Acessibilidade / Reportar erro

Fora do lugar: o estado “demasiadamente humano” de Edward Said

Pas à sa place: l’état «trop humain» d’Edward Said

Fuera del lugar: el estado “demasiado humano” de Edward Said

Resumo

Este artigo discute a experiência de exílio como a reprodução de um estado estruturante do ser humano, o desamparo originário. Para trabalharmos a temática do exílio recorremos a Edward Said e sua produção teórica e de sua obra autobiográfica Fora do lugar: memórias (1999), e às contribuições de Maria José de Queiroz sobre os males da ausência. Em seguida, abarcamos a noção de desamparo originário a partir das proposições psicanalíticas de Sigmund Freud. Por último, articulamos exílio e desamparo com o movimento dialético, proposto por Octávio Paz, entre solidão e criação, para pensarmos a escrita como uma saída possível ao estado de desamparo que se atualiza na vida do sujeito.

Palavras-chave:
solidão; exílio; desamparo; angústia; Edward Said

Résumé

Le présent article propose de discuter de l’expérience de l’exil comme la reproduction d’un état structurant de l’être humain, l’impuissance originelle. Pour travailler sur le thème de l’exil nous avons recours à Edward Saïd, à travers sa production théorique et son travail autobiographique Out of place: memories, et à ainsi que les contributions de Maria José de Queiroz sur les maux de l’absence. Ensuite, nous couvrons la notion d’impuissance originelle des propositions psychanalytiques de Sigmund Freud. Enfin, nous articulons l’exil et l’impuissance avec le mouvement dialectique proposé par Octávio Paz, entre la solitude et la création, pour considérer l’écriture comme un exutoire de l’état d’impuissance qui est mis à jour dans la vie du sujet vécu à plusieurs reprises par le sujet.

Mots-clés:
solitude; l’exil; impuissance; l’angoisse; Edward Said

Resumen

El presente artículo se propone discutir la experiencia de exilio como la reproducción de un estado estructurante del ser humano, el desamparo originario. Para trabajar la temática del exilio recurrimos a Edward Said, mediante su producción teórica y su obra autobiográfica Fuera del lugar: memorias, así como a las contribuciones de María José de Queiroz sobre los males de la ausencia. A continuación, planteamos la noción de desamparo originario a partir de las proposiciones psicoanalíticas de Sigmund Freud. Por último, articulamos exilio y desamparo con el movimiento dialéctico, propuesto por Octavio Paz, entre soledad y creación para pensar la escritura como una posible salida para el estado de desamparo el cual se actualiza en la vida del sujeto vivido repetidamente por el sujeto.

Palabras clave:
soledad; exilio; desamparo; angustia; Edward Said

Abstract

This article discusses the experience of exile as the reproduction of a structuring state of the human being, the original helplessness. To work on the issue of exile we have to resort to Edward Said, through his theoretical production and his autobiographical work Out of place: a memoir, as well as the contributions of Maria José de Queiroz on the evils of absence. Next, we cover the notion of original helplessness from the psychoanalytic propositions of Sigmund Freud. Finally, we articulate exile and helplessness with the dialectical movement, proposed by Octávio Paz, between solitude and creation, to think of writing as a possible outlet for the state of helplessness that is upgraded to the subject’s life.

Keywords:
loneliness; exile; helplessness; anguish; Edward Said

Introdução

A solidão o rodeia e enrodilha, cada vez mais ameaçadora, mais sufocante, apertando mais o coração, aquela terrível deusa e mãe cruel dos desejos - mas quem sabe, hoje, o que é solidão?

(Nietzsche, 1878)

Neste artigo investigamos o tema do exílio segundo o olhar de Edward Said, aproximando-o da noção de desamparo originário, em Sigmund Freud. Trazemos para a discussão o texto autobiográfico de Said (1999), Fora do lugar: memórias, a fim de relacionarmos, por meio de seu testemunho, o exílio e a condição humana de desamparo pensada a partir da psicanálise. Com efeito, questionamos se a experiência de exílio reproduziria o desamparo constituinte do humano. E, para tentarmos responder tal questão, inicialmente abordamos a noção de exílio proposta por Said, problematizando as distinções entre o exílio real e o exílio metafórico. Em seguida, discutimos a noção de desamparo para a psicanálise e, por último, aproximamos essas experiências do que Octávio Paz (1950/2014) diz no livro Labirintos da solidão sobre a solidão.

Portanto, propomos colocar em diálogo dois campos do saber, a psicanálise e a literatura, com o objetivo de investigar a experiência do exílio. Chama-nos a atenção as palavras e os sentimentos usados pelos teóricos que estudam o exílio, principalmente aqueles que vivenciaram tal condição e escreveram sobre ela. Edward Said se destaca por articular com seu estilo a dolorosa experiência do distanciamento de seu lar com a teoria, ou melhor, ele produziu um saber sobre isso que se faz até os dias atuais uma referência para pensarmos a condição de exilado. Portanto alguns termos usados por ele como solidão, abandono, nostalgia, isolamento e ausência nos incitaram a pensar a proximidade dessa descrição com o que a psicanálise denomina como desamparo originário.

Essa experiência foi teorizada por Freud (1895/1996, 1927/1996, 1930/1996) a partir de sua clínica e está presente em toda sua obra, como no texto inicial Projeto para uma psicologia científica, de 1895, no Futuro de uma ilusão, de 1927 e no Mal-estar na civilização, de 1930. Essa experiência se configura como a condição humana do sujeito, isso significa dizer que, desde o nascimento, nos vemos em um estado de dependência do outro, em que, para sobrevivermos, é imperativo que alguém nos alimente, nos cuide e nos deseje. O filhote humano (Lacan, 1956-1957/1995) se distingue de todos os outros do reino animal, nós não temos a carga genética que nos direciona instintivamente a andar, comer e caçar, precisamos, antes, da intervenção do outro. O humano, pois, porta uma condição radicalmente prematura que o faz completa e invariavelmente subjugado ao seu próximo.

Nesse sentido, se a condição primária de dependência absoluta do outro nos remete à necessidade de sua presença, por outro lado, também nos remete ao desamparo mediante sua ausência. Assim, o sujeito pode, ao viver a ausência do próximo, do seu semelhante e familiar, reviver a experiência de desamparo originário - por exemplo, quando perdemos um ente querido, quando nos percebemos sozinhos ou perdidos em nossas casas, ou quando vivenciamos a solidão na sua forma mais dura: o exílio de nosso próprio lar.

Por que consideramos aqui exílio como a reprodução mais dura da experiência de desamparo? Porque no exílio o sujeito é submetido ao imperativo incontornável de não poder voltar para casa. É o que distingue, por exemplo, o exilado daquele que faz um intercâmbio, uma vez que o jovem intercambista ali está por escolha, ele tem uma data de retorno e, principalmente, a permissão para isso; enquanto o exilado é compulsoriamente enviado para outro país ou ele faz essa escolha, mas de maneira forçada entre a vida e a morte. É o que presenciamos atualmente na problemática dos refugiados, em que pessoas são ejetadas de suas terras natais, vítimas do abandono estatal, de conflitos internacionais em seus territórios e de condições subalternas de vida, restando-lhes a também escolha forçada entre a vida e a morte.

Assim, ao considerarmos o fenômeno enquanto grupal, encontramos uma aproximação entre as migrações contemporâneas e os êxodos rurais e religiosos de séculos atrás, como as diásporas. Não obstante, a migração de povos, como os sírios e libaneses, é exemplo do forçado destino que se impõe a tais pessoas que se dispõe do mais familiar em busca da sobrevivência. São também exilados políticos, como Mario Benedetti, Eduardo Galeano, Luís Carlos Prestes e Paulo Freire, mas exilados de uma política de opressão global.

Diversas modalidades de deslocamento são, portanto, estudadas pela teoria do exílio1 1 Esse apanhado é meticulosamente feito por Samantha Viz Quadrat (2001) no livro Caminhos cruzados: história e memória do exílios latino--americanos no século XX. , como os exilados, os expatriados, as diásporas, os migrantes, os asilados, os refugiados políticos, em que cada qual porta uma particularidade. Pode-se criar certa esquematização a depender da variável analisada, espaço, tempo, quantidade de pessoas, objetivo, etnia, de modo que não é objetivo deste estudo pormenorizar cada uma delas, mas, ao contrário, encontrar o que as une, a despeito das diferenças. Logo, seja compulsoriamente ou voluntariamente, consideramos que a expropriação do que é familiar ao sujeito o remete à primeira experiência com a falta e o estrangeiro.

Para investigarmos a proximidade entre o exílio e o desamparo originário, partiremos das memórias de Said (1999Said, E. (1999). Fora do lugar: memórias (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.) e sua descrição sobre os anos de exílio de sua terra natal, como uma ilustração e exemplo de como essa dolorosa experiência pode ser belamente representada pela escrita literária. O uso da criação literária como estratégia de elaboração da solidão do exílio também é trabalhado por Said (2003, 2006) e será tema deste artigo, uma vez que tanto a psicanálise como o autor consideram o estado de sofrimento não como ponto de acabamento do indivíduo, mas como meio de experimentação de novas possibilidades.

De acordo com Said (2003Said, E. (2003). Reflexões sobre o exílio. In E. Said, Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (pp. 46-60). São Paulo, SP: Companhia das Letras.), em “Reflexões sobre o exílio”, o estado “fora do lugar” é uma experiência franqueada a todo sujeito. Podemos estranhar nossa história, nossa imagem, nossos pensamentos, nossa política e nosso governo sem termos saído de nossa terra natal. Mas também podemos viver esse estado de forasteiros estando realmente em solo estrangeiro, sem o acalento da língua materna. Não obstante, o que a psicanálise vem mostrar é que, diferentementedo que se espera, essa experiência não se passa apenas por uma escolha consciente, mas como efeito de um arrebatamento angustiante, esteja onde estiver o indivíduo.

Daí pensarmos que estar “fora do lugar” é uma condição demasiadamente humana. Fazemos referência ao texto de Friedrich Nietzsche, Humano, demasiadamente humano, de 1878, justamente porque nessa obra o filósofo aborda o espírito livre, aquele que questiona a moral e as verdades absolutas. E, para ser esse espírito, é preciso sobretudo coragem e curiosidade para enfrentar a solidão tanto física quanto ideológica de estar na contramão do pensamento corrente. Segundo Nietzsche (1878/2014):

Um impulso e ímpeto reina e se torna senhor dela como um comando; desperta uma vontade e desejo de ir avante, para onde for, a qualquer preço; uma impetuosa e perigosa curiosidade por um mundo inexplorado se inflama e crepita em todos os sentidos. “Antes morrer do que viver aqui” - assim soa a voz imperiosa e a sedução: e este “aqui”, esse “em casa”, é tudo o que ela havia amado até então! Um súbito pavor e premonição contra aquilo que ela amava, um relâmpago de desprezo contra aquilo que para ela se chamava “dever”, um desejo tumultuoso, arbitrário, vulcânico, de andança, estrangeiro, estranhamento, resfriamento, sobriedade, enregelamento, um ódio ao amor, talvez um gesto e um olhar iconoclastas para trás . . . . (Nietzsche, 1878/ 2014, p. 104)

Estar no lugar do estrangeiro, do inconformado, do crítico e do intelectual, como proposto por Said (2003Said, E. (2003). Reflexões sobre o exílio. In E. Said, Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (pp. 46-60). São Paulo, SP: Companhia das Letras.), é ser um espírito livre que, apesar do preço de abandonar o lar e o conformismo, tem em troca a liberdade de conhecer diversos caminhos que não serão percorridos por aquele que se enraíza em “casa”. O termo “casa” pode tanto representar família, lar, pátria, como também, em sentido metafórico, as ideias cristalizadas que impedem o indivíduo de olhar para além dos muros de seu status quo. No tópico a seguir discutimos o exílio como experiência real e metafórica, tendo como base o texto Os males da ausência ou a literatura de exílio, de Maria José de Queiroz (1998Queiroz, M. J. (1998). Os males da ausência ou a literatura de exílio. Rio de Janeiro, RJ: Topbooks.).

O pathos da ausência

O homem culturalmente se habituou a sentir o lar, a comunidade, a nação ou a pátria como espaços de segurança, de modo que estar fora desse âmbito é o mesmo que estar desprotegido e indefeso. Ser banido de sua cidade era uma das mais trágicas punições que um homem poderia receber, pois, além de ser impedido de voltar para casa, viveria onde estivesse com os pensamentos no lar perdido. Para o sentimento de desenraizamento vivido por tais pessoas, Queiroz (1998Queiroz, M. J. (1998). Os males da ausência ou a literatura de exílio. Rio de Janeiro, RJ: Topbooks.) propõe a expressão os males do exílio, que seria um campo dentro dos males da ausência, expressão maior desse isolamento.

O termo exílio vem do latim exilium, derivado de exsilire - ex salire ou saltar fora. Ele se configurou historicamente como uma punição a algum delito cometido, sendo, portanto, uma sanção que poderia acometer a qualquer cidadão. De acordo com Queiroz (1998Queiroz, M. J. (1998). Os males da ausência ou a literatura de exílio. Rio de Janeiro, RJ: Topbooks.), o exílio pode tanto ser imposto como voluntário. Como ato de obediência a agentes externos, soberanos ou por interesses superiores, bem como por ato de consciência, como uma escolha íntima e irrefutável. Essa forma mais íntima de viver o exílio pode ser inclusive experienciada por meio do recolhimento para si mesmo.

Queiroz (1998Queiroz, M. J. (1998). Os males da ausência ou a literatura de exílio. Rio de Janeiro, RJ: Topbooks.) extraiu da vivência de alguns jovens o que ela viria a chamar de males da ausência. A autora observou que, ao saírem de suas casas para estudar, eles eram acometidos por uma tristeza desoladora e, ao voltarem para casa, subitamente melhoravam. Segundo a autora, seriam traços característicos desse estado a obsessão do retorno, a depressão nostálgica e, principalmente, o fato de que bastava estreitar os laços com esses jovens, escutá-los sobre as lembranças de seu lar, para que os sintomas desse sofrimento cedessem. Outro elemento importante se refere à língua, pois ela também se torna metáfora da pátria, extrapolando o que era antes apenas meio automático de comunicação: “Só quem se vê privado de seu uso, na intimidade do dia a dia, sabe estimar-lhe a falta” (Queiroz, 1998, p. 57).

Para Queiroz (1998Queiroz, M. J. (1998). Os males da ausência ou a literatura de exílio. Rio de Janeiro, RJ: Topbooks.), o que mais angustia aquele que abandona seu lar, voluntaria ou coercitivamente, é o temor do retorno, pois a terra deixada nunca mais será a mesma, assim como o jovem que saiu não poderá mais retornar como o mesmo. Há, portanto, um descompasso entre o que era e o que será, uma perda irrevogável se instaura e não há nada que se possa fazer contra isso, senão falar a respeito.

Segundo Said (2003Said, E. (2003). Reflexões sobre o exílio. In E. Said, Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (pp. 46-60). São Paulo, SP: Companhia das Letras.), o exílio nos instiga a pensar sobre ele, mas experienciá-lo é um grande sofrimento. Sua obra pode ser lida, portanto, como um efeito da coação sofrida em sua experiência de exilado. Ele nasceu em Jerusalém, cresceu no Egito e no Líbano e, quando jovem, se mudou para os Estados Unidos e não mais voltou para sua terra natal, apenas de passagem. Said (2003) expressa com palavras poéticas a perda do que ficou para trás com o exílio:

Ele é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada. E, embora seja verdade que a literatura e a história contêm episódios heroicos, românticos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado, eles não são mais do que esforços para superar a dor mutiladora da separação. As realizações do exílio são permanentemente minadas pela perda de algo deixado para trás para sempre. (Said, 2003Said, E. (2003). Reflexões sobre o exílio. In E. Said, Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (pp. 46-60). São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 46)

Há, portanto, uma separação que não poderá ser reconstituída. Diante disso, Said (2003Said, E. (2003). Reflexões sobre o exílio. In E. Said, Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (pp. 46-60). São Paulo, SP: Companhia das Letras.) se inquieta com a incorporação pela literatura dessa condição de perda terminal como um tema enriquecedor, banalizando o sofrimento daquele que experiencia o que o leitor apenas lê, “pensar que o exílio é benéfico para essa literatura é banalizar suas mutilações, as perdas que inflige aos que as sofrem, a mudez com que responde a qualquer tentativa de compreendê-lo como ‘bom para nós’” (p. 47).

Essa prerrogativa saidiana pode ser interpretada como uma consequência do isolamento vivido por quem experimenta o exílio, pois, se ali ele é parte de um todo, o excluído de uma nação, essa mesma nação ou grupo não pode acessar o que ele experienciou em privação do outro. Encontramos aqui algo que é caro para a psicanálise, a particularidade do sujeito. Ainda que reconhecida a possibilidade de compartilhamento com o outro, há um limite para isso, há algo que o processo identificatório não consegue abarcar e que será único ao sujeito. Nas palavras de Said (2003Said, E. (2003). Reflexões sobre o exílio. In E. Said, Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (pp. 46-60). São Paulo, SP: Companhia das Letras.): “Agarrando-se à diferença como a uma arma a ser usada com vontade empedernida, o exilado insiste ciosamente em seu direito de se recusar a pertencer a outro lugar” (p. 55).

O mesmo sentido pode ser entrevisto quando Said (2003Said, E. (2003). Reflexões sobre o exílio. In E. Said, Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (pp. 46-60). São Paulo, SP: Companhia das Letras.) aborda a impossibilidade do encontro de uma mesma linguagem para tratar do exílio e do nacionalismo, uma vez que há uma fenda intransponível separando ambos, notadamente a mesma fenda que provoca o pathos do exílio e os males da ausência. Para ele, o exilado será sempre um deslocado que se ressente dos que se sentem pertencentes a algo: “Eu invejava minhas irmãs na Escola Inglesa do Cairo, o conforto de que gozavam por estarem juntas e em casa, a solidez, conforme eu imaginava, da bem equipada segurança, tudo aquilo que me seria negado, a não ser pelas breves férias de verão” (Said, 1999, p. 188).

Podemos ver no posicionamento do autor, no entanto, uma resistência: ele escolhe se manter como estrangeiro, encontrando nisso uma forma de garantir a própria identidade, de escrever sua diferença. Em outras palavras, sendo o exílio uma condição imposta ao sujeito, ele pode fazer desse estado de marginalidade um exercício de liberdade e de construção de um pensamento apartado da massa. Portanto:

Embora talvez pareça estranho falar dos prazeres do exílio, há certas coisas positivas para se dizer sobre algumas de suas condições. Ver “o mundo inteiro como uma terra estrangeira” possibilita a originalidade da visão. A maioria das pessoas tem consciência de uma cultura, um cenário, um país, os exilados têm consciência de pelo menos dois desses aspectos, e essa pluralidade de visão dá origem a uma consciência de dimensões simultâneas. (Said, 2003Said, E. (2003). Reflexões sobre o exílio. In E. Said, Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (pp. 46-60). São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 59)

Ao pensarmos nessa atuação marginal que não tem compromissos com a ordem e com a manutenção das ideologias impostas, pelo contrário, almeja sacudir o convencional e movimentar o estado das coisas, estamos pensando na figura do intelectual proposta por Said (2006Said, E. (2006). Representações do intelectual: as conferências do Reith de 1993. São Paulo, SP: Companhia das Letras.) nas Conferências Reith. Segundo ele, “Uma das tarefas do intelectual reside no esforço em derrubar os estereótipos e as categorias redutoras que tanto limitam o pensamento e a comunicação.” (2006, p. 10). Ou seja, esse intelectual pode ser um exilado em sua própria pátria, não sendo necessária a travessia de fronteiras para que ele possa se libertar das verdades construídas por sua cultura.

É uma posição que leva invariavelmente ao isolamento e à rejeição da comunidade em que vive. Ela reflete o estado interior do intelectual que nunca se sentiu em casa, estando sempre em conflito com o seu ambiente, sempre inconformado com a realidade. Estamos falando de um exílio que não ocorreu de fato, mas que é semelhante à condição do exilado de nunca se adaptar, é o exílio metafísico ou metafórico:

Para o intelectual, o exílio nesse sentido metafísico é o desassossego, o movimento, a condição de estar sempre irrequieto e causar inquietação nos outros. Não podemos voltar a uma condição anterior, e talvez mais estável, de nos sentirmos em casa; e, infelizmente, nunca podemos chegar por completo à nova casa, nos sentir em harmonia com ela ou com a nova situação. (Said, 2006Said, E. (2006). Representações do intelectual: as conferências do Reith de 1993. São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 61)

Podemos observar um deslocamento na compreensão do exílio e do exilado. De condição irrevogável e dolorosa, vemos a possibilidade de uma condição irrevogável, dolorosa e libertadora. De modo que o exilado pode, diante dessa condição irremediável, assinar sua identidade, seu posicionamento político, enfim, produzir elaborações em face de tantas experiências de perda. Como pondera Said (2006Said, E. (2006). Representações do intelectual: as conferências do Reith de 1993. São Paulo, SP: Companhia das Letras.), o exílio não é um corte total com o lugar de origem, não há um apagamento da memória do ficou para trás, ele precisa tolerar a lembrança de que é um exilado e de que está distante de onde gostaria de estar.

Elaborar um estado de sofrimento não significa apagar ou esquecer sua causa mesmo, mas reconhecer essa causa, lhe dar novos contornos, novos direcionamentos e significações. Essa experiência de elaboração da ausência, das perdas, da solidão pode se dar de diversas formas, sendo a escrita uma delas. O texto de Said (1999Said, E. (1999). Fora do lugar: memórias (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.), Fora do lugar: memórias, é um exímio testemunho desse árduo processo de elaboração e será abordado no próximo tópico.

Fora do lugar

Said (1999Said, E. (1999). Fora do lugar: memórias (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.) inicia seu texto autobiográfico com as palavras “Fora do lugar é um registro de um mundo essencialmente perdido ou esquecido” (p. 11). e com elas antecede ao leitor o tom nostálgico contido em suas letras. Ele é provocado pela revelação de sua futura morte, recém-diagnosticado com um câncer raro, a registrar sua memória, enfim, a resgatar o tempo que passou esteja ele esquecido e/ou perdido. A morte é o destino mais certo de todos os homens, sabemos que ele está desde o início traçado, mas ainda assim não somos capazes de apreendê-lo por completo. Freud (1923/2007), no texto “O Eu e o Id”, afirma que a morte se apresenta sempre em negativo no psiquismo: é um acontecimento que, por mais que seja falado, é impossível de ser representado, justamente porque, quando experienciado, já é tarde.

Por outra via, a impossibilidade de representar a morte não significa que não possamos tentar fazê-lo. O testemunho de Said (1999Said, E. (1999). Fora do lugar: memórias (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.) é um exemplo dessa tentativa, como podemos ver no seguinte trecho: “Minha memória mostrou-se crucial para a faculdade de manter-me em funcionamento durante períodos desgastantes de doença, tratamento e angústia” (Said, 1999, p. 6). Nota-se que a recordação dos momentos vividos se fez para ele como uma necessidade, uma urgência em diminuir a distância temporal entre o presente e o passado.

Ele se pega escrevendo uma carta à falecida mãe, já que o desejo de reencontrá-la desconsiderou o fato da sua morte. A escrita, pois, é detentora desse poder de criar outras realidades, resgatar imagens, trazer para a atualidade uma presença perdida, é, por fim, uma forma de investimento em um tempo outro que não apenas aquele vivido. Foi assim que, segundo o autor, o referido livro de memórias se transformou em seu refúgio para os momentos agudos de sofrimento com a doença e com a proximidade da morte: “Assim, raras vezes eu tinha pressa de escrever um capítulo, ainda que tivesse uma ideia precisa daquilo que queria colocar nele. Curiosamente, a escrita destas memórias e as fases da minha doença compartilham o mesmo tempo” (Said, 1999Said, E. (1999). Fora do lugar: memórias (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 166).

Em suas memórias vislumbramos uma vida em movimento. Said estava sempre de mudança ou viajando. Portanto a mobilidade, característica marcante em seu modo de viver, é ao mesmo tempo dolorosa e almejada. Em seus deslocamentos, ainda que rápidos, ele carrega consigo uma quantidade desproporcional de objetos ou roupas, pois ele secretamente teme não voltar: “O que descobri desde então é que, a despeito desse medo, fabrico ocasiões para partir, instigando assim o medo voluntariamente” (Said, 1999, p. 167). O medo, deste modo, não o paralisa e ele segue se movendo, mas a ameaça de não poder voltar é certamente resquício de outra partida sem volta.

Algo como a invisibilidade daquele que parte, a saudade que sente e a que deixa talvez nos outros, somada à intensa, repetitiva e previsíveis sensação de desterro que nos arrasta para longe de tudo o que conhecemos e que pode nos confortar, essas coisas nos fazem sentir a necessidade de partir por causa de alguma lógica anterior, mas autocriada, e de uma sensação de arrebatamento. Em todos os casos, porém, o grande temor vem do fato de que a partida é o estado de ser abandonado, muito embora sejamos nós que estejamos partindo. (Said, 1999Said, E. (1999). Fora do lugar: memórias (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras., pp. 167-68)

A experiência de partir, de deixar o conhecido rumo a algo completamente desconhecido e estranho é, antes de tudo, uma experiência de abandono. Curiosamente essa concepção desloca o lugar do agente da ação, aquele que parte, para o lugar de objeto, aquele que sofre a partida. O estado de abandono não segue nenhuma lógica factual, mas segue a experiência do sujeito de se sentir abandonado pelo outro, aquele que o deixou ir. Essa sensação é relatada por ele quando diz que cada retorno aos Estados Unidos significava uma nova separação, como se fosse a primeira: “eu partia incuravelmente triste, olhando desesperadamente para trás, frustrado e infeliz” (Said, 1999Said, E. (1999). Fora do lugar: memórias (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 168). Said se sentia “fora do lugar”, desejava estar próximo de sua mãe, enlaçado por seu amor e não separado dela a contragosto.

Interessantemente, depois de 37 anos vivendo longe de sua mãe, sua família e seu lar, ele ainda se sente longe de casa, sua atual residência continua sendo provisória. Por meio dessas palavras, mais do que vemos: sentimos a relevância do lar familiar para um sujeito. O lar, como já dissemos, é figurativo de segurança, de estabilidade e, principalmente, de pertencimento. Nesse sentido, as memórias resgatadas são uma reelaboração da traumática experiência de partida e da separação por ele vivida: “Então, nada. Por que, lembro-me de haver me perguntado em silêncio, fui enviado para um lugar tão distante, horrível, abandonado por Deus?” (Said, 1999Said, E. (1999). Fora do lugar: memórias (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 175).

Ele queria voltar para casa, seu fuso horário ainda estava sintonizado com a cidade perdida, sentia saudade da comida, incômodo com o clima e a falta de sua mãe, sua ausência significava abandono e solidão: “Algumas vezes eu puxava uma de minhas volumosas malas de debaixo da cama, folheava os maços de cartas e começava a chorar suavemente” (Said, 1999Said, E. (1999). Fora do lugar: memórias (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 180). Contudo, ainda que contra sua vontade, o ritmo, a rotina, o fuso horário estadunidenses e a língua inglesa foram preenchendo seu dia a dia, corroendo lentamente suas memórias do Cairo. Até seu nome próprio foi americanizado para “Ed” Said.

Said encontra como saída para o sofrimento a atividade intelectual, utilizando a leitura e a escrita como escape a sua exclusão e não pertencimento. Mas ele sabia que, independentemente do que fizesse, continuaria sendo forasteiro. Do lugar de estrangeiro, ele criou uma nova percepção sobre o intelectual: a importância de seu status de marginal. Por fim, a figura do intelectual proposta por Said (1993/2006) está longe de ser apenas uma criação teórica, tendo sido, antes, fruto de sua experiência.

Diante do que foi abordado até o momento, podemos concluir que a experiência de exílio, aquela vivenciada factualmente, transborda em muito as possibilidades de representação pelo sujeito. Ele precisa construir caminhos outros que o ajudem a significar o trauma da separação e da solidão. São, portanto, sentimentos arrebatadores que desconcertam e desorientam aqueles que os sentem. Juntamente à noção de exílio metafórico (Said, 2006Said, E. (2006). Representações do intelectual: as conferências do Reith de 1993. São Paulo, SP: Companhia das Letras.) e de exílio interior (Queiroz, 1998Queiroz, M. J. (1998). Os males da ausência ou a literatura de exílio. Rio de Janeiro, RJ: Topbooks.), podemos inferir a existência de um exílio que está além e aquém daquele vivido factualmente. Esse exílio remonta aos primeiros tempos de vida do sujeito e se inscreve na experiência estruturante do desamparo originário.

Demasiadamente humano

Uma das grandes contribuições freudianas é a presença do infantil no homem. Isso significa que as primeiras experiências são duradouras e permanentes e, por conseguinte, provocarão efeitos contra a vontade consciente do sujeito. A forma como o ele se relaciona com o outro, as produções inconscientes, os esquecimentos, lapsos, sonhos e sintomas representam a maneira com que seu psiquismo se defendeu e se defende de uma condição irrevogável: a falta radical do objeto da pulsão, que em outros termos pode ser entendido como a falta radical fundante do psiquismo. Essa carência é o que nos coloca na dependência do outro e que, em última análise, aponta para o desamparo do ser humano.

Diferentemente dos animais, que têm uma inscrição instintual que os direcionam à caça e à reprodução, o humano é desprovido desse saber. A priori, ele não possui é capaz de sobreviver sem a ajuda do outro. Isso significa que quando viemos ao mundo dependemos de alguém que nos alimente, nos embale e, principalmente, nos deseje. É preciso, portanto, que aqueles que desempenham os cuidados do bebê façam mais do que lhe oferecer a satisfação das necessidades vitais, como a fome e a sede. É preciso que o bebê ocupe o lugar de objeto de desejo, isto é, que dele se espere algo e suponha algo. É, pois, na dialética do desejo do outro que o desejo do sujeito pode advir, primeiramente, alienando-se na tentativa de desvendar o que esse outro espera dele e, num segundo tempo, separando-se ao construir uma resposta para o enigma desse desejo (Lacan, 1964/2008).

Esse enigma certamente nunca será decifrado, já que o desejo do homem nunca se satisfaz por completo. Há sempre um resto que o mantém em movimento, em busca de algo a mais e diferente do encontrado. Mas o infans não sabe disso e é importante que ele não saiba, pois, na condição de desamparado, tanto biológica quanto psiquicamente, ele se oferece ao outro como objeto de desejo, de investimento, buscando ali sua via de sobrevivência. Freud (1895/1996) abordou essa condição inaugural em um de seus primeiros textos, “Projeto para uma psicologia científica”:

O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. (p. 370)

A ação específica é qualquer investida no meio externo que traga alguma satisfação, como colocar o dedo na boca. Nos primeiros dias, nem disso o bebê é capaz, ele não tem conhecimento e controle sobre seu corpo, daí a necessidade de que o outro promova essa ação para ele. Mas, para que o outro - aquele que desempenha a função de cuidador - empreenda a ajuda esperada pelo bebê, é preciso que ele, de alguma forma, comunique seu estado de urgência. Para isso, ele grita e chora:

Vemos, então, desdobrar-se uma dinâmica estabelecida entre o choro do infans, que vivencia o desamparo por um lado, e a resposta do próximo já introduzido no mundo simbólico, como portador da palavra, por outro lado. Esse próximo responde, enquanto situado no interior da linguagem, o que configura, nessa dinâmica, o que é especificamente humano, ou seja, o exercício da troca simbólica. (Torres Neto, 2011Torres Neto, H. (2011). Desamparo e angústia em inibições, sintomas e angústia de Sigmund Freud (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, ES., pp. 62-63)

Se inicialmente a ajuda é uma questão de sobrevivência para o infans, ela adquire outra função: a de fazer laço com o outro e promover a entrada na linguagem. Por certo não fazemos aqui uma disposição temporal em que primeiro ocorre a satisfação da necessidade e, depois, a entrada na linguagem, são movimentos concomitantes, pois a demanda ao outro já implica algo além do objeto da necessidade (Lacan, 1957-1958/1999). É isso a que Freud se refere no trecho citado, quando menciona os motivos morais, pois, segundo ele, cedemos aos nossos impulsos porque dependemos do outro e, por isso, nos orientamos pela moral civilizatória (Freud, 1927/1996). Assim, o desamparo originário está nos fundamentos de uma civilização ao mesmo tempo em que ele acompanha todo o desenvolvimento do sujeito, configurando-se como uma ameaça sempre presente, ameaça da perda do outro e da solidão. Como consequência, o sujeito procura figuras que representem proteção e segurança:

Como já sabemos, a impressão terrificante de desamparo na infância despertou a necessidade de proteção - de proteção através do amor - a qual foi proporcionada pelo pai; o reconhecimento de que esse desamparo perdura através da vida tornou necessário aferrar-se à existência de um pai, dessa vez, um pai mais poderoso. (Freud, 1927/1996, p. 39)

No texto “O futuro de uma ilusão” (Freud, 1927/1996), do qual foi extraída a citação anterior, o psicanalista investiga as origens da religião, logo, o pai mais poderoso a que ele se refere é Deus. Depreendemos daí outra instância que também é fortemente investida pela cultura como protetora, neste caso da nação, o Estado. Ou seja, o Estado e a pátria são representações simbólicas que oferecem ao homem o imaginário de uma família e de um pai protetor. Estamos falando de construções culturais internalizadas pelos sujeitos e que se expressam de forma particular em casa cada psiquismo.

Os momentos de perda e separação experienciados pelo sujeito denunciam seu desamparo estruturante e são acompanhados de um sentimento arrebatador: a angústia. Isto é, o desamparo marca uma carência radical, sinalizada pela angústia como um alerta para que ele dela se defenda e a suporte: “o estado de desamparo torna-se o protótipo da situação traumática” (Torres Neto, 2011Torres Neto, H. (2011). Desamparo e angústia em inibições, sintomas e angústia de Sigmund Freud (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, ES., pp. 68-69). Em outras palavras, em situações nas quais perdemos o objeto de investimento de desejo, como no exílio, nós revivemos o traumático desamparo, representação definitiva da falta de garantias de nossa existência.

O interessante é que, quando Freud (1895/1996) nos fala do desemparo originário, ele também nos fala do complexo do próximo, Nebenmensch. Assim, ao mesmo tempo em que o sujeito depara com a falta que lhe estrutura, a experiência parcial de satisfação com o objeto, ele não depara com o vazio absoluto. Isto é, esse complexo de traços de memória pensado pelo psicanalista é simultaneamente presença e ausência, familiaridade e estranhamento. A própria noção de das Unheimlich (1919/2019), discutida por ele anos mais tarde, é devedora dessa primeira experiência dual de ausência/presença e familiar/estranho, sendo que o termo usado por ele para dizer do primeiro estranho/familiar é Fremde. Lacan (1959-1960/1991) reforça essa distinção entre Fremde e Unheimlich, pois este já é desdobramento daquele, isto é, uma reatualização e elaboração sobre o primeiro.

No mesmo sentido, quando dizemos que a experiência de exílio atualiza a experiência de desemparo, estamos dizendo que o sentimento de perda, angústia, confusão, abandono e solidão vem junto a essa experiência do estrangeiro, portanto, duplamente estranho e familiar. O estranho é o não pertencimento à nova cultura e o familiar, à nostalgia que acompanha o sujeito em exílio e o faz, inclusive, reviver traços do semelhante na nova cultura ou o impulsiona a tentar revivê-la pela via da memória, da escrita. Como nos diz Denise Rollemberg (1999Rollemberg, D. (1999). Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro, RJ: Record.) em Exílio: entre raízes e radares, o cotidiano do exílio é uma experiência de estranhamento e desenraizamento, mas também de descoberta de novas possibilidades e de reencontros.

Dois acontecimentos inevitáveis na vida de um homem marcam radicalmente sua condição demasiadamente humana de desamparo: o nascimento e a morte. O trauma do nascimento é o primeiro e para sempre modelo da separação, do corte com o outro. A morte não se diferencia do nascimento, é também signo de um desencontro fatal. Nesse intervalo, incontáveis repetições de separação contam ao sujeito sua insuficiência e inconsistência: “A angústia que todo ser finito sente diante da morte e do nada define a condição essencial da existência humana” (Rocha, 1999Rocha, Z. (1999). Desamparo e metapsicologia: para situar o conceito de desamparo no contexto da metapsicologia freudiana. Síntese: Revista de Filosofia, 26(86), 331-346., p. 340).

É na dolorosa experiência de finitude e de ausência de garantias que o homem tem acesso ao que mais íntimo lhe pertence, sua singularidade radical. Assim, inteiramente só e desamparado, o homem depara de imediato com o sentimento de impotência, da falta de recursos diante desse estado de pura angústia. Mas essa cena trágica não precisa parar aí, o desamparo também abre vias para a alteridade quando o sujeito lança um grito de clamor ao outro (Rocha, 1999Rocha, Z. (1999). Desamparo e metapsicologia: para situar o conceito de desamparo no contexto da metapsicologia freudiana. Síntese: Revista de Filosofia, 26(86), 331-346.). Lacan (1969-1970/1992) também aborda essa impotência diante da única verdade a que temos acesso, a castração, ou seja, a falta constituinte que nos faz originária e estruturalmente desemparados, dizendo no seminário O avesso da psicanálise: “Não quero fazê-los passar por uma prova muito dura. E, quando faço alusões à impotência deles, que é, portanto, a minha, isto quer dizer que, nesse nível, somos todos irmãos, e temos que nos safar como pudermos” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 173).

Esse laço jogado ao outro pode se expressar também na escrita. Letras e palavras que se encadeiam buscando representar uma separação, uma perda jamais esquecida. Desse modo, o livro de memórias de Said (1999Said, E. (1999). Fora do lugar: memórias (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.) é senão sua tentativa singular de resgatar o passado e juntamente a ele, a pátria perdida: “Todos nós, à nossa maneira, estamos sempre em busca de utopias na esperança de que elas nos tragam de volta o Paraíso perdido” (Ceccarelli, 2009Ceccarelli, P. R. (2009). Laço social: uma ilusão contra o desamparo. In Reverso, 31(58), 33-42., p. 35). Nas palavras de Said (1999):

Tenho pensado na verdade que este livro, de alguma maneira fundamental, é todo sobre a insônia, todo sobre o silêncio da vigília e, no meu caso, sobre a necessidade de recordação e articulação conscientes que têm sido um substituto para o sono. (p. 166)

Por fim, o paraíso perdido de Said (1999Said, E. (1999). Fora do lugar: memórias (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.) é um conjunto complexo de reminiscências que incluem o abraço da mãe, a comida do Cairo, a companhia do pai, a pátria perdida e Jerusalém, elementos que lhe remetiam à essa alteridade constitutiva de si mesmo. Porém, não deixa de ser ilusória a crença de que nação, pátria, mãe ou pai possam nos salvar da angústia da separação que, como vimos, é inerente ao homem. A solidão é sua condição de existência, por mais que esteja envolvida por uma família ou por uma nação.

O labirinto da solidão

Octávio Paz (1950/2014) nos diz, no livro Labirintos da solidão, que “Viver é separar-nos do que fomos para ingressar no que vamos ser, futuro sempre estranho. A solidão é o substrato último da condição humana” (p. 189), traduzindo, assim, poeticamente as elaborações até o momento empreendidas. A solidão é a condição última do homem: ele é o único ser que se sente sozinho, o único cuja existência se realiza no outro: “O homem é nostalgia e busca de comunhão. Por isso, toda vez que sente a si mesmo, sente-se como carência de outro, como solidão” (Paz, 1950/2014, p. 189). Segundo ele, estamos condenados a viver sozinhos e, concomitantemente, condenados a atravessar a solidão e refazer os laços com o outro. A solidão é, pois, um encontro com si mesmo e o concomitante desejo de encontro com o outro:

A linguagem popular reflete essa dualidade ao identificar solidão com sofrimento. As dores do amor são dores da solidão. Comunhão e solidão, desejo de amor, se opõem e se complementam. . . . A solidão é uma pena, isto é, uma condenação e uma expiação. É um castigo, mas também uma promessa de fim do nosso exílio. Toda e qualquer vida é habitada por essa dialética. (Paz, 2014Paz, O. (2014). O labirinto da solidão (A. Roitman, P. Watch, trad., 2a ed.). São Paulo, SP: Cosac Naify. (Trabalho original publicado em 1950), pp. 189-190)

A vida do homem transcorre em movimentos dialéticos: ruptura e união, separação e reconciliação, vida e morte, solidão e comunhão. Said nos mostra esse movimento tanto na escrita de suas memórias como em sua produção teórico-política. Ele provoca a vida e suporta a proximidade da morte com suas recordações e com a figura do intelectual. É na solidão que ele encontra a comunhão com o coletivo, endereçando e publicando suas lembranças e reflexões:

Nascer e morrer são experiências de solidão. Nós nascemos sozinhos e morremos sozinhos. Nada é tão grave quanto esse primeiro mergulho na solidão que é nascer, com exceção dessa outra queda no desconhecido que é morrer. A vivência da morte logo se transforma em consciência de morrer. (Paz, 1950/2014, p. 190)

Se não se pode escapar da experiência de solidão, da separação e da ausência de quem se ama, se o sentimento de segurança é mais uma dentre outras ilusões construídas para conforto próprio, a consciência dessa solidão é um direcionamento dado a um estado que poderia ser paralisante. Com efeito, transformar a ameaça da morte em reconhecimento da morte é semelhante ao processo experimentado por Said em seus anos de escrita, pois, reconhecendo sua condição de exilado, sem negá-la ou ludibriá-la, ele se construiu como um dos grandes intelectuais de nossa época.

Tal intelectualidade se apresenta, obviamente, no sentido saidiano, pois como estrangeiro de si mesmo e de sua própria cultura ele conseguiu perceber as amarras ideológicas que oprimem um povo sem que ele perceba. Ou como o espírito livre de Nietzsche (1878/2014), o andarilho que descobriu na mobilidade a liberdade do olhar e do pensamento e na errância experienciou a alegria da transitoriedade. Mobilidade é, pois, o movimento entre a angústia e o conforto, entre a solidão e a comunhão, por fim, entre a inércia e a criação, como pudemos depreender de Said.

Referências

  • Ceccarelli, P. R. (2009). Laço social: uma ilusão contra o desamparo. In Reverso, 31(58), 33-42.
  • Freud, S. (1996). Projeto para uma psicologia científica. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 1, pp. 333-454). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1895)
  • Freud, S. (1996). O futuro de uma ilusão. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21, pp. 15-71). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1927)
  • Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21, pp. 66-148). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)
  • Freud, S. (2007). O Eu e o Id. In Escritos sobre a psicologia do inconsciente (L. A. Hanns, trad., Vol. 3, pp. 13-91). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1923)
  • Freud, S. (2019). O infamiliar (Das Unheimlich) (E. Chaves, P. H. Tavares, trad.). São Paulo, SP: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1919)
  • Lacan, J. (1991). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-1960 (A. Quinet, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
  • Lacan, J. (1992). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, 1969-1970 (A. Roitman, A. Quinet, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
  • Lacan, J. (1995). O seminário, livro 4: a relação de objeto, 1956-1957 (D. D. Estrada, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
  • Lacan, J. (1999). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente, 1957-1958 (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
  • Lacan, J. (2008). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais, 1964 (M. D. Magno, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
  • Nietzsche, F. (2014). Humano, demasiadamente humano: um livro para espíritos livres. In F. Nietsche, Obras incompletas (pp. 102-135). São Paulo, SP: Editora 34. (Trabalho original publicado em 1878)
  • Paz, O. (2014). O labirinto da solidão (A. Roitman, P. Watch, trad., 2a ed.). São Paulo, SP: Cosac Naify. (Trabalho original publicado em 1950)
  • Quadrat, S. V. (2011). Caminhos cruzados: história e memória dos exílios latino-americanos no século XX (R. Polito, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Editora FGV.
  • Queiroz, M. J. (1998). Os males da ausência ou a literatura de exílio. Rio de Janeiro, RJ: Topbooks.
  • Rocha, Z. (1999). Desamparo e metapsicologia: para situar o conceito de desamparo no contexto da metapsicologia freudiana. Síntese: Revista de Filosofia, 26(86), 331-346.
  • Rollemberg, D. (1999). Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro, RJ: Record.
  • Said, E. (1999). Fora do lugar: memórias (J. G. Couto, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Said, E. (2003). Reflexões sobre o exílio. In E. Said, Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (pp. 46-60). São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Said, E. (2006). Representações do intelectual: as conferências do Reith de 1993. São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Torres Neto, H. (2011). Desamparo e angústia em inibições, sintomas e angústia de Sigmund Freud (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, ES.
  • 1
    Esse apanhado é meticulosamente feito por Samantha Viz Quadrat (2001) no livro Caminhos cruzados: história e memória do exílios latino--americanos no século XX.
  • 2
    This overview is meticulously made by Samantha Viz Quadrat (2001) in the book Caminhos cruzados: história e memória dos exílios latino-americanos no século XX [Crossed paths: history and memory of Latin American exiles in the twentieth century.]

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2018
  • Revisado
    02 Out 2019
  • Aceito
    16 Out 2019
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco A, sala 202, Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, 05508-900 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revpsico@usp.br