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Entre Discurso e Ato, há muito mais do que se imagina

Entre Discours et Acte il y a plus qu’on imagine

Entre Discurso y Acto, hay más de lo que imaginamos

Resumo

Este escrito visa a analisar o discurso de posse do presidente Jair Bolsonaro e os primeiros dias de seu governo, apontando para a relação entre a fala e as iniciativas concretas de governança. São feitas considerações conceituais e metodológicas para fundamentar a análise, sobretudo com base em Foucault. O conceito fundamental é o de discurso como ato. O trabalho específico sobre o pronunciamento marcou o sujeito do discurso bolsonariano: resultado do milagre de Deus, que lhe devolveu a vida, e ungido pelo Povo que o elegeu, identifica-se à Pátria, em sua vontade soberana. Com estratégias discursivas caracterizadas pela ambiguidade e seus efeitos perversos, procede a dissociações entre aqueles que são contra e aqueles a favor dele: cidadãos de bem versus outros, ideologias de esquerda versus pensamentos verdadeiros. Nisso tudo, nega-se a fonte da Verdade pontificada: o próprio presidente. Tais traços do sujeito eleito confirmam-se pelas ações iniciais de governo.

Palavras-chave:
discurso; análise; sujeito; Jair Bolsonaro; governo

Résumé

cet article a pour objectif analyser le discours d’inauguration du président Jair Bolsonaro et les premiers jours de son gouvernement, en soulignant le lien qui existe entre le discours et les initiatives concrètes de gouvernance. Des considérations conceptuelles et méthodologiques sont apportées pour étayer l’analyse, notamment sur la base de Foucault. Le concept fondamental est celui du discours comme acte. Le travail spécifique sur cette déclaration a marqué le sujet du discours de Bolsonaro: résultat du miracle de Dieu qui lui a rendu sa vie et qui a été oint par le Peuple qui l’a élu, il s’identifie à la Patrie par sa volonté souveraine. Avec des stratégies discursives caractérisées par l’ambiguïté et ses effets pervers, il procède à des dissociations entre ceux qui s’opposent à lui et ceux qui le soutiennent: citoyens du bien contre d’autres, idéologies de la gauche contre vraies pensées. Dans tout cela, la source du pontificat de La vérité est niée: le président lui-même. Ces caractéristiques du sujet élu sont confirmées par les actions initiales du gouvernement.

Mots-clés:
discours; analyse; sujet; Jair Bolsonaro; gouvernement

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar el discurso inaugural del presidente Jair Bolsonaro y los primeros días de su gobierno, señalando la relación entre el discurso y las medidas de gobernanza concretas. Se hacen consideraciones conceptuales y metodológicas para corroborar el análisis, sobre todo con base en Foucault. El concepto fundamental es el discurso como acto. El trabajo específico sobre la declaración marcó el sujeto del discurso bolsonariano: resultado del milagro de Dios, que le devolvió la vida, y ungido por el Pueblo que lo eligió, se identifica con la Patria, en su voluntad soberana. Con estrategias discursivas caracterizadas por la ambigüedad y sus efectos perversos, hace una disociación entre los que están en contra y los a favor de él: ciudadanos de bien frente a otros, ideologías de izquierda versus pensamientos verdaderos. En todo esto, se niega la fuente de la Verdad pontificada: el propio presidente. Tales rasgos del sujeto elegido confirman las acciones iniciales de gobierno.

Palabras clave:
discurso; análisis; sujeto; Jair Bolsonaro; gobierno

Abstract

This study aims to analyze President Jair Bolsonaro’s inaugural address and the early days of his government, pointing to the relation between speech and concrete governance initiatives. Conceptual and methodological considerations are made to support the analysis, especially based on Foucault. The fundamental concept is that of speech as act. The specific work on the pronouncement marked the subject of the Bolsonarian discourse: the result of the miracle of God, who gave him back his life, and, anointed by the People who elected him, he identifies himself with his Homeland in his sovereign will. With discursive strategies characterized by ambiguity and its perverse effects, it dissociates between those who are against it and those in favor of it: good citizens versus others, left ideologies versus true thoughts. In all this, the source of the pontificated Truth is denied: the president himself. Such traits of the elected subject are confirmed by the initial actions of government.

Keywords:
discourse; analysis; subject; Jair Bolsonaro; government

Este escrito visa a analisar o discurso de posse do presidente Jair Bolsonaro, a 01/01/2019 (“Leia o discurso”, 2019Leia o discurso de Jair Bolsonaro no Congresso Nacional. (2019, 02 de janeiro). Folha de S. Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2mUh3Zr
http://bit.ly/2mUh3Zr...
), bem como os primeiros dias de seu governo, apontando para uma intrincada relação entre a fala e as iniciativas concretas de governança.

Inicialmente, serão feitas considerações conceituais e metodológicas, para que o leitor se situe na estratégia de pensamento que constrói a análise de discursos como uma modalidade, em suas diferenças com a hermenêutica e com a análise de conteúdo.

Em seguida, será apresentado o trabalho específico sobre a fala e os atos do presidente até o dia 15/01/2019. A ideia é dizer, de um lado, das ações do governo e, de outro, dos limites e alcances de uma análise como esta. Daí, ressalta-se seu caráter exemplar, isto é, sem esgotar a totalidade dos fatos relativos ao tema e partindo de um recorte metodológico, mostrar um campo possível de afirmações no plano de um discurso (assim) analítico.

Discurso como ato: o fundamento da análise

Costuma-se dizer que “a teoria, na prática, é outra coisa”. Ou, com palavras outras e o mesmo sentido: “discurso e realidade são coisas diferentes”. Ou ainda, girando sobre o mesmo eixo: “falar é uma coisa e fazer é outra coisa!”.

Essa ideia se estende do senso comum às produções acadêmicas, em que acontecem discussões acaloradas sobre as distâncias entre discurso e prática. Ou, como em psicologia e psicanálise, entre discurso e subjetividade, afetos e/ou pensamentos. Como se, ao trabalhar com discurso nos atendimentos clínicos ou institucionais, estivéssemos deixando de lado o mais importante da vida psíquica.

Prefiro afirmar que “depende da análise que se faz desse discurso”. E isso implica que: (1) há diferentes tipos de análise; (2) não se pode considerar que haja um jeito único de fazer análises; (3) sua variação depende dos conceitos básicos que as instrumentam; (4) esses conceitos dão o recorte e o âmbito da análise que se faz; e (5), não só, guardam uma relação constitutiva com o ponto a que se chega com o trabalho analítico.

Colocando a discussão no plano do tipo de análise que fazemos, pretendo demonstrar que se pode operar por um recorte conceitual-metodológico que não dissocie o que se faz do que se fala, nem coloque o discurso (e a própria fala) como da ordem da palavra exclusivamente, relegando à prática o terreno da ação que pode ou não confirmá-lo.

No caso das análises de discurso que fazemos, a hipótese é que, por elas, configuramos um âmbito de ações possíveis e um sujeito para essas ações. Para demonstrar essa hipótese é que precisamos situar o campo conceitual que as organiza.

Comecemos pelo conceito de discurso.

Com M. Foucault, esse termo é compreendido como prática, como formação discursiva, que define, para um tempo e uma região geográfica, as condições de enunciação (Foucault, 1969/1997Foucault, M. (1997). Arqueologia do saber. Rio de Janeiro, RJ: Forense. (Obra original publicada em 1969).). Daí deriva a ideia de que quando acionamos um discurso, o fazemos a partir de lugares de enunciação, histórica e geograficamente circunstanciados. Por essa razão, podemos afirmar que o discurso é ato, dispositivo, instituição, acontecimento. Não é palavra, necessariamente, embora possa incluí-la. A rede discursiva, para ele, não é cadeia de significantes e sequer posiciona o falante numa estrutura simbólica1 1 O leitor pode estranhar a introdução desses dois últimos enunciados. Eles visam a trazer esclarecimentos a quem, acostumado a trabalhar com pressupostos lacanianos, possa fazer uma tradução imediata do termo “discurso” de Foucault a Lacan, e esse procedimento, pelo mero emprego da palavra “discurso”, não seria justo com esses autores. Lacan, assentado no estruturalismo, é indiretamente mencionado por Foucault em A ordem do discurso (1971/1996) (Foucault, 1971/1996), quando ele, assentado nos princípios da pragmática, afirma que, para analisar um discurso, é necessário “suspender o império do significante” (p. 51). . Quem fala, aciona as palavras constitutivas dos procedimentos, do dispositivo institucional em jogo. O discurso se inscreve, assim, numa ordem de procedimentos, de um fazer, o que lhe garante uma materialidade própria como dispositivo/instituição.

Com tais concepções em mente, podemos afirmar também que ato não é sinônimo de comportamento, como habitualmente se pensa. É dizer, é enunciar a partir de uma rede, de uma prática discursiva. Dizer e enunciar é que são atos que, reflexivamente, mostram uma ação e um sujeito.

Já que chegamos a esse ponto com o conceito de discurso, podemos tratar de outro termo organicamente relacionado a ele: o de análise.

Ora, a análise que resulta de assim pensar terá um caráter descritivo e rarefeito, na medida em que dará destaque ao que se mostra enquanto se fala (não esquecendo que essas falas se fazem como e nos dispositivos institucionais, envolvendo e sendo envolvidas pelos procedimentos que implicam e pelos lugares de enunciação que dispõem). Sobretudo, o que determinado discurso mostra enquanto acontece: (1) as interdições/exclusões de sujeitos e objetos; (2) as regras de sua produção, ou melhor, as regras para que uma produção possa ser tratada como do campo de verdades, em oposição ao que se considera falso; (3) as considerações a respeito de um discurso falso podendo encobrir o verdadeiro discurso; (4) a sua circulação restrita a um grupo de pessoas, excluindo as que não falem a “mesma língua”, ou não procedam da mesma forma; (5) os rituais que dizem dos que têm o poder e a verdade; (6) o movimento de apropriação e envolvimento dos que, como asseclas, poderão ampliar o circuito e reverberar seu conteúdo. É sobre essas qualidades discursivas mostradas que se debruça um analista animado pela proposta foucaultiana. Não procede a uma análise de conteúdo que sumariza os temas que aparecem. Sequer procede a interpretações nascidas de uma teoria a priori sobre sentidos do discurso.

Em verdade, o que acima se destacou constitui uma declaração de princípios de análise (Foucault, 1976/1985Foucault, M. (1985). História da sexualidade I: a vontade de saber (7a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Graal. (Obra original publicada em 1976).).

Talvez, agora, pudéssemos pedir ajuda a um outro autor, de modo a tomarmos em consideração um desdobramento desses princípios em procedimentos e conceitos que particularizariam o fazer analítico: Dominique Maingueneau. Com ele, linguista e analista do discurso, vamos estender nosso campo conceitual para três outros termos: contexto, ethos e cena discursiva.

Para ele, os sentidos que se podem configurar na análise de discursos são relativos ao contexto de enunciação; e este não é exterior, mas, sim, constitutivo das falas e interlocuções. Maingueneau (2000Maingueneau, D. (2000). Aula: sobre o discurso e a análise do discurso. In M. Guirado, A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau (pp. 21-31). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.) costuma afirmar que o “contexto envolve o texto”, inclusive “porque também está na cabeça da pessoa que fala” (p. 30). É por essa razão que se pode ainda afirmar que os sentidos de um discurso-dispositivo-ato se configuram em função do contexto concreto de sua produção. Contexto concreto, aqui, diz de relações igualmente concretas, e não daquelas estruturais da língua, da linguagem.

O termo ethos, por sua vez, refere-se ao modo de apresentação daquele que se põe sujeito do discurso. Trata de sua caracterização pelo entorno, pela construção de uma espécie de cenário que desenha as qualidades daquele que, ao se pronunciar, “encaixa-se” na posição esperada, preparada, para ele. Um exemplo disso é o caso dos candidatos a determinados cargos políticos que, por ocasião das eleições, dizem de suas ideias e suas metas por um conjunto de detalhes que compõem a imagem a ser divulgada e que favorecem a identificação do eleitor com suas propostas. Assim, um homem violento é o que ocupa o lugar de falante, com palavras, gestos e circunstâncias que indicam a violência como meio de resolver oposições e resistências ao que ele propõe. O tom da voz, os imperativos e a soberania dos atos de fala, armas de fogo restantes sobre mesas ou portadas na cintura - tudo “lembra” o uso de extermínio radical do opositor. Tais imagens, favorecidas pelo ethos, são parte da estratégia discursiva que podemos analisar.

Quanto ao termo “cena discursiva”, ainda com base em Maingueneau (2000Maingueneau, D. (2000). Aula: sobre o discurso e a análise do discurso. In M. Guirado, A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau (pp. 21-31). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.), cabe-nos resgatar que, por palavras e/ou procedimentos, produzimos cenas que posicionam personagens e mostram a relação que estabelecem entre si. E esse é, também, um potente vetor analítico que permite dizer das ações e sentidos do discurso-ato.

Se pensarmos os lugares de enunciação como lugares institucionais exercidos por aqueles que fazem determinada prática social, acrescentamos, por uma análise institucional do discurso (Guirado, 2010/2018Guirado, M. (2018). A análise institucional do discurso como analítica da subjetividade. São Paulo, SP: Lumen Juris. (Obra original publicada em 2010).), que, nas relações que fazemos nessas práticas, acionamos determinados procedimentos (uma entrevista de pesquisa, uma aula, um atendimento clínico, uma avaliação profissional e/ou psicológica, entre muitos outros), assentamo-nos num lugar, com um escopo de saber dizer, no qual reconhecemo-nos e reconhecemos nossas referências como legítimas ponderações sobre o tema. Desconhecemos, no entanto, o comprometimento de nossos discursos com o exercício desse lugar, de nossas referências, do lugar institucional que ocupamos, e assim por diante. Esses efeitos de reconhecimento e desconhecimento são outros vetores de análise. Talvez mais diretamente que os demais, são ocasião de mostrar, pela análise de um discurso, as implicações entre falar/fazer e como estas podem ser sinalizadas em um pronunciamento como o que pretendemos aqui analisar, o discurso de posse de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil.

Com um campo conceitual assim delimitado, podemos voltar à hipótese inicial que lançamos sobre o escopo das análises que fazemos: elas configuram intenções e gestos possíveis, para cada modalidade particular de ocorrência do discurso no interior das estratégias facultadas por uma prática, por uma formação discursiva. Mais: tais análises ressaltam como um sujeito que aciona um discurso submete e é submetido por essas estratégias, num limite bruxuleante entre aquilo que conscientemente quer dizer e aquilo em que é capturado, sem disso se dar conta, pelas malhas da rede institucional dos dispositivos.

Com esse modo de pensar, dispomo-nos a trabalhar, exemplarmente, o discurso de posse do presidente da República; um discurso muito comentado no início deste ano de 2019. Jair Bolsonaro foi eleito por parte de 55% de votos válidos (menos de 50% de votantes, portanto), em uma campanha bastante controvertida, tanto pelo uso de mídias sociais quanto por co-ação (ação compartilhada) de segmentos sociais e grupos institucionais que estavam a exigir, fosse lá o que isso fosse, honestidade política contra a corrupção no país.

Situado o contexto de nossas análises, vamos ao trabalho com esse discurso: sua organização interna, os determinantes sociolinguísticos de sua ordem, contexto e ethos que lhe atribuem sentidos, o mapa das ações que supõe, as cenas e o sujeito que constitui.

Deus e seu Mito: sujeito do discurso bolsonariano

O pronunciamento de posse de Jair Bolsonaro da Presidência da República do Brasil recebeu atenção de vários comentaristas e jornalistas na imprensa escrita.

As primeiras matérias se referiam ao uso recorrente dos termos “ideologia” (e correlatos) e “Deus”, sugerindo que esses temas tinham importância na comunicação que estava sendo feita. Em outras, tratou-se das divisões (de grupos e políticas, de socialistas e cidadãos de bem) que operavam a atribuição do viés ideológico aos opositores do agora presidente, retomando o tom e as insistências de campanha. Ainda, destacou-se a ausência do tema das desigualdades sociais, sugerindo uma falha nos interesses do presidente. Comentou-se bastante, também, a convicção de banir o socialismo, o marxismo e qualquer tentativa de pensamento de esquerda.

Um dos textos mais completos foi o de autoria de Luiz Fernando Vianna, para sua coluna no site da Revista Época, em 02 de janeiro de 2019: Análise: no discurso de Bolsonaro, “Deus é nós” (Vianna, 2019Vianna, L. F. (2019, 02 de janeiro). Análise: no discurso de Bolsonaro, “Deus é nós”. Época. Recuperado de https://glo.bo/2lgJKQ3
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).

Junto-me a esses analistas para pensar o mesmo discurso. Fui tentada a isso, pela desconfiança de que essa polida fala presidencial, em seu modo de organização, guardava pontos em comum com outra, aquela que foi uma visível explosão de divisões, banimentos e acusações seguidas de ameaça de extermínio de pessoas e pensamentos que estivessem em oposição a ele, Bolsonaro. Refiro-me ao discurso de campanha que assolou a Av. Paulista, via “vídeo conferência”, a 21/10/18 ([Eduardo Bolsonaro], 2018[Eduardo Bolsonaro]. (2018, 21 de outubro). Jair Bolsonaro por telefone para a Av. Paulista em 21/OUT/2018 [Vídeo on-line]. Recuperado de: http://bit.ly/2mvwkj3
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).

Por ora, dedico-me a pensar o discurso de posse, sobretudo na imagem que ele desenha do sujeito que se autoriza a pronunciá-lo. Deixo para outra ocasião a análise daquela atordoante fala gritada em telões, à distância física de seus destinatários, quando então, efetivamente, estava protegido de qualquer interlocução. Assim ele dizia o que queria, sem retorno. Falava sozinho aos muitos asseclas reunidos e sedentos por ovacionar seu Mito.

Em outro momento, então, suportada pelo mesmo método analítico, poderei confrontar as estratégias discursivas, que, aposto, serão muito semelhantes nos dois contextos.

A contribuição da presente análise é centrar-se nesse sujeito que o discurso bolsonariano mostra, objetiva. E, para tanto, vamos nos ater, sobretudo, ao modo como se organiza a comunicação feita, destacando o lugar que Bolsonaro atribui a si e aos outros, e as imagens e cenas que produz ao falar. Também vamos considerar o contexto da situação que como um ethos diz da presidência empossada e prediz o modo de governo. . .

O contexto imediato por ocasião da Posse

Aparato de proteção policial militar, nunca dantes visto, por terra e ar.

Uma centena de milhar de público, devidamente separado em três blocos, em verde e amarelo, à frente da rampa de acesso, desde as 7 horas da manhã, isolado dela por um cerco para snipers prontos a disparar a qualquer movimento brusco ou que desordenasse o pré-estabelecido entorno.

No interior do palácio, com suas salas e tapetes verdes e vermelhos, cercadinhos identificáveis, para alguns jornalistas e empresas que cobririam o evento, devidamente advertidos de sua condição de cerceamento de movimento e de alimentação com frutas perigosas como a maçã. Também no aguardo da passagem da soberania oficial desde as 7 horas.

As divisões esquadrinhadas no uso do espaço eram o desenho real da segregação de espaços de circulação física e social possível. Divisões que exerciam restrições ao corpo, à palavra e ao movimento: sinais do comando disciplinar e suas exigências indiscutíveis de submissão.

O discurso do presidente empossado

Seguindo a praxe, de início, as saudações. Nelas, chamam a atenção duas referências especiais: uma excêntrica menção de amizade a Rodrigo Maia, presidente da Câmara; e outra menção, mais extensa, à própria esposa, assinalando sua origem pobre e o primeiro encontro dos dois, naquele espaço institucional (“Aqui na Câmara”).

A convocação “Brasileiros e brasileiras”, porém, é que põe em ação o pronunciamento lido, como se esta convocação fosse à totalidade daqueles que “receberão” seu governo.

Tudo começa, então, com um agradecimento a Deus, por ter operado nele (em seu corpo) o milagre da vida após o atentado (morte?). Também agradece aos médicos que, como extensões da vontade divina, procederam à sua salvação.

“Primeiro, quero agradecer a Deus por estar vivo. Que, pelas mãos de profissionais da Santa Casa e Juiz de Fora, operou um verdadeiro milagre. Obrigado, meu Deus!” (“Leia o discurso”, 2019Leia o discurso de Jair Bolsonaro no Congresso Nacional. (2019, 02 de janeiro). Folha de S. Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2mUh3Zr
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)

Uma vez redivivo, ressurge, em suas próprias palavras, como um homem humilde, crescido e amadurecido pelas lutas e embates experienciados naquele mesmo espaço físico e institucional (a “Casa”) quando era ainda deputado. Enfatiza que volta, agora Presidente da República Federativa do Brasil, com todas as letras e insígnias que uma outra “vontade soberana” lhe conferiu: a do povo brasileiro!

Com humildade, volto a esta Casa, onde, por 28 anos, me empenhei em servir à nação brasileira, travei grandes embates e acumulei experiências e aprendizados que me deram a oportunidade de crescer e amadurecer.

Volto a esta Casa, não mais como deputado, mas como Presidente da República Federativa do Brasil, mandato a mim confiado pela vontade soberana do povo brasileiro. (“Leia o discurso”, 2019Leia o discurso de Jair Bolsonaro no Congresso Nacional. (2019, 02 de janeiro). Folha de S. Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2mUh3Zr
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)

Logo na sequência, ele se diz emocionado e fortalecido, e repete o agradecimento pela vida a Deus, e aos brasileiros pela confiança. Com isso, repete a roda de sentidos, da salvação à entronização. O circuito Ele/Deus/Povo aponta para a grandeza que investe o presidente: fruto de um milagre divino, é o depositário da confiança de todo um povo. Reconhece-se, portanto, duplamente ungido. E assim se mostra sujeito de seu discurso. Desenha-se o perfil de Deus no mundo.

Não bastassem as imagens tantas que nos remetem a um discurso religioso de filhos diletos, escolhidos, mostra-se também a imagem de alguém que é soberanamente capacitado para conduzir um povo, numa “tarefa gloriosa”.

É assim que o primeiro quinto desse discurso é voltado a delinear imagens que diretamente colocam Bolsonaro no centro de todas as cenas. É ele que fala. E fala dele. Coloca-se, literalmente, como o sujeito responsável por todas as ações relatadas: as dele ou aquelas sobre ele. Isto se pode depreender do fato de empregar a primeira pessoa do singular, “eu”, como o sujeito gramatical dos verbos conjugados (volto; vou servir à nação; travei grandes embates; acumulei experiências e aprendizados; cresci e amadureci; convoco; . . . restaurar e reerguer a nossa pátria, libertando-a definitivamente do julgo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica; resgatar a esperança dos nossos compatriotas; combater a ideologia de gênero).

No conjunto da fala, tais ações configuram esse Eu central inflado, estrategicamente centralizador do que recebe e do que promove (exatamente porque tudo é dito em primeira pessoa). Um Eu renascido por milagre e escolhido para tarefa igualmente gloriosa, animada por poderes mágicos de alterar toda a Pátria. Sem dúvida, um Eu todo-poderoso espelhado no perfil da mesma divindade que fez dele a maravilha de ter a vida resgatada aos moldes de um mito.

Esse é o sujeito do discurso bolsonariano. Uma verdadeira entidade, que ganha concretude na figura de um presidente-locutor e no tamanho da imagem que produz de um si. Nessa imagem, ao mesmo tempo e ato, criador e criatura acabam se fundindo, tanto na constituição quanto nos efeitos de seus atos de redenção: aquele que é salvo é também salvador.

Chama a atenção ainda que, no momento seguinte, no embalo da convocação dos congressistas presentes à Cerimônia de Posse e das testemunhas oculares de todo o processo empírico, o locutor-Bolsonaro passará a empregar o pronome pessoal “Nós”. A primeira pessoa do plural, como sujeito de seus enunciados, e o pronome possessivo correspondente, “Nosso/a”, indicando partilha com quem o ouve, desencadeiam ações, muito embora, ainda capitaneadas pelos desígnios de um Eu. Acompanhe-se atentamente:

Aproveito este momento solene e convoco cada um dos congressistas para me ajudarem na missão de restaurar e de reerguer nossa pátria, libertando-a, definitivamente, do jugo da corrupção, da criminalidade, da irresponsabilidade econômica e da submissão ideológica.

Temos, diante de nós, uma oportunidade única de reconstruir o nosso país e de resgatar a esperança dos nossos compatriotas.

Estou certo de que enfrentaremos enormes desafios, mas, se tivermos a sabedoria de ouvir a voz do povo, alcançaremos êxito em nossos objetivos, e, pelo exemplo e pelo trabalho, levaremos as futuras gerações a nos seguir nesta tarefa gloriosa. (“Leia o discurso”, 2019Leia o discurso de Jair Bolsonaro no Congresso Nacional. (2019, 02 de janeiro). Folha de S. Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2mUh3Zr
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Que ninguém se engane, portanto, sobre os efeitos dessa ampliação de envolvidos e convocados na fala em primeira pessoa do plural. Se, por um lado, há uma referência direta ao interlocutor na cena discursiva, por outro, ele é absorvido, fagocitado, num movimento de ser parte desse corpo presidencial do milagre da vida.

E há mais. Uma estratégia discursiva específica garante uma marca recorrente: divisões que caracterizam personagens declaradamente opostos, bem como aquele que, veladamente, se funde ao corpo do falante, o presidente! Tudo, agora, capitaneado pelo Nós.

Disso trataremos com citações específicas, mais adiante. Neste ponto da análise que fazemos, entretanto, mostra-se necessário destacar o que ela configura como traço dominante do Discurso de Posse: seu caráter ambíguo. Na sobreposição entre criador e criatura, põe-se em relevo a ambiguidade de um sujeito gramatical e político, que tem desdobramentos insuspeitos. Daí a interposição conceitual que constitui os dois próximos parágrafos.

No discurso ambíguo, o que aparece como diverso e que poderia garantir intercâmbio (troca de posições) não tem esses efeitos. Criam-se dissociações tão radicais que isolam “partes” como formações absolutamente irredutíveis umas às outras, como todos em si. Esses “todos”, no entanto, apenas se justapõem, e o fazem por uma estratégia discursiva em que a oposição é unicamente definida por um dos lados, negando que o corte foi arbitrário e que as diferenças poderiam existir sem exclusões de totalidade. Ou seja, o diverso é banido do universo, enquanto permanece desconhecida a fonte produtora das irredutibilidades. É assim que se instaura uma per-versão discursiva, equivalência direta da ambiguidade. É com isso que, no caso de uma fala como a da Posse, há uma extensão da vontade do falante como se fosse um todo, uma indiscutível unidade da verdade. Daí decorre que, ao apontar a ideologia do lado do mal, não se pode reconhecer que todas essas divisões sejam ideológicas, porque fundadas numa Verdade autoproclamada. O feito perverso aponta na direção de um inimigo de natureza diferente, desviando a atenção do fato mostrado no plano do modo de dizer: o que faz é pôr à sombra do desconhecimento o que é igual! A fala do presidente é também ideológica; só que esse aspecto é anulado pela estratégia discursiva de divisão e exclusão.

Difícil descrever como funciona essa fala. É que a não clareza é constitutiva de seus efeitos perversos. Mais: o que aparece como intencionalidade subjetiva (o que Bolsonaro diz que quer e vai fazer) é, na verdade, a intencionalidade estratégica da ordem do discurso (ele fala essa ordem que está além e aquém dele próprio, que lhe prepara esse lugar de autonomia fictícia).

Talvez se possa entender melhor o que acima se afirmou mostrando como Bolsonaro constitui seus outros, ouvintes ou alvos.

Instrumentando a ideia de que ao falar construímos cenas que demarcam personagens e relações, vamos tratar, agora, sobretudo desses outros, como personagens de cenas que sua fala constrói. Notem-se, aqui também, as renitentes relações que o discurso bolsonariano organiza (soberania do Eu, divisões, deificações, perversões e assim por diante). Pela ordem dos personagens encenados.

  1. Os primeiros são os Congressistas com quem Bolsonaro divide o Nós em ato de monta: “reconstruir o nosso país”. As ações conjuntas são descritas como o enfrentamento de grandes desafios, para chegar ao êxito, pelo exemplo, de levar as “futuras gerações a nos seguir nesta tarefa gloriosa”; “Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, . . . (fazer o Brasil voltar) a ser um país livre das amarras ideológicas”. Vejam-se, nessas citações, divisões e exclusões de peso: não atribui um lugar de tradição às práticas religiosas indígenas e africanas, tão enraizadoras da cultura brasileira. Sutilmente, essa fala “faz o milagre” do obscurecimento da estratégia que produz e qualifica os que pertencem e os que não pertencem ao Nós. O máximo que pode acontecer é de alguém pensar que foi um mero esquecimento ou uma vontade intencional de só considerar a herança judaico-cristã. O que passa desapercebido é que é exatamente o ato de dividir e excluir que atribui aos que pensam como o locutor a aura de escolhidos para tomar assento ao lado dele. Isto é, para pertencer ao sujeito extenso da primeira pessoa do plural. É o efeito ideológico, por excelência, da ambiguidade. É o modo de dizer operando perversões.

  2. A campanha eleitoral é também um personagem. O segundo, a ser convocado para entrar em cena. Foi ela que “atendeu ao chamado das ruas e forjou o compromisso de colocar o Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. Personificada como um ator concreto, um termo totalizante e de certo modo abstrato, tem vontade e ações próprias, como um inflado sujeito/organismo/corpo. Como uma pessoa, muito especial e predestinada, faz soar a encarnação de Bolsonaro, pessoa primeira e singular.

  3. Um terceiro personagem: os “inimigos da pátria, da ordem e da liberdade (que) tentaram pôr fim à minha vida”. Veja-se que o atentado a esse homem/sujeito torna seu autor (do atentado) um inimigo da Pátria. Ato contínuo, depreende-se mais uma autoatribuição: Bolsonaro é a Pátria! Outra divisão classificadora (Pátria/Bolsonaro, de um lado, e seus inimigos, de outro) é produzida, muito provavelmente à revelia da consciência de quem o ouve. Ambiguidade e perversão como estratégia desse texto ideológico. O personagem que se segue reabre esse viés.

  4. Cada um dos brasileiros é o quarto personagem. Factualmente, ao convocá-lo, coloca-o como constituinte dos milhões de seus eleitores. Com isso, mais uma exclusão: não convoca, como brasileiros que também são, seus não votantes. Ora, outra não transparência da fala desse sujeito que ejeta de si o ideológico. A convocação, Sr. Presidente, não foi a todos os brasileiros, como o sugere o vocativo “cada um . . .”, e seu discurso, mais uma vez, carrega nas omissões e nos equívocos!

Divisões totalizantes/totalitárias criam indivíduos e/ou sujeitos de bem e aqueles sem caráter, com perfiladas características. O personagem do item (4) tem como efeito esconder uma separação classificatória dessa espécie, e só indiretamente pudemos caracterizá-la nesta análise. Na sequência da fala, porém, é introduzido em cena o personagem-protagonista que mostra tal separação. Ele caracteriza o lado, ou melhor, o sujeito que herda os poderes da soberania daquele que se erigiu Mito, no conjunto do discurso: o próprio Bolsonaro. Acompanhe-se como, em meio a todas as ambiguidades, fusões e indiscriminações, esse sujeito tem atribuições que se confundem com as ideias de si, do presidente empossado. E, para confirmar nossa senda analítica, inaugura-se aí o discurso das armas. . .

  1. Cidadão de Bem, no singular e com artigo definido, é entronizado como o quinto personagem. E, numa demonstração do acaso do discurso (caracterizado pela análise que ora apresentamos), é este cidadão (o “de bem”) que, em primeira evocação, tem direito a dispor de autodefesa: “merece os meios para se defender, . . . pelo direito à legítima defesa.” Sela-se, então, a separação entre cidadãos de bem e de mal. A estes últimos, alinham-se os inimigos da Pátria. Provavelmente, indivíduos de segunda ordem, que “não merecem . . .”.

  2. Os policiais, na sequência, são a categoria concreta daqueles que “sacrificam suas vidas por nossa segurança” e que terão, “com o apoio do Congresso Nacional . . ., o respaldo jurídico para realizarem seu trabalho”. Estão eles em audível oposição aos “cidadãos do mal”, de segunda ordem, que não mereceriam os direitos a defesa (pessoal, do Jurídico e do Congresso Nacional). Opor-se a essa ordem é incluir-se entre os que não terão reconhecimento do governo, da Pátria e de seu sinônimo, Bolsonaro.

  3. As (“nossas”) Forças Armadas, sétimo personagem, entram em cena com familiaridade assinalada por um pronome possessivo, “nossas”, indicando muito provavelmente que estão no campo de sentidos do cidadão de bem bolsonariano e têm o tamanho da pátria: “para resguardar nossa soberania e proteger nossas fronteiras.”

  4. E, finalmente, a reboque desse discurso de armamento e segurança, entram em cena os personagens da burocracia e das propostas de governo. São falas rápidas e genéricas que os definem. Não sem demarcar, a cada instante, as divisões que confirmam o grupo de brasileiros a que se dedicam essas iniciativas (o cidadão de bem), isto é, para quem se governa. Apenas enumeramos os protagonistas: uma equipe técnica (que “montamos sem o tradicional viés político que tornou o Estado ineficiente e corrupto”), o Parlamento, o livre mercado, as reformas estruturantes, o comércio internacional (“sem o viés ideológico”), o setor produtivo (“com menos regulamentação e burocracia”), um pacto nacional (“entre a sociedade e os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, na busca de novos caminhos para um novo Brasil”).

É assim que, como numa guinada em direção ao início, sua fala se dirige aos derradeiros instantes de seus 10 minutos, numa retomada marcante: o emprego da primeira pessoa do singular para dizer do sujeito gramatical e político das ações, miscigenando-se aí, inclusive, com o Estado Democrático. Podemos ouvir, então: “uma das minhas prioridades é proteger e revigorar a Democracia Brasileira . . . para que passe a ser um componente substancial e tangível . . . com respeito ao Estado Democrático”.

A partir desse ponto, passa a proliferar o emprego do termo “Brasil”. A Pátria passaria a ser vista, sob seu governo, como “país forte, pujante, confiante e ousado”, uma nação “mais justa e desenvolvida”, que iniciaria “um novo capítulo de sua história”. O Brasil é associado à ideia de sobeja grandeza.

Quem o sustenta? Esse Eu majestático e soberano, que tanto se desenhou sujeito das ações, num incessante intercâmbio com a imagem de Deus e seu Povo e da Pátria. . .

Ora, fica aberta a possibilidade de uma analogia com uma outra cena: a do Grande Ditador, de Chaplin, girando o mundo na ponta de seus dedos! Mil perdões à sua memória e aos seus admiradores, pelo desgosto da lembrança neste contexto analítico!

Insisto que cheguei a isso pela análise do discurso do presidente empossado, traçando o sujeito que ele desenha. Pelo modo de dizer e pelo conteúdo dito, no contexto concreto da posse, desenha-se o sujeito do discurso bolsonariano.

É ou não é um Deus e seu Mito?

O protagonista encena os primeiros atos das práticas de governança

Se o Discurso de Posse configurou um sujeito de plenos poderes, ungido por milagre de Deus, garantido pelas eleições, identificado com a Pátria, e que se predestina a defendê-la de todos os ataques de ideias, instituições ou organizações “contrárias”, o que esperar do governo recém-inaugurado? Como as práticas de governança se exercerão, considerando um sujeito assim caracterizado no Discurso de Posse?

Não é possível vaticinar a respeito com base exclusiva nos resultados da análise. Mas pode-se, sim, por hipótese, supor que, lá e cá, as estratégias têm alvos muito próximos. Além disso, podem-se acompanhar as notícias pela imprensa escrita e televisiva.

E o que esta analista de plantão diário pôde perceber nesse trabalho de acompanhamento, já que não lhe valem apenas as hipóteses?

Passados quinze dias de governo, o que mais se registrou foram desencontros, afirmações peremptórias imediatamente desmentidas, atos e des-atos de uma governança já tingida de folclore.

O que me chamou atenção, no entanto, foi a leitura de jornal. Ela parecia aguçar uma sensação de que eu havia me tornado incompetente para entender notícias, isto é, os enunciados de manchetes que eu lia. Não sabia o que havia sido decidido, vetado, reclamado, assumido. Por mais que me esforçasse para decifrar os sentidos, não conseguia realmente saber o que era afirmado e o que era negado; o que tinha sido dito como uma medida ou uma tendência e o que havia sido anulado, recusado, apresentado como equivocado, recuado (que, aliás, foi a palavra mais empregada).

Aí se acendeu de novo, ainda que minimamente, uma competência analítica. Pensei que é isso que o discurso perverso reverbera: os opostos são apenas justapostos, e se você preserva o sentido de oposição, fica sem modalidades discursivas competentes para discriminar o que está em jogo no texto, seus “tons”. O efeito disso é a produção de uma ambiguidade de sentidos e uma espécie de “irritação”, na medida em que se implodem as discriminações possíveis e você, no mínimo, percebe que não está entendendo o que está escrito; no máximo, você escolhe um ou outro lado da história e fica com ele, mesmo que não corresponda ao conteúdo da matéria quando ele se explicita.

Cito alguns dos títulos das matérias que precisavam ser lidas na íntegra para dissolver os mal-entendidos e resolver, em alguma medida, a equivocidade e a ambiguidade que provocavam.

  • Governo Bolsonaro paralisa reforma agrária e demarcação de territórios quilombolas (Valente, 2019aValente, R. (2019a, 08 de janeiro). Governo Bolsonaro paralisa reforma agrária e demarcação de territórios quilombolas. Folha de S.Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2mpBBJ8
    http://bit.ly/2mpBBJ8...
    )

  • Ministro diz que governo fará “revogaço” de leis (Fernandes, 2019Fernandes, T. (2019, 09 de janeiro). Ministro diz que governo fará ‘revogaço’ de leis. Folha de S. Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2oJfVZI
    http://bit.ly/2oJfVZI...
    )

  • Incra recua e revoga ordens que paralisam reforma agrária (Valente, 2019bValente, R. (2019b, 09 de janeiro). Incra recua e revoga ordens que paralisam reforma agrária. Folha de S.Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2mP7fjk
    http://bit.ly/2mP7fjk...
    )

  • Bolsonaro recua e anula texto que dá margem a erros em livros didáticos (Saldaña, 2019Saldaña, P. (2019, 09 de janeiro). Bolsonaro recua e anula texto que dá margem a erros em livros didáticos. Folha de S.Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2loQhrN
    http://bit.ly/2loQhrN...
    )

  • Bolsonaro anuncia que não vetará fusão da Embraer com a Boeing (Fernandes, T.; Caram, B.; Uribe, G., 2019Fernandes, T., Caram, B., & Uribe, G. (2019, 11 de janeiro). Bolsonaro anuncia que não vetará fusão da Embraer com a Boeing. Folha de S. Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2oCwrKO
    http://bit.ly/2oCwrKO...
    ).

  • Contrato da Funai que Bolsonaro suspendeu não seguiu rito legal (Moraes, 2019Moraes, F. T. (2019, 14 de janeiro). Contrato da Funai que Bolsonaro suspendeu não seguiu rito legal. Folha de S.Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2mqhsTg
    http://bit.ly/2mqhsTg...
    )

  • Alçada por primeira-dama, Libras tem gargalo de escolas e professores (Petrocilo, 2019Petrocilo, C. (2019, 14 de janeiro). Alçada por primeira-dama, Libras tem gargalo de escolas e professores. Folha de S.Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2kSmLdH
    http://bit.ly/2kSmLdH...
    )

Outros títulos provocam uma espécie de dissonância cognitiva mais rápida, que nem sempre exige leitura extensa da matéria para que se tome consciência do que trata o assunto. Em tais ocasiões, mais facilmente nos damos conta dos afetos que a notícia desperta: indignação, irritação e/ou uma intensa expectativa de até quando a tolerância com os fatos vai empurrar para frente uma atitude coerente com as promessas feitas pelo mesmo governo. . .

  • Flávio Bolsonaro falta a depoimento sobre ex-assessor, mas diz querer esclarecer fatos (Albuquerque, 2019Albuquerque, A. L. (2019, 11 de janeiro). Flávio Bolsonaro falta a depoimento sobre ex-assessor, mas diz querer esclarecer fatos. Folha de S.Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2ncqiEU
    http://bit.ly/2ncqiEU...
    )

  • Bolsonaro e Moro são tietados em festa de despedida de comandante do exército (Boldrini, 2019Boldrini, A. (2019, 10 de janeiro). Bolsonaro e Moro são tietados em festa de despedida de comandante do exército. Folha de S.Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2mXyRTC
    http://bit.ly/2mXyRTC...
    )

  • Despetização de Onyx poderia ter sido feita ‘com mais carinho’, diz Mourão (Uribe & Fernandes, 2019Uribe, G., & Fernandes, T. (2019, 09 de janeiro). Despetização de Onyx poderia ter sido feita ‘com mais carinho’, diz Mourão. Folha de S.Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2kVnI59
    http://bit.ly/2kVnI59...
    )

  • Ao passar comando do Exército, general elogia Bolsonaro por ‘liberar amarras ideológicas’ (Magnoli, 2019Magnoli, D. (2019, 11 de janeiro). Ao passar comando do Exército, general elogia Bolsonaro por ‘liberar amarras ideológicas’. Folha de S.Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2mQ1GkG
    http://bit.ly/2mQ1GkG...
    )

  • Vídeo mostra ex-assessor de Flávio Bolsonaro dançando no hospital (Vettorazzo, 2019Vettorazzo, L. (2019, 12 de janeiro). Vídeo mostra ex-assessor de Flávio Bolsonaro dançando no hospital. Folha de S.Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2lq1Te0
    http://bit.ly/2lq1Te0...
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Observe-se, inclusive, a alusão a dedetização (erradicação de insetos), que o termo “despetização” evoca!

O interessante é que, como discurso é ato/procedimento, nas ações que esses enunciados implicam, podemos supor feitos desfeitos, prometidos descumpridos, oposições anuladas, eclipsadas, fundidas, nas práticas de governança. Só não se sabe, ao ler a manchete, o que é que foi anulado, o que foi feito, o que o feito anula, o que a anulação nega ou mostra do feito.

O efeito disso tudo sobre os governados é perverso, uma vez que lhes lega um lugar atado na plateia, que vê, atônita ou entusiasmada (não faz diferença, porque está paralisada), um desenrolar sobre o qual não tem ação eficaz. Tanto seja uma análise crítica quanto sejam os aplausos; estes últimos apenas selam a posição de asseclas a ecoar a magnitude do soberano sujeito das falas.

Nesse sentido, as demissões para “limpeza” de funcionários dos quadros públicos, em diferentes secretarias e ministérios da nova administração, foram feitas alardeando-se que o critério foi o de competência técnica, o mesmo que garantiria as substituições. Então, o que dizer da portaria assinada pelo presidente admitindo contratações de pessoal para o Itamaraty, sem a especialidade, exigida até agora, para a diplomacia? O que dizer de demissões que envolveram servidores de carreira, muitos que haviam sido promovidos por mérito? E assim por diante. Proliferam dito e desdito, como se não fossem opostos. Não como competência social e política, de rever ações. Nem como ato de humildade de reconsiderar posições, como querem alguns comentaristas da Globo News, até o momento da escritura desta análise, ainda francos defensores de tais movimentações bolsonarianas! Mas como modus operandi que confirma, sim, o efeito de o Presidente, por ocasião da Posse, mostrar de si a imagem de renascido por milagre, como a própria Pátria o será por meio de suas ações salvadoras. Deus e seu Mito, fundidos no sujeito configurado nesse discurso, que se faz assim, mais que inaugural. Veio para marcar a ferro e fogo seus sinais.

Referências

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  • Boldrini, A. (2019, 10 de janeiro). Bolsonaro e Moro são tietados em festa de despedida de comandante do exército. Folha de S.Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2mXyRTC
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  • [Eduardo Bolsonaro]. (2018, 21 de outubro). Jair Bolsonaro por telefone para a Av. Paulista em 21/OUT/2018 [Vídeo on-line]. Recuperado de: http://bit.ly/2mvwkj3
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  • Fernandes, T. (2019, 09 de janeiro). Ministro diz que governo fará ‘revogaço’ de leis. Folha de S. Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2oJfVZI
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  • Fernandes, T., Caram, B., & Uribe, G. (2019, 11 de janeiro). Bolsonaro anuncia que não vetará fusão da Embraer com a Boeing. Folha de S. Paulo. Recuperado de http://bit.ly/2oCwrKO
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  • Maingueneau, D. (2000). Aula: sobre o discurso e a análise do discurso. In M. Guirado, A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau (pp. 21-31). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.
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  • 1
    O leitor pode estranhar a introdução desses dois últimos enunciados. Eles visam a trazer esclarecimentos a quem, acostumado a trabalhar com pressupostos lacanianos, possa fazer uma tradução imediata do termo “discurso” de Foucault a Lacan, e esse procedimento, pelo mero emprego da palavra “discurso”, não seria justo com esses autores. Lacan, assentado no estruturalismo, é indiretamente mencionado por Foucault em A ordem do discurso (1971/1996) (Foucault, 1971/1996Foucault, M. (1996). A ordem do discurso. São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1971).), quando ele, assentado nos princípios da pragmática, afirma que, para analisar um discurso, é necessário “suspender o império do significante” (p. 51).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2019
  • Revisado
    16 Set 2019
  • Aceito
    19 Set 2019
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