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A Psicologia Social na universidade pública: uma prática psicanalítica de reparação da memória brasileira

La psychologie sociale dans l’université publique: une pratique psychanalytique pour réparer la mémoire brésilienne

La psicología social en la universidad pública: una práctica psicoanalítica de reparación de la memoria brasileña

Resumo

Este texto foi apresentado para a prova de erudição do concurso para professor titular em Psicologia Social realizado na Universidade de São Paulo em novembro de 2018. Nele busco explicitar minha responsabilidade como professora dessa área numa universidade pública de excelência no Brasil dos dias de hoje. Trago também o meu entendimento da Psicologia Social como campo em que se realizam de forma indissociável o pensamento, a fala e a ação, a teoria e a prática. A Psicanálise é apresentada como instrumento hermenêutico a colaborar para a elucidação dos fenômenos psicossociais. Textos de Freud e Benjamin e poemas de Carlos Drummond de Andrade auxiliam a configurar a Psicologia Social como campo de trabalho com a memória, a ressignificação e a reparação.

Palavras-chave:
psicologia social; psicanálise; memória; reparação

Résumé

Ce texte a eté présenté pour l´épreuve d´érudition du concours pour professeur titulaire de Psychologie Sociale qui a eu lieu en novembre 2018. Je cherche expliciter ma responsabilité comme professeur de Psychologie Sociale dans une université publique d´éxcellence, au Brésil de nos jours. Je montre aussi mon point de vue sur la Psychologie Sociale en tant que domaine ou se réalisent de façon indissociable la pensée, la parole et l´action, la théorie et la pratique. La Psychanalyse est présentée comme instrument herméneutique qui aide à l´élucidation des phénomès psychosociaux. Des textes de Freud e Benjamin, ainsi que des poèmes de Carlos Drummond de Andrade aident à configurer Psychologie Sociale comme une domaine de travail avec la mémoire, la re-signification et la réparation.

Mots-clés:
psychologie social; psychanalyse; mémoire; réparation

Resumen

Este texto se presentó como prueba de erudición del concurso para profesor titular en Psicología Social, que se llevó a cabo en la Universidad de São Paulo, en noviembre de 2018. En el texto, intento explicitar mi responsabilidad como profesora de Psicología Social en una universidad pública de excelencia, en el Brasil actual. Además, aporto mi comprensión de la Psicología Social como campo en que se procesan, de forma indisociable, el pensamiento, el habla y la acción, la teoría y la práctica. El Psicoanálisis se presenta como instrumento hermenéutico para colaborar con la elucidación de fenómenos psicosociales. Textos de Freud y Benjamin, así como poemas de Carlos Drummond de Andrade, ayudan a configurar la Psicología Social como campo que trabaja con la memoria, la resignificación y la reparación.

Palabras clave:
psicología social; psicoanálisis; memoria; reparación

Abstract

This text was presented as an erudition examination in a contest for full professor of Social Psychology held at the University of São Paulo in November 2018. In the text, I attempt to denote my responsibility as a professor of Social Psychology at a public university of excellence in contemporary Brazil. I also report my understanding of Social Psychology as a field in which thought, speech and action, theory and practice, are inextricably related. Psychoanalysis is presented as a hermeneutic tool that collaborates with the elucidation of psychosocial phenomena. Texts by Freud and Benjamin, and poems by Carlos Drummond de Andrade help set up Social Psychology as a field of work with memory, meaning and repair.

Keywords:
social psychology; psychoanalysis; memory; repair

Já faz oito anos que me dispus a propor meu nome para fazer parte do conjunto de professores associados da Universidade de São Paulo, instituição de primeira importância na construção de nossa identidade brasileira. Nossa universidade é, antes de tudo, um bem material do país, da sociedade brasileira, do povo do Brasil. Dar uma aula num concurso para professor titular em Psicologia Social aqui onde estamos neste instante, nos dias que vivemos, não é propriamente uma honra, uma dinamização de valores morais pessoais, nem sequer apenas um desafio intelectual, uma ação que mostre a agilidade racional que eventualmente consegui acumular e pôr em funcionamento em minha vida. Nem é propriamente um mérito, ou seja, trazer para vocês o valor de minha moeda ética, que consegui acumular como fruto de meu intercâmbio com a realidade. Não que não seja uma honra ou um mérito ou um desafio intelectual, mas se tivesse que dar um nome que definisse aquilo que deve estar presente em minha aula de modo mais vivo para fazer minha postulação ao cargo, qual seria?

O objeto da Psicologia Social é duplo, mas único. Ela lida com o ser humano e com a História. Se quisermos integrar, podemos dizer que lida com a vida humana. Mas a vida humana, diz Hannah Arendt, é apenas um meio, porque o que sempre se materializa, em suas palavras, é “a morada humana” (Arendt, 1958Arendt, H. (1958). A condição humana. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., p. 263). A vida humana é a construção dessa morada. Tudo o que fazemos na vida, desde o ato de respirar até o trabalho de nos formar e de formar outros, é construir. O problema é que, se aprendemos alguma coisa nos últimos 100 anos, é que a palavra “construção” rima sempre com a palavra “destruição”. A vida humana tem por função, por natureza e essência construir a morada humana, que nunca está pronta, completa e bem arrumada para o resto das vidas futuras. As leituras messiânicas nos acalentam e nos iludem. Porque se há algo que nós aprendemos com toda uma tradição que, para facilitar as coisas, chamarei de freudiana, mas que remonta aos primórdios da Humanidade, à origem das ideias religiosas, filosóficas e políticas, é que a construção da morada dos homens implica também em destruição.

Em certos momentos, a vida humana se apresenta para cada um em toda a sua intensidade, aciona os nossos sinais de alerta. Nós estamos vivendo um momento assim, e o tema da Psicologia Social é entender estes momentos e favorecer a possibilidade de dar elementos para fortalecer a construção da morada dos homens. A obra de Hannah Arendt A condição humana (1958Arendt, H. (1958). A condição humana. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária.) versa sobre as relações entre a esfera pública e a esfera privada. Isto é Psicologia Social, e se o tema da Psicologia Social é a construção da morada humana, este é um tema que não dá para estudar sem fazer, ou fazer sem estudar. Está em seu núcleo esta imbricação de teoria e prática. E nós, que estudamos e fazemos neste campo, temos que levar em consideração esta estranha continuidade, sempre tão acidentada, que sempre dá lugar às descontinuidades e ao insólito, entre o pensamento, a fala e o fazer. Porque é no miolo destas manifestações do humano que se implanta toda a problemática sobre teorias e práticas.

A Psicanálise é um campo de conhecimento que soube agilizar estas três dimensões do existir humano. É um saber que aproxima o pensar, o falar e o fazer de uma maneira profunda. Soube enraizá-las, ou melhor, mostrou a raiz única que circula entre estes modos de ser da condição humana. Hannah Arendt nos lembra que - eu a cito - “a História é uma série de eventos e não de forças ou ideias de curso previsível” (1958, p. 264). Isto é integrar a Psicologia e o Social, a circularidade das relações entre pensamento e ação. A Psicanálise permitiu observar o profundo conflito psíquico que mobiliza o esforço humano por construir-se, desde o nascimento. A vida humana é um evento traumático, isto é, sujeito a descontinuidades e rupturas, à alienação, e que demanda o trabalho interno de elaboração pessoal: cada um deve construir sua morada dentro de si, na vida pessoal, e fora de si, na vida social mais ampla, no mundo, entre e com outros seres humanos. A morada interna deve ter janelas e portas bem abertas para a morada externa, para que o trabalho de formação pessoal e de formação do coletivo sejam o mais integrado possível. A construção de cada ser humano singular passa por ter que lidar com conflitos psíquicos e conflitos socio-históricos. E como a vida humana é feita de eventos, o evento essencial de quem está enraizado na tradição freudiana é sua autoanálise, ou a crítica, tanto aquela promovida para si próprio, em direção às próprias raízes, quanto aquela que é a manifestação do trabalho concreto na vida pública, com outros seres humanos. Ter uma raiz freudiana é resgatar o “conhece-te a ti mesmo”. A formação de um analista demanda o trabalho de autoanálise, um trabalho prático consigo próprio. A reflexão tomada como prática. Faz parte da autoanálise o estudo, a crítica reflexiva, por isto, nesta tradição de pensamento, nós nunca interpretaremos o outro melhor do que a nós próprios. Nós somos o limite, não o mundo. A Psicologia Social tem na Psicanálise não uma resposta, mas um agilizador que demanda muito mais uma prática, uma atenção, uma atitude reflexiva que compromete a vida por inteiro, do que um legado de ideias que ajudem a explicar eventos humanos de forma abstrata. A autoanálise deve trabalhar na construção de nossa identidade como psicólogas e psicólogos sociais. Dizer que somos críticos é dizer que somos autocríticos, que nos formamos em nossa prática, sabendo da desconfiança que merece a fragilidade da condição humana. Daí que, para este evento tão importante em minha vida, o que quero trazer com mais destaque é minha responsabilidade com a morada humana. É para isto que estudei e é para isto que trabalho. A Universidade de São Paulo é uma instituição dedicada à formação, ao estudo, isto é, à transferência de saberes, que devem ser sempre acompanhados da possibilidade de autorreflexão crítica, ou seja, fortalecer os recursos para nos revermos, nos repararmos, promover o nosso desenvolvimento, o que só ocorre com o reconhecimento do que somos e do que vivemos. O estudo é a atividade que é a razão de ser desta instituição. Estudar é reparar, nos sentidos mais amplos desta palavra.

Nunca é demais pôr em destaque o importante fato de que antecessores nossos souberam da importância de implantar no Brasil, dadas as suas condições histórico-socioeconômicas, uma universidade de excelência pública. Claro que, para muitos, nem precisa ser justificada a ideia do por que uma sociedade qualquer se fortalece se sabe dar acolhida em seu interior a uma situação de estudo superior de excelência, uma universidade de excelência. O que não é óbvio para todos é a necessidade do público, mais ainda em nosso país. Então tentemos explicar. Isto é o que uma psicóloga social tem que sempre tentar fazer.

Nós fomos nos construindo ao longo da nossa história de modo segregacionista, o que suscitou em que enormes parcelas da sociedade fossem desapropriadas, alienadas, e se sintam vivendo cindidas do coletivo. Octavio Paz é um autor que tomo como bom modelo de pensador latino-americano, porque soube conjugar poesia, ensaio crítico-cultural, crítica política, história da Filosofia, autoanálise psicanalítica, enfim, as estruturas de pensamento e autores contemporâneos mais importantes, a serviço de sua preocupação com o que ele chama de identidade mexicana e seu devir, isto é, as vicissitudes do ser mexicano. Para ele, a identidade é um conceito problematizador, uma abertura mobilizada por circunstâncias histórico-materiais e culturais. Ele tem muito a nos ensinar sobre como lidar com a nossa identidade brasileira e nossas vicissitudes, para mim tema central da Psicologia Social brasileira. Mas não é esta a nossa questão agora. O que quero é lembrar que, para este autor, a crítica é um exercício difícil em território latino-americano, dada a violência, isto é, o acúmulo de desapropriação e de desapropriados que nosso processo histórico suscita. É difícil pensar e viver a nossa história até as suas raízes, porque o resultado das desapropriações assume uma proporção quase insuportável e o pensar nestas condições tende a ser mais defensivo do que crítico. A violência suporta todas as nossas estruturas de pensamento. No Brasil, historicamente fomos feitos promovendo cisões. A exclusão social, este mecanismo de eclipsamento de grandes parcelas da população da nação brasileira ao longo da História, configura um amplo objeto cindido quando visto através de uma lupa psicanalítica posicionada diante da realidade brasileira. O drama da nossa condição histórica é que estes violentos processos de cisão foram operados em ressonância com os diversos projetos de promoção de progresso em nosso país. E é esta conjunção de cisão e progresso que dificulta o trabalho crítico entre nós. É difícil a apreensão da totalidade brasileira e a necessária sublimação da poderosa violência que age tão imperativa quanto silenciosamente nos estratos mais profundos do processo histórico-social brasileiro, para efetivamente podermos realizar uma crítica, isto é, uma atitude reparatória intelectual. Um bom exemplo do que estamos dizendo, sobre a dificuldade de pensar e viver o Brasil de forma integrada, é a famosa frase do professor de nossa universidade, Fernando Henrique Cardoso, quando empossado presidente: “Esqueçam o que eu escrevi.” Isto não deveria ter ocorrido, nem como pensamento, nem como fala, nem como ação para que de fato pudesse ocorrer algum progresso social mais plenamente enraizado. O que limita a crítica é que a própria construção do Estado brasileiro e de suas instituições é, ao mesmo tempo, fruto e agente desses violentos mecanismos de cisão em operação. O resultado disto é um Estado, em todos os sentidos, bem menor do que a grandeza da nação.

Economistas pragmáticos ao longo da História continuamente afirmam que não podemos dar um passo maior do que as pernas, e que o Brasil deveria abrir mão de uma universidade de excelência pública. Mas fiz referência ao importante fato de que aqueles que nos antecederam honraram o atributo público desta universidade. E a minha responsabilidade trabalha em ressonância com eles. Não sei do viés ideológico de cada um deles - se eram alinhados com o que costumamos chamar de esquerda, ou marxistas. Acredito que não, não todos, pelo menos. Creio que a opção deles emergiu de uma leitura que supera posicionamentos ideológicos da matriz esquerda/direita, mais estatizante ou liberal. Por isto, esta não é uma questão que deve ser equacionada exclusivamente no campo econômico. Tenho para mim que o público era e é uma medida essencial para combater a violência da exclusão e sua profunda implicação no exercício crítico, uma vez que esta exclusão é traço tão marcante na consciência e na identidade brasileira. O adjetivo público só se legitima através de uma ação política concreta. Público não é um ideal, é uma realização. Para nossos antecessores, uma universidade pública de excelência era o modo de enraizar o estudo na totalidade do povo brasileiro - e quando digo povo, quero falar de um coletivo que sempre tende a nos escapar por razões históricas, e que conjuga, de maneira sempre conflitiva, violenta e, por estranho que pareça, às vezes cordial, índios com imigrantes, golpes com constituintes, doutores com mascates, negros com brancos, mulheres com homens, crianças com adultos, religiões as mais diversas, que sincretizam por vezes animismo e monoteísmo.

O campo da Psicologia Social só pode ganhar um estatuto crítico pleno quando é profundamente orientado pela percepção da totalidade da nação e dos violentos mecanismos de cisão que tendem a eclipsar constantemente esta totalidade. É importante ressaltar que a violência destes mecanismos está em atividade, por assim dizer, desde dentro, e fora, de cada investigador. É isto que Octavio Paz ressalta. As dificuldades da crítica advêm das dificuldades de nos incluirmos na crítica. A realidade política que estamos vivendo, tão urgente que não pode ser deixada de lado neste próprio concurso, é um bom exemplo desta ausência de crítica e de suas graves consequências. Nenhum partido político, nenhuma figura política até o momento, conseguiu fazer uma crítica propriamente dita do processo que atravessamos. E não se justifica a precária noção de que nós devemos ganhar um distanciamento histórico para compreender mais plenamente o momento que vivemos. Ao contrário, o teste das Ciências Humanas, do que ela produz, é sempre no aqui-e-agora de suas realizações. É isto que Hannah Arendt nos lembra quando chama a vida humana de evento. Nós, intelectuais, ainda murmuramos alguns fragmentos de crítica, mas não conseguimos realizar propriamente uma narrativa crítica enquanto a avalanche de eventos está em processo. O que sabemos, sim, é que o atributo público da Universidade de São Paulo está ameaçado. E que esta ameaça tende a desgarrar ainda mais o intelectual daquilo que chamei de totalidade brasileira.

A Psicologia Social pode se constituir, na atualidade, num território problematizador dos modelos e métodos das Ciências Humanas, desde que saibamos contextualizar, isto é, outorgar sempre uma coordenada espaço-temporal, referenciá-la historicamente. A Psicologia Social deve contribuir para a elaboração dos processos históricos. Não propomos que um ou outro método, um ou outro modelo, poderá mostrar-se, a partir desta problematização, mais eficaz na configuração desse campo. O que queremos salientar é que, na contemporaneidade, o encontro do psicológico e do social é um território fértil para constituir-se em algo como um laboratório para a produção em Ciências Humanas. Talvez não pequemos por exagero se dissermos que, no século XX, cada vez mais o social foi em direção ao psicológico. Isto traz uma série de problemas, uma vez que a dimensão histórica tende a ser mitigada. Daí concluo que, quanto mais a realidade é subjetivada, mais o pesquisador da Psicologia Social deve se empenhar em objetivá-la. Isto quer dizer que este campo deve ser sempre mobilizado através de um exercício que ao mesmo tempo promova e faça funcionar a imaginação histórica. Por isso, nesta minha aula, como em todas as aulas que dou, usarei autores que privilegiam a História como terreno para a construção de suas obras críticas, seja na forma do ensaio ou do poema. Trabalho aqui com Freud, Benjamin e Carlos Drummond de Andrade e quero compartilhar com vocês fragmentos de um texto meu que utilizo com meus alunos na disciplina de Psicologia Social. Acredito ser o que melhor apresenta o modo como entendo a formação e a pesquisa neste campo.

Na Psicologia Social, nosso embate dá-se essencialmente no modo como entendemos o hífen pressuposto na integração entre o psicológico e o social, ao qual este campo de estudos parece sempre fazer referência. É a natureza deste hífen que parece a todo momento estar no horizonte dos estudos dessa área. Costumamos alocá-lo numa virtual linha horizontal que separa o indivíduo do coletivo e, em ressonância ideacional, o psicológico do social. Assim, o psicológico estaria em ressonância com o individual e o social em ressonância com o coletivo, e o hífen entre ambos. Claro que já aprendemos que o indivíduo é uma construção do coletivo e, portanto, que o psicológico é um produto do social. Mas também aprendemos que o indivíduo anseia pelo coletivo, o valoriza e se apega a ele com a mesma intensidade e da mesma raiz a partir da qual se desdobra em sujeito. Nesse sentido, o social seria um desdobramento da demanda psicológica humana. Ou seja, aprendemos que, entre o psicológico e o social, o hífen domina. Não apenas ele serve para indicar a existência de um conectivo entre o elemento psicológico e o elemento social, mas aqui ele serve para deixar surgir a própria essência relacional que é inerente a cada um dos elementos. O hífen é a natureza do psicológico e do social. Foi a história das realizações no campo das Ciências Humanas que levou a esse estado de coisas no qual o hífen se instaura para juntar campos aparentemente separados. Não é o caso agora de mostrar como os principais modelos de compreensão do ser humano e suas produções operaram no intuito de sinalizar o fortalecimento da essência relacional que define o psicológico e o social. Mas devemos pôr em destaque as contribuições de Freud, porque mesmo que não sejam propriamente suas construções teóricas que tiveram um impacto mais acentuado para salientar a importância do hífen - ainda que não possamos esquecer, por exemplo, a célebre frase com que em 1921 ele abre o texto “Psicologia de grupo e a análise do ego”, de que não há Psicologia que não seja Psicologia Social -, sem dúvida seu modelo mais geral de entender o ser humano teve um impacto enorme sobre toda a produção de conhecimento a partir do século XX. Freud, ao criar e mobilizar o que poderíamos denominar de metáfora psicanalítica, isto é, o modo extremamente poderoso e singular de ao mesmo tempo estudar e dinamizar os fenômenos psicológicos, soube suscitar uma abordagem com implicações profundas no campo das Ciências Humanas. Mas, o que queremos salientar aqui é a ação da linguagem psicanalítica no interior do campo da Psicologia Social. Freud soube dar ao psicológico um estatuto completamente original, permitindo a nomeação de relações e encadeamentos que ampliam nossa compreensão sobre o modo como os seres humanos se constroem. Um exemplo que pode nos servir para ilustrar o que estamos sugerindo pode ser extraído de seu ensaio de 1930, “O mal-estar na civilização”. Mesmo que as ideias centrais que ele elabora nesse texto possam nos parecer esboços teóricos não muito bem-sucedidos se levarmos em consideração os desenvolvimentos na Antropologia, na Etnografia, na História, na Psicologia e até na própria Psicanálise, sua abordagem mais geral e o modelo a partir do qual concebe o ser humano e seu entorno imbricam de forma potente e indissociável o psicológico e o social, o indivíduo e o coletivo, chegando até à imbricação da filogênese e da ontogênese. Assim, por exemplo, em sua investigação sobre as razões pelas quais “é tão difícil para o homem ser feliz” (Freud, 1930/1976Freud, S. (1976). Estudos sobre a histeria. In S. Freud. Edição standard das obras psicológicas completas de S. Freud (J. Salomão, trad., Vol. 1, pp. 37-365). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1895)., p. 105). Freud indica três fontes “de que nosso sofrimento provém: o poder superior da natureza, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade” (p. 105). Podemos nem levar em consideração toda a argumentação que ele desenvolve a seguir. O importante é que ele entrelaça natureza, sujeito e cultura de forma indissociável para compreender um estado de coisas e do modo como ele opera, a velha distinção entre sujeito e objeto nos modelos causais ganha uma superação significativa, uma vez que, o que seria do campo da cultura e do social - os relacionamentos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade - são de algum modo configurações resultantes também da ação da natureza no corpo, dado que as produções sociopolíticoculturais têm também uma raiz funda através da qual flui uma vitalidade pulsional, uma das forças responsáveis pela conflituosa dinâmica inerente à produção da história. E isso sem mitigar a autonomia do campo social, que por sua vez demanda, no corpo, a mesma imperiosidade, isto é, estabelece os mesmos limites e possibilidades determinantes para o seu existir, atuando sobre ele com a mesma determinação com que a natureza atua, a ponto de talvez podermos nomear o cultural como uma segunda natureza do corpo, que por sua vez não é apenas objeto dessas duas forças imperiosas - natureza e cultura -, mas sim um agente determinante entre a natureza e a civilização, porque cabe ao ser humano, para se tornar sujeito, apropriar-se, mesmo que em seus estreitos limites, da condição de ser responsável diante da natureza e do social e, portanto, o agente principal de sua realização histórica.

Claro que não se trata de reduzir a complexidade do campo da Psicologia Social a uma concepção psicanalítica. A aplicação da Psicanálise, enquanto um agregado de teorias construídas ao longo da história dessa disciplina, sobre um determinado contexto a ser estudado reduz em muito o alcance que ela teria para oferecer ao estudo do fenômeno. Com isso queremos dizer que, a nosso ver, a aplicação da Psicanálise, como um conjunto teórico preestabelecido, sobre qualquer campo de investigações é um exercício limitado e em nada próximo do próprio exercício psicanalítico. Para o modelo e método psicanalítico serem mais eficazes, a Psicanálise deve se desvestir de sua teoria a ponto de silenciar-se, porque só no silêncio dela o fenômeno que estamos apreendendo da Psicologia Social irá surgir, com sua especificidade. O próprio da construção de conhecimentos no campo psicanalítico é a constituição de um processo de observação e intervenção cujos desdobramentos são seriamente levados em consideração através de uma reflexão intensa desses fenômenos, num diálogo com o conjunto de teorias que suportam e referenciam a intervenção psicanalítica, mas que outorga ao fenômeno observado o lugar privilegiado, nunca podendo este último ser deslocado ou eclipsado por qualquer concepção teórica tomada a priori. As teorias costumam ser muito ruidosas. Uma Psicanálise mal aplicada, também. Essa propriedade da Psicanálise, tal como aqui a estamos apresentando - a de ver-se impossibilitada de agir com toda a sua potencialidade se reduzida a uma série de construtos teóricos a serem aplicados sobre um fenômeno -, a nosso ver é a mais rica contribuição que esse campo de investigações tem para oferecer para a criação de conhecimentos na universidade, porque a Psicanálise, tal como a compreendemos, demanda uma intervenção no real, uma prática obrigatória que possibilite uma estruturação do campo de investigação não dada a priori, suficientemente capaz de deixar emergir o conhecimento psicanalítico. As teorias, quando aplicadas no campo da Psicologia Social, costumam traduzir-se em ideologias com muita facilidade, e operar sobre o fenômeno no sentido de instrumentalizá-lo, seja através de sua definição ou de uma ação prática. Mas se no embate visível existe uma enorme sobredeterminação de aspectos do invisível que operam de maneira irracional, com a capacidade de produzir fenômenos tão perturbadores quanto os violentos totalitarismos que assolaram o século XX, a Psicanálise enquanto modelo e método pode nos auxiliar a indicar a presença deste invisível nos fenômenos sociais estudados, ampliando assim o conhecimento sobre eles. Podemos entender o próprio campo da história intelectual em analogia ao campo do funcionamento psíquico, isto é, lá como aqui, a razão sofre de transtornos. Também no campo da razão o irracional pode irromper, como Adorno bem salienta em seus trabalhos. Este modo de entender as produções sociais e a própria ideologia já é resultado da força do hífen psicossocial no pensamento contemporâneo. Toda a Escola de Frankfurt trabalhou assim.

Claro que a produção humana ainda é essencialmente histórica, e compreender como entendemos a História é essencial. Por isso, os lances mais imperiosos nas Ciências Humanas ainda se dão na Filosofia da História, por ser o campo onde a significamos. Mas o modo como tem se dado o conflito e a produção ideológica em nossos dias pauta-se por uma utilização e tentativa de impactar prioritariamente muito mais os aspectos psicológicos do que propriamente despertar e mobilizar as consciências históricas dos sujeitos envolvidos. A própria fragilização da política compreendida como jogo ideológico pelo poder, ou seja, a despolitização da política, empurrou seu embate para o campo da Psicologia Social. Basta como exemplo para o que estamos querendo dizer o modo como se dão as campanhas eleitorais. Não é o discurso político que as rege, nem sequer as organiza, mas, sim, o aprimoramento de um discurso e de uma imagem que pretendem implicar cada eleitor, levando em consideração sua psicologia, para falar em termos mais gerais e para sinalizar o que estamos querendo ressaltar.

Mas, se privilegiamos a Psicanálise como modelo e método, não o fazemos com o intuito de incrementar a “psicologização” do social. Ao contrário, se é certo que a Psicologia adentrou profundamente a Filosofia da História contemporânea, ou seja, os modos de se conceber a História, nossa proposta é utilizar o modelo e o método psicanalítico para auxiliar a localizar os fenômenos sociais estudados no interior da História, uma vez que é a consciência histórica que permite a plena elucidação do fenômeno social. E, se se trata de sujeitos, uma Psicologia Social adequada é aquela que lhes auxilia a se saberem parte da História e tomar para si a possibilidade de atuar nela. Por isso, a Psicanálise não é um fim, mas um instrumento hermenêutico para colaborar na elucidação dos diversos fenômenos abordados.

Se tudo que nós vimos discorrendo sobre a condição do hífen nos dias de hoje, isto é, seu entendimento e o modo como é operacionalizado, é correto, isso nos leva a concluir que a História é também uma realização psicológica, da mesma maneira como o corpo é uma realização histórica, sem nunca deixar de ser também uma realização da natureza. Nessa área, sempre devemos trabalhar de forma a garantir a multidimensionalidade do fenômeno.

Voltemos a Freud. Quando ele localiza o hífen no natural, no corpo e na história, e quando os entrelaça de forma a familiarizá-los indissociavelmente, isto nunca é feito reduzindo um ao outro ou todos a um campo exclusivo, senão não seriam natureza, corpo e História. Freud nunca é unidimensional. Seu próprio modelo do aparelho psíquico, que é também o modelo psicanalítico, foi montado por ele justamente para dar conta da multiplicidade de determinações existentes na produção humana. O inconsciente não é exclusivamente intrapsíquico, mas talvez a manifestação, de forma bruta, de todo o fazer humano ao longo da História. Freud, em O mal-estar na civilização (1930/1976Freud, S. (1976). A interpretação dos sonhos. In S. Freud. Edição standard das obras psicológicas completas de S. Freud (J. Salomão, trad., Vol. 5, pp. 543-661). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900).), ergueu ao estatuto de lei uma estranha e surpreendente hipótese, mas de profundo significado para o que estamos querendo dizer: o que se viveu nunca desaparece. O esquecimento nunca significa a completa eliminação do traço mnêmico.

O inconsciente é o lugar da memória, e é o próprio Freud (1930/1976Freud, S. (1976). Totem e tabu. In S. Freud. Edição standard das obras psicológicas completas de S. Freud (J. Salomão, trad., Vol. 13, pp. 17-194). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1913).) que, para ilustrar esse fenômeno da conservação em ação no âmbito psíquico, o aproxima a uma compreensão fantástica de uma Roma aqui apresentada literalmente na condição de cidade eterna. Eu o cito:

Permitam-nos agora, num voo de imaginação, supor que Roma não é uma habitação humana, mas uma entidade psíquica, com um passado semelhantemente longo e abundante, isto é, uma entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à última. Isso significaria que, em Roma, . . . no lugar ocupado pelo Palazzo Caffarelli, mais uma vez se ergueria, sem que o Palazzo tivesse de ser removido, o Templo de Júpiter Capitolino, não apenas em sua última forma, como os romanos do Império o viam, mas também na primitiva, quando apresentava formas etruscas e era ornamentado por antefixas de terracota. (p. 88)

A cidade eterna que Freud supõe condensa toda a história humana numa imagem arquitetônica em que nada é ruína, no sentido de perder sua vitalidade sígnica. Tudo o que foi ainda está vivo e demanda na cidade eterna construída por Freud. A cidade eterna é origem das variadas manifestações humanas, em todos os campos do seu fazer. E, por isso, todas as realizações humanas, o desenvolvimento de cada um, a produção científica, a técnica, as Ciências Humanas, a literatura, a poesia e as demais artes, são todas elaborações sobredeterminadas desta gigantesca e condensada memória viva, que no seu pulsar constitui a própria História, terreno no qual se enraízam todas as construções humanas. E se dizemos que se enraízam, é num sentido de via dupla: toda construção é mais uma implantação, é mais uma edificação na cidade eterna, e, por outro lado, toda edificação é uma construção erguida a partir dos elementos e da vitalidade colocada à disposição pelo estado de coisas na cidade eterna.

Benjamin (1940/1971Benjamin, W. (1971). Tesis de la filosofia de la historia. In W. Benjamin, Angelus Novus (pp. 77-82). Barcelona: Edhasa. (Trabalho original publicado em 1940).), nas suas Teses da Filosofia da História, também construiu uma imagem que de algum modo nos permite aprofundar nossa compreensão da História, trabalhando em ressonância com a imagem da cidade eterna montada por Freud. Diz assim a sua tese de número IX:

Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Vê-se nele um anjo, ao que parece, no momento de distanciar-se de algo sobre o qual fixa o seu olhar. Tem os olhos arregalados, a boca aberta e as asas estendidas. O anjo da História deve ter esse aspecto. Seu rosto está voltado para o passado. Naquilo que para nós se mostra como uma sucessão de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula sem cessar ruína sobre ruína, a depositar-se sob os seus pés. O anjo gostaria de deter-se, despertar os mortos e recompor o despedaçado. Mas uma tormenta desce do Paraíso e provoca um redemoinho em suas asas, e é tão forte que o anjo não pode firmá-las. Essa tempestade o arrasta irresistivelmente para o futuro, ao qual dá as costas, enquanto o acúmulo de ruínas sobe diante dele, em direção ao céu. Tal tempestade é o que chamamos progresso. (p. 82, tradução nossa)

Em Benjamin, resgatamos a dimensão dinâmica e processual que é inerente à História, o dinamismo que é inerente ao hífen que nos interessa. A História não é propriamente a cidade eterna, mas o que é possível apreender no aqui-e-agora, na ininterrupta tormenta do progresso que, desde o Paraíso, sopra em direção ao futuro. Freud constrói a sua cidade eterna preservando-a do fluir da História. Benjamin introduz o elemento dinâmico, e então, a imagem da ruína deve novamente ser levada em consideração. Porque tudo que em Freud é edificação, em Benjamin, que tem o olhar fixo no Paraíso -, isto é, no território das expectativas de aperfeiçoamento e até de redenção do ser humano, dos fenômenos humanos -, é visto como ruína, a demandar reparação. Cada construção, cada morto, demanda. A cidade eterna transforma-se no terreno não apenas de uma memória viva, mas de uma demanda intensa feita ao anjo da História, que a tempestade do progresso arrasta. A demanda é tão intensa que o anjo gostaria de se deter e, levando seriamente em consideração essa demanda de mortos e ruínas, edificar uma reparação. Mas a tempestade não dá tempo, e tudo o que o anjo pode construir em seu ato reparatório é talvez um fragmento mal-acabado que imediatamente a seguir, dada a força da tormenta que nada mais é do que o suceder do tempo, transforma-se em nova ruína depositada sob os seus pés, isto é, numa nova demanda a juntar-se ao grito desesperado das ruínas. Seria esse grito desesperado a realização da História.

O que nós ganhamos ao integrar as imagens de Freud e Benjamin é que, em primeiro lugar, nos parece que fortalece o terreno da História como campo no qual trabalhamos o hífen psicossocial. Em segundo lugar, dada a tensão que se estabelece entre as duas imagens, entre edificações e ruínas, entre o elemento preservado e ativo destacado por Freud e o elemento frustrado e desapontador destacado por Benjamin, dessa tensão pode emergir uma produção no campo psicossocial que seja ao mesmo tempo um resgate da memória, uma ressignificação e um ato reparatório. Ou seja, uma construção no sentido mais pleno do termo, uma vez que envolve memória e reparação. A imagem de Benjamin é poderosa o suficiente para que também a entendamos não apenas como um constructo erguido para significar o trabalho da História enquanto práxis e estudo, mas, a nosso ver, essa imagem de algum modo também consegue acolher os processos de reconstrução pessoais que cada ser humano deve realizar, porque, nos processos de reconstrução pessoais, um anjo da História particular - se quisermos usar a imagem que Benjamin põe em cena olhando através do quadro de Klee - está em ação, com os mesmos olhos arregalados, a mesma boca aberta, a mesma tensão nas asas e, principalmente, a mesma implicação com o tempo: tudo o que ele dispõe é do passado, apresentado ao mesmo tempo, se integrarmos as imagens de Freud e de Benjamin, na forma de memória e ruína, a demandar o seu ato de construção pessoal, modo como o futuro se realiza. Carlos Drummond de Andrade (1987Andrade, C. D. (1987). Antologia poética. Rio de Janeiro, RJ: Record.) alude a esse anjo pessoal na primeira estrofe de seu “Poema de Sete Faces”: “Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida” (p. 13).

A voz poética é demandada desde o seu nascimento, a partir de suas origens e da sombra, a construir uma determinada concepção de vida, visão de ser humano e de mundo. Ser gauche não é bem uma opção, tampouco uma visão de mundo já pronta e acabada que Carlos nada mais teria que fazer a não ser passar a utilizar. É mais algo assim como uma demanda, uma espécie de força gravitacional proveniente do estado de coisas em sua origem, capaz de organizar seu modo singular de ver a si e ao mundo. Ser gauche tampouco é um destino para Carlos. É mais uma imperiosidade suscitada desde as sombras de sua origem. Ser gauche não é fácil. Ser gauche significa, de algum modo, opor-se, mas como escutar uma demanda por opor-se, sem opor-se a ela? É quase um impossível. Se Carlos obedecer ao anjo, não será propriamente um gauche. Gauche que é gauche não escuta os anjos. Mas se não escutar o anjo, será um gauche e, neste caso, estará sob o imperativo da demanda desse anjo torto, dessa influência de origem. Este paradoxo invocado pelo poeta é importante como manifestação da força da origem que o impele a ser o que ele virá a ser, na sua meditação sobre si e o mundo. Carlos escuta ao mesmo tempo uma demanda de tradição e ruptura, de memória e construção. Diz ele em outro poema, que tem o título de “Perguntas” (Drummond, 1987, pp. 72-74):

Numa incerta hora fria perguntei ao fantasma que força nos prendia, ele a mim, que presumo estar livre de tudo, eu a ele, gasoso todavia palpável na sombra que projeta sobre meu ser inteiro: um ao outro, cativos desse mesmo princípio ou desse mesmo enigma que distrai ou concentra e renova e matiza, prolongando-a no espaço uma angústia do tempo.

O anjo torto aqui assume o retrato de um fantasma, tão demandante quanto o primeiro e, ao mesmo tempo, capaz de renovar e matizar como ele. Como o anjo, o fantasma é o enigma que desdobra e enraíza o poema. Neste mesmo poema, Drummond (1987) nos permite sair do anjo pessoal e voltarmos para o anjo da História, de Benjamin, porque a voz poética faz ao fantasma uma última pergunta:

Perguntei-lhe por fim a razão sem razão de me inclinar aflito sobre restos de restos, de onde nenhum alento vem refrescar a febre deste repensamento; sobre esse chão de ruínas imóveis, militares na sua rigidez que o orvalho matutino já não banha ou conforta. . . . No voo que desfere, silente e melancólico, rumo da eternidade, ele apenas responde (se acaso é responder a mistérios, somar-lhes um mistério mais alto): Amar, depois de perder. (pp. 72-74, grifo do autor)

O fantasma de Carlos Drummond de Andrade atua como o anjo de Benjamin. Ambos são atormentados, ambos produzem e deixam uma paisagem tão análoga; e ambos demandam reparação - amar, depois de perder. Se o anjo de Benjamin, diante da catástrofe, quer recompor o despedaçado e acordar os mortos, o fantasma de Drummond opera nesse “repensamento”, que nada mais é do que a razão sem razão de se inclinar aflito sobre restos de restos. Em Benjamin, essa reconstrução será mais uma ruína a juntar-se às ruínas. Em Carlos Drummond de Andrade é uma febre, aqui exposta como poema. O que Benjamin e Drummond nos permitem problematizar também é esse campo de estudos tão promissor que atualmente se denomina de transmissão geracional, e que emerge dessa hipótese tão cara a Freud, sobre a existência de uma analogia familiar nos desenvolvimentos da ontogênese e da filogênese. Talvez o que levou Freud para este tema foi a própria vinculação profunda que ele viu ocorrer entre sua biografia pessoal e a psicanálise que criou. Drummondianamente, poderíamos dizer que a Psicanálise é o resultado da febre de Freud, ao inclinar-se aflito sobre restos de restos de sua história pessoal. Laços de família não apenas integram sua produção à sua biografia, mas são eles próprios que se renovam e se matizam em Psicanálise. Na correspondência de Freud a Fliess (1887-1902/1986), temos acesso a fragmentos da autoanálise de Freud, e o que vislumbramos é que não é apenas sua ambivalência afetiva em relação aos pais o pilar do conflito psíquico que ele atravessava nesse período, ou melhor, o conflito afetivo materializa-se numa complexa rede ideacional que embaraça todo o núcleo familiar, que também é via de passagem ou de acesso aos seus antepassados e seus emaranhados ideacionais, pois o estudo das características pessoais leva em consideração as interações com os familiares.

Toda família é uma linguagem. Mas isso não quer dizer que ela seja apenas uma estrutura. Ela é também um novelo ideacional, uma cidade eterna. A criança aprende em família e através da família. Abraham e Torok (1994Abraham, N., & Torok, M. (1994). The shell and the kernel: renewals of psychoanalysis (Vol. 1). Chicago, IL: The University of Chicago Press.), no livro The shell and the kernel [A casca e o núcleo], salientam o fato de a criança estar apegada e perceber os gestos da mãe, seus atributos psíquicos e suas palavras. Mais do que perceber e estar apegada, mãe e criança constituem uma unidade dual da qual a criança tem que se separar, carregando em torno de si, de acordo com os autores, toda uma série de rastros, o fantasma que vincula, de alguma maneira, o estar aqui-e-agora com essa unidade dual original. A operação ideacional da criança se faz com elementos advindos do novelo ideacional familiar, permeada por ele. Esse novelo ideacional também se enraíza nas experiências de vida da família e, portanto, dele fazem parte pontos de vista, expectativas, impressões e o registro das histórias vividas pelos membros também nas distantes gerações desse núcleo familiar. A família é também um novelo de histórias a partir do qual cada um deve organizar-se e ganhar autonomia, como Carlos, cujo poema é uma elaboração sobre suas origens, os Andrade. A construção de nosso ser, essa operação ontogenética, é feita com o material familiar, em torno desse material, que é a filogênese de cada sujeito. Nós todos somos produtos psíquicos de uma regressão infinita de histórias familiares. Freud destaca na cidade eterna a presença de todas as edificações construídas ao longo da história. As edificações seriam essas histórias familiares. Benjamin destaca o caráter de ruína. As ruínas seriam também essas histórias. Toda história familiar carrega igualmente silêncios, pontos de suspensão, hífens e mutismo. Isso não quer dizer que algo se suprime; nada se suprime. Algo apenas se silencia, se isola e pode ganhar a qualidade de segredo. Na condição de silêncio, o conhecimento se desconhece. Na qualidade de segredo, o desconhecimento se conhece. Ambos operam na rede ideacional da criança. Ambos suscitam a febre a que Drummond se refere em seu poema. Ambos fazem parte da linguagem da família, atuando, portanto, como forças determinantes dos limites e possibilidades das operações ideacionais a que todos os membros da família estão submetidos, inclusive a criança. Se o silêncio e o segredo ganham uma forte amplificação no novelo ideacional da família, cada um dos membros vê reduzida a sua possibilidade de nomeação tanto sobre o que se passa em família quanto sobre si próprio e sobre o mundo que o rodeia. Os silêncios, os segredos, falam tanto quanto os novelos ideacionais no romance familiar que cada um ergue na construção de seus projetos identitários. Tanto no silêncio quanto no segredo está presente um elemento traumático. Se Freud soube imprimir à Psicanálise um caráter etiológico, isto é, uma vinculação com uma origem para a compreensão do fenômeno psíquico, na origem dessa ciência ele outorgou ao trauma o estatuto de origem do sintoma psíquico; ali, a Psicanálise surgiu. O trauma psíquico é uma comoção psíquica. Ferenczi (1933/1981Ferenczi, S. (1981). Reflexiones sobre el traumatismo. In S. Ferenczi. Obras completas (Vol. 4). Madrid: Espasa Calpe. (Trabalho original publicado em 1933).) lembra que a palavra alemã erschütterung, comoção psíquica, vem de schutt: ruína, compreendendo a destruição, a perda da própria forma. Em Estudos sobre a histeria, o primeiro trabalho psicanalítico de Freud (1895/1976Freud, S. (1976). Conferências introdutórias sobre psicanálise: conferência XXI: O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais. In S. Freud. Edição standard das obras psicológicas completas de S. Freud (J. Salomão, trad., Vol. 16, pp. 375-396). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1916-1917).), o trauma é entendido como um evento advindo do real, como um choque na experiência real capaz de estremecer as defesas do eu. Freud nunca silenciou propriamente a força do real. Isso nós podemos ver em todos os casos clínicos, em que os aspectos do real são seriamente levados em consideração por ele. Se, por um lado, ele avança no sentido de dar uma ênfase maior à realidade psíquica, por outro essa realidade é constituída em resposta ao real. Toda a ênfase que Freud dá à filogênese nada mais é do que salientar o fator determinante dos elementos extrapsíquicos que, de algum modo, também devem se constituir numa espécie de história psicológica para agir na psicologia de cada um. Assim é, por exemplo, em seus estudos em Totem e tabu (1913/1976Freud, S. (1976). Luto e melancolia. In S. Freud. Edição standard das obras psicológicas completas de S. Freud (J. Salomão, trad., Vol. 14, pp. 275-293). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1917).), nos quais a angústia de castração e o próprio complexo edípico, que em princípio são para Freud invariáveis da constituição psicológica de cada um, são determinados pela história psicológica na qual ficam enredados os processos históricos, morais e religiosos dos homens, até uma mítica horda primitiva na qual teria se dado o parricídio originário, cena histórica e origem de uma história psicológica singular dos seres humanos. Isso quer dizer que o novelo ideacional é uma filogênese, ou uma história psicológica que atravessa gerações e constitui-se num patrimônio psíquico da elaboração de cada sujeito: os Andrade são o patrimônio filogenético para a construção ontogenética de Carlos, o que significa que os Andrade são tanto a reserva socioculturaleconômica de Carlos quanto o seu trauma. O trauma é inerente à elaboração, como o processo de construção pessoal é inerente ao ato de reparação.

Benjamin, num texto dedicado à obra do escritor russo Nikolai Leskow, nos fala de um transtorno ocorrido nas primeiras décadas do século XX, um transtorno que envolve a modernidade, a vida urbana, a tecnicização e uma guerra. E o modo como ele lida com esse transtorno sugere que, na história dos homens, podem acontecer fatos que operam em analogia com aqueles que Freud detectou e que promovem a comoção psíquica no sujeito individual. Benjamin sugere que, na História, o trauma silencia a experiência, ou melhor, a elaboração de uma vivência, que é o modo como os fatos vividos podem se realizar em experiência, ou seja, em vida elaborada, num patrimônio pessoal, resultado das aventuras de cada um no campo da vida. De acordo com a lógica do texto de Benjamin, é possível viver e não ganhar experiência. Esse é um transtorno pessoal. Mas Benjamin, realizando uma arqueologia social, encontra um fator etiológico mais profundo, isto é, mais amplo, para essa incapacidade de elaborar a vida em experiência: os transtornos são pessoais, mas o fator etiológico é um estado de coisas no social, isto é, o desaparecimento do narrador e da narrativa promovido por um poder tecnocrata. Todo um grupo social pode ficar encerrado no silêncio, na incapacidade de transformar a vivência em experiência. Benjamin traz assim a noção de trauma, palavra originária do campo da Medicina e utilizada por Freud para dar conta das comoções psíquicas, para o campo da História. Nos dias de hoje, são diversos os autores que trabalham com a noção de trauma na História (ver, por exemplo, Robben, A. & Suarez-Orosco, M., 2000Robben, A., & Suarez-Orosco, M. (Orgs.). (2000). Cultures under siege: collective violence and trauma. Cambridge: Cambridge University Press.), e observam a reação de grupos sociais a eventos violentos, a partir deste referencial. Mas, ainda Benjamin, nesse texto, pode ser uma referência para este campo de estudos, porque na sua agudeza reflexiva, ele sabe nomear que a catástrofe de uma guerra ou de eventos sociais violentos pode ocasionar bem mais do que as gigantescas perdas materiais e humanas, que sempre estão envolvidas nesses acontecimentos, podem acarretar uma comoção psíquica do grupo, isto é, um transtorno no modo como se representam e representam o mundo ao redor, e até na própria possibilidade de representação de si e do mundo, com um impacto intenso na história desse grupo social, a ponto de delinear as determinações básicas do modo como esse grupo social irá comportar-se historicamente. O grupo social pode perder as instâncias narradoras capazes de dar sentido à experiência num para além do mero registro ideológico, que nunca dá plenamente conta da comoção grupal que o choque da História suscita. Os jornais e livros a que Benjamin se refere no mesmo texto apenas põem em circulação uma imagem da realidade que coage o grupo social, no sentido de ficarem encerrados, reféns dessa realidade, isto é, esses jornais e livros não são espaços de elaboração, podendo ser, do modo como Benjamin os entende, instrumentos da mesma batalha e, portanto, ferramentas, como ele diz, do “campo magnético de correntes e explosões destruidoras” (1969/1980Benjamin, W. (1980). O narrador: observações acerca da obra de Nicolau Leskow. In Textos escolhidos: Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jürgen Habermas (pp. 57-74, Coleção Os Pensadores). São Paulo, SP: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1969)., p. 57). Hoje, as narrativas migraram para a mídia digital com tal força que a própria eleição que acabamos de viver em nosso país, isto é, o ato político mais representativo de nosso funcionamento democrático, digitalizou-se.

A Psicologia Social deve aprender a lidar criticamente não apenas com esta narrativa, mas principalmente com as personagens digitais que surgem: uma campanha digital, um presidente digital, eleitores digitais e opositores digitalizados. É como se a vida política tivesse sido inteiramente transferida para a vida virtual, e nós da universidade, os professores, os intelectuais, ficamos com a impressão de estarmos mais longe da possibilidade de narrar para o nosso coletivo a nossa versão crítica, de favorecermos todo o coletivo na construção da morada humana brasileira: dos Brasis plurais que nos compõem.

Eu, quando escolho a responsabilidade como imperativo na construção desta minha aula para vocês, e quando relaciono a fonte primária deste imperativo à dimensão pública desta universidade, o faço motivada pelo empenho de ter aprendido em meus estudos e em minha prática a implantar sempre as teorias na construção da morada humana. A universidade pública é meu lugar de participação, por isto, como psicóloga social me envolvi sempre não exclusivamente na produção do conhecimento e nem tampouco exclusivamente na transmissão. Ou melhor, incluo tanto a produção como a transmissão do conhecimento na imperiosidade da tarefa de aperfeiçoar e fortalecer a universidade pública em nosso país. Esta é a minha febre. Por isto minha alegria em ter contribuído para fortalecer os laços, em nível internacional, da Universidade de São Paulo com o Birkbeck College da Universidade de Londres, bem como, em nível local, fortalecer os laços de minhas disciplinas com os profissionais que atuam nas políticas públicas; por isto o meu envolvimento em todas as instâncias administrativas, onde discutimos temas tão nucleares quanto a carreira de um professor universitário, os diversos projetos acadêmicos e a própria maneira de administrar cada vez mais escassas verbas. Considero tudo isto parte da Psicologia Social, porque é a própria identidade do intelectual brasileiro um tema deste campo do conhecimento. Amar, depois de perder, não é uma tarefa que sobra apenas para os Andrades, é um trabalho que sobra para todos nós. Freud chama o trabalho de elaborar e reparar, de lidar com todas essas construções e ruínas, de luto. Temos um grande luto pela frente.

Referências

  • Abraham, N., & Torok, M. (1994). The shell and the kernel: renewals of psychoanalysis (Vol. 1). Chicago, IL: The University of Chicago Press.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2019
  • Aceito
    26 Jul 2019
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