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Preconceito e bullying: marcas da regressão psíquica socialmente induzida1 1 O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (cnpQ), processo 306790/2018-1. 2 2 Agradeço a contribuição dos pesquisadores do Laboratório de Estudos sobre o Preconceito do Instituto de Psicologia da USP para a coleta e análise dos dados deste artigo.

Préjugés et intimidation: marques de la régression psychique induite par la société

Prejuicio y bullying: marcas de la regresión psíquica socialmente inducida

Resumo

Os objetivos da pesquisa a ser relatada, baseada nos estudos da teoria crítica da sociedade, são: distinguir formas de violência escolar - o bullying e o preconceito - e relacioná-las com tipos de personalidade. Foram utilizadas escalas que detectam o sadomasoquismo, o narcisismo, a manifestação de preconceitos e o bullying. Tais escalas foram aplicadas a 161 universitários paulistanos, com as hipóteses de que bullying e preconceito têm relação significante, mas não plena; que a manifestação de preconceito está associada com características de personalidades sadomasoquistas e narcisistas, e que a autoria do bullying está mais relacionada com características de personalidade narcisista; o que sofre o bullying, por sua vez, não estaria associado com nenhum tipo das características de personalidade avaliadas. Essas hipóteses foram confirmadas, o que, dentro do referencial teórico utilizado, fortalece a análise de que se o progresso social como fim em si mesmo aperfeiçoa a sociedade, ao mesmo tempo leva os indivíduos a regredirem psiquicamente.

Palavras-chave:
bullying; preconceito; personalidade; teoria crítica da sociedade

Résumé

Les objectifs de la recherche à rapporter, basés sur des études de la théorie critique de la société, sont: distinguer les formes de violence à l’école - le harcèlement et les préjugés - et les relier à différents types de personnalité. Les échelles ont été utilisées pour détecter le sadomasochisme, le narcissisme, la manifestation de préjugés et le harcèlement. Ils ont été appliqués à 161 étudiants d’une université publique de São Paulo, avec l’hypothèse selon laquelle l’intimidation et les préjugés entretiennent une relation de magnitude importante mais pas complet; que la manifestation de préjugés est associée à des traits de personnalité sadomasochistes et narcissiques et que la paternité de l’intimidation est davantage liée à des traits de personnalité narcissiques; celui qui subit l’intimidation, à son tour, ne serait associé à aucun type de caractéristiques de personnalité évaluées. Ces hypothèses ont été confirmées, ce qui, dans le cadre théorique utilisé, confirme l’analyse selon laquelle si le progrès social est une fin en soi qui perfectionne la société, il provoque une régression psychique des individus.

Mots-clés:
intimidation; préjugés; personnalité; théorie critique de la société

Resumen

Son objetivos de esta investigación basada en los estudios de la Teoría Crítica de la Sociedad: distinguir formas de violencia escolar -el bullying y el prejuicio- y relacionarlas con diversos tipos de personalidad. Se utilizaron escalas que detectan el sadomasoquismo, el narcisismo, la manifestación de prejuicios y el bullying. Se aplicaron a 161 alumnos de una universidad pública de São Paulo con las hipótesis de que bullying y prejuicio tienen una significativa relación, pero no plena; de que la manifestación de prejuicio está asociada con características de personalidad sadomasoquistas y narcisistas, y de que la autoría del bullying está más relacionada con características de personalidad narcisista; el que sufre bullying, a su vez, no está asociado con ninguna clase de características de personalidad evaluadas. Estas hipótesis fueron confirmadas, lo que dentro del referencial teórico utilizado comprueba el análisis de que el progreso social como fin en sí mismo perfecciona la sociedad, al mismo tempo lleva a la regresión psíquica de los individuos.

Palabras clave:
bullying; prejuicio; personalidad; teoría crítica de la sociedad

Abstract

The objectives of the research to be reported, based on studies of the critical theory of society, are: to distinguish forms of school violence - bullying and prejudice - and to relate them to different types of personality. Scales were used to detect sadomasochism, narcissism, the manifestation of prejudices and bullying. Such scales were applied to 161 students of a public university of São Paulo with the hypotheses that bullying and prejudice have a significant, but not full, relation; that the manifestation of prejudice is associated with sadomasochistic and narcissistic personality traits; and that the authorship of bullying is more related to narcissistic personality traits; the one who suffers bullying, in turn, would not be associated with any of the personality traits evaluated. These hypotheses have been confirmed, which, within the theoretical framework used, strengthens the analysis that if social progress as an end in itself perfects society, it causes, at the same time, individuals to regress psychically.

Keywords:
bullying; prejudice; personality; critical theory of society

Introdução

Em maio de 2018, foi promulgada a Lei nº 13.663, que, entre outras responsabilidades da escola, inclui a formação de uma “cultura da paz” e medidas de conscientização, prevenção e combate a diversos tipos de violência escolar, sobretudo o bullying, o que mostra a importância dada a esse fenômeno, não só por educadores, mas também por políticos.

Segundo Cano-Echeverri e Vargas-Gonzalez (2018Cano-Echeverri, M. M., & Vargas-Gonzalez, J. E. (2018). Actores del acoso escolar. Revista Médica de Risaralda, 24(1), 61-63. doi: 10.22517/25395203.14221
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), o bullying escolar existe desde quando há escola, mas sua investigação científica tem início nos anos 1970, com o psicólogo norueguês Dan Olweus. O interesse acadêmico foi incrementado a partir do suicídio de três estudantes de 14 anos, devido, principalmente, à agressão contínua de seus colegas. A partir daí, governos de outros países - Inglaterra, Itália, Canadá, Japão, Estados Unidos, Austrália - reconheceram o bullying como um problema sério a ser enfrentado.

O bullying escolar tem sido definido como a hostilidade de um aluno mais velho ou mais forte, ou grupo de alunos, intencionalmente e com frequência, dirigida a um mesmo aluno, que não consegue reagir suficientemente para evitar a agressão, podendo gerar diversas consequências em quem o sofre, desde uma angústia acentuada até o assassinato e o suicídio (Cano-Echeverri & Vargas-Gonzalez, 2018Cano-Echeverri, M. M., & Vargas-Gonzalez, J. E. (2018). Actores del acoso escolar. Revista Médica de Risaralda, 24(1), 61-63. doi: 10.22517/25395203.14221
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; Chaves & Souza, 2018Chaves, D. R. L., & Souza, M. R. (2018). Bullying e preconceito: a atualidade da barbárie. Revista Brasileira de Educação, 23, e230019. doi: 10.1590/s1413-24782018230019
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; Fante, 2005Fante, C. (2005). Fenômeno bullying: como prevenir a violência nas escolas e educar para a paz. Campinas, SP: Verus.; Pinheiro & Willians, 2009Pinheiro, F. M. F., & Williams, L. C. A. (2009). Violência intrafamiliar e intimidação entre colegas no ensino fundamental. Family violence and bullying on primary school. Cadernos de Pesquisa, 39(138), 995-1018.).

Segundo Cuervo, Quintana, Martínez e Amezaga (2018Cuervo, A. A. V., Quintana, J. T., Martínez, E. A. C., & Amezaga, T. R.W. (2018). Challenging behavior, parental conflict and community violence in students with aggressive behavior. International Journal of Psychological Research, 11(1), 50-57.), o bullying difere de outras formas de agressão porque é sistematicamente repetido em contexto de relações interpessoais, com assimetria de poder entre o agressor e sua vítima. Segundo Cano-Echeverri e Vargas-Gonzalez (2018Cano-Echeverri, M. M., & Vargas-Gonzalez, J. E. (2018). Actores del acoso escolar. Revista Médica de Risaralda, 24(1), 61-63. doi: 10.22517/25395203.14221
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), a maioria dos estudiosos do bullying escolar o delimita como relação desigual entre alunos; as outras formas de violência escolar devem ter outras definições.

Os papéis característicos no bullying são destacados por Albuquerque, Williams e D’Affonseca (2013Albuquerque, P. P., Williams, L. C. A., & D’Affonseca, S. M. (2013). Efeitos tardios do bullying e transtorno de estresse pós-traumático: uma revisão crítica. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 29(1), 91-98. doi:10.1590/S0102-37722013000100011
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): agressor, seguidores do agressor, espectadores e vítima ou alvo da agressão. Esses papéis, contudo, não são fixos, podendo haver alternância entre eles, sendo que uma vítima pode se tornar agressor em outra situação.

Os observadores do bullying, segundo Cano-Echeverri e Vargas-Gonzalez (2018Cano-Echeverri, M. M., & Vargas-Gonzalez, J. E. (2018). Actores del acoso escolar. Revista Médica de Risaralda, 24(1), 61-63. doi: 10.22517/25395203.14221
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), Chaves e Souza (2018Chaves, D. R. L., & Souza, M. R. (2018). Bullying e preconceito: a atualidade da barbárie. Revista Brasileira de Educação, 23, e230019. doi: 10.1590/s1413-24782018230019
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) e Voors (2006Voors, W. (2006). Bullying: el acoso escolar. Buenos Aires: Oniro.), podem se sentir temerosos de que eles mesmos se tornem vítimas caso interfiram para cessar a violência, sentindo-se impotentes. Cano-Echeverri e Vargas-Gonzalez (2018) alegam que alguns dos observadores não interferem, pois julgam que não é um problema seu, mostrando indiferença e frieza frente à violência. A maior parte dos alunos, conforme Veiga Simão, Freire e Ferreira (2004Veiga Simão, A. M., Freire, I., & Ferreira, A. (2004). Maus-tratos entre pares na escola: um estudo contextualizado. Apresentado no Congresso Ibero-Americano sobre Violências nas Escolas, Brasília, DF.), é observadora do bullying e não reage frente à violência.

Em geral, os autores da agressão têm dificuldades de seguir limites sociais e extravasam sua agressividade quando podem, sem nenhum motivo aparente; o ato do bullying, ao expressar essa não contenção de impulsos que levam a comportamentos destrutivos, fortalece a manutenção em seu autor de um estágio de desenvolvimento psicologicamente regredido (Crochik, 2014Crochik, J. L. (2014). Prejudice, violence, and school performance. In Draper, T. (Org.). Psychology of prejudice: new research. Nova York, NY: Nova Publishers.). Os alvos, por sua vez, podem se sentir deprimidos e/ou ressentidos (Barcaccia, Schneider, Pallini, & Baiocco, 2017Barcaccia, B., Schneider, B. H., Pallini, S., & Baiocco, R. (2017). Bullying and the detrimental role of un-forgiveness in adolescents’ wellbeing. Psicothema, 29(2), 217-222 doi: 10.7334/psicothema2016.251
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), levando, em casos extremos, ao suicídio ou à vingança por meio de assassinatos.

Conforme Cano-Echeverri e Vargas-Gonzalez (2018Cano-Echeverri, M. M., & Vargas-Gonzalez, J. E. (2018). Actores del acoso escolar. Revista Médica de Risaralda, 24(1), 61-63. doi: 10.22517/25395203.14221
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), os agressores buscam o reconhecimento de seus colegas, quer por admiração ou por medo. Já as vítimas são consideradas como menos populares na escola, o que se associa com seu isolamento, motivo que pode levar a serem escolhidas pelos autores da agressão, com o que concorda Barrios (2014Barrios, A. J. M. (2014). Relação entre estilos parentais, personalidade e regulação emocional na condição de bullying em adolescentes (Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.), que destaca pesquisas que definem a vítima como predisposta ao isolamento e à solidão e carente de redes sociais que possam oferecer apoio, além de apresentar altos níveis de depressão.

Se o bullying não tem alvos específicos, a não ser a fragilidade percebida - em conformidade com o que foi explicitado no parágrafo anterior -, no preconceito, segundo Jodelet (2006Jodelet, D. (2006). Os processos psicossociais da exclusão. In Sawaia, B. (Org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social (pp. 53-56). Petrópolis, RJ: Vozes.), esses alvos são pré-julgados e justificados para o exercício de violência que recai sobre eles. Trata-se de uma atitude (Krech, Crutchfield, & Ballachey, 1975Krech, D., Crutchfield, R. S., & Ballachey, E. L. (1975). O indivíduo na sociedade: um manual de psicologia social. São Paulo: Pioneira.) que como tal comporta uma dimensão cognitiva, expressa em seus conteúdos sob a forma de estereótipos, uma dimensão afetiva relativa a valores e emoções, possuindo também uma tendência para a ação que, segundo Amaral (1995Amaral, L. A. (1995) Conhecendo a deficiência: em companhia de Hércules. São Paulo, SP: Robe.) e Crochik (2011Crochik, J. L. (2011). Preconceito e inclusão. Webmosaica, 3(1), 32-42.), pode se expressar de três formas distintas: (1) hostilidade contra o alvo; (2) superproteção do alvo, que indica a não aceitação da própria hostilidade em relação a esse alvo, convertida em seu oposto; (3) aparente indiferença frente ao alvo. As duas primeiras formas, segundo Crochik (2011Crochik, J. L. (1999). A personalidade narcisista e a ideologia da racionalidade tecnológica. (Tese de livre docência). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.), estariam relacionadas com identificações negadas - não admitir que os desejos e expectativas projetados nos alvos são do preconceituoso -; e a última forma estaria associada com uma negação de toda e qualquer identificação, reduzindo todos, e a si mesmo, a objetos a serem manipulados, o que seria ilustrado pelo tipo manipulador, descrito por Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Sanford (1950Adorno, T. W., Frenkel-Brunswik, E., Levinson, D. J., & Sanford, R. N. (1950). The authoritarian personality. New York, NY: Harper & Row.). Segundo Tuffin (2017Tuffin, K. (2017). Prejudice. In Gough, B. (Ed.). The Palgrave handbook of critical social psychology. London: Palgrave Macmillan.), o preconceito se dirige a grupos sociais, como os que são colonizados por grupos mais fortes do ponto de vista bélico.

A relação entre bullying e preconceito é estudada por Antunes e Zuin (2008Antunes, D. C., & Zuin, A. A. S. (2008). Do bullying ao preconceito: os desafios da barbárie à educação. Psicologia & Sociedade, 20(1), 33-42. doi: 10.1590/S0102-71822008000100004
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) e Chaves e Souza (2018Chaves, D. R. L., & Souza, M. R. (2018). Bullying e preconceito: a atualidade da barbárie. Revista Brasileira de Educação, 23, e230019. doi: 10.1590/s1413-24782018230019
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), que defendem que esse último fenômeno é a base do primeiro. Os autores argumentam que o bullying é conceito gerado pela razão instrumental - tal como definida por Horkheimer (1946/2015Horkheimer, M. (2015). O eclipse da razão. São Paulo, SP: Editora Unesp. (Trabalho original publicado em 1946)) - para substituir a discussão sobre o preconceito realizada por Horkheimer, Adorno e outros, em seus estudos, como em Elementos do antissemitismo (Horkheimer & Adorno, 1947/1985Horkheimer, M., & Adorno, T.W. (1985). Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1947)) e The authoritarian personality (Adorno et al., 1950Adorno, T. W. (1995). Palavras e sinais: modelos críticos 2. (M. H. Ruschel, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.).

Para Antunes e Zuin (2008Antunes, D. C., & Zuin, A. A. S. (2008). Do bullying ao preconceito: os desafios da barbárie à educação. Psicologia & Sociedade, 20(1), 33-42. doi: 10.1590/S0102-71822008000100004
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, p. 36), o conceito de bullying se aproxima do conceito de preconceito “principalmente quando se reflete sobre os fatores sociais que determinam os grupos-alvo, e sobre os indicativos da função psíquica para aqueles considerados agressores”. Em contraposição a esse entendimento, o estudo conduzido por Souza (2013Souza, J. M. (2013). Bullying: uma das faces do preconceito no contexto escolar (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, SE.) indica que alunos que são alvos do bullying pensam que a agressão ocorre principalmente por características fenotípicas (66,6%), e em menor frequência por motivos atribuídos ao racismo (10,1%), à homofobia (9,3%) e à religião (6,2%); isto é, no preconceito, os alvos pertencem a minorias sociais; no bullying, não se restringem a essas.

O conceito de bullying, conforme Chaves e Souza (2018Chaves, D. R. L., & Souza, M. R. (2018). Bullying e preconceito: a atualidade da barbárie. Revista Brasileira de Educação, 23, e230019. doi: 10.1590/s1413-24782018230019
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), considerado como atitude individual, destacado de uma análise sociológica como a realizada pelos frankfurtianos, reduziria a discussão dessa forma de violência, antes delimitada como preconceito, para características individuais e familiares.

Há quem considere o bullying relacionado ao preconceito, mas distinto dele (Batista, 2011Batista, E. H. M. (2011). Bullying e diferenças: a busca por um olhar ampliado. (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP.; Pinto & Branco 2011Pinto, R. G.; Branco, A. U. (2011). O bullying na perspectiva sociocultural construtivista. Teoria e Prática da Educação, 14(3), 87-95. doi: 10.0000/rtpe.v14i3.18490
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). Nas palavras de Batista (2011), “nem toda agressão é bullying, mas o bullying é sempre uma agressão, com características próprias que o difere de outras violências, ainda que intrinsecamente relacionado aos preconceitos, discriminações, entre outros”. Nesse sentido, pode-se afirmar que a relação a ser estabelecida entre preconceito e bullying não deve prescindir de distinguir os dois fenômenos.

Silva et al. (2018Silva, J. L., Oliveira, W. A., Zequinão, M. A, Silva, E. A., Pereira, B.O., & Silva, M. A. I. (2018). Resultados de intervenções em habilidades sociais na redução de bullying escolar: revisão sistemática com metanálise. Trends in Psychology, 26(1), 509-522. doi: 10.9788/tp2018.1-20pt
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) e Souza (2013Souza, J. M. (2013). Bullying: uma das faces do preconceito no contexto escolar (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, SE.) indicam características comuns aos alvos do bullying percebidas pelos autores da agressão como não passíveis de oferecer resistência: passividade, baixa autoestima, depressão, poucos amigos. Como se pode notar, não são delimitados nenhum grupo ou minoria social em específico, mas características pessoais. Os alunos que sofrem bullying parecem ter dificuldades de relacionamento, mas não necessariamente pelo grupo ao qual pertencem; claro, isso pode ocorrer, se pertencerem a um grupo desvalorizado socialmente, mas, nesse caso, trata-se de preconceito, e não de bullying.

As críticas dirigidas à criação do termo “bullying” para nomear um fenômeno já existente (o preconceito) são fundamentais para entender a violência contemporânea; pois, caso se trate de mesmo tipo de violência, por que suas definições são dirigidas a manifestações de situações distintas? Como foram poucos os estudos que propuseram a distinção entre esses fenômenos, e essa nos parece uma questão importante a ser respondida, ela serviu de base para um dos objetivos da pesquisa, cujos resultados serão relatados mais à frente.

Em pesquisa com estudantes do ensino fundamental 2 em que relacionamos bullying escolar com preconceito, houve correlação positiva significante entre indicação dos alunos como autores do bullying e o preconceito voltado a alvos frágeis (r=0,14; p<0,05) (Crochik, 2014Crochik, J. L., Casco, R., Ceron, M., & Catanzaro, F. O. (2009). Relações entre preconceito, ideologia e atitudes frente à educação inclusiva. Estudos de Psicologia, 26(2), 123-132.). Essa indicação do aluno como agressor também está correlacionada de forma significante com o preconceito contra os alunos considerados com má conduta, mas, dessa vez, negativamente (r=-0,16; p<0,01). Assim, quanto mais o aluno foi indicado como agressor, mais demonstrou preconceito contra alunos considerados frágeis e menos mostrou preconceito contra alunos tidos como de má conduta. Apesar de essas correlações serem significantes, deve-se notar que foram de baixa magnitude, o que corrobora a posição de que há relação entre os dois fenômenos, mas que essa não é plena.

Em relação a essas distinções, Crochik (2015Crochik, J. L. (2015). Formas de violência escolar: preconceito e bullying. Movimento, 3, 29-56. doi: 10.22409/mov.v0i3.270.
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) argumenta que no preconceito há um alvo delimitado, no qual expectativas, medos e desejos que o indivíduo não pode admitir em si são projetados; em contrapartida, o autor do bullying precisa de um alvo, qualquer que seja, que possa submeter à sua vontade de dominação e destruição da vontade alheia, tal como também mencionam Chaves e Souza (2018Chaves, D. R. L., & Souza, M. R. (2018). Bullying e preconceito: a atualidade da barbárie. Revista Brasileira de Educação, 23, e230019. doi: 10.1590/s1413-24782018230019
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).

Goodboy, Martin e Rittenour (2016Goodboy, A. K., & Martin, M. M., & Rittenour, C.E. (2016). Bullying as an expression of intolerant schemas. Journal of Child & Adolescent Trauma, 9(4), 277-282.) evidenciaram a relação entre esquemas intolerantes de sexismo, racismo, religião etc. e a prática de bullying; assim, os que são preconceituosos tiveram as mesmas ações associadas ao bullying em relação aos grupos discriminados, do que se depreende que, pelas ações, os dois fenômenos podem não ser distintos. Cabe, contudo, contrapor a essa similaridade que: (1) determinados tipos de preconceito nomeados de “sutis”, por não terem a mesma visibilidade dos preconceitos flagrantes, conforme Meertens e Pettigrew (1999Meertens, R. W., & Pettigrew, T. F. (1999). Será o racismo sutil mesmo racismo? In Vala, J. (Org.). Novos racismos: perspectivas comparativas (pp. 11-29). Lisboa: Celta.), podem não ser considerados como bullying; (2) o tipo de preconceito que aparenta o seu contrário (afeição exagerada a membros de grupos discriminados) também não seria caracterizado como bullying. Assim, ações que são caracterizadas como próprias ao bullying podem ser dirigidas também a alvos do preconceito, mas determinadas formas de preconceito não seriam consideradas como bullying; também não se deveria delimitar o bullying como uma forma de discriminação própria ao preconceito, pois tem, como veremos mais à frente, motivação psíquica distinta.

Como discutimos em outro trabalho (Crochik, 2015Crochik, J. L. (2015). Formas de violência escolar: preconceito e bullying. Movimento, 3, 29-56. doi: 10.22409/mov.v0i3.270.
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), ambos os fenômenos podem ser repetidamente voltados aos mesmos alvos, durante um longo período, e nessas duas formas de violência pode-se caracterizar a ação de grupos ou de indivíduos mais fortes ou mais espertos para a dominação de outras pessoas. Mas, no caso do preconceito, mesmo indivíduos frágeis podem desenvolvê-los, e a discriminação ocorrer de maneira mais sutil. A dominação expressa no preconceito precisa de seu alvo para a continuidade da projeção de seus desejos, medos, expectativas; a dominação própria ao bullying visa destruir o alvo, que rapidamente pode ser substituído por outro.

Uma explicação psicológica e social da formação do preconceito, ainda que não nomeado dessa forma, é dada por Freud (1930/2011Freud, S. (1993). Psicología de las masas y análisis del yo. In Obras completas (v. 18, pp. 63-136). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1921)), no que pode explicar a origem da formação de grupos. Freud argumenta que o preconceito ocorre quando há um alvo externo capaz de suspender a tendência à agressão entre os indivíduos de um mesmo grupo; a violência que seria dirigida aos membros do próprio grupo é desviada para indivíduos de outros grupos; esse desvio da violência para indivíduos externos ao grupo a que se pertence explicaria porque povos vizinhos têm hostilidades recíprocas, assim como explicaria a perseguição aos judeus. Neste sentido, o preconceito seria necessário para a formação e para a manutenção de grupos; essa hostilidade é eliminada caso os grupos em conflito se unam contra outro alvo em comum.

Mas há, segundo Freud (1930/2011Freud, S. (1996a). Introducción al narcisismo. In Obras completas (v. 2, pp. 2017-2033). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1914)), uma tendência à destruição que seria inerente a toda forma de vida. Essa tendência se apresenta na hostilidade contra a civilização como um todo, e quanto mais há progresso, mais essa tendência se fortalece; essa tendência mais difusa parece se relacionar ao que hoje chamamos de bullying. Dessa maneira, segundo essas considerações de Freud (1930/2011Freud, S. (1996b) . Tres ensayos para una teoria sexual. In Obras completas (v. 2, pp. 1169-1237). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1905).), o preconceito seria necessário para unir e preservar um grupo, e a agressividade que julgamos estar presente também no bullying seria um risco contínuo à civilização que preceitos religiosos, entre outros recursos sociais, tentam controlar. Marcuse (1981Marcuse, H. (1981). Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1955)) considera que, se a civilização gerar menos tensão, essa tendência destrutiva diminuirá.

Segundo Horkheimer e Adorno (1947/1985), quanto mais a sociedade se desenvolve tecnicamente, menos os indivíduos se diferenciam. E se esses autores alegam que no regime nazista não havia antissemitismo, era uma forma de indivíduo menos desenvolvido que possibilitou parte da sustentação desse sistema, não desconsiderando que, para a existência desse mesmo sistema, os interesses objetivos de determinados grupos sociais são predominantes para gerá-lo.

Dos tipos de personalidade autoritária analisados por Adorno et al. (1950Adorno, T. W., Frenkel-Brunswik, E., Levinson, D. J., & Sanford, R. N. (1950). The authoritarian personality. New York, NY: Harper & Row.), podemos distinguir entre os que têm a ambivalência de sentimentos frente à autoridade como base de seus preconceitos, do que resultam tendências sadomasoquistas, e aquele que é considerado o mais perigoso: o manipulador, que ainda que tenha traços do caráter anal, tais como descritos pela psicanálise, apresenta extremo narcisismo, superficialidade e vacuidade, tendo prazer em manipular objetos, entre os quais inclui as pessoas, para ser eficiente. Essa análise indica que as escalas construídas para avaliar o antissemitismo, etnocentrismo e fascismo também podem estar avaliando traços narcisistas. Esse tipo é novamente descrito em texto publicado em meados da década de 1960 (Adorno, 1995), indicando sua cada vez maior presença em uma sociedade obstinada com a produtividade e com a tecnologia como fins em si mesmos. Assim, entre as personalidades autoritárias, podemos inferir que há aquelas mais próximas do que seria o indivíduo preconceituoso - tipo autoritário e tipo delinquente -, e um tipo de personalidade mais regredida psiquicamente - tipo manipulador -, cujas necessidades seriam menos elaboradas pelo indivíduo do que o preconceituoso, e que não delimitaria alvos específicos de seu afeto, mas a necessidade de sua destruição com crueldade, o que julgamos próximo ao que ocorre com os autores do bullying.

Assim, a crítica feita ao conceito de bullying por ser produto da razão instrumental, que ocultaria as razões sociais e psíquicas do preconceito (Antunes e Zuin, 2008Antunes, D. C., & Zuin, A. A. S. (2008). Do bullying ao preconceito: os desafios da barbárie à educação. Psicologia & Sociedade, 20(1), 33-42. doi: 10.1590/S0102-71822008000100004
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; Chaves e Souza, 2018Chaves, D. R. L., & Souza, M. R. (2018). Bullying e preconceito: a atualidade da barbárie. Revista Brasileira de Educação, 23, e230019. doi: 10.1590/s1413-24782018230019
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), pode ser respondida ao se considerar que o bullying é uma forma de manifestação individual suscitada por uma sociedade bastante desenvolvida e traz consigo necessidades psíquicas menos desenvolvidas dos que as que se apresentam no indivíduo que tem o preconceito mais arraigado, indicando que, com as mudanças na estrutura da sociedade, caracterizada principalmente pela passagem do capitalismo mercantilista para o de monopólios, a estrutura da personalidade preconceituosa não somente se modifica, mas torna-se menos desenvolvida, como argumentam Horkheimer e Adorno (1947/1985). Como se trata de tendência, as novas estruturas de personalidade, ainda que mais frequentes, convivem com as anteriores, daí podermos pensar que há indivíduos propensos ao desenvolvimento de preconceitos e/ou à autoria do bullying.

Outros estudos associam estruturas de personalidade com a autoria do bullying e com o preconceito. Goodboy e Martin (2015Goodboy, A. K., & Martin, M. M. (2015). The personality profile of a cyberbully: examining the dark triad. Computers in Human Behavior, 49, 1-4. doi: 10.1016/j.chb.2015.02.052
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), por meio de um teste que verifica três tipos de personalidade - narcisismo, psicopatia e maquiavelismo -, verificaram, em estudantes universitários, que esses tipos se correlacionam com os autores de cyberbullying, mas que a psicopatia é o único tipo significante como seu preditor. Em relação ao preconceito contra homoafetivos, Lingiardi et al. (2016Lingiardi, V., Nardelli, N., Loverno, S., Falanga, S., Di Chiacchio, C., Tanzilli, A. & Baiocco, R. (2016). Homonegativity in Italy: cultural issues, personality characteristics, and demographic correlates with negative attitudes toward lesbians and gay men. Sexuality Research and Social Policy, 13(2), 95-108. doi: 10.1007/s13178-015-0197-6
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), na Itália, utilizaram a bateria de personalidade de Cattel e verificaram que pessoas mais conservadoras do ponto de vista religioso e político, caracterizadas por uma personalidade mais conformada, moralista e heterônoma, são mais propícias à homofobia, o que corrobora resultados obtidos na pesquisa de Adorno et al. (1950Adorno, T. W., Frenkel-Brunswik, E., Levinson, D. J., & Sanford, R. N. (1950). The authoritarian personality. New York, NY: Harper & Row.) sobre a personalidade autoritária.

Conforme mencionado anteriormente, Silva et al. (2018Silva, J. L., Oliveira, W. A., Zequinão, M. A, Silva, E. A., Pereira, B.O., & Silva, M. A. I. (2018). Resultados de intervenções em habilidades sociais na redução de bullying escolar: revisão sistemática com metanálise. Trends in Psychology, 26(1), 509-522. doi: 10.9788/tp2018.1-20pt
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) e Souza (2013Souza, J. M. (2013). Bullying: uma das faces do preconceito no contexto escolar (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, SE.) indicam que as vítimas de bullying apresentam características relacionadas à ausência de habilidades sociais adequadas, como isolamento social e estratégias de enfrentamento ineficazes, como chorar e ignorar o agressor. Essas estratégias, de modo geral, indicam que as vítimas não são socialmente competentes, pois sinalizam aos agressores a ausência de condições para autodefesa, o que faz com que a violência se intensifique. Já para os agressores, segundo esses autores, não há consenso na literatura, ainda que existam indicações de que possuem dificuldades para lidar com desafios interpessoais, e que a melhoria de suas habilidades sociais, especialmente a empatia, pode reduzir as agressões que praticam.

Tal como salientado, como o autor do bullying não tem um motivo específico para exercê-lo, a não ser as necessidades psicossociais acima explicitadas, pode-se supor que tenha uma personalidade com pouca estruturação, buscando seus alvos para dar vazão a impulsos destrutivos que visam desestruturá-los psíquica e fisicamente. Certo, seus motivos podem ser associados ao desejo de pertença a grupos dos quais se sente excluído, mas, nesse caso, esse próprio desejo força sua realização pela destruição do grupo ao qual pretende pertencer, substituindo na escola, por exemplo, valores socialmente cultuados - aprendizado, cultura, compreensão, sensibilidade - por outros mais questionáveis: a força e a violência (Crochick & Crochick, 2017Crochick, J. L., & Crochick, N. (2017). Bullying, prejudice and school performance a new approach. New York, NY: Springer.).

O autor do bullying, por visar à dominação, conforme Chaves e Souza (2018Chaves, D. R. L., & Souza, M. R. (2018). Bullying e preconceito: a atualidade da barbárie. Revista Brasileira de Educação, 23, e230019. doi: 10.1590/s1413-24782018230019
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), objetiva a destruição da vontade do outro para se destacar em um grupo no qual não se julga valorizado; é uma forma desesperada de se fazer reconhecido por um grupo que o desconsidera. Suas feridas narcísicas, suscitadas pelo não pertencimento, podem gerar o desejo de se sobrepor aos que não conseguem reagir, mas que, não obstante, pertencem a esses grupos. Assim, os seus alvos podem representar fragilidade, mas também o que eles mesmos não podem ser e sentir: frágeis e pertencentes ao grupo.

Segundo Green (1988Green, A. (1988). Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo, SP: Escuta.), o narcisismo pode se definir como uma configuração psíquica ou como traços de personalidade caracterizados pela retirada do interesse do indivíduo da realidade externa, centrando-o em seu próprio eu. Os objetivos das relações estabelecidas por esse tipo de personalidade visam, sobretudo, à satisfação de seus desejos, e não à convivência social; tais objetivos desenvolvidos pelos narcisistas são contrários ao surgimento do indivíduo diferençado, que deve articular sua consciência com as necessidades sociais, a partir das quais surge (Adorno, 2015Adorno, T. W. (2015). Sobre a relação entre sociologia e psicologia. In: Adorno, T. W. Ensaios sobre psicologia geral e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 71-135). São Paulo, SP: Editora Unesp. (Trabalho original publicado em 1955)). Segundo Freud (1914/1996aFreud, S. (1996c). Duelo y melancolia. In Obras completas (v. 2, pp. 2091-2100). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1917).), a movimentação da libido pode se dirigir para os objetos externos ao eu, ou se voltar para esse, sobretudo em momentos de sofrimento, e enfatiza que a “cura” do narcisismo seria o amor ao objeto. Lasch (1983Lasch, C. (1983). A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago.) indica que o narcisismo corresponde à fase oral do desenvolvimento psicossexual, tal como descrito pela psicanálise; é mais regredido do que o sadomasoquismo, pois se refere a um estado sem objeto externo (Laplanche & Pontalis, 1988Laplanche, J., & Pontalis, J-B. (1988). Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.); já o sadomasoquismo, ainda que próprio a uma fase autoerótica, não pode prescindir de objeto para sua necessidade de dominação-submissão.

Conforme Cano-Echeverri e Vargas-Gonzalez (2018Cano-Echeverri, M. M., & Vargas-Gonzalez, J. E. (2018). Actores del acoso escolar. Revista Médica de Risaralda, 24(1), 61-63. doi: 10.22517/25395203.14221
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), é frequente nos autores de bullying a falta de preocupação com o que sentem suas vítimas e a ausência de remorso e compaixão. Ainda segundo os autores, as pesquisas mostram que os agressores também se caracterizam por suas dificuldades de estabelecer relações pessoais, ainda que menos do que suas vítimas, e possuem inseguranças e tendências violentas pelas quais tentam chamar a atenção e dominar os demais.

O estudo de Zambuto, Palladino, Nocentini e Menesini (2018Zambuto, V., Palladino, B. E., Nocentini, A., & Menesini, E. (2018). Why do some students want to be actively involved as peer educators, while others do not? Findings from NoTrap! anti-bullying and anti-cyberbullying program. European Journal of Developmental Psychology, 16(4), 373-386. doi: 10.1080/17405629.2017.1419954
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) reforça a argumentação sobre a despreocupação do autor da agressão com os alvos, indicando que os alunos que foram vítimas do bullying tendem a se propor a auxiliar os colegas que o sofrem em programas que utilizam a “educação por pares”, enquanto os autores do bullying não são motivados a participar desses programas. Se as vítimas podem se identificar entre si, o autor do bullying, mesmo após programa de conscientização, não tende a essa identificação, e a dificuldade de identificação com os outros também é característica do narcisista, uma vez que tem dificuldades de se preocupar com esses outros.

Em síntese, as necessidades psíquicas expressas no sadomasoquismo parecem se relacionar mais com o preconceito do que com o bullying, e as necessidades psíquicas narcisistas parecem estar relacionadas com a autoria do bullying, com aqueles que o apoiam e com o preconceito; em relação ao alvo e aos observadores do bullying, parecem não se associar, predominantemente, com nenhum desses dois tipos de personalidade.

Considerando o que foi desenvolvido, os objetivos da pesquisa ora relatada serão: (1) verificar a relação existente entre manifestação de preconceito e os diversos papéis assumidos no bullying; (2) verificar a relação entre sadomasoquismo e narcisismo, de um lado, e preconceito e bullying, de outro, especificando-se os papéis exercidos no bullying: nenhum, autor, apoiador, observador e alvo.

Método

Participaram da pesquisa 161 estudantes do segundo ano de uma universidade pública de São Paulo: 56 da área de ciências biológicas, 61 da área de humanas e 44 da área de exatas; 51 do sexo feminino; idade média de 22,7 anos com desvio padrão de 3,3. Foram utilizados nesta pesquisa os seguintes instrumentos: (1) questionário de dados pessoais (esse questionário tem como objetivo a coleta de informações gerais sobre os sujeitos: curso superior, sexo, data de nascimento); e (2) escalas de itens tipo Likert: escala do fascismo (escala F), escala das características narcisistas de personalidade (escala N) e escala de manifestação de preconceitos (escala P).

Essas três escalas têm itens do tipo Likert, com um contínuo de seis pontos para cada um; do lado esquerdo do contínuo está o termo discordo e, do outro, o termo concordo. Quanto maior o escore, maior a propensão para o indivíduo ser considerado sadomasoquista, narcisista e preconceituoso. A seguir a descrição de cada uma delas.

Escala do fascismo

A escala do fascismo (escala F) foi utilizada neste estudo para verificar características sadomasoquistas de personalidade. Elaborada por Adorno et al. (1950Adorno, T. W., Frenkel-Brunswik, E., Levinson, D. J., & Sanford, R. N. (1950). The authoritarian personality. New York, NY: Harper & Row.), nos Estados Unidos, na década de 1940, foi traduzida por nós e utilizada em estudos com alunos universitários (Crochik, 2005Crochik, J. L. (2005). Preconceito: relações com a ideologia e com a personalidade. Estudos de Psicologia, 22(3), 309-319. doi: 10.1590/S0103-166X2005000300009
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; Crochik, 2009). Os alfas de Cronbach para a aplicação aos estudantes desses estudos variaram de 0,77 a 0,84. Galeão-Silva (2007Galeão-Silva, L. G. (2007). Adesão ao fascismo e preconceito contra negros: um estudo com universitários na cidade de São Paulo (Tese de doutorado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP.) aplicou a mesma versão por nós traduzida em pesquisa com estudantes universitários e obteve o alfa de Cronbach igual a 0,81. A escala utilizada neste estudo possui 28 itens e teve um alfa igual a 0,85.

Escala de características narcisistas de personalidade

A construção da escala de características narcisistas da personalidade (escala N)3 3 Essa escala foi construída em conjunto com a professora Maria de Fátima Severiano. teve como base os textos de Freud (1921/1993Freud, S. (1996d). Sobre los tipos libidinales. In Obras completas (v. 3, pp. 3074-3076). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1931)., 1914/1996aFreud, S. (2011). O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)., 1905/1996b, 1917/1996c, 1931/1996d, 1930/2011), Green (1988Green, A. (1988). Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo, SP: Escuta.), Adorno (1955/2015), Costa (1984Costa, J. F. (1984). Violência e psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Graal.), Lasch (1983Lasch, C. (1983). A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago.), Mullins e Kopelman (1988Mullins, L.S., & Kopelman, R.E. (1988). Toward an assessment of the construct validity of four measures of narcissism. Journal of Personality Assessment, 52(4), 610-625. doi: 10.1207/s15327752jpa5204_2
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) e Raskin e Hall (1979Raskin, R., & Hall, C.S. (1979). A narcissistic personality inventory. Psychological Reports, 45(2), 590. doi: 10.2466/pr0.1979.45.2.590
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). Algumas questões da escala N buscam revelar atitudes que indicam a fragilidade de um eu psíquico, quer porque sua consciência moral (supereu) não foi desenvolvida, e o indivíduo precisa da apreciação constante dos outros por não ter referências internalizadas, quer porque constituiu um supereu rígido, exteriorizado, que deve punir um eu pouco estruturado quando não atinge esses ideais externos.

A escala N foi inicialmente aplicada em uma amostra de 162 estudantes da Universidade de São Paulo, dos cursos de psicologia, enfermagem e fonoaudiologia, nos anos de 1996 e 1997 (Crochik, 2000Crochik, J. L. (2000). Tecnologia e individualismo: um estudo de uma das relações contemporâneas entre ideologia e personalidade. Análise Psicológica, 4(18), 529-543.). A escala com os melhores 16 itens quanto a índices psicométricos obteve em outro estudo um alfa igual a 0,76 (Crochik, 2005). Tecedeiro (2010Tecedeiro, M. (2010). Estudo exploratório sobre burnout numa amostra portuguesa: o narcisismo como variável preditora da síndrome de burnout. Análise Psicológica, 28(2), 311-320.) aplicou essa escala em amostra de 68 publicitários portugueses para ver sua relação com o fenômeno do burnout, que foi efetivamente estabelecida, dando assim mais um indicador de validade dessa escala. Para este estudo, foi utilizada uma versão com 15 itens e obteve-se um alfa de Cronbach de 0,80.

Escala de manifestação de preconceitos

A escala de manifestação de preconceitos (escala P) foi criada por Crochik e Casco e apresentada por Crochik (2005Crochik, J. L. (2005). Preconceito: relações com a ideologia e com a personalidade. Estudos de Psicologia, 22(3), 309-319. doi: 10.1590/S0103-166X2005000300009
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); foi reduzida a 24 itens, um quarto para cada um dos seguintes grupos: negro, judeu, indivíduo com deficiência física e indivíduo com deficiência intelectual. Os autores tiveram como referência outras escalas, tais como as construídas por Adorno et al. (1950Adorno, T. W., Frenkel-Brunswik, E., Levinson, D. J., & Sanford, R. N. (1950). The authoritarian personality. New York, NY: Harper & Row.), e a literatura sobre o preconceito contra esses grupos. Delimitamos o constructo de preconceito como uma atitude calcada nas necessidades psíquicas dos preconceituosos que são projetadas em seu alvo; seria antagônico à experiência e voltado a minorias estabelecidas socialmente. Aplicamos essa escala também em amostras de estudantes universitários (Crochik, 2005; Crochik, 2009), e os alfas de Cronbach encontrados variaram de 0,70 a 0,90.

Na pesquisa ora em curso, foram acrescentados itens sobre prostituição, homossexualidade e drogadição, e retirados itens acerca das outras minorias; o alfa encontrado, com 14 itens, foi igual a 0,80.

Escala de participação no bullying

Essa escala, dirigida à recordação da participação no bullying durante o ensino médio dos estudantes entrevistados, compõe-se de dois conjuntos de questões. O primeiro tem como objetivo verificar os tipos de papéis dos participantes no bullying escolar (nenhum, autor, apoiador, observador e/ou alvo). Para isso, pergunta-se quais desses tipos de participação os entrevistados exerceram, apoiaram, observaram ou sofreram em diversas atuações consideradas como agressivas: xingamento, ameaça de agressão corporal, agressão corporal, boatos, exclusão/rejeição, apelidos ofensivos, acariciar sexualmente sem permissão e cyberbullying. Essas categorias tiveram como base estudos da literatura da área.

Após o preenchimento desse conjunto, outras duas perguntas foram feitas para os que se indicaram como autores, apoiadores, observadores e alvos nos tipos de agressão avaliados. Foi perguntado: (1) se essas ações se repetiram durante um longo período, e (2) se contra os mesmos alunos, que não conseguiram resistir suficientemente, ou contra o próprio entrevistado, que não conseguiu resistir suficientemente. Se isso ocorreu, estará caracterizado o bullying, quer como autoria, apoio, observação e/ou como alvo. Cada estudante teve quatro escores, um para cada tipo de papel assumido, que variou de zero, no caso de resposta negativa a uma dessas duas perguntas, e valor um, em caso de resposta afirmativa a ambas as questões.

Procedimento de coleta de dados

A pesquisa e seus objetivos foram apresentados a todos os participantes, que receberam o termo de consentimento livre e esclarecido, que explicita a garantia do anonimato, também em possíveis publicações resultantes da pesquisa, a possibilidade de parar suas respostas quando quisessem e toda assistência ao seu bem-estar. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e obteve o parecer favorável de número 1.218.644, em 8 de setembro de 2015.

As aplicações foram feitas coletivamente em salas de aula, por dois pesquisadores que deram as instruções para o preenchimento dos instrumentos e responderam às dúvidas expressadas. Os instrumentos foram apresentados na seguinte ordem: questionário de dados pessoais, escalas F, N, P - com a ordem de apresentação dos itens sorteada aleatoriamente, independentemente da escala a que pertenciam - e escala de aferição do bullying.

Procedimentos de análise dos dados

Como, em relação aos escores obtidos nas escalas F, P e N, não encontramos diferenças significantes quanto às áreas universitárias por meio de análise de variância, nem entre os sexos mediante a prova t de Student, e não encontramos correlação significante entre esses escores e a idade, fizemos os cálculos considerando conjuntamente os dados dos 161 alunos.

Para verificar se houve relação entre os escores das escalas F, P e N, utilizamos a correlação de Pearson; e para verificar se os praticantes, apoiadores, observadores e alvos do bullying se diferenciam dos não praticantes, não apoiadores, não observadores, não alvos do bullying, quanto a esses escores, empregamos a prova t de Student para amostras independentes. Para verificar se os tipos de participação no bullying se associam entre si, utilizamos a prova do qui-quadrado. O nível de significância adotado foi de 0,01.

Resultados

De início apresentaremos as correlações entre os escores das três escalas com itens tipo Likert para verificar as possíveis relações entre sadomasoquismo, narcisismo e preconceito, para depois expor as diferenças entre os participantes e os não participantes nos diversos papéis exercidos no bullying com o sadomasoquismo, com o narcisismo e com o preconceito, e a relação desses papéis entre si, cumprindo, dessa forma, os dois objetivos explicitados ao fim da introdução.

Foram encontradas correlações significantes entre as três escalas. Entre os escores da escala do fascismo e os da escala de características narcisistas, a correlação obtida foi de 0,60, indicando que quanto mais o participante tem traços sadomasoquistas, mais tem traços narcisistas, e vice-versa. Assim, pode-se supor que a configuração da personalidade autoritária dada por Adorno et al. (1950Adorno, T. W., Frenkel-Brunswik, E., Levinson, D. J., & Sanford, R. N. (1950). The authoritarian personality. New York, NY: Harper & Row.) não se compõe somente de traços sadomasoquistas, mas também de características narcisistas, o que é ilustrado na descrição do tipo manipulador, conforme já mencionado. Por outro lado, o narcisismo contém também impulsos agressivos, como analisa Lasch (1983Lasch, C. (1983). A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago.).

A correlação encontrada entre os escores da escala do fascismo e da escala de manifestação de preconceito foi de 0,66, indicando que a primeira avalia efetivamente o preconceito, tal como pretendiam seus autores. As características da ideologia fascista manifestadas por posições atitudinais frente a diversos fatos são correlatas das atitudes preconceituosas em relação a diversos alvos, o que também fortalece a já provada hipótese dos autores de A personalidade autoritária, de que essas últimas devem ser compreendidas em uma pauta mais geral - no que Horkheimer e Adorno (1947/1985) nomearam de “mentalidade do ticket” -, pois expressam tendências profundas de personalidade.

Entre os escores da escala de características narcisistas e da escala de manifestação de preconceitos foi obtida a correlação de 0,60. Assim, parte da explicação da manifestação do preconceito se deve àquelas características, o que pode ser ilustrado com o conceito de narcisismo das pequenas diferenças, descrito por Freud (1930/2011); e a ameaça imaginária que o alvo do preconceito representa pode remeter à autoconservação, que necessita da retirada do interesse dos objetos mundanos para si mesmo. Nesse sentido, a discriminação de outro grupo permitiria a ilusão de fortalecimento desse eu ameaçado.

De todo modo, pelas correlações obtidas, pode-se pensar que o preconceito é fruto quer de tendências sadomasoquistas quer de impulsos narcisistas, tal como pode ser verificado no tipo manipulador, descrito por Adorno et. al. (1950Adorno, T. W., Frenkel-Brunswik, E., Levinson, D. J., & Sanford, R. N. (1950). The authoritarian personality. New York, NY: Harper & Row.).

Na Tabela 1, encontram-se as médias, desvios-padrão e resultados da prova estatística, que compara o grupo de participantes que pratica o bullying com o que não pratica, segundo os escores obtidos nas escalas de narcisismo, fascismo e manifestação do preconceito.

Tabela 1
Comparação entre praticantes e não praticantes do bullying, quanto aos escores obtidos nas escalas N, F e P

Segundo as informações constantes da Tabela 1, podemos verificar que quase um quarto dos participantes mencionou ter praticado o bullying contra colegas no ensino médio; esses autores do bullying têm médias maiores nas três variáveis avaliadas do que seus colegas, mas, ao nível de significância adotado nesta pesquisa, somente o narcisismo diferenciou os grupos. Assim, podemos afirmar que características narcisistas de personalidade estão associadas a práticas dessa forma de violência; o sadomasoquismo, ainda que aponte essa tendência4 4 Utilizaremos o termo “tendência” quando uma diferença de médias não for significante com p=0,01, mas o for com p=0,05. , não diferiu os grupos; e o preconceito não se associou com a prática do bullying, ao contrário do que defendem alguns autores (Antunes & Zuin, 2008Antunes, D. C., & Zuin, A. A. S. (2008). Do bullying ao preconceito: os desafios da barbárie à educação. Psicologia & Sociedade, 20(1), 33-42. doi: 10.1590/S0102-71822008000100004
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; Chaves & Souza, 2018Chaves, D. R. L., & Souza, M. R. (2018). Bullying e preconceito: a atualidade da barbárie. Revista Brasileira de Educação, 23, e230019. doi: 10.1590/s1413-24782018230019
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). A hipótese desenvolvida na introdução deste trabalho é por esses dados fortalecida: o narcisismo está mais relacionado com a prática do bullying do que o sadomasoquismo.

As médias e desvios-padrão dos escores obtidos nas escalas de narcisismo, fascismo e manifestação do preconceito para os estudantes apoiadores ou não do bullying encontram-se na Tabela 2, assim como os resultados da prova t de Student para amostras independentes que os comparam.

Tabela 2
Comparação entre apoiadores e não apoiadores do bullying quanto aos escores obtidos nas escalas N, F e P

Nota-se, pelos dados da Tabela 2, que há menos participantes que recordam ser apoiadores do bullying, no ensino médio, do que a lembrança de que são praticantes; se todos os apoiadores forem autores, então, quase um terço dos praticantes age sozinho, contrapondo-se à ideia de essa ser uma agressão sempre praticada em grupo, ainda que na maior parte das vezes o seja, segundo esses dados. De fato, havia associação significante entre essas duas ações (X2=52,21; 1 grau de liberdade; p<0,01): são 118 participantes que não praticaram e não apoiaram o bullying, e são 20 os que praticaram e apoiaram; de outro lado, 5 dos participantes apoiaram o bullying, mas não o praticaram, e 18 o praticaram, mas não o apoiaram.

A associação entre apoio e autoria do bullying descrita no parágrafo anterior pode explicar que os resultados obtidos nas comparações entre os dois grupos - apoiadores e não apoiadores - sejam similares aos obtidos na comparação entre os autores e os não autores: somente características narcisistas de personalidade os diferenciam significantemente. Como apoiadores, os desejos narcísicos podem vicariamente ser satisfeitos. No caso dos apoiadores, tal como no dos autores do bullying, é nítida a distinção de sua relação com o narcisismo e com o sadomasoquismo; além disso, aqueles que praticam e apoiam o bullying não são necessariamente preconceituosos.

Na Tabela 3, estão as médias e os desvios-padrão dos escores obtidos nas escalas de narcisismo, fascismo e manifestação do preconceito para os participantes que observaram ou não o bullying. Também se encontram nessa tabela os resultados da prova t de Student para amostras independentes que comparam os dois grupos.

Tabela 3
Comparação entre observadores e não observadores do bullying quanto aos escores obtidos nas escalas N, F e P

Embora os dados da Tabela 3 indiquem uma direção semelhante às outras, em relação ao narcisismo, não houve diferenças significantes ao nível adotado. É importante notar que essa tendência só ocorreu em relação a essa variável, e não em relação ao sadomasoquismo e ao preconceito, isto é, a observação do bullying não se relaciona com o fato de o observador ser ou não sadomasoquista e/ou preconceituoso, mas com uma tendência ao narcisismo maior do que entre aqueles que relataram não ter observado o bullying durante o ensino médio.

Dos 38 autores do bullying, 30 (79%) foram também observadores, mas, dos 123 não praticantes, 70 (57%) foram observadores. Isso implica que há, entre os observadores, aqueles que devem se satisfazer com a observação, outros não. Houve associação significante em relação a essas duas variáveis no nível adotado (X2=5,991; 1 g. lib.; p=0,01); quem praticou bullying também o observou, quem não o praticou, o observou em menor proporção; os primeiros seriam observadores “ativos” e os demais seriam indiferentes, como mostra o estudo de Cano-Echeverri e Vargas-Gonzalez (2018Cano-Echeverri, M. M., & Vargas-Gonzalez, J. E. (2018). Actores del acoso escolar. Revista Médica de Risaralda, 24(1), 61-63. doi: 10.22517/25395203.14221
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), ou receosos de serem os próximos alvos, conforme indicam Chaves e Souza (2018Chaves, D. R. L., & Souza, M. R. (2018). Bullying e preconceito: a atualidade da barbárie. Revista Brasileira de Educação, 23, e230019. doi: 10.1590/s1413-24782018230019
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) e Voors (2006Voors, W. (2006). Bullying: el acoso escolar. Buenos Aires: Oniro.).

Na Tabela 4, são apresentados as médias e os desvios-padrão dos escores obtidos nas escalas de narcisismo, fascismo e manifestação do preconceito para os participantes que sofreram e para os que não sofreram bullying, assim como os resultados da prova t de Student para amostras independentes que comparam os dois grupos.

Tabela 4
Comparação entre entrevistados que foram alvo e entrevistados que não foram alvo de bullying quanto aos escores obtidos nas escalas N, F e P

Conforme os dados da Tabela 4, as médias dos dois grupos são muito próximas e não tendem a ser diferentes. Como ocorreu em alguns casos das tabelas anteriores, o alvo do bullying pode ser ou não narcisista, autoritário ou preconceituoso, mas houve associação significante entre ser autor e ser alvo do bullying (X2=32,441, 1 grau de liberdade; p=0,00). De fato, dos 38 participantes que recordaram ser autores de bullying no ensino médio, 29 também o sofreram, enquanto 31 dos 123 que não foram autores do bullying o sofreram. Relacionando os resultados da Tabela 1 com os explicitados neste parágrafo, podemos supor que os que são simultaneamente autores e alvos tendem a ser narcisistas.

Como se trata de um estudo exploratório e com amostra não representativa, caberia replicá-lo, tendo como variáveis de controle o sexo e a idade dos sujeitos, que não foram consideradas nesta pesquisa. Todavia, os dados indicam que: (1) as duas formas de violência - preconceito e bullying - podem ser correlacionadas, mas são distintas; (2) o preconceito é relacionado ao autoritarismo e ao narcisismo, e a prática e o apoio ao bullying mais ao narcisismo do que ao sadomasoquismo; (3) quem sofre o bullying não se diferencia de quem não o sofre quanto a ser narcisista, autoritário ou preconceituoso; e (4) quem é autor do bullying tende a ser, em outras ocasiões, apoiador, observador e alvo.

Em relação à primeira consideração, ao contrário do que propõem Antunes e Zuin (2008Antunes, D. C., & Zuin, A. A. S. (2008). Do bullying ao preconceito: os desafios da barbárie à educação. Psicologia & Sociedade, 20(1), 33-42. doi: 10.1590/S0102-71822008000100004
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) e Chaves e Souza (2018Chaves, D. R. L., & Souza, M. R. (2018). Bullying e preconceito: a atualidade da barbárie. Revista Brasileira de Educação, 23, e230019. doi: 10.1590/s1413-24782018230019
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), deve-se estar atento ao fenômeno do bullying como uma forma de violência que não é explicável somente do ponto de vista individual ou familiar, e que seu incremento deve estar associado com mudanças sociais que o acarretam. Quanto à segunda e terceira indicações, podemos dizer que confirmam as análises de Horkheimer e Adorno (1947/1985) e Adorno (1955/2015), quando afirmam que o progresso social, calcado no avanço da tecnologia e na administração dos seres humanos como coisas, leva os indivíduos à regressão psíquica; quanto mais avançada a sociedade, menos individuadas são as pessoas. Nos tempos em que Freud desenvolveu a psicanálise, em uma sociedade capitalista liberal, os neuróticos obsessivos e histéricos podiam ser mais frequentes, mas, com o atrofiamento da consciência, o narcisismo tem mais espaço, sem que as formas anteriores desapareçam. Em relação ao quarto resultado obtido, podemos pensar que não somente a prática do bullying pode satisfazer os desejos psíquicos de seus autores, como também o apoio e a observação; além disso, o autor da agressão, por vezes, pode reproduzir a violência que sofreu, tal como ocorre em alguns fenômenos sociais como o do ingresso em grupos de jovens e trotes universitários, o que pode indicar que nossa cultura incentiva esse tipo de violência, ainda que contraditoriamente também tente evitá-la.

Assim, o bullying é não somente um fenômeno sério - e não mera brincadeira entre crianças que com o tempo deixa de existir - como parece se associar com o desenvolvimento social. Dessa forma, sua existência já é uma expressão de conflitos sociais que permanecem e são deslocados para as relações entre os indivíduos; assim, em vez de considerá-lo apenas como um problema individual, interindividual ou institucional, deve-se procurar quais mudanças sociais levam alguns indivíduos a reagir a suas frustrações por meio de ações cegas contra outros indivíduos que não lhe fizeram nada e tampouco lhe provocam qualquer afeto, tornando-os cada vez mais regredidos psiquicamente, como analisaram Horkheimer e Adorno (1947/1985).

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    » https://doi.org/10.1080/17405629.2017.1419954
  • 1
    O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (cnpQ), processo 306790/2018-1.
  • 2
    Agradeço a contribuição dos pesquisadores do Laboratório de Estudos sobre o Preconceito do Instituto de Psicologia da USP para a coleta e análise dos dados deste artigo.
  • 3
    Essa escala foi construída em conjunto com a professora Maria de Fátima Severiano.
  • 4
    Utilizaremos o termo “tendência” quando uma diferença de médias não for significante com p=0,01, mas o for com p=0,05.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2019
  • Aceito
    29 Maio 2019
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