chama o sagrado. Nessa obra, Otto (2007Otto, R. (2007). O sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional (W. O. Schlupp, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.) resume o duplo aspecto do que ele chama o numinoso.

O que o demoníaco-divino tem de assombroso e terrível para a nossa psique, ele tem de sedutor e encantador. E a criatura que diante dele estremece no mais profundo receio sempre também se sente atraída por ele, inclusive no sentido de assimilá-lo. (p. 68)

O numinoso é, a um só tempo, um mysterium tremendum et fascinans, sentença que Jung irá utilizar em diversos momentos para definir o efeito do arquétipo.

“A [Gewissen] é uma manifestação do mana, do ‘extraordinariamente poderoso’, uma qualidade própria das ideias arquetípicas” (Jung, 1958/1964, § 845, tradução nossa). Ainda nesse escopo, Jung (1958/1964) nos informa que empiricamente o arquétipo é moralmente ambivalente, ou melhor, amoral. “O arquétipo é um padrão de comportamento que sempre existiu, que, como um fenômeno biológico, é moralmente indiferente, mas possui um dinamismo poderoso por meio do qual pode influenciar profundamente o comportamento humano” (§ 846, tradução nossa). Para ele, a psicologia deve lidar com o fenômeno da vox Dei entendendo-o pela hipótese do arquétipo.

No entanto, se assim o entendemos, a questão necessária que se segue é: se a Gewissen deve ser entendida como um tipo de experiência com o numinoso, a que arquétipo estas imagens arquetípicas se ligam? Jung abstém-se, nesse contexto, de lidar diretamente com esse ponto, mas fornece muitos indícios para uma investigação. Além disso, faz questão de preservar o lugar de alteridade dessa outra voz:

Quando, portanto, o psicólogo explica a [Gewissen] genuína como uma colisão da consciência com um arquétipo numinoso, ele pode estar certo. Mas terá que acrescentar imediatamente que o arquétipo per se, sua essência psicoide, não pode ser compreendido, que possui uma transcendência que compartilha com a substância desconhecida da psique em geral. A afirmação mítica da [Gewissen] de que é a voz de Deus é uma parte inalienável de sua natureza, o fundamento de seu numen. Essa afirmação é um fenômeno tanto quanto a própria [Gewissen]. (Jung, 1958/1964, § 854, tradução nossa)

Considera assim que nas situações em que há o conflito de deveres ocorre a mobilização de esferas do psiquismo ainda inauditas. E, decerto, ainda nesse estado de coisas, o indivíduo pode buscar as avenidas largas do código moral mediante a repressão de um dos lados do conflito, ao invés de se aventurar por caminhos não trilhados do etos individual. Se sustentar a tensão até o fim, chegarão inevitavelmente à consciência conteúdos produzidos pelo inconsciente, que funcionam como uma solução antes impensável. “A natureza da solução está de acordo com os fundamentos mais profundos da personalidade, bem como com sua inteireza; abrange o consciente e o inconsciente e, portanto, transcende o eu” (Jung, 1958/1964, § 856, tradução nossa).

Esta solução é o que, para Jung, constitui o etos particular produzido do embate e do conflito suportado até o fim. Para ele, o etos não é, como já apresentamos acima, fruto simplesmente do intelecto ou da razão. Ele é produto da cooperação entre consciência e inconsciente.

Toda essa discussão nos apresenta indícios que nos dão um contorno do arquétipo que está ligado diretamente a este fenômeno e, por conseguinte, ao problema da ética. Nos próximos parágrafos, nossa argumentação irá na defesa da hipótese apontada aqui.

Si-mesmo e alteridade

Em O Bem e o Mal na psicologia analítica há uma passagem importante que dá suporte ao nosso argumento. Retomamos, pois, a discussão prévia sobre o confronto com o mal, ou antes, sobre a lide com os extremos morais. Ali ele comenta os efeitos empíricos no sujeito confrontado com um problema ético:

Quando observamos como as pessoas se comportam quando se deparam com uma situação que precisa ser avaliada eticamente, nos damos conta de um estranho efeito duplo: de repente, elas veem os dois lados. Tornam-se elas conscientes não apenas de suas inferioridades morais, mas também, automaticamente, de suas boas qualidades. Elas dizem, com razão: “Eu não posso ser tão ruim assim”. Confrontar uma pessoa com sua sombra é mostrar a ela sua própria luz. Uma vez que se tenha experimentado algumas vezes o que é estar na posição de julgador entre os opostos, começa-se a entender o que quer dizer o si-mesmo. Qualquer um que perceba sua sombra e sua luz simultaneamente se vê de dois lados e assim fica no meio. (Jung, 1959/1964, § 872, tradução nossa)

Como vemos, Jung posiciona esse conceito como central na discussão sobre ética. Para ele, a experiência do si-mesmo é o que possibilita, pelo menos ao indivíduo que sofre, a superação da dicotomia entre o bem e o mal e, portanto, um encaminhamento para o conflito. O psicólogo lança mão da analogia com a filosofia hindu para ilustrar seu conceito de si-mesmo:

Como empírico, posso pelo menos estabelecer que tanto o oriental como o ocidental são tirados do jogo do maia, ou do jogo dos opostos, através da experiência do atmã, do “si-mesmo”, a totalidade mais elevada. Ele sabe que o mundo consiste em escuridão e luz. Eu posso dominar esta polaridade apenas me libertando dela, pela contemplação de ambos os opostos, atingindo, assim, uma posição intermediária. Só aí não estou mais à mercê dos opostos. (Jung, 1959/1964, § 875, grifo e tradução nossos)

Pois é esta experiência psicológica que nos coloca diante dos símbolos mais desconcertantes que sempre parecem estar em plena contradição. Assim, as figuras que expressam o si-mesmo conjugam tanto o grande como o pequeno, o velho sábio e a criança vulnerável, tanto o filho como o pai, o bem e o mal etc. Desta forma, ao sujeito essa instância sempre aparece como uma autoridade, pois ultrapassa as capacidades de sua compreensão. Jung ([1942/1954]/1973) assim o define:

O termo “si-mesmo” pareceu-me adequado para esse substrato inconsciente, cujo expoente real na consciência é o eu. O eu está para o si-mesmo como o movido para o movedor, ou como o objeto para o sujeito, porque os fatores determinantes que irradiam do si-mesmo cercam o eu de todos os lados e, portanto, são supraordenados a ele. O si-mesmo, como o inconsciente, é um existente a priori a partir do qual o eu evolui. É, por assim dizer, uma prefiguração inconsciente do eu. Não sou eu que me crio, mas sim eu aconteço a mim mesmo. (§ 391, tradução nossa)

Daí serem os seus símbolos facilmente identificados com a imago Dei, o que ele atesta em Aion, uma de suas obras dedicadas ao simbolismo do si-mesmo, e em diversos outros trabalhos (Jung, 1951/1979; 1958/1964; 1956/1977).

Disso também resulta um atributo que partilha com seus símbolos, que, como vimos, são aqueles da união de opostos. Para o psiquiatra suíço, o si-mesmo é o absolutamente outro:

Como fenômeno individual, o si-mesmo é “menor que o pequeno”; como o equivalente do cosmo, é “maior que o grande”. O si-mesmo, considerado como o contraponto do mundo, seu “absolutamente outro”, é a condição sine qua non de todo conhecimento empírico e consciência de sujeito e objeto. Somente por causa dessa “alteridade” psíquica é possível a consciência. A identidade não torna a consciência possível; é apenas a separação, o desapego e o confronto agonizante por meio da oposição que produz consciência e discernimento. (Jung, 1940/1980, § 289, tradução nossa)

Como procuramos demostrar, isso tem sérias implicações éticas, porquanto podemos identificar um terceiro na discussão ética, uma alteridade psíquica que é precondição ao próprio conhecimento do outro enquanto mundo e enquanto outrem. E, assim como o outro me exige, o si-mesmo me demanda inescapavelmente uma resposta.

Considerações finais

Por fim, temos elementos para afirmar que, se a relação ética se resume na relação entre homem e Deus, é porque a ética surge como um embate e uma resposta às demandas da personalidade inteira, isto é, do si-mesmo. Portanto, Jung mantém-se no círculo próprio da psicologia profunda para buscar interpretações acessíveis ao problema da ética. Seu interesse permanece muito distante da metafísica, como ele faz questão de ressaltar em diversas ocasiões (Jung, 1951/1979, 1959/1964, 1990). No entanto, não teme em sua argumentação científica o uso dos termos que sempre foram usados pelo homem para tratar do fenômeno da ética.

A supraordenação do si-mesmo em relação ao eu é manifesta, portanto, na experiência da outra vontade que se impõe às decisões do eu e que provocam certo descentramento egoico. Esta outra vontade - chamamo-la vontade de Deus ou a voz de Deus, ou simplesmente as compensações lançadas pelo inconsciente - parece-nos ser, num duplo aspecto, aquilo que torna manifesto o conflito e o que detém a sua solução. Com efeito, se recapitularmos o que desenvolvemos até agora, perceberemos que o conflito de deveres se instala pelo paulatino aumento do autoconhecimento que advém do contato com a sombra, com o inconsciente, que lança o problema do bem e do mal. Isso confronta o sujeito com as questões mais derradeiras, cuja solução o afasta da moral coletiva, empurrando-o para uma saída que não cabe mais na racionalidade ou no costume.

Nesses casos, a solução é proposta por símbolos que conjugam os opostos e que, dessa forma, são descritos em geral como símbolos da totalidade. Esta solução, entretanto, impõe ainda assim uma tarefa não menos difícil que o próprio conflito, que é sustentar um etos próprio, seguir a própria lei, tornar-se o que se é. Numa só palavra: individuação. Conceito que define em seu sentido estrito a consideração conscienciosa dos conteúdos do inconsciente pela consciência do eu. É a realização do si-mesmo.

Com efeito, essa consideração conscienciosa do inconsciente é manifesta pela declaração de Jung (1990Jung, C. G. (1990). C. G. Jung Letters: 1951-1961 (G. Adler & A. Jaffé, eds., R. F. C. Hull, trad., Vol. 2). Brighton, UK: Routledge.) numa carta, de que “Deus me apresenta os fatos com os quais tenho que conviver. Se ele não os rejeitar, eu não posso” (p. 379, tradução nossa). Eu simplesmente não posso rejeitar os fatos da realidade psíquica, sobretudo quando seu valor supera em muito aqueles da convenção social. Mas isso não significa que o sujeito é de todo sujeitado. Sem a participação do eu não há individuação. É dele a decisão sobre os fatos apresentados pelo inconsciente, mesmo que seja ociosa a questão de se essa decisão é realmente livre.

Ao final, a decisão ética é sempre um reportar-se a um totalmente outro. É uma resposta ao si-mesmo e, por conseguinte, ao grupo social. Ética é, destarte, para Jung, um assunto que, longe de restringir-se ao campo do julgamento racional, surge propriamente do colapso da razão. É justamente aí que o indivíduo será convocado como um todo a decidir. A construção do etos, assim, é um processo que significa, quando encarado com fidelidade e designação, a realização do si-mesmo:

Somente o poder criativo do etos que expressa todo o homem pode pronunciar o julgamento final. Como todas as faculdades criativas do homem, seu etos flui empiricamente de duas fontes: da consciência racional e do inconsciente irracional. É um exemplo especial do que chamei de função transcendente, que é a cooperação discursiva de fatores conscientes e inconscientes ou, em linguagem teológica, de razão e graça. (Jung, 1958/1964, § 854, tradução nossa)

Num certo sentido, a inclusão desse tertium no centro da discussão sobre ética é a contribuição junguiana para o alargamento da nossa visão de mundo sobre o próprio sentido de alteridade.

REFERÊNCIAS

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  • Von Franz, M.-L. (1985). A sombra e o mal nos contos de fada. São Paulo, SP: Paulinas.
  • 1
    Para as referências das obras de Jung, usamos a data de publicação do texto original seguida da data de publicação da edição utilizada, que aqui foram as Obras Coletadas (Collected Works) por ser a mais aceita internacionalmente para pesquisa, embora ainda apresente problemas, como toda tradução. As citações são feitas pelo parágrafo a que se refere, o que facilita a pesquisa em qualquer das traduções disponíveis. Cabe esclarecer ainda, que as traduções são de nossa responsabilidade.
  • 2
    Como veremos adiante, trata-se de um conceito de Jung que circunscreve uma fenomênica bem distinta na dinâmica psíquica.
  • 3
    Não podemos deixar de notar, entretanto, que Jung não passou ileso à (quase) irresistível pretensão de criar, se não uma teoria, no mínimo, uma linguagem geral para as ciências psicológicas, como o descreve Shamdasani (2011).
  • 4
    Jung defende que irracional tem o sentido não de contrário a razão, mas de além da razão. Para ele, o irracional é um fator existencial, como por exemplo o fato de a Terra ter uma Lua, de o hidrogênio ser um elemento ou de um símbolo nos ocorrer num sonho. “Uma explicação completamente racional de um objeto que realmente existe (não aquele que é meramente postulado) é um ideal utópico. Somente um objeto postulado pode ser completamente explicado por motivos racionais, uma vez que não contém nada além do que foi postulado pelo pensamento racional.” (Jung, 1921/1971, § 775, tradução nossa).
  • 5
    Na obra de Lévinas, deparamos com uma extensa discussão sobre a alteridade, que se impõe em sua filosofia como o princípio ético por excelência. Nela, o “Outro . . . é transcendente e pré-originário com relação até mesmo ao plano ontológico. Sua dimensão é ética.” (Freire, 2001Freire, J. C. (2003). A psicologia a serviço do outro: ética e cidadania na prática psicológica Psicologia: Ciência e Profissão, 23(4), 12-15. doi: 10.1590/S1414-98932003000400003.
    https://doi.org/10.1590/S1414-9893200300...
    , p. 76), por isso, Lévinas afirma que a ética é a filosofia primeira. Em Lévinas, Freire (2003Freire, J. C. (2001). As psicologias na modernidade tardia: o lugar vacante do outro. Psicologia USP, 12(2), 73-93. doi: 10.1590/S0103-65642001000200005.
    https://doi.org/10.1590/S0103-6564200100...
    ) destaca, “se faz necessária uma ida do eu na direção de sua exterioridade [do outro] e uma implicação do eu pela vinda do Outro que exige uma responsabilidade irrecusável. O outro instaura a possibilidade do eu, e este, por sua vez, se faz necessário para a sujeição ao Outro.” (p. 13).
  • 6
    Que ele difere de Bewusstsein, isto é, a consciência como estado psicológico. Utilizaremos o termo em alemão nas nossas citações, pois em ambas as traduções portuguesa e anglo-americana o termo é ambíguo e pode gerar confusão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2018
  • Aceito
    23 Jan 2019
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