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A questão identitária na pós-modernidade: autenticidade e individualismo em Charles Taylor

La question de l’identité dans la postmodernité: l’authenticité et l’individualisme chez Charles Taylor

La cuestión de la identidad en la posmodernidad: autenticidad e individualismo en Charles Taylor

Resumo

Os fenômenos do esfacelamento das relações comunitárias e do isolamento crescente dos indivíduos uns em relação aos outros surgem de maneira expressiva no pensamento de diversos autores que se voltaram à descrição dos modos de vida da sociedade contemporânea. Retomamos a problematização do tema efetuada por Charles Taylor em As fontes do Self e em A ética da autenticidade. O autor identifica três “mal-estares” presentes na sociedade atual: o individualismo, o primado da razão instrumental e a alienação do indivíduo em relação à esfera política. Evitando uma leitura restritamente negativista de tais fenômenos, Taylor os apresenta como transformações das configurações dinâmicas que constituem os processos identitários modernos. Empreendemos um resgate das noções de identidade e autenticidade presentes nas obras supracitadas, visando uma compreensão sintética de tal cenário e das possibilidades apresentadas pelo autor de sua superação, ou seja, do resgate de sentidos perdidos pela fragmentação individualista.

Palavras-chave:
autenticidade; identidade; individualismo; pós-modernidade

Résumé

Les phénomènes d’échec des relations communautaires et de l’isolement croissant des individus les uns envers aux autres apparaissent expressément dans les travaux de divers auteurs qui ont cherché à décrire les modes de vie de la société contemporaine. Nous reprenons cette discussion présentée par Charles Taylor dans Les sources du Moi et dans Le malaise de la modernité. L’auteur identifie trois « malaises » présents dans la société moderne : l’individualisme, le primauté de la raison instrumentale et l’aliénation ede l’individu par rapport à la sphère politique. En évitant une lecture restrictive et négativiste de tels phénomènes, Taylor les présente comme des transformations des cadres dynamiques qui constituent les processus identitaires modernes. Nous entreprenons une étude des notions d’identité et d’authenticité présentes dans les œuvres mentionnés, afin de créer une compréhension synthétique d’un tel scénario, ainsi que des possibilités pour surmonter le problème, c’est-à-dire de récupérer les significations perdues par la fragmentation individualiste.

Mots-clés :
authenticité; identité; individualisme; postmodernité

Resumen

Los fenómenos del fracaso de las relaciones comunitarias y el aislamiento creciente de los individuos unos con otros surgen de manera expresiva en el pensamiento de diversos autores que trataron de describir los modos de vida de la sociedad contemporánea. Retomamos la problematización del tema efectuada por Charles Taylor en Fuentes del Yo y en La ética de la autenticidad. El autor identifica tres “malestares” presentes en la sociedad actual: el individualismo, el primado de la razón instrumental y la alienación del individuo en relación a la esfera política. Evitando una lectura restrictamente negativa de tales fenómenos, Taylor los presenta como transformaciones de las configuraciones dinámicas que constituyen los procesos identitarios modernos. Emprendemos un rescate de las nociones de identidad y autenticidad presentes en las citadas obras con el objetivo de hacer una comprensión sintética de tal escenario, así como de las posibilidades presentadas por el autor de su superación, es decir, del rescate de sentidos perdidos por la fragmentación individualista.

Palabras clave:
autenticidad; identidad; individualismo; posmodernidad

Abstract

The collapsing of communitarian relations and the increasing isolation of individuals in relation to each other figure prominently in the studies of various authors who sought to describe contemporary ways of life. We address this issue as presented by Charles Taylor in Sources of the Self and in The ethics of authenticity. The author identifies three “malaises” that are present in modern society: individualism, the primacy of instrumental reason and the alienation of individuals from the political sphere. Proposing to avoid a restrictively negativist reading of such phenomena, Taylor presents them as transformations of the dynamic frameworks that constitute the modern identity. We undertook a study of the notions of identity and authenticity as presented in those books, aiming at a synthetic comprehension of this issue and investigating the possibilities of overcoming it, that is, of recovering the meanings lost by an individualist fragmentation.

Keywords:
authenticity; identity; individualism; postmodernity

Introdução

Referência mundial sobre o tema do multiculturalismo, especialista em Hegel e marcado pela leitura das filosofias de Merleau-Ponty e de Wittgenstein1 1 Cf. Sobre a importância de Merleau-Ponty e Wittgenstein para seu pensamento, conferir Lara (1998, p. 354). , Charles Taylor é um dos principais filósofos vivos da contemporaneidade, tendo recebido recentemente, ao lado de Habermas, o prêmio Kluge de 2015, concedido pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos.

Sua importância é notória também para a área de Psicologia, pois seus estudos tratam da formação e do mal-estar do self contemporâneo. Em particular, em seu monumental As fontes do self: a construção da identidade moderna, Charles Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)) empreende uma genealogia do self ocidental contemporâneo sob a perspectiva do campo moral, mais precisamente a partir disso que ele chamou de bens constitutivos ou avaliações fortes que definem e orientam o comportamento subjetivo na cultura ocidental. Conforme comentário de Montefiore (1998Montefiore, A. (1998). Choisir son identité? In P. Lara, & G. Laforest (Orgs.), Charles Taylor et l’interprétation de l’identité moderne (pp. 97-113). Laval: Les Presses de l’Université Laval, Les Éditions du Cerf.) a esse respeito, “avaliações fortes são essas que impactam, precisamente, sobre toda uma maneira de viver, de ser” (p. 107).

Dados os limites e objetivos deste trabalho, tomaremos como carro-chefe de apresentação a obra A ética da autenticidade (Taylor, 1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)), na medida em que ela representa uma síntese do resultado de As fontes do self (Taylor, 1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)), focando no que o autor chama de “mal-estares” da modernidade. Tomando-os em sua reflexão como “fontes de preocupação”, Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) define tais mal-estares como “características de nossa cultura ou sociedade contemporâneas que as pessoas experimentam como uma perda ou um declínio, mesmo enquanto nossa civilização se desenvolve” (p. 11). O autor reconhece uma convergência de discussões a respeito desse tema que, de maneira geral, giram em torno de uma ideia central, que é a do modo individualista de ser do homem contemporâneo. Trata-se, portanto, de uma temática bastante abordada e revisitada, sob perspectivas diversas. No entanto a reflexão de Taylor se diferencia ao realizar um enfoque propositivo, priorizando a busca por formas de superação, mediante uma estratégia que consiste em pensar o individualismo a partir de uma perspectiva longitudinal, levando em conta não apenas os aspectos de perda ou declínio, mas também os ganhos possíveis e legítimos ligados ao que ele chama de cultura da autenticidade. No bojo dessa discussão, buscaremos delinear de que forma surgem, no pensamento do autor, as formulações a respeito da identidade pessoal no contexto da sociedade contemporânea, bem como sua relação com a noção de autenticidade que delas decorre.

Nosso interesse se volta, portanto, para uma das problemáticas centrais de A ética da autenticidade, na medida em que se trata de compreender os modos de vida do sujeito contemporâneo em relação às configurações culturais que lhes dão suporte, entendendo que o “mal-estar” inerente a tais modos de vida revela certos limites e tensões internos à noção contemporânea de identidade pessoal. Nesse sentido, retomamos algumas das reflexões do autor sobre o tema em seu trabalho anterior, As fontes do self, em que, ao mesmo tempo em que se apresenta uma investigação acerca das condições de origem da configuração moderna, também são lançadas as bases da compreensão de Taylor a respeito da noção de identidade, mais especificamente a forma como tal problemática exige um tratamento no âmbito da filosofia moral.

Individualismo e autenticidade

Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) identifica três fontes de preocupação centrais na contemporaneidade: o individualismo, a primazia da razão instrumental e a alienação da esfera política. Fortemente ligados entre si, o autor reconhece que o individualismo assume aqui o papel crucial na discussão. De maneira geral, trata-se de um modo de vida com foco excessivo no âmbito individual, em que figura a prevalência do “âmbito interno” em detrimento de qualquer relação ou exigência de “ordem externa”. Já a primazia da razão instrumental é um segundo termo que tem origem próxima à do individualismo, uma contrapartida deste no modo de pensar e de se relacionar com a natureza e com outrem. Por fim, relacionada ao individualismo e à primazia da razão instrumental, o autor identifica uma alienação do indivíduo em relação à esfera política, um desinteresse e descrença geral no engajamento em questões ligadas ao coletivo, conjunto cuja expressão emblemática é o surgimento de formas paternalistas e pouco representativas de governo.

O individualismo diz respeito, portanto, ao modo de ser no qual prevalece um enfoque excessivo na esfera pessoal, em que o particular sempre aparece como mais importante e, em última instância, mais dotado de sentido e propósito do que o coletivo. Trata-se de um posicionamento que perpassa os ideais de autorrealização, autossuficiência e livre escolha. Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) atribui à prevalência de tais ideais na atualidade a um efetivo rompimento que o homem contemporâneo realizou em relação a horizontes morais restritivos. Aqui o autor se refere aos momentos históricos anteriores nos quais prevaleciam cenários de pouca possibilidade de escolha dos indivíduos a respeito do modo de viver suas próprias vidas. Instituições como a família e a religião ocupavam um lugar central na vivência particular e comunitária sem distinção, se estruturando na experiência individual como sistemas de valores dados ou, em certa medida, indiscutíveis. Assim, havia pouca mobilidade, pouco espaço para criação e escolha de valores individuais. A forma de constituir e vivenciar a família era unívoca, identificada a uma maneira específica de arranjo que prescrevia inclusive divisões a respeito dos deveres e responsabilidades conforme o gênero. Assim também o era com a religião, constituindo-se um valor central e determinado segundo afiliações familiares e sociais prévias a qualquer escolha do sujeito a respeito do modo como viver sua própria espiritualidade. O mesmo poderíamos dizer a respeito das relações trabalhistas, afiliações a movimentos políticos e outros aspectos diversos que envolvem a articulação da vida social.

Tomada a partir de um olhar contemporâneo, a possibilidade de escolher o modo como viver a própria vida representa um efetivo ganho de liberdade, um aspecto positivo que o homem contemporâneo adquire em relação a seus antepassados. O conceito de originalidade, trazido mais à frente na discussão do autor, de certa forma constitui um lugar comum no nosso entendimento contemporâneo da subjetividade, referindo-se ao fato de que cada indivíduo tem uma maneira original, própria, de ser humano.

Sob essa perspectiva, o ponto de inflexão se inicia com a modernidade, uma vez que o mundo pré-moderno se apresenta como um cenário pouco propício ao exercício e desenvolvimento da originalidade, no sentido de determinação subjetiva de modos de vida essencialmente individuais, ou seja, que se pautem por uma perspectiva própria ou pessoal de valores. Ou seja, com o advento da modernidade, os cenários nos quais se configuravam modos de ser de maneira restritiva - pouco sustentadores da liberdade de criação ou de escolha pessoal - passam a ser vividos pelos indivíduos como situações de sofrimento decorrentes do embate entre seu desejo individual de autorrealização e os valores sociais que adquiriam a forma de imposição de normas. É nesse sentido que Ehrenberg (2000Ehrenberg, A. (2000). La fatigue d’être soi: dépression et societé. Paris: Odile Jacob.) elege a neurose como a psicopatologia típica da segunda metade do século XIX até a primeira metade do XX, uma vez que ela expressa o conflito entre o indivíduo e a moral ou as normas sociais, sobretudo marcantes na era vitoriana. Ora, o afrouxamento desse horizonte de valores restritivos representaria para o sujeito moderno a possibilidade de vivenciar a realização pessoal de maneira mais efetiva ou autêntica, e este ganho de liberdade equivaleria, assim, à possibilidade de uma vida mais plena de sentidos.

A compreensão de Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)), no entanto, se por um lado reserva à modernidade a possibilidade de ter razão em alguma medida no que diz respeito à questão do ganho de liberdade, se diferencia de uma leitura que veria na passagem do tradicional ao moderno um simples afrouxamento de uma situação essencialmente cerceadora das liberdades individuais absolutas. A questão é recolocada pelo autor sob os contornos do tema do sentido vivido e experienciado de mundo. Em sua análise, o que se observa é um deslocamento dos sistemas objetivos de valores ou de “bens superiores” que antes se encontravam presumidos na percepção do mundo exterior (o próprio mundo configurava e portava tais sentidos) e que, com o advento da modernidade, recuam para a esfera pessoal (Taylor, 1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)).

Ou seja, trata-se de compreender de que forma o recuo desse campo de sentidos, que antes correspondia a uma vivência com sentido transcendente e agora se encontra cada vez mais voltado aos espaços particulares e tendendo sempre para um “interior”, se desdobra em uma experiência efetiva de mal-estar característica do atual momento histórico (Taylor, 1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)). Para melhor situar o que está em jogo aqui, resgatemos brevemente algumas das referências com as quais o autor dialoga nesse percurso.

O contexto da crítica de Taylor

O pensador francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), já no século XIX, versando a respeito da democracia norte-americana, apontava para uma vivência desprovida de um propósito maior, interessada em aspectos “mesquinhos” da existência e desligada de um sentido coletivo ou transcendental aos interesses individuais (Tocqueville, 1835/2004Tocqueville, A. (2004). A democracia na América - Livro II: sentimentos e opiniões (E. Brandão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1835)). No contexto da democracia, o homem teria perdido seu senso de preocupação com os outros, sob certa forma de nivelamento social que, ao mesmo tempo em que busca garantir a igualdade, tem como efeito perverso um autocentramento excessivo que, em última instância, leva ao desinteresse pelo outro ou mesmo pela sociedade. Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) reconhece que o trabalho de Tocqueville (1835/2004Tocqueville, A. (2004). A democracia na América - Livro II: sentimentos e opiniões (E. Brandão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1835)) antecipa a questão do mal-estar contemporâneo de maneira precisa, especificamente onde articula certo vazio de sentido da vivência individual com a perda efetiva de liberdade política acarretada pela alienação generalizada em relação à esfera pública.

Por outro lado, Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)) ressalta a afirmação da vida cotidiana como um dos aspectos centrais da constituição da identidade moderna, caracterizando uma decisiva transferência do “locus do bem viver de um conjunto especial de atividades superiores para dentro da própria ‘vida’” (p. 276). Considerado em sua amplitude, tal fenômeno não deve ser identificado destarte simplesmente sob a perspectiva negativa, já que possibilita não apenas a perda de sentidos por meio da alienação, mas ainda a possibilidade de uma vivência mais plena de sentidos na vida cotidiana e no trabalho comum. Para além do âmbito estritamente político da reflexão de Tocqueville, o autor chama a atenção, aqui, para a existência de um sentido comunitário precedente à desintegração desse espaço público de ação no avanço das sociedades democráticas. O problema é menos a afirmação da vida cotidiana do que o esfacelamento da dimensão comunitária de sentidos que inicialmente a sustenta.

O pessimismo de Tocqueville ressoa também nas críticas do historiador norte-americano Christopher Lasch (1932-1994), o qual usa o termo “narcisismo” para definir o modo de ser individualista. Em Lasch (1979/1983Lasch, C. (1983). A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1979)), encontramos a autoabsorção com o eu como contraparte psicológica de um retraimento de sentidos de mundo, o qual o autor explora de forma crítica e minuciosa em aspectos diversos, perpassados pelo autocentramento, perda de horizontes socializados de sentido, hedonismo e imediatismo da experiência. O autor enfatiza a necessidade de reconhecer no narcisismo contemporâneo algo que vai além de uma manifestação coletiva do puro egoísmo. Afirma que o uso do termo não deve ser compreendido como mera metáfora, reconhecendo nele um componente verdadeiramente patológico, lançando mão de uma leitura possível da ideia de narcisismo na psicanálise, que em seus estudos clínicos haveria capturado componentes deste modo de ser decorrente da cultura do narcisismo, ainda que de maneira involuntária, segundo o autor.

Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)) aponta para a importância do trabalho de Lasch (1979/1983Lasch, C. (1983). A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1979)) no sentido de indicar as condições de surgimento desse novo tipo de “mal-estar”. Suplantando as formações neuróticas dos estudos clássicos de Freud, o que se identificaria, segundo o historiador, a partir da segunda metade do século XX como mal-estar característico da época, seriam os quadros de sofrimento relativos à sensação generalizada de vazio, falta de propósito ou de futilidade, o que poderia ser identificado como uma “perda do ego”. Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)) aponta, no entanto, que a compreensão da relação entre essas situações e as condições culturais (ou, do modo como ele afirma, “não patológicas”) que aparentemente as possibilitam exige uma explicitação mais clara das estruturas do self, ou seja, da configuração exata que a questão da identidade adquire em tais condições, como mostraremos adiante.

O desinvestimento generalizado em relação ao público e a perda de sentido das grandes instituições da vida social aparecem também nas análises de Gilles Lipovetsky (1983/2005Lipovetsky, G. (2005). A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, SP: Manole. (Trabalho original publicado em 1983)) a respeito do que ele nomeia hipermodernidade. O autor define como processo de personalização o enfoque excessivo no âmbito individual que acaba por não apenas restringir, mas também por transformar a relação com o outro. Afirma haver uma suavização dos conflitos, no sentido de que, a partir da personalização, a superficialidade das relações garante a coexistência de forças opostas sem que haja real encontro ou debate. Somados ao imediatismo, que perpassa as relações sociais nos mais diversos âmbitos, o autor descreve um neonarcisismo pautado pelo encapsulamento do individual e sentimento profundo de indiferença. Em contraponto ao conceito marxista, afirma que a alienação na contemporaneidade não advém da mecanização do trabalho mais do que de um sentimento generalizado de apatia mediante um campo vertiginoso de possibilidades de escolha individual.

Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) reconhece em Lipovetsky (1983/2005Lipovetsky, G. (2005). A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, SP: Manole. (Trabalho original publicado em 1983)) a descrição precisa do fenômeno do individualismo, em especial no que tange à relação entre o autocentramento excessivo e estreitamento ou nivelamento de sentidos vividos. Além disso, pode-se reconhecer, como o próprio autor destaca, maior proximidade entre sua reflexão e a de Lipovetsky (1983/2005Lipovetsky, G. (2005). A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, SP: Manole. (Trabalho original publicado em 1983)) no sentido de que ambos se resguardam de uma postura excessivamente negativista da questão, ao apontar tais fenômenos não apenas enquanto perda ou declínio, mas ainda em seu caráter positivo, efetivamente formativo de modos de vida, que adquirem em ambos uma configuração permeada pelo paradoxal. O modo de vida que Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) identifica como “individualismo” encontra em Lipovetsky (2004/2011Lipovetsky, G. (2011). Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. In G. Lipovetsky & S. Charles, Os tempos hipermodernos (M. Vilela, trad., pp. 49-103). São Paulo, SP: Barcarolla. (Trabalho original publicado em 2004)) uma origem que também remonta ao recuo de horizontes organizadores de sentido identitário:

A cultura hipermoderna se caracteriza pelo enfraquecimento do poder regulador das instituições coletivas e pela autonomização correlativa dos atores sociais em face das imposições de grupo, sejam de família, sejam da religião, sejam dos partidos políticos, sejam das culturas de classe. Assim, o indivíduo se mostra cada vez mais aberto e cambiante, fluido e socialmente independente. (Lipovetsky, 2004/2011Lipovetsky, G. (2011). Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. In G. Lipovetsky & S. Charles, Os tempos hipermodernos (M. Vilela, trad., pp. 49-103). São Paulo, SP: Barcarolla. (Trabalho original publicado em 2004), p. 83)

Porém, o enfoque de Lipovetsky (2004/2011Lipovetsky, G. (2011). Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. In G. Lipovetsky & S. Charles, Os tempos hipermodernos (M. Vilela, trad., pp. 49-103). São Paulo, SP: Barcarolla. (Trabalho original publicado em 2004)) na descrição de tal processo se encontra justamente nessa simultânea dicotomização e intensificação2 2 Encontramos a mesma avaliação em Resnick (1998). , que tem como resultado polarizações dos valores e uma relação diferenciada com o tempo. O presentismo das relações e modos de convivência social acaba por estruturar modos de vida e sistemas de valoração cuja característica mais marcante é a efemeridade. Em termos de constituição identitária, reina a superficialidade e fluidez dos sentidos e posições subjetivas. Em termos afetivos, observa-se um sentimento crescente e generalizado de insegurança, incerteza e ansiedade em relação ao futuro, bem como um tipo específico de depressividade ligado ao vazio de sentido ou tédio. Ou, em paralelo com a referência que fizemos à neurose como a psicopatologia típica entre os séculos XIX e XX, a depressão passa a ser a psicopatologia típica contemporânea, ainda que a interpretação de suas causas receba leituras diferentes. Ehrenberg (2000Ehrenberg, A. (2000). La fatigue d’être soi: dépression et societé. Paris: Odile Jacob.), por exemplo, a elege como a manifestação típica do esgotamento ou insuficiência do si diante das inúmeras exigências de sua performance.

Muito se destaca, pois, nesses autores, relacionada à ideia do individualismo e dos modos de vida narcisistas ou hedonistas que dele advém, uma concepção de que o sujeito contemporâneo ou hipermoderno é sobretudo um sujeito focado no presente. Constata-se essa característica com facilidade na lógica de produção do capitalismo tardio, que preza pelo imediatismo de resultados e visa sempre o cumprimento de metas em crescente e acelerada expansão.

Uma das consequências mais perceptíveis do poder do regime presentista é o clima de pressão que ele faz pesar sobre a vida das organizações e das pessoas. . . . Sempre mais exigências de resultados a curto prazo, fazer mais no menor tempo possível, agir sem demora: a corrida da competição faz priorizar o urgente à custa do importante, a ação imediata à custa da reflexão, o acessório à custa do essencial. (Lipovetsky, 2004/2011Lipovetsky, G. (2011). Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. In G. Lipovetsky & S. Charles, Os tempos hipermodernos (M. Vilela, trad., pp. 49-103). São Paulo, SP: Barcarolla. (Trabalho original publicado em 2004), p. 77)

Ora, conforme aponta Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)), a tendência das ciências humanas é subestimar o papel de determinados componentes mais “abstratos” relativos aos modos de vida em determinado contexto sociocultural, a favor de explicações mais “concretas”. Assim, determinada transformação na forma de produção pode ser vista como totalizando o fenômeno em questão, e a ideologia presentista não seria mais que seu efeito. Mas o imediatismo e o presentismo se apresentam antes como características gerais dos processos de subjetivação da contemporaneidade do que como meros efeitos de transformações ocorridas no ambiente econômico. Uma análise que preze apenas pelos fatores ditos “concretos” deixa de levar em conta a outra face da questão, o que também será alvo do interesse de Lipovetsky (2004/2011Lipovetsky, G. (2011). Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. In G. Lipovetsky & S. Charles, Os tempos hipermodernos (M. Vilela, trad., pp. 49-103). São Paulo, SP: Barcarolla. (Trabalho original publicado em 2004)) na medida em que o autor pretende explicitar o caráter dicotômico dos fenômenos hipermodernos: “Os efeitos produzidos pela nova ordem do tempo extrapolam em muito o universo do trabalho; eles se concretizam na relação com o cotidiano, com o eu e com os outros. . . . Quanto mais depressa se vai, menos tempo se tem” (Lipovetsky, 2004/2011Lipovetsky, G. (2011). Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. In G. Lipovetsky & S. Charles, Os tempos hipermodernos (M. Vilela, trad., pp. 49-103). São Paulo, SP: Barcarolla. (Trabalho original publicado em 2004), p. 78).

Nesse sentido, a sujeição ao tempo acelerado é, simultaneamente, expressão de uma vivência de escassez do tempo, sendo ameaças paralelas ao ganho de liberdade e poder de organização da vida individual3 3 Trata-se, também, de um fenômeno marcante que tem atraído a atenção de muitos pesquisadores. Conferir, em especial, Rosa (2010, 2012) e Aubert (2003). . Além disso, paradoxalmente, a produtividade e o gozo do momento apresentam-se de maneira sincrônica.

De um lado, um tempo comprimido, “eficiente”, abstrato; de outro, um tempo de foco no qualitativo, nas volúpias corporais, na sensualização do instante. Assim é que a sociedade ultramoderna se apresenta como uma cultura desunificada e paradoxal. Um acasalamento de contrários que só faz intensificar dois importantes princípios, ambos constitutivos da modernidade técnica e democrática: a conquista da eficiência e o ideal da felicidade terrena. (Lipovetsky, 2004/2011Lipovetsky, G. (2011). Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. In G. Lipovetsky & S. Charles, Os tempos hipermodernos (M. Vilela, trad., pp. 49-103). São Paulo, SP: Barcarolla. (Trabalho original publicado em 2004), p. 81)4 4 Ver também, nesse sentido, mas de forma mais crítica, Gaulejac & Hanique (2015).

Diversas análises identificam o fenômeno do consumismo exacerbado ou do “hiperconsumo” como emblemático da busca individualista por um prazer reconhecidamente momentâneo. Lipovetsky (2004/2011Lipovetsky, G. (2011). Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. In G. Lipovetsky & S. Charles, Os tempos hipermodernos (M. Vilela, trad., pp. 49-103). São Paulo, SP: Barcarolla. (Trabalho original publicado em 2004)) contrapõe a essa análise o caráter que o hiperconsumo tem de promessa de renovação da experiência temporal. Mais do que satisfazer uma falta reconhecidamente momentânea, o consumo surge como tentativa sempre renovada de reintensificar o cotidiano: “Talvez esteja aí o desejo fundamental do consumidor hipermoderno: renovar sua vivência do tempo, revivificá-la por meio das novidades que se oferecem como simulacros de aventura” (Lipovetsky, 2004/2011Lipovetsky, G. (2011). Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. In G. Lipovetsky & S. Charles, Os tempos hipermodernos (M. Vilela, trad., pp. 49-103). São Paulo, SP: Barcarolla. (Trabalho original publicado em 2004), pp. 79-80).

Mas, enquanto Lipovetsky (2004/2011Lipovetsky, G. (2011). Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. In G. Lipovetsky & S. Charles, Os tempos hipermodernos (M. Vilela, trad., pp. 49-103). São Paulo, SP: Barcarolla. (Trabalho original publicado em 2004)) enfoca as relações de consumo no que ele chama de funcionamento-moda e a forma como elas configuram uma relação ambígua e paradoxal do sujeito hipermoderno com o próprio tempo, Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) destaca o caráter de encobrimento ou inarticulação que a questão identitária adquire no contexto do que ele chamará de “relativismo suave”. Isto é, para o filósofo canadense, trata-se de retraçar a experiência de perda de sentido até a própria inarticulação do sujeito contemporâneo a respeito de seus próprios horizontes morais de ação, cuja contrapartida é a valorização da escolha livre como produtora de sentido em si mesma.

Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) identifica uma relação íntima entre os aspectos ambíguos do individualismo contemporâneo, traçando uma origem comum tanto para a liberdade de escolha autêntica de modos de vida quanto para os modos narcísicos ou egoístas que desembocariam na condição que identificamos de maneira geral como mal-estar. Nesse ponto, cabe destacar dois alertas do filósofo a respeito de sua reflexão, os quais também são ilustrativos do modo como o pensamento contemporâneo nos enreda e dificulta que haja um debate articulado a respeito de tais questões.

Primeiramente, trata-se de reconhecer que não se intenta atingir com essa leitura da relação entre liberdade e individualismo uma avaliação do tipo custo/benefício ou de aspectos positivos versus aspectos negativos das transformações da contemporaneidade (Taylor, 1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)). A tendência para uma avaliação desse tipo pode ilustrar justamente uma propensão ao uso indiscriminado da razão instrumental para abordar as questões dos mais diversos âmbitos, as quais nem sempre se oferecem bem a esse tipo de enfoque. O autor acredita que este é exatamente o caso, apontando para o fato de que se trata de uma discussão moral e que, portanto, diz respeito a uma dimensão de diálogo ou interlocução, e não de um entendimento a respeito de sentidos preexistentes ou quantificáveis. De forma simplificada, o autor sinaliza que a avaliação custo/benefício compreende uma relação entre sujeito e objeto, enquanto a discussão moral implica necessariamente uma relação entre sujeitos, um diálogo sobre os grandes objetivos da vida5 5 Conferir Bouveresse (1998). .

Em segundo lugar, o autor destaca as dificuldades em articular um debate desse tipo no contexto em questão. O retraimento dos temas morais à esfera do particular representa a primeira dificuldade. Partindo-se do pressuposto de que cada indivíduo deve buscar por si próprio definir seus valores e determinar o que é bom para si mesmo, qualquer inferência “externa” a respeito do tema pode ser rapidamente descartada, sob pretexto de versar sobre algo que simplesmente não lhe diz respeito. Aqui, Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) evoca as reflexões de Bloom (1987Bloom, A. (1987). The closing of the American mind. New York: Touchstone.), que se volta a essa problemática defendendo a ideia de que por trás da aparente abertura e flexibilidade que esse posicionamento proporciona há, na verdade, um fechamento correspondente à incapacidade de pensar criticamente questões importantes e centrais na vida cotidiana, sob a sombra do relativismo. Ou seja, trata-se de reconhecer que a própria configuração do pensamento contemporâneo torna oblíquo qualquer esforço em adereçar certos aspectos de seu funcionamento.

Identidade como orientação

Neste ponto, consideramos relevante resgatar as reflexões do autor a respeito do tema em As fontes do self. Nesse momento, Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)) se volta para a análise aprofundada das condições gerais de construção da identidade moderna, por meio da identificação do que ele denomina de fontes morais. Se, por um lado, tal investigação claramente ultrapassa nosso escopo presente, por outro, nos é bastante relevante a reflexão do autor a respeito do conceito de identidade e sua relação com o “bem”, que é a base para se compreender o que o autor tem em mente quando se refere a horizontes morais.

A tese do autor é de que o conceito de identidade é indissociável do conceito de bem e que, portanto, evoca necessariamente uma reflexão no âmbito moral. Na acepção de Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)), identificam-se três eixos gerais do que em última instância pode ser tratado como “pensamento moral”. Tratam-se aqui (1) do sentido de respeito e obrigações em relação ao outro (no sentido de “fazer o bem”); (2) dos modos de pensar o que constitui uma vida plena (no sentido de identificar em que consiste um “bom” viver); e, por fim, (3) dos sentidos relativos à dignidade (relativos ao caráter motivacional que sustenta as assertivas morais - diferenciando-se aqui um respeito “atitudinal” em oposição ao respeito “de direito” do primeiro eixo). Interessa-nos aqui, especificamente, o segundo eixo, que diz respeito ao uso de uma linguagem posicionada em termos morais, que Taylor chama de “avaliações fortes”, para pensar o sentido da própria vida.

Voltemo-nos inicialmente à noção de identidade de maneira geral, para depois explicitarmos de que forma a questão adquire contornos específicos no período contemporâneo. Segundo Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)), é necessário reconhecer que a resposta à interrogativa “quem sou eu?” não se esgota pelo enunciar do nome nem mesmo pela árvore genealógica, mas que tal resposta evoca de forma privilegiada o âmbito moral6 6 Para uma discussão mais detalhada dessa questão, conferir Montefiore (1998). .

O que nos responde de fato essa interrogação é uma compreensão daquilo que tem importância crucial para nós. Saber quem sou é uma espécie de saber em que posição me coloco. Minha identidade é definida pelos compromissos e identificações que proporcionam a estrutura ou o horizonte em cujo âmbito posso tentar determinar caso a caso o que é bom, ou valioso, ou o que se deveria fazer ou aquilo que endosso ou a que me oponho. Em outros termos, trata-se do horizonte dentro do qual sou capaz de tomar uma posição. (Taylor, 1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989), pp. 43-44)

Com isso, Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)) propõe uma definição de identidade como orientação em um espaço moral. Assim, lança bases importantes para sua compreensão da questão identitária no contexto contemporâneo e mesmo do que virá a definir posteriormente como mal-estar. Usando o que denomina como princípio da melhor descrição, é defendida a ideia de que, ao lidar com temas ligados aos fenômenos humanos, não se deve abrir mão de uma descrição que ofereça compreensão precisa de determinada experiência em favor de quaisquer pressupostos ontológicos adotados de antemão. Trata-se de um esforço que o autor denomina como uma espécie de “fenomenologia moral” (Taylor, 1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989), p. 96). Partindo do reconhecimento da necessidade de reservar, na linguagem, distinções qualitativas a respeito de valores (aquilo que o filósofo aborda em outros momentos como “avaliação forte”), Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)) apresenta as questões morais como imprescindíveis a uma descrição precisa da experiência humana vivida. A questão da identidade enquanto orientação em relação ao bem talvez seja um ponto onde mais explicitamente esse argumento da fenomenologia moral se faz presente.

Pois toda a condição de self se revela, mediante tal descrição, não como conjunto de enunciados positivos a respeito de determinada individualidade, mas, antes e mais originariamente, enquanto busca. A noção de identidade enquanto orientação pressupõe esse caráter de busca, e ser um self é, assim, ser essa busca constante por uma forma de viver bem. Tal caráter de projeto se apresenta, segundo o autor, como um requisito à condição de ser um si. Não se trata, portanto, de uma escolha ou opção, mas antes de algo que se revela no exame dos limites do concebível na vida humana, uma condição incontornável da experiência de possuir uma identidade.

Porém não é apenas o caráter de busca ou projeto que a definição da identidade como orientação oferece. Pois, ao se falar em orientação ou posição, evoca-se necessariamente um espaço onde ela pode acontecer. Não há orientação ou posicionamento em meio ao nada ou no vazio absoluto. Como vimos, Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)) se utiliza explicitamente da imagem da orientação espacial para exemplificar tais pontos e destaca a noção de que tal busca se dá sempre num espaço ou horizonte moral, que é o que o autor define como “configuração” (framework).

Desejo defender a tese forte de que é praticamente impossível à pessoa humana prescindir das configurações; em outras palavras, que os horizontes no seio dos quais levamos a vida e a compreendemos têm de incluir essas discriminações qualitativas fortes. Em acréscimo, não se pretende dar a isso o mero sentido de um fato psicológico contingentemente verdadeiro acerca dos seres humanos, algo que talvez pudesse um dia não se aplicar a algum indivíduo excepcional ou um novo tipo de ser humano, algum super-homem da objetificação desprendida. O que afirmo é que viver no âmbito desses horizontes fortemente qualificados é algo constitutivo do agir humano, que sair desses limites equivaleria a sair daquilo que reconheceríamos como a pessoa humana integral, isto é, intacta. (Taylor, 1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989), p. 43)7 7 Nesse sentido, Oliveira (2006) traz a passagem da leitura de Taylor sobre Humboldt, a concepção de língua e fala em Saussure, e a concepção de jogos de linguagem de Wittgenstein para o campo da cultura. Ou seja, assim como não há linguagem privada (significados privados), pois toda fala significativa pressupõe a possibilidade de reconhecimento de seu sentido, a começar por aquele que fala, também não há concepção privada de bem, pois toda concepção de bem pressupõe o campo moral no qual ele é reconhecido, isto é, socialmente, como no caso da linguagem. Nesse sentido, como destaca Taylor (1995/2000), a concepção de bem não é redutível ao próprio indivíduo, ela é irredutivelmente social. O que não significa que não haja mutabilidade, assim como operações de fala podem mudar a língua ao longo do tempo, mas sempre inseridas nas regras do campo em que elas se dão, mudando-as, então, internamente, por seu desgaste ou por meio de desvios laterais, porém nunca se colocando fora do campo em que se realizam. Dito em poucas palavras, a mudança sempre ocorre se apoiando em parte no conjunto de regras que lhe dão consistência ou possibilidade de reconhecimento, o que vale tanto para a língua quanto para a cultura. Por esse ângulo não acompanhamos Oliveira (2006) naquilo que ela considera a defesa da concepção de um bem cultural fixo na teoria de Taylor, cujo risco seria o fundamentalismo. Fosse assim, Taylor (1989/2013) não teria empreendido a genealogia da formação do self ocidental moderno, que trata justamente desse percurso de horizontes morais, com suas mudanças e permanências.

Como adiantamos, Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)) afirma que, na contemporaneidade, a questão identitária adquire contornos próprios, especificamente em relação ao sentido dessa busca, que surge em meio a um questionamento explícito e mais profundo se comparado a outros momentos históricos. O indivíduo contemporâneo é aquele que não apenas busca sentido de maneira explícita (e isso tem relação com a forma como se apresentam as configurações em que tal busca se dá num contexto individualista e expressivista), como também, em última instância e pela radicalização desse movimento, tematiza a própria busca enquanto sentido a ser articulado e posto sempre em xeque, visto que a modernidade rompeu com a assunção dos valores morais como objetivos ou presentes já na ordem natural do mundo (Taylor, 1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989) p. 65).

O campo moral

O fruto tardio desse processo inaugurado pela modernidade e que representa nossa contemporaneidade tende, no entanto, a esquecer ou subestimar, conforme procuramos mostrar até aqui, que o próprio valor de individualidade é um processo cultural, elaborado, portanto, pela coletividade. E é justamente nessa dinâmica, entre a identidade enquanto orientação para o bem e o horizonte moral em que ela se insere, que a questão do mal-estar na contemporaneidade ganha seus contornos mais definitivos. A preocupação com relação à própria identidade adquire assim, sob a ótica de Taylor, o caráter de busca inescapável e necessariamente vinculada a configurações determinadas de um campo de distinções qualitativas culturalmente instituído. Trata-se, portanto, de um caráter duplo: não apenas diz respeito à tomada de posição individual em relação a assuntos morais, mas também necessariamente faz referência a uma comunidade definitória. Ora, na primeira parte de “As Fontes do Self”, já na articulação da noção de identidade e sua relação com o “bem”, Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)) adianta a problemática que ocupa o argumento central de sua investigação posterior em A ética da autenticidade. A saber, na contemporaneidade, a partir do advento dos modos de vida que identificamos aqui como individualistas, ocorre a dissociação do duplo caráter da questão da identidade. Se, por um lado, valoriza-se como nunca a tomada de posição individual, por outro, as configurações advindas da comunidade como necessariamente definitórias de tal movimento sofrem uma verdadeira oclusão.

Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) se refere ao “relativismo suave” ou “relativismo moral” para dar conta dessa característica, que diz respeito à dificuldade expressiva ou inarticulação existente na contemporaneidade em termos de debater sentidos de forma compartilhada. A opinião individual se converte em uma ilha de convicções que o debate viria apenas a violar e, a partir daí, o isolamento se dá em níveis variados de explicitação.

Assim se configura o paradoxo do indivíduo contemporâneo. De um lado, a valorização do primeiro caráter apontado por Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)), que é levada aos extremos do modo de vida individualista, identificados não apenas pelo autor, mas presentes também, como vimos, nas análises de Lasch (1983Lasch, C. (1983). A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1979)), quando este se refere ao narcisismo, mas de maneira talvez ainda mais consoante com a presente análise em Lipovetsky (2004/2011Lipovetsky, G. (2011). Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. In G. Lipovetsky & S. Charles, Os tempos hipermodernos (M. Vilela, trad., pp. 49-103). São Paulo, SP: Barcarolla. (Trabalho original publicado em 2004)), que lança mão do conceito de “hiperescolha” para retratar o caráter de valorização superlativa que o próprio movimento de posicionamento adquire no contexto atual. Do outro lado, o termo correspondente da relação de posicionamento se encontra obscurecido mediante as necessidades imperativas de autocentramento e autodeterminação. As configurações culturalmente instituídas parecem figurar apenas como pano de fundo para o movimento autêntico do indivíduo, que é esse posicionamento que se desenha a si mesmo sem referencial externo ou essa orientação que encontra suas coordenadas no próprio âmbito interno, para utilizar as imagens do Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)). Na esfera da compreensão da identidade enquanto questão moral, essa seria a definição do ideal de autenticidade conforme a distorção que o individualismo lhe atribui.

Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) ressalta que o relativismo moral torna oblíquo o fato de que existem ideais morais em jogo, que o individualismo opera como um ideal e, dessa forma, não se trata realmente de um cenário em que os diferentes modos de vida têm a mesma valoração. As pessoas não apenas têm liberdade de escolha, mas, em certa medida, são compelidas à escolha e à autorrealização como valor e finalidade em si, assim como certos aspectos da vida comunitária tinham valor e finalidade em si em momentos históricos anteriores. Nisso constitui a característica central das configurações sociais individualistas, que, portanto, continuam a se fazer presentes e a ter parte na orientação e posicionamento adotados pelos indivíduos que nela vivem, ainda que de maneira não representada explicitamente ou, no termo exato de Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)), de maneira inarticulada.

Baseando-se nesse cenário, o autor acredita que qualquer possibilidade de superação deverá partir de uma compreensão de que tais ideais morais influem diretamente nas formas de subjetivação, a nível pessoal e institucional. A partir dessa primeira consideração, trata-se de “levar a sério” o ideal moral da contemporaneidade e compreender, sob uma perspectiva interna, de que maneira ele configura uma vida individualista, narcísica, egoísta e, ao mesmo tempo, representa uma possibilidade real de vivência plena da autenticidade.

Realização pessoal e mal-estar

Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) efetiva essa proposta ao refletir a respeito dos pressupostos que o ideal de autenticidade oferece. Trata-se da compreensão de que cada ser humano, para viver uma vida plena, deve buscar sua realização pessoal (que varia de pessoa para pessoa - ideia de originalidade) de forma autônoma (ou seja, que tal busca deve se dar a partir do esforço próprio). A partir da compreensão de que os valores centrais das pessoas gravitam em torno da busca pela autorrealização, a qual em última instância deve ser uma criação pessoal independente de normas ou pressões sociais “externas”, podemos vislumbrar um modo de ser que opõe radicalmente um polo de interioridade (o “eu” enquanto única origem possível da autenticidade em relação a minha própria vida) e de exterioridade (o “social” enquanto pura exterioridade em relação a mim, fonte de normatizações e pressões diversas que frequentemente ameaçam a realização de meus movimentos autênticos).

O problema, constatado não apenas por Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)), mas por diversos de seus interlocutores, é que a realização desses projetos individuais de autorrealização se concretiza com uma tonalidade afetiva negativa, ligada a certa indiferença generalizada (de mim em relação ao outro, do outro em relação a mim e mesmo de mim em relação a minhas conquistas). Sob o risco de não viver uma vida plena, não realizar o próprio potencial ou desperdiçar o próprio tempo, o indivíduo contemporâneo se vê frequentemente levado a buscar um movimento de recuo em relação ao mundo, ao âmbito “externo”, pois é apenas com a clareza de seu poder interior de escolha que ele pode direcionar sua vida para longe do “fracasso existencial”, que é a grande ameaça presente na configuração contemporânea. Trata-se de uma forma de ameaça totalmente diversa daquela experienciada anteriormente ao processo de desencantamento de mundo (Taylor, 1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)).

Ou seja, enquanto em períodos anteriores os horizontes morais restritivos afirmavam certos imperativos, os quais se temiam não cumprir sob o risco de uma danação ela própria configurada em uma rede transcendente de sentidos, o que o indivíduo contemporâneo teme como fracasso é se ver às voltas com um vazio absoluto de sentidos. Toda escolha, toda a construção de identidade se dá, portanto, enquanto busca primeiramente de um modo de vida que garanta sentido, mesmo que não de forma assumida. Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)) chama de “hiperbens” os bens que se destacam mediante um campo de sentidos de vida e adquirem dessa forma um papel organizador de toda uma rede de bens. Pode-se identificá-los na vida familiar (algo que é próprio do indivíduo moderno, no que o autor chama de valorização da vida cotidiana), no sucesso profissional, na expressão artística ou na experiência religiosa, para citar alguns exemplos.

Porém o que não se pode deixar de levar em conta é que tais sentidos, embora vividos de maneira autêntica, não deixam de se apresentar sempre de forma precária ou, pelo menos, de forma menos plena do que em períodos anteriores. Ao mesmo tempo em que valoriza o sentido da vida cotidiana, em oposição a valores superiores como em outrora, esta tende a adquirir contornos de falta de sentido e inautenticidade na medida em que cada escolha feita pelo próprio sujeito para sua realização pessoal passa a ser vista como um limite. Ou seja, o que parece importar e em última instância ocupar um lugar central de bem organizador é a escolha livre e constante, que tende a desfazer ou a pôr em dúvida as próprias escolhas realizadas. Esse se torna o grande dever do homem contemporâneo, daí podermos falar em valorização da escolha ou da escolha como fim em si mesmo. E, como se trata de uma supervalorização do “interior” em relação ao “exterior”, o ato de escolha é identificado aqui a um rompimento com tudo que pode advir do âmbito do segundo termo, inclusive os valores escolhidos pelo sujeito, na medida em que passam a exigir dele certos compromissos para sua realização.

É justamente essa pressão silenciosa pela escolha, pela ruptura, aliada à perda do sentimento de pertença de que falávamos anteriormente que traz como efeito nefasto um sentimento generalizado de vazio que favorece o tédio ou apatia em relação à vida cotidiana. O processo é cíclico: mediante a ausência do sentimento de pertença, a uma vivência das relações pessoais perpassadas pela indiferença e superficialidade, o indivíduo se volta para si em busca de sentido. Porém, mesmo quando escolhas de vida são feitas e afirmadas, elas rapidamente são dispensadas pelo que Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) chama de banalização da escolha. Aqui reside o grande paradoxo do individualismo: ao mesmo tempo em que se valoriza o voltar-se para si e a escolha independente como fonte de sentido para a vida, tal sentido não faz parte da vivência efetiva das pessoas por se apresentar sempre envolto em uma atmosfera de banalidade.

Ora, podemos retraçar parte do sentimento de apatia e mal-estar até a compreensão estritamente subjetivista da atribuição de valores, com o cenário de desinteresse mútuo pelos valores alheios - contraparte do centramento excessivo no si mesmo, mas também efeito do próprio relativismo moral, em que a indiferença em relação aos ideais de outrem é uma exigência, praticamente uma questão de respeito mútuo.

Ou seja, a superação dessa verdadeira armadilha com a qual o homem contemporâneo se vê às voltas passa por reconhecer em que ponto o ideal de autenticidade deixa de se tornar possibilidade real de vida para se tornar essa vivência de uma silenciosa promessa vazia. Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) acredita que se trata de reconhecer aqui que o excessivo autocentramento promove uma crença falsa, uma abstração, que dá conta de que é possível constituir e vivenciar um sentido próprio independentemente da vivência comunitária, da qual os indivíduos buscam frequentemente se recolher. Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) sintetiza da seguinte forma essa reflexão a respeito da autenticidade:

Em suma, podemos dizer que a autenticidade (A) envolve (i) criação e construção, assim como descoberta, (ii) originalidade e, frequentemente, (iii) oposição às regras da sociedade e mesmo potencialmente ao que reconhecemos como moralidade. Contudo, também é verdade, como vimos, que (B) requer (i) abertura aos horizontes de significado (visto que de outro modo a criação perde o pano de fundo que pode salvá-la da insignificância) e (ii) uma autodefinição no diálogo. Há que se admitir que tais exigências podem estar em tensão. Mas o que deve estar errado é um simples privilégio de um sobre o outro, de (A), digamos, em detrimento de (B), ou vice-versa. (Taylor, 1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991), p. 73)

Ou seja, o autor identifica que o autocentramento advém de um “privilégio” de certas dimensões do problema, um esquecimento de determinados aspectos do que constituiria uma real experiência de autenticidade em favor de um foco exclusivo no particular, que o compreende enquanto primordialmente oposição ao coletivo.

É o que está em jogo quando fizemos menção ao fato de o debate moral como um debate inarticulado: como embate entre consciências, sem termo comum, um esforço desse tipo só pode redundar na constatação vazia da diferença. Sob a noção de identidade enquanto orientação para o bem, o problema da inarticulação adquire contornos definitivos ao passo que evoca necessariamente um nível comunitário de valoração e produção de sentidos. Como vimos, Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) sinaliza a importância do dialógico na constituição da identidade plena:

Ademais, este não é apenas um fato sobre gênese, que pode ser ignorado posteriormente. Não se trata apenas de que aprendemos as linguagens pelo diálogo e depois podemos seguir usando-as para nossos interesses sozinhos. Isso descreve até certo ponto a situação em nossa cultura. Espera-se que nós desenvolvamos nossas próprias opiniões, perspectivas, posições em relação às coisas, até um grau considerável através da reflexão solitária. No entanto, não é assim que as coisas funcionam com coisas importantes, tal como a definição de nossa identidade. Nós a definimos sempre em diálogo, por vezes em conflito, com as identidades que nossos outros significativos querem reconhecer em nós. E, mesmo quando superamos alguns dos últimos - nossos pais, por exemplo - e eles somem de nossa vida, a conversa com eles continua em nós pelo tempo que vivemos. (Taylor, 1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991), p. 43)

Assim, o sentimento de vazio em relação às próprias escolhas não diz respeito apenas à forma indiferente como elas são recebidas em um contexto social. Quando Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) alerta para a necessidade de abertura a um horizonte de significados, o que está em jogo é que a própria constituição de um projeto autêntico de vida depende de tais horizontes para se realizar. Esse é um dos aspectos ofuscados pela valorização da simples escolha. Qualquer escolha de vida se serve de um instituído que a precede, é transformação de um sentido de vida que não é constituído numa solidão reflexiva, mas em uma vivência dialógica de um mundo comum. Podemos reconhecer aqui determinada espécie de dimensão ontológica do comunitário.

O pensamento individualista, ao valorizar a pura escolha e o centramento excessivo no individual, desvaloriza o componente social necessário para constituir qualquer projeto de vida. Instrumentalizada, a vida cotidiana do indivíduo surge como meio para um fim maior que dela escapa e que a determina. E não teria como ser diferente, justamente porque o projeto de vida é identificado aí ao recuo em direção ao mundo por definição. Vimos que esse modo de pensar e agir constitui uma séria distorção, que acarreta aspectos perversos na composição do mal-estar contemporâneo. Procuramos apontar o modo como Taylor (1991/2011Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)) sinaliza para a possibilidade de sua superação, que passa necessariamente por repensar o conceito de autenticidade em seu vínculo social, destacando o que há de promissor nesse ideal, no sentido de resgatar os sentidos perdidos com a fragmentação individualista.

Referências

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  • Lasch, C. (1983). A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1979)
  • Lipovetsky, G. (2005). A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, SP: Manole. (Trabalho original publicado em 1983)
  • Lipovetsky, G. (2011). Tempo contra tempo, ou a sociedade hipermoderna. In G. Lipovetsky & S. Charles, Os tempos hipermodernos (M. Vilela, trad., pp. 49-103). São Paulo, SP: Barcarolla. (Trabalho original publicado em 2004)
  • Montefiore, A. (1998). Choisir son identité? In P. Lara, & G. Laforest (Orgs.), Charles Taylor et l’interprétation de l’identité moderne (pp. 97-113). Laval: Les Presses de l’Université Laval, Les Éditions du Cerf.
  • Oliveira, I. A. R. (2006). O mal-estar contemporâneo na perspectiva de Charles Taylor. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 21(60), 135-145.
  • Resnick P. (1998). À la recherche de la communauté perdue, Charles Taylor e la modernité. In P. Lara & G. Laforest (Orgs.), Charles Taylor et l’interprétation de l’identité moderne (pp. 319-339). Laval: Les Presses de l’Université Laval, Les Éditions du Cerf.
  • Rosa, H. (2010). Accélération: une critique sociale du temps. Paris: La Découverte.
  • Rosa, H. (2012). Aliénation et accélération: Vers une théorie critique de la modernité tardive. Paris: La Découverte.
  • Taylor, C. (2000). Bens irredutivelmente sociais. In C. Taylor, Argumentos filosóficos (A. U. Sobral, trad.). São Paulo, SP: Edições Loyola. (Trabalho original publicado em 1995)
  • Taylor, C. (2011) A ética da autenticidade (T. Carvalho, trad.). São Paulo, SP: É Realizações. (Trabalho original publicado em 1991)
  • Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)
  • Tocqueville, A. (2004). A democracia na América - Livro II: sentimentos e opiniões (E. Brandão, trad.). São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1835)
  • 1
    Cf. Sobre a importância de Merleau-Ponty e Wittgenstein para seu pensamento, conferir Lara (1998Lara, P. (1998). De l’anthropologie philosophique à la politique de la reconnaissance: entretien de Philippe de Lara avec Charles Taylor. In P. Lara & G. Laforest (Orgs.), Charles Taylor et l’interprétation de l’identité moderne (pp. 351-364). Laval: Les Presses de l’Université Laval, Les Éditions du Cerf., p. 354).
  • 2
    Encontramos a mesma avaliação em Resnick (1998Resnick P. (1998). À la recherche de la communauté perdue, Charles Taylor e la modernité. In P. Lara & G. Laforest (Orgs.), Charles Taylor et l’interprétation de l’identité moderne (pp. 319-339). Laval: Les Presses de l’Université Laval, Les Éditions du Cerf.).
  • 3
    Trata-se, também, de um fenômeno marcante que tem atraído a atenção de muitos pesquisadores. Conferir, em especial, Rosa (2010Rosa, H. (2010). Accélération: une critique sociale du temps. Paris: La Découverte., 2012Rosa, H. (2012). Aliénation et accélération: Vers une théorie critique de la modernité tardive. Paris: La Découverte.) e Aubert (2003Aubert, N. (2010). Le culte de l’urgence: la société malade du temps. Malesherbes: Flammarion.).
  • 4
    Ver também, nesse sentido, mas de forma mais crítica, Gaulejac & Hanique (2015Gaulejac, V., & Hanique, F. (2015). Le capitalisme paradoxant: un système qui rend fou. Paris: Éditions du Seuil.).
  • 5
    Conferir Bouveresse (1998Bouveresse, J. (1998). Musil, Taylor et le malaise de la modernité. In P. Lara & G. Laforest (Orgs.), Charles Taylor et l’interprétation de l’identité moderne (pp. 231-262). Laval: Les Presses de l’Université Laval, Les Éditions du Cerf.).
  • 6
    Para uma discussão mais detalhada dessa questão, conferir Montefiore (1998Montefiore, A. (1998). Choisir son identité? In P. Lara, & G. Laforest (Orgs.), Charles Taylor et l’interprétation de l’identité moderne (pp. 97-113). Laval: Les Presses de l’Université Laval, Les Éditions du Cerf.).
  • 7
    Nesse sentido, Oliveira (2006Oliveira, I. A. R. (2006). O mal-estar contemporâneo na perspectiva de Charles Taylor. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 21(60), 135-145.) traz a passagem da leitura de Taylor sobre Humboldt, a concepção de língua e fala em Saussure, e a concepção de jogos de linguagem de Wittgenstein para o campo da cultura. Ou seja, assim como não há linguagem privada (significados privados), pois toda fala significativa pressupõe a possibilidade de reconhecimento de seu sentido, a começar por aquele que fala, também não há concepção privada de bem, pois toda concepção de bem pressupõe o campo moral no qual ele é reconhecido, isto é, socialmente, como no caso da linguagem. Nesse sentido, como destaca Taylor (1995/2000Taylor, C. (2000). Bens irredutivelmente sociais. In C. Taylor, Argumentos filosóficos (A. U. Sobral, trad.). São Paulo, SP: Edições Loyola. (Trabalho original publicado em 1995)), a concepção de bem não é redutível ao próprio indivíduo, ela é irredutivelmente social. O que não significa que não haja mutabilidade, assim como operações de fala podem mudar a língua ao longo do tempo, mas sempre inseridas nas regras do campo em que elas se dão, mudando-as, então, internamente, por seu desgaste ou por meio de desvios laterais, porém nunca se colocando fora do campo em que se realizam. Dito em poucas palavras, a mudança sempre ocorre se apoiando em parte no conjunto de regras que lhe dão consistência ou possibilidade de reconhecimento, o que vale tanto para a língua quanto para a cultura. Por esse ângulo não acompanhamos Oliveira (2006Oliveira, I. A. R. (2006). O mal-estar contemporâneo na perspectiva de Charles Taylor. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 21(60), 135-145.) naquilo que ela considera a defesa da concepção de um bem cultural fixo na teoria de Taylor, cujo risco seria o fundamentalismo. Fosse assim, Taylor (1989/2013Taylor, C. (2013). As fontes do Self: a construção da identidade moderna (A. U. Sobral, D. A. Azevedo, trad.) São Paulo, SP: Edições Loyola. (Obra original publicada em 1989)) não teria empreendido a genealogia da formação do self ocidental moderno, que trata justamente desse percurso de horizontes morais, com suas mudanças e permanências.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    06 Maio 2019
  • Revisado
    23 Set 2019
  • Aceito
    16 Out 2019
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