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Em defesa de Outra psicanálise: sobre o real em questão nas soluções transexuais1 1 Este artigo é resultado de um estágio pós-doutoral feito por Rogério Paes Henriques na Universidade Federal Fluminense, sob supervisão de Paulo Vidal, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

En défense d’Autre psychanalyse: sur le réel en question dans les solutions transsexuelles

En defensa de Otro psicoanálisis: sobre lo real en cuestión en las soluciones transexuales

Resumo

Apresenta-se a lógica da sexuação, de Jacques Lacan, em contraposição à noção de gênero, construída como matriz de inteligibilidade da transexualidade. Desenvolve-se a abordagem lacaniana do sinthome como alternativa para se pensar soluções singulares aos impasses sexuais pelo viés da despatologização. Conclui-se que a transexualidade, em vez de inelutável forçamento psicótico, pode ser uma solução inventiva articulada à clínica do sinthome.

Palavras-chave:
transexualismo; psicanálise; Jacques Lacan

Résumé

On présente la logique de la sexuation de Jacques Lacan en opposition à la notion de genre, érigée en matrice de l’intelligibilité de la transsexualité. L’approche lacanienne du sinthome est développée comme une alternative afin de penser à des solutions uniques aux impasses sexuelles, a travers le biais de la dépatologisation. On conclut que la transsexualité, au lieu du forçage psychotique inéluctable, peut être une solution inventive articulée à la clinique du sinthome.

Mots-clès:
transsexualisme; psychanalyse; Jacques Lacan

Resumen

Se presenta la lógica de la sexuación de Jacques Lacan en contraposición a la noción de género, construida como matriz de inteligibilidad de la transexualidad. Se desarrolla el abordaje lacaniano del sinthome como una alternativa para pensar soluciones singulares a los impasses sexuales, por el sesgo de la despatologización. Se concluye que la transexualidad, en vez de ineluctable forzamiento psicótico, puede ser una solución inventiva articulada a la clínica del sinthome.

Palabras clave:
transexualismo; psicoanálisis; Jacques Lacan

Abstract

The logic of sexuation, by Jacques Lacan, is presented in opposition to the notion of gender, constructed as the matrix for transsexuality intelligibility. The Lacanian approach of sinthome is developed as an alternative to think on singular solutions for sexual impasses, through the depathologization bias. It is concluded that transsexuality, instead of an inescapable psychotic forcing, may be an inventive solution coordinated to the clinic of the sinthome.

Keywords:
transsexualism; psychoanalysis; Jacques Lacan

O pensamento ocidental impregna-se de certo realismo científico que concebe as categorias homem e mulher como “tipos naturais” substancializados por seus respectivos atributos biológicos intrínsecos. Desimpregnar esse pensamento do viés fatídico (a ideia da biologia como destino) correspondeu à invenção, em 1957, e à disseminação, em 1968, da noção de gênero, respectivamente por John Money e Robert Stoller. Isso permitiu uma interpretação plural do sexo. Há uma descontinuidade entre o sexo do corpo e os gêneros culturalmente construídos, de modo que homem e mulher deixaram de ser determinados pela natureza, passando a ser artifícios humanos; ou seja, homem e mulher passaram a ser construções sociais de gênero sobre o sexo biológico. De um lado, temos a impressão natural do sexo, herança biológica (inata), de outro, a expressão artificial do gênero, herança social (adquirida). Sexo e gênero podem estar em congruência ou não. Em caso de incongruência, prevalecerá o gênero - a sensação íntima de pertencimento identitário - sobre o sexo biológico, como ocorre, por exemplo, na transexualidade. Com Stoller, que além de psiquiatra foi também psicanalista de viés culturalista, a nurture prevalece sobre a nature, e o construtivismo triunfa sobre o essencialismo. Consolidando a disjunção entre sexo e gênero, Stoller dissemina este último como objeto instável, um “tipo artificial”, de cuja pluralização2 2 Constata-se a atual explosão de gêneros tanto no Facebook, que permite inventar gêneros exclusivos para cada usuário, infinitizando-os, quanto no manual diagnóstico da American Psychiatric Association (2014), que, enviesado culturalmente, reconhece a existência de “gêneros alternativos” na definição da transexualidade como disforia de gênero (pp. 452-453). vêm se ocupando os chamados “estudos de gênero” (gender studies). Estes se inscrevem na tradição dos estudos feministas e pós-coloniais de língua inglesa, segundo uma perspectiva epistemológica que concebe o gênero como um mecanismo de opressão social do qual é preciso se emancipar. Para tanto, constrói-se um projeto político cujo dispositivo compõe-se, via de regra, de ativismo militante (feminista, queer etc.) centrado na desconstrução dos gêneros instituídos, que reflete a recepção estadunidense triunfante ao “pensamento francês” (French theory) - sobretudo Foucault, Derrida e Deleuze. Seus principais representantes são: Gayle Rubin, Monique Wittig, Judith Butler e Eve Kossofsky Sedwick, nos Estados Unidos; Luce Irigaray, Didier Eribon, Éric Fassin e Marie-Hélène Bourcier, na França (Fajnwaks, 2015Fajnwaks, F. (2015). Lacan et les théories queer: malentendus et méconnaissances. In F. Fajnwaks, & C. Leguil. (Eds.). Subversion lacanienne des théories du genre (pp. 19-45). Paris: Michèle., pp. 20, 24). Berger (2013Berger, A-E. (2013). Le grand théâtre du genre: identites, sexualités et féminisme en “Amérique”. Berlin: Berlin Litterature et Revues.) assinala que a atual recepção francesa aos gender studies recebe o verniz de novidade, sendo tão ou mais triunfante quanto outrora o foi a recepção estadunidense à French theory que os originou, fenômeno circunscrito por ela como “uma contratransferência intelectual massiva sobre um eu-ideal ‘americano’” (p. 113). No Brasil, destacam-se teóricos como Berenice Bento e Guacira Lopes Louro, dentre outros.

Segundo Leguil (2015Leguil, C. (2015). Sur le genre des femmes selon Lacan: la sexualité feminine par-delà les norms. In F. Fajnwaks, & C. Leguil (Eds.). Subversion lacanienne des théories du genre (pp. 47-86). Paris: Michèle .), o que caracteriza a singularidade da psicanálise lacaniana é que sua posição não é nem favorável nem contrária ao gênero (p. 52); simplesmente, tal noção não toca o ponto do real (fora da norma: injunção de gozo) que interessa a Lacan e, portanto, não se revela clinicamente útil, embora se reconheça sua importância e legitimidade como estratégia política. De acordo com a orientação lacaniana assumida neste trabalho, direcionada ao real, importa mais o gozo escrito via lógica da sexuação do que os semblantes de gênero, regidos pelas dimensões imaginária e simbólica, adscritos ao Outro social. Portanto, é com a sexuação que nos ocuparemos, já que uma análise impele o sujeito justamente a assumir a singularidade de seu ser de gozo, o nó de seu sinthoma. “A psicanálise, como ciência do real, se liga ao que, em cada sujeito, no caso a caso, independentemente de sua orientação [semblante de gênero], permanece impossível de dizer, resistindo a toda formulação” (Bourlez, 2015Bourlez, F. (2015). L’épistémologie du placard comme orientation pour un gay ça-voir. In F. Fajnwaks, & C. Leguil (Eds.). Subversion lacanienne des théories du genre (pp. 89-106). Paris: Michèle., pp. 102-103). É desse ponto que enfocaremos a transexualidade.

Crítica do gênero de Stoller à luz da sexuação lacaniana

Cabe ressaltar que a disjunção disseminada por Stoller entre sexo e gênero vigora até os dias atuais, sendo utilizada como diretriz às práticas de medicalização e judicialização da transexualidade. Assim, tal disjunção é reproduzida pela Resolução 1.955/10 do Conselho Federal de Medicina brasileiro que dispõe sobre a cirurgia de redesignação sexual (CRS), assim como pelos operadores do Direito no Brasil no trato com as demandas de retificação registral dos transexuais (Moura, 2016Moura, M. L. (2016). Os saberes médicos na jurisprudência estadual recente sobre retificação registral de transexuais. Áskesis, 5(2), 31-43. Recuperado de https://bit.ly/2Zu7Mdj
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, p. 39). Além disso, revisando a literatura da ortodoxia psicanalítica ipeísta, Bulamah e Kupermann (2016Bulamah, L. C., & Kupermann, D. (2016). A psicanálise e a clínica de pacientes transexuais. Periódicus, 5(1): 73-86. Recuperado de https://bit.ly/2Ubq8JQ
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) assinalam que “todos os psicanalistas que publicaram relatos de análises com pacientes trans posicionaram-se em relação às ideias de Robert Stoller” (p. 75). Isso justifica tomar Stoller inicialmente como interlocutor privilegiado, haja vista que, por mais que Lacan (1970-1971/2009Lacan, J. (2009). O seminário, livro 18: de um discurso que não seria do semblante. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1970-1971), p. 30), em seu O seminário, livro 18, recomende a leitura de Sex and gender (Stoller, 1968Stoller, R. (1968). Sex and gender. London, United Kingdom: Hogart Press.), recém-lançado naquela ocasião, suas perspectivas teóricas não se confundem. Vejamos.

A identidade de gênero de Stoller, tal como aponta Morel (2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial.), é “a convicção íntima de um sujeito quanto ao seu sexo” (p. 76). Trata-se de “uma espécie de ontologia, a busca de um núcleo do ser, mais forte que qualquer outra coisa, que o sujeito recebe do Outro” (p. 177). “O gênero é assim uma espécie de alma sexual verdadeira do sujeito” (p. 186). Segundo Stoller, no desenvolvimento da sexualidade, haveria quase inequívoca sujeição individual às determinações advindas do Outro social, designativas do binarismo de gênero: “Quaisquer que sejam os determinantes biológicos do sexo, nos convertemos em membros do sexo que nos designaram” (Morel, 2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial., p. 76).

Essa perspectiva stolleriana só considera, no processo de sexuação, os seus dois primeiros tempos, a saber, o tempo um da anatomia e o tempo dois do discurso sexual, mas não o terceiro tempo, que corresponde à eleição inconsciente do sexo pelo sujeito na infância. Esses três tempos correspondem a etapas conceituais (e lógicas) do processo da sexuação, e não a uma evolução temporal. O primeiro tempo é o da anatomia natural, que é um real. O segundo tempo, do discurso sexual, é aquele em que o primeiro é interpretado pelo discurso circundante. Este o faz em suas categorias fálicas, e o sujeito toma, então, posição com relação à função fálica (inscrição ou rejeição foraclusiva). Quando rejeita a função fálica, o sujeito é psicótico; sua eleição do sexo, num terceiro tempo, pode ou não estar de acordo com o sexo que lhe designa o discurso circundante no segundo tempo. Para um sujeito que se inscreveu na função fálica nesse segundo tempo, o terceiro é o momento da eleição do sexo, homem todo fálico ou mulher não-toda fálica. Tal eleição implica seus modos de gozo e sua relação com o outro sexo. Não coincide necessariamente nem com a anatomia (tempo um) nem com o sexo designado pelo discurso circundante (tempo dois) (Morel, 2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial., p. 162).

No processo de sexuação, para além da anatomia (tempo 1) e do semblante de gênero (tempo 2), há o modo de gozo (tempo 3), sendo este último o critério subjetivo do verdadeiro em psicanálise lacaniana. Os modos de gozo fálico e não-todo fálico se articulam às estruturas da fantasia, nas fórmulas da sexuação propostas por Lacan em O Seminário, livro 20 (Lacan, 1972-73/2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1972-1973)).

O gozo do lado homem inscreve-se todo no universal da função fálica, como sexual. Trata-se de um gozo da linguagem, que implica a renúncia pulsional (castração) em prol do laço social e que se articula ao matema da fantasia ($ <> a). “Cada sujeito deve confrontar-se com uma falta de gozo. Não o recupera senão através das ficções da linguagem que lhe permitem encontrar no outro corpo sexuado esse gozo [objeto a] que lhe falta. Para isso, servem os semblantes . . . .” (Miller, 2011Miller, J-A. (2011). El partenaire-síntoma. Buenos Aires: Paidós., p. 145). Por sua vez, o gozo do lado mulher não se inscreve todo na função fálica como sexual, nesse sentido se o denomina não-todo fálico. Trata-se de um “Outro gozo”, em alteridade ao gozo fálico, que não se reduz a nenhum traço identificável que possa universalizar-se; é singular. “O que o caracteriza é que ele é sustentado por um conjunto sem bordas; não é construído sobre um limite” (Melman, 2000Melman, C. (2000). Alcoolismo, delinquência, toxicomania: uma outra forma de gozar. São Paulo, SP: Escuta., p. 129). Trata-se de um gozo não limitado pelo significante, manifesto pela infinitude e pela impossibilidade de colocá-lo em palavras. Morel (2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial., pp. 156-157) dá um exemplo literário desse gozo, extraindo-o do romance de Jorge Amado, Dona Flor e seus dois maridos: Dona Flor goza, ao mesmo tempo, da felicidade fálica tranquila de seu casamento atual e de seu finado marido, que lhe aparece na forma de um íncubo, com quem ela tem um gozo incomparável com o das relações conjugais com seu marido vivo. Esse amante morto, espectral, é a metáfora de uma ausência. Essa figura imaginária e fantástica é o parceiro de Dona Flor para o Outro gozo.

Ao descrever essas duas modalidades de gozo, ambas as maneiras neuróticas de se inscrever em relação ao falo, Lacan assinala que não há relação. Daí o axioma lacaniano: “a relação sexual não existe” - na medida em que não há complementaridade, tampouco encontro efetivo entre os sexos. “Parece que é um encontro de um homem com uma mulher, mas na verdade é o encontro de um sujeito com um objeto a do fantasma; parece que é um encontro com um homem, mas é o encontro de uma não-toda com o falo” (Brodsky, 2013Brodsky, G. (2013). A loucura nossa de cada dia. Opção lacaniana, 4(12). Recuperado de https://bit.ly/2HyptgK
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, p. 37). “Uma mulher quer gozar do corpo de seu parceiro recuperando o órgão fálico como significante que ela extrai dele. Mas o órgão fálico, longe de fazer cópula, faz obstáculo . . .” (Laurent, 2015Laurent, E. (2015). Genre et jouissance. In F. Fajnwaks, & C. Leguil (Eds.). Subversion lacanienne des théories du genre (pp. 145-162). Paris: Michèle., p. 148); se ela experimenta o orgasmo feminino, este gozo não se localiza em um órgão, nem pode ser compartilhado, tratando-se de acontecimento corporal que transborda o corpo da mulher. A parceria sexual é determinada pela fantasia fundamental, que possibilita a cada um extrair de outro corpo - ou do seu próprio - um modo de gozo que faça laço social. A impossibilidade da relação sexual é o paradigma do último ensino de Lacan (Gerbase, 2008Gerbase, J. (2008). Os paradigmas da psicanálise. Salvador, BA: Associação Científica Campo Psicanalítico.).

A ideia lacaniana principal contida na sexuação é que as identificações - provenientes seja do imaginário, seja do simbólico - não bastam para dar conta do real da relação do sujeito com o sexo, somente apreendido via gozo e fantasia. Daí Lacan recorrer à lógica moderna, não sem antes subvertê-la, como de hábito em suas apropriações de outros saberes, justamente no intuito de ultrapassar a lógica aristotélica da classe e do atributo, que substancializa identidades em categorias fixas3 3 É essa a lógica que embasa as classificações psiquiátricas oficiais na atualidade. . Portanto, constitui erro crasso ler as fórmulas da sexuação como se Lacan estivesse substancializando as categorias homem e mulher, e naturalizando o binarismo de gênero em torno do masculino e feminino. Homem e mulher em psicanálise nada têm a ver com sexo anatômico, tampouco com papéis de gênero. Como assinala Soler (2005Soler, C. (2005). O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar .):

É homem o sujeito inteiramente submetido à função fálica. Por isso, a castração é seu destino, assim como o gozo fálico, ao qual ele tem acesso por intermédio da fantasia. É mulher, ao contrário, Outro, o sujeito que não está todo submetido ao regime do gozo fálico e ao qual cabe um outro gozo, suplementar, sem o suporte de nenhum objeto ou semblante. (p. 138)

Ademais, o próprio quantificador “não-todo”, presente no lado mulher das fórmulas da sexuação, encarna a anti-identificação por excelência, na medida em que inexiste o “ao menos um” necessário para fundar uma identificação mediante um traço significante. Nesse sentido, “A mulher” não existe (escrito como A barrado: para marcar que a negação incide sobre o artigo definido, e não sobre o substantivo mulher), dado que não existe exceção à função fálica que funde o conjunto das mulheres como um todo e “A mulher” como um conceito universal. Isso se deve à inexistência de um significante da mulher no inconsciente, o que acaba por conferir à feminilidade um caráter Unheimliche, de alteridade absoluta como Outro sexo.

Ao reler dois casos clínicos de intersexualidade - descritos por Fairbairn e Stoller - somente descobertos na puberdade, Morel (2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial., pp. 165-179) ressalta que as novas designações de gênero imputadas a ambos pelo Outro social (atualização do tempo 2 da sexuação) não alteraram, como era de se esperar, as prévias eleições do sexo referidas aos modos de gozo assumidos pelos sujeitos na infância (tempo 3 da sexuação). “A ‘anormalidade’ biológica não parece ter tido uma influência decisiva sobre a sexuação . . . e o anúncio feito aos sujeitos com relação à sua anomalia não fez senão reforçar as direções tomadas anteriormente” (Morel, 2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial., p. 178). Relativiza-se, com essas duas vinhetas clínicas, as suposições sobre a inevitável inculcação do discurso sexual sobre os sujeitos apassivados, como insinua Stoller.

Em suma, as identificações, embora importantes, não bastam para estabelecer a sexuação de um sujeito, que toma parte ativa nesse processo.

No processo complexo de sexuação, há espaço para decisões inconscientes nos tempos dois e três. Sem essa cota de responsabilidade, por tênue que seja em comparação com as restrições reais e simbólicas que pesam sobre o sujeito, a psicanálise não seria senão adaptação ao pior. (Morel, 2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial., p. 266)

Há um real em jogo na psicanálise que, embora acessível somente via enunciados (ou ditos) de um sujeito, não coincide com estes. “Deve-se encarar todo um trabalho de decantação, dedução e demonstração antes de afirmar qual é a posição sexual de um sujeito” (Morel, 2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial., p. 143).

a psicanálise dos neuróticos, quando levada suficientemente longe, mostra que o sujeito toma de maneira muito precoce opções de gozo, que denotam uma eleição do sexo. Por exemplo, no caso da menina, a adoção de uma posição de objeto do pai, às vezes próxima ao incesto, seja na fantasia seja na realidade como resposta a um trauma, pode ser muito mais potente e determinante para a feminilidade do sujeito que identificações viris histericizantes que contradigam essa posição. (Morel, 2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial., p. 200)

Essa citação ilustra que, em psicanálise, importa mais o ser de gozo da menina em questão do que a mascarada feminina por ela performatizada, via identificações virilizantes, que tem por função “mascarar sua falta” (Lacan, 1958/1998Lacan, J. (1998). A significação do falo. In Escritos (pp. 692-703). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1958), p. 701). Embora a mascarada não seja atributo exclusivo da mulher, Lacan (1970-71/2009Lacan, J. (2009). O seminário, livro 18: de um discurso que não seria do semblante. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1970-1971)) assinala que a mulher “tem uma enorme liberdade com o semblante. Consegue dar peso até a um homem que não tem nenhum” (p. 34). Dessa forma, a mascarada própria à “comédia dos sexos” (Lacan, 1958/1998Lacan, J. (1998). A significação do falo. In Escritos (pp. 692-703). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1958)), no atual contexto da pluralização dos semblantes de gênero, importa muito mais ao ativismo militante que à clínica psicanalítica lacaniana4 4 Cabe ressaltar que perspectivas psicanalíticas culturalistas (Porchat & Ayouch, 2016), dando consistência ao Outro social, tendem a celebrar a pluralização dos semblantes de gênero e o saber daí resultante - (trans)gender studies - como um tensionamento indispensável à subversão da psicanálise. .

Berger (2015Berger, A-E. (2015). La psychanalyse comme “théorie du genre”. In F. Fajnwaks, & C. Leguil (Eds.). Subversion lacanienne des théories du genre (pp. 107-130). Paris: Michèle.) assinala que nos mundos anglófono e francófono - assim como no Brasil, que recebe forte influência de ambos, acrescentamos -, tende-se a separar duas tradições epistemológicas, que engendram divergências políticas: “uma tradição do pensamento que toma por objeto ou ponto de partida a diferença sexual . . . e uma tradição do pensamento que se interessa não pela diferença sexual, mas pelo gênero” (p. 129). Essa autora assinala, ainda, que tal partição epistemológica entre dois paradigmas (da diferença sexual e do gênero) é bem menos marcada no mundo germanófono, em virtude das peculiaridades da língua alemã.

Na clínica psicanalítica de orientação lacaniana, para além dos semblantes de gênero (LGBTTQI… ∞), o que está em jogo é o encontro singular de cada um com o enigma do sexual: há algo que não se encaixa, que não funciona, que rateia... O sexo é então tomado não em referência a uma idealidade, mas em sua a-sexualidade, isto é, “em torno do quiasma do reencontro [singular] com o objeto a, extraído do corpo” (Laurent, 2015Laurent, E. (2015). Genre et jouissance. In F. Fajnwaks, & C. Leguil (Eds.). Subversion lacanienne des théories du genre (pp. 145-162). Paris: Michèle., p. 154). Levar em conta a impossibilidade da relação sexual - evitando-se aplicar um a priori epistemológico ao campo do pulsional - é o que caracteriza a ética psicanalítica. Segundo esta, não há boa identificação sexual, tampouco parceria sexual ideal, isto é, não há conforto em se tratando do sexual.

Como aponta Fajnwaks (2015Fajnwaks, F. (2015). Lacan et les théories queer: malentendus et méconnaissances. In F. Fajnwaks, & C. Leguil. (Eds.). Subversion lacanienne des théories du genre (pp. 19-45). Paris: Michèle.): “a capacidade subversiva da psicanálise reside principalmente no fato de que Lacan não teorizou a psicanálise em termos de gêneros, mas em termos de gozo” (p. 26). Ao ponto de Lacan (1969-70/1992Lacan, J. (1992). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970)) chamar “campo do gozo” sua perspectiva - o que equivale ao campo do real, do sem lei, do non-sense. Corresponde à dimensão econômica (quantitativa) da vida psíquica, abordada por Freud via termodinâmica, na qual se destacam a pulsão e a libido. O sujeito “mesmo no melhor dos mundos, terá que se confrontar . . . com a repetição de um elemento recusando-se a toda positividade, uma sombra excessiva recusando a idealidade da beleza, do bem, da verdade” (Bourlez, 2015Bourlez, F. (2015). L’épistémologie du placard comme orientation pour un gay ça-voir. In F. Fajnwaks, & C. Leguil (Eds.). Subversion lacanienne des théories du genre (pp. 89-106). Paris: Michèle., p. 105). “O sujeito será submisso a esse furo no universal do sentido sexual no qual ele quer viver, e que não deixará de angustiá-lo” (Laurent, 2015Laurent, E. (2015). Genre et jouissance. In F. Fajnwaks, & C. Leguil (Eds.). Subversion lacanienne des théories du genre (pp. 145-162). Paris: Michèle., p. 157).

Se, mesmo assim, insistir-se em objetar que o quadro das fórmulas da sexuação lacaniana permanece marcado pela matriz heteronormativa - haja vista tratar-se de duas posições frente o falo, masculina e feminina, dada a dissimetria do gozo5 5 Com enfoque na transexualidade, Lattanzio & Ribeiro (2017) denunciam o “moralismo fálico” de Lacan, em prol de uma “feminilidade originária”. Parodiam, assim, a proposta de Butler (2000) para a psicanálise, orientada ao “polimorfismo pré-edipiano”. -, isso não estará definitivamente mais em questão em se tratando da abordagem borromeana do sinthoma, que veremos a seguir. Acreditamos que a articulação do sinthoma por Lacan, em seu ultimíssimo ensino, transcenda a partição epistemológica, apontada por Berger (2015Berger, A-E. (2015). La psychanalyse comme “théorie du genre”. In F. Fajnwaks, & C. Leguil (Eds.). Subversion lacanienne des théories du genre (pp. 107-130). Paris: Michèle.), entre os paradigmas da diferença sexual e de gênero.

O sinthoma (Σ)

Em seu O seminário, livro 23, Lacan (1975-76/2007Lacan, J. (2007). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1975-1976)) está às voltas com o sinthoma (com “th”, como na grafia antiga dessa expressão: le sinthome). Trata-se de um neologismo que se contrapõe ao que se convencionou designar em psicanálise por sintoma (symptôme).

O sintoma, como aparece em O seminário, livro 5 (Lacan, 1957-58/1999Lacan, J. (1999). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1957-1958)), é uma formação do inconsciente e, como tal, é uma parte do discurso do Outro, articulado como uma linguagem, fraturado entre significante e significado, que pode afetar tanto o corpo quanto o pensamento. O sintoma, assim como o inconsciente simbólico, é uma generalidade.

Já o sinthoma não é uma formação do inconsciente simbólico, mas, ao contrário, trata-se do nome do incurável, atrelado ao real. O sinthoma é o que há de singular em cada indivíduo e pertence, portanto, ao registro do Um, ou seja, do gozo. O sinthoma é uma singularidade, o modo pelo qual cada Um domestica seu gozo. Há uma anterioridade lógica do registro do Um com relação ao registro do Outro e, em todo o derradeiro ensino de Lacan, há esse movimento de voltar, para aquém do Outro.

Todavia, como abordar o sinthoma, em psicanálise, sem fazer referências ao inconsciente e ao Outro? É aí que entra em cena o escritor irlandês James Joyce. Lacan recorre à prática de escrita de Joyce, artífice de um texto que muitas vezes nada comunica, de uma literatura trituradora do sentido, pura construção progressiva sobre a língua, culminando em seu último escrito, Finnegans wake. Assim, Lacan afirmará que Joyce é um “desabonado do inconsciente”, o que quer dizer que ele é a “encarnação do sinthoma”; ele encarna o que há de singular em cada indivíduo. Sua escrita reflete seu singular manejo da letra, fora dos efeitos de significado, com fins de puro gozo - emblema do que Lacan denomina savoir-y-faire com seu sinthoma, o que equivale a saber manipulá-lo, a fazer algum uso dele. Lacan mostrou que a arte de Joyce constituiu seu sinthoma, seu modo de gozar, e lhe serviu de ego. Tal é o emblema máximo de que se pode prescindir do Nome-do-Pai6 6 “O Nome-do-Pai articula o desejo e a lei, sua função põe no gozo um freio. Essa função não inscreve simplesmente algo da interdição. ‘Pôr um freio no gozo’ é também abrir ao sujeito uma via que o afasta de um empuxo-ao-gozo mortal” (Laurent, 2012, p. 184). Além de metáfora paterna interditora, Lacan retoma o Nome-do-Pai como abertura à metonímia do desejo, a partir de O seminário, livro 6 (Lacan, 1958-59/2016), até que, de O seminário, livro 22 (Lacan, 1974-1975) em diante, o Nome-do-Pai, efetivamente pluralizado, torna-se função de nominação atrelada ao nó borromeano como quarto elo. O Nome-do-Pai amplia-se, assim, de instância repressora a dispositivo produtivo de enodamento. , com a condição de dele se servir, em sua função de sinthoma, ou seja, de enodamento.

Na perspectiva da clínica da suplência ou supleção, aberta pela topologia dos nós, a função do sinthoma consiste em manter juntos o real, o simbólico e o imaginário. Segundo Schejtman (2015Schejtman, F. (2015). Sinthome: ensayos de clínica psicoanalítica nodal. Buenos Aires: Grama Ediciones.), o sinthoma seria o zênite das nominações como possibilidades de enodamento psíquico, haja vista reparar o lapso do nó borromeano no mesmo lugar onde este se dá e possuir relação privilegiada com o simbólico. Há uma solução generalizada, prêt-à-porter, representada pelo recalque do Nome-do-Pai e pela inscrição da castração sob a égide da função fálica (equivalente ao enodamento borromeano), porém, há também um sem número de soluções singulares possíveis, dentre elas a joyceana, sinthomática, que Lacan traz à tona e põe em evidência nesse momento tardio de seu ensino. A clínica lacaniana do sinthoma abre perspectivas de futuro promissoras, permitindo-nos superar as lamúrias em torno do “declínio do pai” na cultura7 7 Nesse sentido, Jacques-Alain Miller lançou uma petição contra a instrumentalização da psicanálise, na ocasião do mariage pour tous, em janeiro de 2013, na qual lembrava que a estrutura edipiana descrita por Freud não é um invariante antropológico (Miller, 2013). Miller retoma, assim, cerca de cinco décadas depois, a concepção de Lacan (1960/1998, p. 827) segundo a qual o Édipo "não pode manter-se indefinidamente em cartaz", dada sua dependência das configurações socioculturais. , sustentando a postura ética de não recuar frente aos desafios da contemporaneidade. “Como o Édipo de Sófocles, para Freud, a ficção de Joyce ofereceu um novo e revolucionário paradigma psíquico” (Gherovici, 2017Gherovici, P. (2017). Transgender psychoanalysis: a lacanian perspective on sexual difference. New York, NY: Routledge., p. 141).

A psicanálise da transexualidade: abordagem do sinthoma

Analogamente à leitura empreendida por Lacan do sinthoma de Joyce, pesquisadores do campo lacaniano (Hubert, 2007Hubert, H. (2007). Transsexualisme: du syndrome au sinthome, Cliniques méditerranéennes, 76, 255-270. doi: 10.3917/cm.076.0255
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; Morel, 2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial.; Teixeira, 2012Teixeira, M. C. (2012). Os transexuais e o sexo pra chamar de seu. Revista aSEPHallus, 7(14). Recuperado de https://bit.ly/2Zn8okz
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; Gherovici, 2017Gherovici, P. (2017). Transgender psychoanalysis: a lacanian perspective on sexual difference. New York, NY: Routledge.) vêm pensando as soluções singulares para o gozo transexual - que podem inclusive incluir a CRS, sem, contudo, reduzir-se a esta. Trata-se de perspectivas originais, haja vista que tradicionalmente autores desse campo - como Marcel Czermak, Catherine Millot e Charles Melman, recenseados por Perelson (2011Perelson, S. (2011). Transexualismo: uma questão do nosso tempo e para o nosso tempo. Revista Epos, 2(2), 1-19. Recuperado de https://bit.ly/2UdIkm4
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) - abordam a transexualidade em sua “face psicótica” de foraclusão (Lacan, 1970-71/2009Lacan, J. (2009). O seminário, livro 18: de um discurso que não seria do semblante. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1970-1971), p. 30), com ênfase no gozo transexual mortífero, cujo “erro comum”8 8 O erro comum seria rejeitar o significante do gozo sexual (foraclusão do falo), que faria retorno no real do corpo. Na impossibilidade de interpretar o gozo invasivo do órgão sexual, o sujeito demanda intervenção sobre essa zona erógena, fonte pulsional angustiante. O erro efetivamente consiste em apontar o órgão, em vez do significante, como causa do gozo. associa-se à exigência de mutilação corporal (Lacan, 1971-72/2012Lacan, J. (2012). O seminário, livro 19: ou pior. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1971-1972), p. 17). Tal face psicótica acabaria sendo nomeada “empuxo-à-mulher”: forma de sexuação específica da psicose, introduzida por Lacan em “O aturdito” (Lacan, 1973/2003Lacan, J. (2003). O aturdito. In Outros escritos (pp. 448-497). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1973)). Trata-se de um processo psicótico de feminização forçada, que se deve à interpretação delirante que o sujeito faz do gozo que o invade. “A ideia de ‘a’ mulher se impõe a um sujeito que deve interpretar seu gozo. Esta interpretação induz o efeito de empuxo-à-mulher, sentido como um forçamento” (Morel, 2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial., p. 229). Localiza-se nas fórmulas da sexuação no quadrante inferior à direita em A barrado → S (A barrado): “E [aí] vemos o empuxo à mulher, o diálogo com Deus, o êxtase. É Schreber, muito macho, dizendo sentir-se uma mulher que copula com Deus” (Brodsky, 2013Brodsky, G. (2013). A loucura nossa de cada dia. Opção lacaniana, 4(12). Recuperado de https://bit.ly/2HyptgK
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, p. 38). Se o pai não existe, se está foracluído na psicose, passam a existir “A mulher” e a relação sexual: Schreber em seu acoplamento divino.

As manifestações fenomenológicas do empuxo-à-mulher são multifacetadas - mostra-nos Morel (2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial.) -, abarcando desde os grandes delírios paranoicos nos quais se encarna efetivamente “A mulher”; passando por manifestações clínicas mais discretas, como alguém que se vê forçado a fazer uma longa tese universitária sobre a condição feminina (p. 226); até o caso de um sujeito em análise que, encarnando o não-ser, sob transferência, localiza “A mulher” na figura da analista (pp. 231-232); abarcar-se-iam aí também os casos descritos como “transexualismo primário” por Stoller9 9 Ficam de fora: a face histérica da transexualidade na atualidade (Jorge & Travassos, 2017); os “transexualistas” (Frignet, 2002); aqueles que têm “mero desejo de obter quaisquer vantagens culturais atribuídas ao fato de ser do sexo oposto” (American Psychiatric Association, 2002, p. 552); isto é, a transexualidade como fenômeno social. , em Sex and gender. Cabe ressaltar que nem sempre o empuxo-à-mulher se instala na psicose, podendo a sexuação se subordinar ao sinthoma - às expensas da vida sexual (p. 217). E, mesmo nos casos de psicose nos quais o empuxo-à-mulher se manifesta, para além dos seus prevalentes efeitos deletérios, é possível utilizá-lo positivamente inclusive fazendo dele um sinthoma (pp. 238, 250).

As perspectivas que endossamos neste trabalho seguem à risca a leitura via sinthoma de Joyce empreendida por Lacan. Este, em vez de abordar a face psicótica do escritor irlandês em seu gozo mortífero10 10 Presume-se que Joyce teria morrido devido às consequências de uma úlcera duodenal negligenciada por ele. Cabe ressaltar que a psicose em Joyce é uma suposição baseada em dois acessos possíveis: por um lado, o sintoma literário, foraclusão metódica do sentido, e por outro o abandono do corpo próprio, que aponta o deslize do imaginário e o erro no enodamento psíquico, compensado por seu ego-sinthoma. Recentemente, vem-se questionando a presunção de psicose em Joyce, sobretudo Soler (2018). , optou por ressaltar a dimensão inventiva de sua prática de escrita, dando uma guinada de 180 graus em seu ensino. Onde antes predominava o déficit incorrigível, Lacan enfatizou a invenção supletiva. A abordagem da psicose nunca mais seria a mesma depois disso, dada a sua despatologização, lida em Joyce via singularidade que lhe permite viver. Entretanto, são muitos os psicanalistas lacanianos que ainda recuam frente ao sinthoma joyceano.

Sustentamos que o próprio Lacan teria desconstruído na diacronia de seu ensino, com recurso a Joyce, seu malsinado “falocentrismo” sincronicamente localizado. Em seu derradeiro ensino, com enfoque na relação entre o significante e o gozo, Lacan articula uma clínica continuísta na qual não haveria uma descontinuidade radical entre neuroses e psicoses, no sentido de não haver uma grande diferença estrutural: um neurótico seria um falasser com uma suplência muito bem-sucedida, com um sinthoma que amarraria os três registros (RSI), que seria o Nome-do-Pai. Por sua vez, existiria um sem número de psicoses que teriam feito suplência, mas não à maneira neurótica - com o Nome-do-Pai como agente da castração e com a função fálica localizando o gozo como sexual -, mas de outra maneira singular e original, como na identificação transexual de valor sinthomático. Passam a importar então os modos de gozo singulares na condição de articulados ou não aos discursos promotores do laço social. “Tanto o francamente psicótico como o normal são variações . . . da situação humana, de nossa posição de falantes no ser, da existência do falasser” (De Georges, Henry, Jolibois, & Miller, 2009De Georges, P., Henry, F., Jolibois, M., & Miller, J-A. (Eds.). (2009). La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós., p. 202). A clínica do enodamento borromeano via sinthoma promove, portanto, uma espécie de igualdade de cada um tanto com relação ao gozo quanto com relação à morte, diluindo as fronteiras entre o normal e o patológico - daí a afirmação de que a não inscrição da função fálica (Φ0) e a foraclusão do Nome-do-Pai (P0) são os extremos da curva de Gauss, que apresenta o real das coisas humanas (De Georges et. al., 2009De Georges, P., Henry, F., Jolibois, M., & Miller, J-A. (Eds.). (2009). La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós., p. 216). No período de conclusão de seu ensino, com o retorno de Lacan a Lacan, este afirma que “todo mundo é louco, ou seja, delirante” (Lacan, 1978/2010Lacan, J. (2010). Transferência para Saint Denis? Lacan a favor de Vincennes! Correio, (65). (Trabalho original publicado em 1978)). Cabe a cada falasser lidar com isso.

É importante ressaltar que, a rigor, a psicose em Lacan nunca foi deliberadamente considerada uma patologia a ser curada com vistas ao restabelecimento de uma norma anterior perdida, à moda psiquiátrica, mas sim uma “posição de sujeito” pela qual “sempre somos responsáveis” (Lacan, 1965/1998Lacan, J. (1998). A ciência e a verdade. In Escritos (pp. 869-892). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1965), p. 873). Com Marguerite Anzieu (Aimée), Lacan limitou-se a testemunhar ativamente a queda espontânea dos delírios dela após sua passagem ao ato - o atentado a faca contra a vida da atriz Hughete ex-Duflos -, que resultou em seu encarceramento num manicômio judiciário e acompanhamento psiquiátrico pelo Dr. Lacan (Lacan, 1932/1987Lacan, J. (1987). Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1932)). Já com Schreber, fiel à proposição freudiana do delírio como tentativa de cura (Freud, 1911/2010Freud, S. (2010). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia [dementia paranoides] relatado em autobiografia [“o caso Schreber”]. In Obras completas (P. C. Souza, trad., Vol. X, pp. 13-107). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1911); Freud 1924/2011Freud, S. (2011). Neurose e psicose. In Obras completas (P. C. Souza, trad., Vol. XVI, pp. 176-183). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1924)), Lacan afirmou ser função do psicanalista - que não deveria recuar ante à psicose - tão somente secretariar o louco em seu trabalho de estabilização, no sentido que Hegel confere ao filósofo a função de ser o secretário da História, desta escandindo e extraindo uma lógica (Lacan, 1955-56/2002Lacan, J. (2002). O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1955-1956)). Finalmente, com Joyce, a suposta psicose estrutural do escritor irlandês inanalisável - “desabonado do inconsciente”, eis sua posição de sujeito, segundo Lacan - ganha uma dimensão inventiva, que evita seu desencadeamento e o correlato gozo mortífero (Lacan, 1975-76/2007Lacan, J. (2007). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1975-1976)).

Para Lacan, a psicose é concebida de modo peculiar como posição estrutural do sujeito na topologia psíquica, podendo se manifestar como síndrome psiquiátrica, a depender do desencadeamento, ou não. Se com relação às psicoses desencadeadas Lacan de certo modo mostrou-se pessimista, apontando as muletas imaginárias compensatórias à devastação psicótica que lhe dificultaram naquela época avançar em relação à sua “questão preliminar” relativa à foraclusão do Nome-do-Pai (Lacan, 1959/1998Lacan, J. (1998). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In Escritos (pp. 537-590). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1959)), com a hipotética psicose estrutural de Joyce ele se torna mais otimista, haja vista sua demonstração de que seria possível suprir a falha psicótica do enodamento psíquico via sinthoma, alterando a posição de sujeito, evitando-se, assim, o desencadeamento psicótico e correlato gozo mortífero. Isso implica outros desdobramentos clínicos.

Penso que em cada caso, o que devemos nos perguntar não é se o Nome-do-Pai está ou não foracluído . . . Creio que o que orienta nossa clínica e nossas intervenções é nos perguntarmos sempre: o que domestica o gozo? E quando o gozo não está domesticado, nos perguntarmos: o que podemos fazer, como analistas, para que um sujeito possa inventar essa função de domesticação do gozo, que na neurose é exercida pelo Nome-do-Pai? (Brodsky, 2013Brodsky, G. (2013). A loucura nossa de cada dia. Opção lacaniana, 4(12). Recuperado de https://bit.ly/2HyptgK
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, p. 29)

Casuísticas do sinthoma transexual

Tendo como pano de fundo a questão colocada por Fajnwaks (2015Fajnwaks, F. (2015). Lacan et les théories queer: malentendus et méconnaissances. In F. Fajnwaks, & C. Leguil. (Eds.). Subversion lacanienne des théories du genre (pp. 19-45). Paris: Michèle.) - seriam os psicanalistas lacanianos suficientemente queer para prescindirem do diagnóstico (e, por conseguinte, da patologização), estando à altura do real em jogo? (p. 44). Apresentamos um breve panorama de quatro propostas psicanalíticas aplicadas à transexualidade: as clínicas do sinthoma de Morel (2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial.) e Teixeira (2012Teixeira, M. C. (2012). Os transexuais e o sexo pra chamar de seu. Revista aSEPHallus, 7(14). Recuperado de https://bit.ly/2Zn8okz
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), a clínica da remoção (retranchement)11 11 Optamos por traduzir retranchement como “remoção”, pois esta expressão na língua portuguesa equivoca entre suprimir algo e mover em alguma direção - ambos os sentidos presentes na demanda do transexual respectivamente à medicina (cirurgia) e à justiça (retificação registral civil). de Hubert (2007Hubert, H. (2007). Transsexualisme: du syndrome au sinthome, Cliniques méditerranéennes, 76, 255-270. doi: 10.3917/cm.076.0255
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) e a clínica do clinamen de Gherovici (2017Gherovici, P. (2017). Transgender psychoanalysis: a lacanian perspective on sexual difference. New York, NY: Routledge.).

Apesar de inserir a transexualidade no campo da psicose, Morel (2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial.) não se encaixa na caricatura atribuída aos psicanalistas lacanianos como guardiães da ordem sexual, mostrando-se sensível aos efeitos de uma clínica para além do falo e da castração, encarnada no sinthoma. Na descrição do “caso Ven”12 12 Esse caso foi descrito previamente na coletânea do Campo Freudiano sobre as psicoses ordinárias (De Georges et. al., 2009, pp. 67-69). , uma designada mulher que a procurou com a finalidade de obter um aval psi para sua transição ao sexo masculino, Morel (2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial.) assinala que “Aceitando seu travestismo, segui lhe tratando no masculino, coisa que, por outro lado, havia feito espontaneamente desde o primeiro momento” (p. 188). Acrescenta que “o travestismo, inquietante primeiro passo rumo a uma cirurgia, pode aparecer ao contrário como uma barreira que permite evitá-la” (p. 197). Conclui que “Seu travestismo [de Ven] enoda o imaginário (a roupa é uma segunda pele), o real (‘parecer é ser’) e o simbólico (o valor de verdade). Portanto, o travestismo é um sintoma que tem aqui a função de sinthoma” (p. 200).

Morel (2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial.) descreve ainda o “caso Hélène”, uma longa análise que produziu uma resolução do empuxo-à-mulher por sua transformação em um sinthoma que se escreveria em uma frase: “Ser uma mulher de letras” (pp. 251-256); e o “caso Serge”, cuja solução de compromisso encontrada, a moldagem de seu empuxo-à-mulher a práticas homossexuais socialmente aceitas, lhe proporcionou uma identidade sexual constituindo uma espécie de sinthoma (pp. 257-260). Ambos os casos são ilustrativos do fazer sinthoma do empuxo-à-mulher, não tendo nenhum deles se submetido à CRS. Porém, mesmo esta radical intervenção não representa mais no campo lacaniano necessariamente a transgressão de um tabu, como os casos seguintes demonstrarão.

Segue-se que Teixeira (2012Teixeira, M. C. (2012). Os transexuais e o sexo pra chamar de seu. Revista aSEPHallus, 7(14). Recuperado de https://bit.ly/2Zn8okz
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), ao mesmo tempo em que mantém a correlação formal entre psicose e transexualidade, assinalando ser esta resultante da foraclusão do Nome-do-Pai com correlata não inscrição na função fálica, destaca a insuficiência dessa explicação como diretriz clínica para a transexualidade. Desse modo, Teixeira (2012Teixeira, M. C. (2012). Os transexuais e o sexo pra chamar de seu. Revista aSEPHallus, 7(14). Recuperado de https://bit.ly/2Zn8okz
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) ilustra a invenção de identificação de três sujeitos transexuais - por meio da análise das autobiografias de Christine Jorgensen, Amanda Lear e João Nery -, que teriam sido capazes de localizar a mudança de sexo como um sinthoma que permitiu armar um corpo que pesa e alcançar o efeito surpreendente de uma nomeação. Teixeira enxerga, portanto, uma positividade possível na CRS, concebida fora do espectro psicose/empuxo-à-mulher/mutilação, abalando a forte resistência a tal procedimento técnico de transformação corporal ainda presente no campo lacaniano. Teixeira (2012Teixeira, M. C. (2012). Os transexuais e o sexo pra chamar de seu. Revista aSEPHallus, 7(14). Recuperado de https://bit.ly/2Zn8okz
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) defende a posição clínica atenta “às soluções inventivas que cada sujeito foi capaz de tecer compelido pelo gozo transexualista e que, de alguma forma, o conduziu aos hormônios e à cirurgia” (p. 7), que permitiria “alcançar uma posição subjetiva que se exprime numa ética, que consiste em vencer a falta pelo gozo, e numa estética que faz brotar o jogo das máscaras” (p. 7).

Por sua vez, Hubert (2007Hubert, H. (2007). Transsexualisme: du syndrome au sinthome, Cliniques méditerranéennes, 76, 255-270. doi: 10.3917/cm.076.0255
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) relativiza a associação entre psicose e transexualidade: “Classificar o transexualismo na nosografia psicótica encerra os sujeitos transexuais em um julgamento que rejeita e condena” (p. 268) e assinala os efeitos da foraclusão localizada, supostamente presente nos transexuais, que difere da foraclusão do Nome-do-Pai nas psicoses: “Trata-se de um foraclusão localizada, um dizer não faz eco no corpo, propomos utilizar o termo remoção [retranchement] para nomear o fenômeno clínico localizado na junção do significante e do corpo” (p. 268). Consequentemente, em sua análise do caso do médico húngaro relatado em Psychopathia sexualis (Krafft-Ebing, 2000Krafft-Ebing, R. (2001). Psychopathia sexualis: as histórias de caso. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1886), pp. 143-161), Hubert (2007Hubert, H. (2007). Transsexualisme: du syndrome au sinthome, Cliniques méditerranéennes, 76, 255-270. doi: 10.3917/cm.076.0255
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) propõe uma diretriz clínica à psicanálise da transexualidade, que inclui a transformação corporal:

É com a clínica da remoção [retranchement] transexual que encontramos a especificidade do sinthoma: um modo singular de lidar com a pulsão. A redesignação hormono-cirúrgica toca o corpo em seu real. Trata-se de remover do corpo a pulsão erótica de origem pela hormonioterapia seguida do ato cirúrgico, de modificar a aparência do corpo em sua plástica (a pele, o couro cabeludo, a pilosidade) e sua sensação (a pele) pela hormonioterapia. Isso diz respeito tanto à pulsão escópica (o gozo do olhar) como ao erotismo da pele. Essa redesignação do corpo se enoda com a redesignação significante, aquela que toca no estado civil, o fato de ser significado “senhor” ou “senhora”. Dessa forma, será removido dos documentos de identidade o nome e o significante senhor ou senhora, que assinalavam o sexo de origem. Destaca-se imediatamente uma orientação do tratamento para o sujeito transexual que enoda o escópico, a pele, o significante do outro sexo, a remoção pulsional do sexo de origem, assim como a remoção do significante do sexo de origem. (p. 260)

Por fim, Gherovici (2017Gherovici, P. (2017). Transgender psychoanalysis: a lacanian perspective on sexual difference. New York, NY: Routledge.) assinala que a redefinição do sintoma como sinthoma tem consequências importantes para um final positivo de análise, nos casos dos analisandos que se identificam como transexuais. Em sua prática, Gherovici toma o sinthoma como uma variação sobre o clinamen, o “desvio” dos átomos descritos por Lucrécio e pelos primeiros materialistas. Esforça-se, assim, em desenvolver uma “clínica do clinamen”, que funcionará como uma extensão da teoria de Lacan do sinthoma. Ressalta-se as vantagens práticas dessa proposição clínica com um exemplo de caso da análise de Jay. Compara-se esta vinheta de sua prática clínica com o trabalho do artista transgênero Swift Shuker, para quem a transformação corporal é uma reconciliação com a vida. Explora-se como as práticas das pessoas trans podem nos remeter à “escrita do corpo” que corresponde à elaboração de Lacan - graças a James Joyce - de sua noção de sinthoma, um novo tipo de sintoma que não necessita ser removido ou curado. Conclui-se, à luz de sua experiência clínica analítica, que a transição de gênero, de modo mais frequente que nunca, é atualmente uma questão de vida ou morte.

Considerações finais

Com base nesses autores do campo lacaniano (Hubert, 2007Hubert, H. (2007). Transsexualisme: du syndrome au sinthome, Cliniques méditerranéennes, 76, 255-270. doi: 10.3917/cm.076.0255
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; Morel, 2012Morel, G. (2012). Ambigüedades sexuales: sexuación y psicosis. Buenos Aires: Manancial.; Teixeira, 2012Teixeira, M. C. (2012). Os transexuais e o sexo pra chamar de seu. Revista aSEPHallus, 7(14). Recuperado de https://bit.ly/2Zn8okz
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; Gherovici, 2017Gherovici, P. (2017). Transgender psychoanalysis: a lacanian perspective on sexual difference. New York, NY: Routledge.), a temida face psicótica da transexualidade, atrelada ao gozo mortífero do empuxo-à-mulher, ganha outra cara muito mais leve com novas implicações clínicas, após a abordagem do sinthoma em Joyce, articulada por Lacan (1975-76/2007Lacan, J. (2007). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1975-1976)). Não se trata mais de tentar barrar o gozo transexual a qualquer custo, mas sim de aparelhá-lo com vistas à formação sinthomática. Isso implica a construção de um corpo ao falasser, podendo incluir a CRS, desde que tomada na dimensão da singularidade, desatrelada do protocolo biomédico e da patologização via “disforia/incongruência de gênero”. A transformação corporal passa a não ser mais vista, necessariamente, como algo da ordem de um forçamento psicótico, mas também como demanda legítima passível de se articular à clínica do sinthoma.

Parece não ter sido por acaso que Lacan, em seu ultimíssimo ensino, enuncia sua aspiração em elevar a psicanálise à dignidade da cirurgia, que implicaria “elevar a debilidade psicanalítica à segurança soberana do gesto cirúrgico de cortar; esta seria a salvaguarda da psicanálise” (Miller, 2009Miller, J-A. (2009). Perspectivas do seminário 23 de Lacan: o sinthoma. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar ., pp. 198-199). Nessa analogia tardia, a sintaxe lacaniana da sublimação atualiza-se como “escabelo”, dando conta “daquilo sobre o qual o falasser se ergue, sobe para se fazer belo, desse pedestal que lhe permite elevar a si mesmo à dignidade da Coisa” (Laurent, 2016Laurent, E. (2016). O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa., p. 85).

Referências

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  • 1
    Este artigo é resultado de um estágio pós-doutoral feito por Rogério Paes Henriques na Universidade Federal Fluminense, sob supervisão de Paulo Vidal, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • 2
    Constata-se a atual explosão de gêneros tanto no Facebook, que permite inventar gêneros exclusivos para cada usuário, infinitizando-os, quanto no manual diagnóstico da American Psychiatric Association (2014American Psychiatric Association. (2014). Manual diagnóstico e estatístico dos distúrbios mentais: DSM-5. Porto Alegre, RS: Artmed. (Trabalho original publicado em 2013)), que, enviesado culturalmente, reconhece a existência de “gêneros alternativos” na definição da transexualidade como disforia de gênero (pp. 452-453).
  • 3
    É essa a lógica que embasa as classificações psiquiátricas oficiais na atualidade.
  • 4
    Cabe ressaltar que perspectivas psicanalíticas culturalistas (Porchat & Ayouch, 2016Porchat, P., & Ayouch, T. (Orgs.). (2016). Corpo, política, psicologia e psicanálise: a produção de saber nas construções transidentitárias. Periódicus: Revista de Estudos Indisciplinares em Gêneros e Sexualidades, 1(5). Recuperado de http://bit.ly/2kqvdke
    http://bit.ly/2kqvdke...
    ), dando consistência ao Outro social, tendem a celebrar a pluralização dos semblantes de gênero e o saber daí resultante - (trans)gender studies - como um tensionamento indispensável à subversão da psicanálise.
  • 5
    Com enfoque na transexualidade, Lattanzio & Ribeiro (2017Lattanzio, F. F., & Ribeiro, P. C. (2017). Transexualidade, psicose e feminilidade originária: entre psicanálise e teoria feminista. Psicologia USP, 28(1), 72-82. doi: 10.1590/0103-656420140085
    https://doi.org/10.1590/0103-65642014008...
    ) denunciam o “moralismo fálico” de Lacan, em prol de uma “feminilidade originária”. Parodiam, assim, a proposta de Butler (2000Butler, J. (2000). Universalidades en competencia. In J. Butler, E. Laclau, & S. Zizek. Contingencia, hegemonía, universalidad: Diálogos contemporáneos en la izquierda (pp. 141-184). Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina.) para a psicanálise, orientada ao “polimorfismo pré-edipiano”.
  • 6
    “O Nome-do-Pai articula o desejo e a lei, sua função põe no gozo um freio. Essa função não inscreve simplesmente algo da interdição. ‘Pôr um freio no gozo’ é também abrir ao sujeito uma via que o afasta de um empuxo-ao-gozo mortal” (Laurent, 2012Laurent, E. (2012). A psicanálise e a escolha das mulheres. Belo Horizonte, MG: Scriptum Livros., p. 184). Além de metáfora paterna interditora, Lacan retoma o Nome-do-Pai como abertura à metonímia do desejo, a partir de O seminário, livro 6 (Lacan, 1958-59/2016Lacan, J. (2016). O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1958-1959)), até que, de O seminário, livro 22 (Lacan, 1974-1975Lacan, J. (1974-75). Séminaire 22: R. S. I. Recuperado de https://bit.ly/322Mj7Y
    https://bit.ly/322Mj7Y...
    ) em diante, o Nome-do-Pai, efetivamente pluralizado, torna-se função de nominação atrelada ao nó borromeano como quarto elo. O Nome-do-Pai amplia-se, assim, de instância repressora a dispositivo produtivo de enodamento.
  • 7
    Nesse sentido, Jacques-Alain Miller lançou uma petição contra a instrumentalização da psicanálise, na ocasião do mariage pour tous, em janeiro de 2013, na qual lembrava que a estrutura edipiana descrita por Freud não é um invariante antropológico (Miller, 2013Miller, J-A. (2013). Pétition Mariage pour Tous: contre l’instrumentalisation de la psychanalyse. Recuperado de https://bit.ly/2Zjpfoy
    https://bit.ly/2Zjpfoy...
    ). Miller retoma, assim, cerca de cinco décadas depois, a concepção de Lacan (1960/1998Lacan, J. (1998). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In Escritos (pp. 807-842). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho original publicado em 1960), p. 827) segundo a qual o Édipo "não pode manter-se indefinidamente em cartaz", dada sua dependência das configurações socioculturais.
  • 8
    O erro comum seria rejeitar o significante do gozo sexual (foraclusão do falo), que faria retorno no real do corpo. Na impossibilidade de interpretar o gozo invasivo do órgão sexual, o sujeito demanda intervenção sobre essa zona erógena, fonte pulsional angustiante. O erro efetivamente consiste em apontar o órgão, em vez do significante, como causa do gozo.
  • 9
    Ficam de fora: a face histérica da transexualidade na atualidade (Jorge & Travassos, 2017Jorge, M. A. C., & Travassos, N. P. (2017). A epidemia transexual: histeria na era da ciência e da globalização? Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 20(2), 307-330. doi: 10.1590/1415-4714.2017v20n2p307.7
    https://doi.org/10.1590/1415-4714.2017v2...
    ); os “transexualistas” (Frignet, 2002Frignet, H. (2002). O transexualismo. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.); aqueles que têm “mero desejo de obter quaisquer vantagens culturais atribuídas ao fato de ser do sexo oposto” (American Psychiatric Association, 2002American Psychiatric Association. (2002). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-IV-TR. Porto Alegre, RS: Artmed. (Trabalho original publicado em 2000), p. 552); isto é, a transexualidade como fenômeno social.
  • 10
    Presume-se que Joyce teria morrido devido às consequências de uma úlcera duodenal negligenciada por ele. Cabe ressaltar que a psicose em Joyce é uma suposição baseada em dois acessos possíveis: por um lado, o sintoma literário, foraclusão metódica do sentido, e por outro o abandono do corpo próprio, que aponta o deslize do imaginário e o erro no enodamento psíquico, compensado por seu ego-sinthoma. Recentemente, vem-se questionando a presunção de psicose em Joyce, sobretudo Soler (2018Soler, C. (2018). Lacan, leitor de Joyce. São Paulo, SP: Aller.).
  • 11
    Optamos por traduzir retranchement como “remoção”, pois esta expressão na língua portuguesa equivoca entre suprimir algo e mover em alguma direção - ambos os sentidos presentes na demanda do transexual respectivamente à medicina (cirurgia) e à justiça (retificação registral civil).
  • 12
    Esse caso foi descrito previamente na coletânea do Campo Freudiano sobre as psicoses ordinárias (De Georges et. al., 2009De Georges, P., Henry, F., Jolibois, M., & Miller, J-A. (Eds.). (2009). La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós., pp. 67-69).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    04 Jul 2018
  • Aceito
    25 Ago 2019
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