Acessibilidade / Reportar erro

Pai: obstáculo epistemológico?

Father: epistemological obstacle?

Père : obstacle épistémologique?

Padre: ¿obstáculo epistemológico?

Resumo

Uma revisão bibliográfica em trabalhos freudo-lacanianos que abordam questões relativas à contemporaneidade encontra neles a difusão de uma hipótese explicativa geral: o declínio paterno. Como consequência, é produzida uma compreensão negativizada da contemporaneidade, por ser abordada majoritariamente a partir das ideias de déficit paterno e desordem. Resgata-se o conceito de obstáculo epistemológico de Bachelard para construir uma compreensão crítica que propõe que, nos trabalhos psicanalíticos que abordam a contemporaneidade a partir do declínio paterno, a noção Pai teria se tornado um obstáculo epistemológico, fator de imobilidade na pesquisa. Essa crítica se mostra necessária para propor questões e soluções teóricas que permitam uma superação do impasse apontado e um mais além do pai-centrismo.

Palavras-chave:
psicanálise; contemporaneidade; epistemologia

Abstract

This bibliographical review in freud-lacan works about contemporaneity-related issues verifies the diffusion of a general explanatory hypothesis: the paternal decline. As a consequence, a negative understanding of contemporaneity is produced, since it is approached mainly from the ideas of paternal deficit and disorder. The concept of epistemological obstacle by Bachelard, is rescued to construct a critical understanding that proposes that, among the psychoanalytical works that approach contemporaneity based on the paternal decline, the notion of Father would have become an epistemological obstacle, factor of immobility in the study. This criticism is necessary for the proposal of theoretical questions and solutions that may allow to overcome the mentioned problems and an opening beyond father-centrism.

Keywords:
psychoanalysis; contemporaneity; epistemology

Résumé

Une étude bibliographique sur les travailles freudo-lacaniennes traitant de questions contemporaines y trouve la diffusion d’une hypothèse explicative générale : le déclin paternel. Ainsi, on voit une compréhension négative de la contemporanéité, puisqu’elle est abordée principalement à partir des idées de déficit paternel et de désordre. Le concept de l’obstacle épistémologique de Bachelard est utilisé pour construire une compréhension critique qui propose que, dans les travailles psychanalytiques qui abordent la contemporanéité depuis le déclin paternel, la notion de Père serait devenue un obstacle épistémologique, facteur d’immobilité dans la recherche. Cette critique est nécessaire pour proposer de questions théoriques et de solutions permettant de surmonter l’impasse indiquée et de dépasser le père-centrisme.

Mots-clés :
psychanalyse; contemporanéité; épistémologie

Resumen

En una revisión bibliográfica en trabajos freudo-lacanianos que abordan cuestiones relativas a la contemporaneidad se encuentra la difusión de una hipótesis explicativa general: el declive paterno. Como consecuencia, se produce una comprensión negativizada de la contemporaneidad, pues se aborda mayoritariamente a partir de las ideas de déficit paterno y desorden. Se utiliza el concepto de obstáculo epistemológico de Bachelard para la construcción de una comprensión crítica la cual propone que, entre los trabajos psicoanalíticos que abordan la contemporaneidad a partir del declive paterno, la noción del Padre se habría convertido en un obstáculo epistemológico, un factor de inmovilidad en la investigación. Esta crítica se muestra necesaria para la proposición de cuestiones y soluciones teóricas que permitan superar el impasse señalado y un más allá del padre-centrismo.

Palabras clave:
psicoanálisis; contemporaneidad; epistemología

Modernidade e cultura

. . . as heresias que devemos temer são as que podem se confundir com a ortodoxia.

(J. L. Borges)

Existem conceitos analíticos de uma vez por todas formados? A manutenção quase religiosa dos termos dados por Freud para estruturar a experiência analítica, a que se remete ela? Tratar-se-á de um fato muito surpreendente na história das ciências - o de que Freud seria o primeiro, e permaneceria o único . . . a ter introduzido conceitos fundamentais? Sem esse tronco, . . . onde amarrar nossa prática? Poderemos dizer mesmo que se tratam, propriamente falando, de conceitos? Serão conceitos em formação? Serão conceitos em evolução, em movimento, a serem revistos? (Lacan, 1964/1998Lacan, J. (1998). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 1964 (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar ., pp. 17-18)

Herdeira do Iluminismo, a noção de cultura teria surgido na modernidade como sinônimo de ordem pretensamente supra-histórica. A tentativa de compreensão de certos fenômenos a partir de leis gerais imunes à história seria uma idiossincrasia do pensamento moderno, um pensamento datado que, paradoxalmente, almeja o supra-histórico. É o que assinala Bauman (1975/1999Bauman, Z. (1999). Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro, RJ: Zahar . (Trabalho original publicado em 1975)), que considera a ideia de cultura uma “invenção histórica” que visa assimilar uma “experiência inegavelmente histórica”, mas em “termos supra-históricos, da condição humana como tal” (p. 19). Cuche (1996/2002Cuche, D. (2002). A noção de cultura nas ciências sociais (2a ed.). Bauru, SP: Edusc. (Trabalho original publicado em 1996)) também destaca a associação entre a noção de cultura e a modernidade, lembrando que as teorizações das ciências sociais não são independentes dos seus contextos intelectuais e linguísticos, ou seja, haveria uma relação íntima entre o conceito científico de cultura e a própria ideia moderna de cultura.

Como teria sido possível, interroga Milner (2008Milner, J.-C. (2008). Le périple structural. Paris: Verdier.), “que os homens tenham constituído, pelas relações que estabelecem entre eles e aos lugares mesmos onde eles escapam à natureza, regras que lhes parecessem tão necessárias e incontornáveis quanto as leis da natureza?” (p. 79, tradução nossa). Essa pergunta interessa na medida em que demonstra que o modelo de ordem a partir do qual a modernidade concebeu a cultura é oriundo da abordagem científica da natureza em termos de leis universais. A consideração das coletividades humanas em termos de ordens tão imutáveis quanto as da natureza, segundo Wagner (1975/2010Wagner, R. (2010). A invenção da cultura. São Paulo, SP: Cosac Naify. (Trabalho original publicado em 1975)), fez que o conceito de cultura surgisse como “a própria metáfora da ordem” (p. 65). Se concluímos que a possibilidade de “perceber os fenômenos culturais como constituindo uma totalidade coesa . . . foi uma contingência histórica” (Bauman, 1975/1999Bauman, Z. (1999). Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro, RJ: Zahar . (Trabalho original publicado em 1975), p. 29), pensar a cultura em termos de ordem, portanto, revelaria antes algo do pensamento moderno do que de uma essência constante da cultura.

A Kultur pensada por Freud (1930/1996Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização. In Edição standard das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21, pp. 38-92). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)) não escapa à tradição moderna. Segundo Assoun (1993/2012Assoun, P.-L. (2012). Freud e as ciências sociais: psicanálise e teoria da cultura. São Paulo, SP: Edições Loyola. (Trabalho original publicado em 1993)), por exemplo, o conceito freudiano seria um exemplo dessa tentativa de teorização supra-histórica, de modo que “a ‘renúncia pulsional’ (Triebverzicht) se vê doravante reconhecida como constante ‘estrutural’ da Kultur” (p. 17), ou seja, o custo da manutenção da ordem na cultura seria a renúncia pulsional. Além do mais, assim como os físicos que buscam as leis gerais do universo, Freud não visaria abordar somente a Europa vitoriana ou eu contexto histórico, mas a condição humana através do tempo e da geografia, o que justifica que consideremos a noção de Kultur como universalista, no sentido de que propõe uma versão única, um uni-verso (Jullien, 2009Jullien, F. (2009). O diálogo entre as culturas: do universal ao multiculturalismo. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .). Bauman (1998Bauman, Z. (1998). O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) sugere que O mal-estar na civilização conta, na verdade, “a história da modernidade” (p. 7), ou seja, Freud teria elaborado uma teoria que diz mais do pensamento moderno do que de constantes atemporais da cultura. Com esse argumento concorda Birman (1997Birman, J. (1997). Estilo e modernidade em psicanálise. São Paulo, SP: Editora 34.), que afirma que “a leitura freudiana sobre o sujeito na cultura é uma elaboração psicanalítica sobre os impasses do sujeito na Modernidade” (p. 10). Mas como essa questão serve ao propósito deste texto? Em primeiro lugar, busco desnaturalizar a noção de cultura - frequentemente abordada como um objeto dado e independente das teorias nas quais é pensada -, remetendo-a ao seu contexto de origem que a concebe em termos de ordem; veremos adiante como isso faz a contemporaneidade ser tomada sob o signo da desordem. Em segundo lugar, ressalto que o mito de origem da Kultur - para Freud (1913/1974Freud, S. (1974). Totem e tabu. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (P. C. Souza, trad., Vol. 13, pp. 11-191). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1913)), um evento histórico - articula o advento da Lei ao pacto feito entre os filhos após o assassinato do pai, o que faz desta uma Lei paterna. Sugiro então que a Kultur freudiana, uma noção exemplarmente moderna de cultura - pois supra-histórica, universalista e baseada na ideia de ordem -, encontra limites de alcance na contemporaneidade. Haveria, afinal, razão para tomá-la como a última palavra sobre a cultura? Embora esses problemas apontem para outras questões fundamentais, como o papel da pulsão de morte enquanto limite interno da ordem da Kultur, este estudo se concentra na análise crítica do emprego de diversas noções paternas encontradas na literatura psicanalítica freudo-lacaniana sobre a contemporaneidade.

Veremos que a ordem e o Pai seguem atrelados nos trabalhos psicanalíticos sobre a contemporaneidade, de modo a difundir o raciocínio de que o declínio paterno resulta na desordem da cultura, no afrouxamento do próprio pacto que a sustenta. A manutenção da hipótese exclusivamente pai-centrada da Lei que ordena a cultura faz que, diante da reconfiguração da função social e familiar do pai, a contemporaneidade seja abordada pelos psicanalistas majoritariamente em termos de desordem sem, no entanto, uma consideração mais rigorosa dos distintos registros que a psicanálise reserva a noções paternas (simbólico ou imaginário, por exemplo). Neste estudo, o termo Pai, com inicial maiúscula, nomeia essa ideia fluída o suficiente para, esquivando-se do rigor conceitual, passar-se por primeira ou geral. Consideraremos como uma referência ao Pai, portanto, o emprego das mais diversas noções relativas a esse campo semântico que fomentam uma lógica explicativa exclusivamente pai-centrada.

A contemporaneidade na psicanálise freudo-lacaniana

No que consistiria a tão alegada quanto difusa descontinuidade entre modernidade e contemporaneidade? Há uma profusão de trabalhos acerca do tema, mas, entre os autores que o abordam, não há sequer consenso acerca de como nomear a contemporaneidade. Além dos termos de emprego mais comum, como pós-modernidade (Hall, 1992/2005Hall, S. (2005). A identidade cultural na pós-modernidade (10a ed.). Rio de Janeiro, RJ: DP&A Editora. (Trabalho original publicado em 1992); Lyotard, 1986Lyotard, J.-F. (1986). O pós-moderno. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio.), modernidade tardia (Giddens, 2003Giddens, A. (2003). Modernidade e identidade (P. Dentzien, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar .) e hipermodernidade (Lipovetsky, 1993/2005Lipovetsky, G. (2005). A era do vazio. Barueri, SP: Manole . (Trabalho original publicado em 1993)), encontraremos modernidade líquida (Bauman, 2001Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .), sociedade do espetáculo (Debord, 1967/1992Debord, G. (1992). La société du spectacle. Paris: Les Éditions Gallimard. (Trabalho original publicado em 1967)), comunidade que vem (Agamben, 1993Agamben, G. (1993). A comunidade que vem. Lisboa: Editorial Presença.), cultura do narcisismo (Lasch, 1983Lasch, C. (1983). A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em Declínio (E. Pavaneli, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago .) ou do individualismo (Dumont, 1985Dumont, L. (1985). O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro, RJ: Rocco.) e ainda outros. Diria isso respeito a uma impossibilidade de nomeação (Mattuella, 2010Mattuella, L. (2010). Uma época sem nome: sobre a tautologia do tempo perdido. In C. Söhngen & A. Pandolfo (Orgs.), Encontros entre Direito e Literatura II: ética, estética e política (pp. 89-104). Porto Alegre, RS: EDIPUCRS.), de forma que a contemporaneidade seria antes uma espécie de atualidade do que um período histórico? De toda forma, prevalece entre esses autores a tese de que a contemporaneidade exacerba o processo moderno de suavização ou mesmo o rompimento dos códigos sociais e das tradições que outrora contribuíram tanto para uma maior coesão social (ordem) quanto para uma produção de identidades mais estáveis. Uma importante diferença destacada por Lipovetsky (1993/2005Lipovetsky, G. (2005). A era do vazio. Barueri, SP: Manole . (Trabalho original publicado em 1993)) diz respeito ao fato de que a destruição moderna da tradição se deu em nome dos ideais e utopias da razão, isto é, pela possibilidade de construção de um novo mundo, enquanto a contemporaneidade seria marcada pela decadência inclusive desses ideais iluministas. Veremos a seguir como essas leituras são interpretadas pelos psicanalistas em termos de declínio paterno e desordem cultural cujos efeitos individuais também são descritos por meio de negativizações.

Em O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço, Melman (2003Melman, C. (2003). O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud .) apresenta a contemporaneidade como caracterizada por uma “nova economia” psíquica, baseada na exibição e na disponibilidade de objetos de gozo, ou seja, não mais organizada pelo recalque e pela interdição. Além da mudança do estatuto do objeto - antes falta que causa desejo, agora consumível - o autor sugere que o sujeito do inconsciente teria se tornado explícito. Tratar-se-ia de uma mutação cultural que, em outro trabalho (Melman, 2002Melman, C. (2002). Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, RS: CMC Editora .), é relacionada à “ausência da referência paterna” (p. 49) e ao “declínio do Nome-do-Pai” (p. 79), como se a queda dos grandes códigos sociais, repressores e ordenadores, tivessem consequências particulares desorganizadoras: “o descrédito da figura paterna não ajuda de maneira alguma os adolescentes, os jovens, a encontrar sua identidade sexual e a realizar sua consumação genital” (Melman, 2002Melman, C. (2002). Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, RS: CMC Editora ., pp. 27-28). Melman (2002Melman, C. (2002). Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, RS: CMC Editora .) ainda faz observações inusitadas acerca das novas tecnologias no campo da reprodução humana: se “o pai não é mais necessário para assegurar a reprodução”, pois “o que é necessário hoje é um óvulo”, logo “vamos conseguir dispensar o espermatozoide”, de forma que “o tecido paterno nem mais será indispensável para poder produzir filhos” (pp. 79-80). Observando a prevalência de contratos “a dois” que prescindem de um terceiro, o autor destaca o papel da ideologia neoliberal no rebaixamento da linguagem e da tradição, o que nomeia de “foraclusão do Outro” (Melman, 2002Melman, C. (2002). Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, RS: CMC Editora ., p. 150). Jerusalinsky (1993Jerusalinsky, A. (1993). O fantasma da lógica no social ou as razões científicas da corrupção. In M. Fleig (Org.), Psicanálise e sintoma social (pp. 13-25). São Leopoldo, RS: Editora Unisinos.), por sua vez, justifica a corrupção na atualidade a partir do mesmo enfraquecimento da Lei, afirmando que o espaço de escansão que afasta o sujeito do objeto estaria dissolvido e, pela mesma razão, o relaciona à toxicomania com um discurso social que oferta o gozo imediato do objeto. Em acordo com o argentino, Melman (2002Melman, C. (2002). Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, RS: CMC Editora .) afirma que a ideologia neoliberal libera o indivíduo da dependência do “chefe” para torná-lo dependente do objeto. Por isso a “condição social atual” tenderia a produzir “adictos em relação aos objetos” (Melman, 2002Melman, C. (2002). Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, RS: CMC Editora ., p. 138). Dando lugar às adições, teria a neurose deixado de ser o tipo clínico que melhor representa a cultura?

Dufour (2005Dufour, D.-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.) sublinha o avanço do neoliberalismo e o associa com a morte do sujeito moderno em suas referências kantianas e freudianas, pois “uma parte da inteligência do capitalismo se pôs a serviço da ‘redução das cabeças’” (p. 10). O sujeito moderno, neurótico, daria agora lugar a um “sujeito precário, acrítico e psicotizante” (Dufour, 2005Dufour, D.-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud., p. 21). O autor também adota o declínio paterno como ideia geral explicativa da contemporaneidade e o associa à toxicomania e a uma série de novos sintomas (Dufour, 2005Dufour, D.-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.). Forbes (2012Forbes, J. (2012). Inconsciente e responsabilidade: psicanálise do século XXI. Barueri, SP: Manole.), da mesma maneira, descreve o laço social contemporâneo como não mais “disciplinado pela hierarquia paterna” (p. xxix), o que causaria uma variedade de inéditas consequências clínicas. Participando do debate, Harari (2010Harari, R. (2010). Palavra, violência, segregação. Tempo Psicanalítico, 42(2), 333-368., p. 337) considera que há “efeitos negativos” que podem ser depreendidos da “decadência psíquica do pai na contemporaneidade” (p. 337) - entre eles, a segregação social, ou seja, em vez de uma identificação comum ao mesmo pai originário, grupos diversos reunidos por identificação fraterna. O argentino se baseia em uma afirmação específica de Lacan (1969Lacan, J. (1969). Intervention sur l’exposé de M. de Certeau, Congrès de Strasbourg (12/10/1968). Lettres de L’école Freudienne, (7), 84. Recuperado de https://bit.ly/3dAl6Q3
https://bit.ly/3dAl6Q3...
): “em nossa época, o traço, a cicatriz da evaporação do pai, é o que nós poderíamos colocar sob a rubrica e o título geral da segregação” (p. 84, tradução nossa).

Em Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social (2004), Lebrun afirma que a passagem de uma sociedade organizada pela religião para outra referenciada ao discurso científico promove a dissolução do lugar terceiro, ordenador, assim como a prevalência da qualidade dos enunciados sobre a autoridade do lugar de enunciação. O autor destaca a “perda da referência da tradição”, o “relativismo generalizado” e a falta de regulação devido à perda da “diferença de lugares” para concluir que “é a um momento senão de caos, em todo caso de turbulência generalizada que assistimos, cada um tentando constituir uma escala de valores a partir de suas próprias referências” (Lebrun, 2004Lebrun, J.-P. (2004). Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud ., p. 151, grifos nossos). A ênfase nas consequências do enfraquecimento de um terceiro paterno chama atenção de Lebrun (2004Lebrun, J.-P. (2004). Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud .) também nas novas modalidades de associação conjugal, em que haveria uma “loucura de dar livre curso a poder escolher-se mutuamente” (p. 156, grifo nosso). Em vez da Lei paterna reguladora dos pactos sociais, prevaleceriam os contratos a dois, sem mediação (Lebrun, 2004Lebrun, J.-P. (2004). Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud .) - raciocínio encontrado nos trabalhos mencionados. Finalmente, o autor também coloca a “deslegitimação progressiva da autoridade paterna” (Lebrun, 2004Lebrun, J.-P. (2004). Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud ., p. 109) e o “declínio do pai simbólico” (p. 49) como fundamentos da condição contemporânea.

Ocupando-se do mesmo campo, Coutinho (2005Coutinho, L. G. (2005). A adolescência na contemporaneidade: ideal cultural ou sintoma social? Pulsional, Revista de Psicanálise, 18(181), 16-23.) considera problemáticas as consequências da mutação cultural, uma vez que o “ideal de liberdade individual . . . ameaça as bases sobre as quais se sustenta o laço social” (p. 16). A autora ainda afirma que, em uma cultura que “exalta a liberdade individual a qualquer custo, o lugar dos ideais sociais fica muitas vezes esvaziado e resta pouco a ser compartilhado” (Coutinho, 2005Coutinho, L. G. (2005). A adolescência na contemporaneidade: ideal cultural ou sintoma social? Pulsional, Revista de Psicanálise, 18(181), 16-23., p. 19). Braga (2010Braga, E. C. (2010). A intervenção psicanalítica no campo social: análise de uma experiência. In M. Pelizzoli (Org.), Cultura de paz (pp. 177-196). Recife, PE: Editora da UFPE.), por sua vez, enfatiza a “preocupante fragilidade das funções encarregadas da manutenção da repressão necessária ao progresso civilizatório” (p. 177), ou seja, apresenta uma lógica explicativa comum às já apresentadas, em que a contemporaneidade é lida tão somente a partir de déficits de elementos organizadores.

Autores que abordam a articulação entre contemporaneidade e depressão, como Chemama (2007Chemama, R. (2007). Depressão: a grande neurose contemporânea. Porto Alegre, RS: CMC Editora.) e Kehl (2009Kehl, M. R. (2009). O tempo e o cão. São Paulo, SP: Boitempo .), apesar de buscarem uma lógica própria a essa patologia, também recorrem à ideia geral do declínio paterno como causa explicativa. O francês propõe uma noção nova, a “foraclusão do falo”, como chave interpretativa da depressão - a “grande neurose contemporânea” (Chemama, 2007Chemama, R. (2007). Depressão: a grande neurose contemporânea. Porto Alegre, RS: CMC Editora., p. 130). Apesar disso, Chemama (2007Chemama, R. (2007). Depressão: a grande neurose contemporânea. Porto Alegre, RS: CMC Editora.) também sublinha o descrédito atual do que “estava tradicionalmente ligado a certa norma, tanto quanto a sua transgressão, o pai real” (p. 131). A psicanalista brasileira (Kehl, 2009Kehl, M. R. (2009). O tempo e o cão. São Paulo, SP: Boitempo .) mantém a correlação entre sujeito e cultura e pensa a depressão a partir de uma temporalidade própria, refratária e resistente às urgências da demanda do Outro contemporâneo e sua aceleração. Kehl (2009Kehl, M. R. (2009). O tempo e o cão. São Paulo, SP: Boitempo .), porém, não deixará de fora de seu raciocínio o declínio paterno: “a atual crise do sujeito da psicanálise . . . tem relação com a inconsistência das formações imaginárias que sustentam o lugar simbólico do pai como representante da Lei” (p. 280). A autora ainda destaca a importância da restauração do pai imaginário na análise de uma paciente em depressão, sugerindo a partir daí uma direção da cura (Kehl, 2009Kehl, M. R. (2009). O tempo e o cão. São Paulo, SP: Boitempo .). Podendo a depressão ser pensada a partir da foraclusão do falo ou de uma temporalidade resistente à demanda acelerada do Outro, ou seja, desdobramentos novos e profícuos para a abordagem de problemas contemporâneos da clínica psicanalítica, por qual razão os autores recorrem ultimamente à ideia geral do declínio paterno, isto é, não escapam ao raciocínio pai-centrado?

Em consonância com os atores citados, Santos (2005Santos, T. C. (2005). A prática lacaniana na civilização sem bússola. In T. C. Santos (Org.), Efeitos terapêuticos da psicanálise aplicada (pp. 61-92). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa.) entende que do “declínio da função paterna” resultam o “avanço das reivindicações a um igualitarismo democrático” (p. 76) e a impossibilidade de uma palavra assimétrica com valor oracular. A autora ainda reconhece consequências clínicas do “declínio paterno” e da “organização fálica” (Santos, 2005Santos, T. C. (2005). A prática lacaniana na civilização sem bússola. In T. C. Santos (Org.), Efeitos terapêuticos da psicanálise aplicada (pp. 61-92). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa., p. 62) articulados ao discurso da ciência e do capitalismo, como sintomas novos e que não respondem à interpretação. Tudo isso, afirma Santos (2005Santos, T. C. (2005). A prática lacaniana na civilização sem bússola. In T. C. Santos (Org.), Efeitos terapêuticos da psicanálise aplicada (pp. 61-92). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa.), contribui para “aprofundar o desencanto da civilização” (p. 76). Em conferência intitulada Há grande desordem no real, no século XXI, Miller (2012Miller, J.-A. (2012). Hay gran desorden em el real, em el siglo XXI. Lacan Quotidien. Recuperado de https://bit.ly/3eRMSIe
https://bit.ly/3eRMSIe...
) também coloca os discursos da ciência e do capitalismo como elementos-chave de uma compreensão da contemporaneidade marcada pela diluição da tradição. Isso contribuiria para uma mudança fundamental na ordem simbólica, a saber, a dilaceração do Nome-do-Pai, sua pedra angular. Acentuando sua diferenciação progressiva em relação à natureza, em que, por exemplo, sexualidade e família respondem a uma suposta ordem natural, Miller (2012Miller, J.-A. (2012). Hay gran desorden em el real, em el siglo XXI. Lacan Quotidien. Recuperado de https://bit.ly/3eRMSIe
https://bit.ly/3eRMSIe...
) compreende o Real contemporâneo sob o signo da desordem, da ausência de Lei, de forma que o que até então era considerado natural, ordenado e imutável é colocado em xeque.

Uma passagem da obra lacaniana, retirada de um texto bastante anterior ao início dos seminários, parece ter grande influência no raciocínio dos trabalhos aqui percorridos. Lacan (1938/2003Lacan, J. (2003). Os complexos familiares na formação do indivíduo. In Outros escritos (pp. 29-90). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . (Trabalho original publicado em 1938)) aponta o “declínio social da imago paterna” - “condicionado pelo retorno sobre o indivíduo de efeitos extremos do progresso social” - como causa de uma “crise psicológica” (p. 67). Essa crise, note-se, é colocada por Lacan como relacionada às condições de aparecimento da psicanálise, não como algo próprio de uma época “pós-freudiana”, assim como o declínio social da imago paterna também não é articulado por Lacan a uma mutação cultural - como querem seus seguidores. No mesmo texto, Lacan (1938/2003Lacan, J. (2003). Os complexos familiares na formação do indivíduo. In Outros escritos (pp. 29-90). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . (Trabalho original publicado em 1938)) ainda alega não estar “entre os que se afligem com um pretenso afrouxamento dos laços de família” (p. 66), ou seja, não adere à nostalgia que pode ser identificada na literatura percorrida aqui.

A revisão bibliográfica apresentada demonstra a difusão da hipótese do declínio paterno como chave de leitura privilegiada da contemporaneidade. Mesmo alguns problemas clínicos como a depressão, ainda que inicialmente abordados a partir de uma lógica própria, acabam sendo absorvidos pela lógica explicativa geral - declínio do Pai - que se difunde no contexto psicanalítico freudo-lacaniano. A assunção da supra-historicidade da teoria freudiana da Kultur, em que Pai, Lei e ordem estão atrelados, teria tornado impossível conceber a contemporaneidade e suas questões de outra forma que não em termos de desordem causada pelo enfraquecimento do Pai?

Baseado em Freud, Assoun (1993/2012Assoun, P.-L. (2012). Freud e as ciências sociais: psicanálise e teoria da cultura. São Paulo, SP: Edições Loyola. (Trabalho original publicado em 1993)) afirma que a “norma jurídica . . . supõe uma ‘reconciliação com o pai’ que permite, além de sua morte, tanto quanto por sua morte, um ‘contrato’ com o Pai morto - e por essa via com a ‘lei’” (p. 165). O psicanalista enfatiza o caráter fundamental do parricídio original, de forma que outras problemáticas não passariam de “pano de fundo”:

Crença na “sociedade”, na “cultura”, na “multidão”, no “direito”, na “norma”. A psicanálise, por sua vez, problematiza essas entidades - não devido a algum relativismo cético, mas lembrando que tudo isso “faz pano de fundo” para a relação com a proibição, simbolizada pelo Assassinato do Pai. (Assoun, 1993/2012Assoun, P.-L. (2012). Freud e as ciências sociais: psicanálise e teoria da cultura. São Paulo, SP: Edições Loyola. (Trabalho original publicado em 1993), p. 246)

Em Édipo africano, Ortigues e Ortigues (1966/1989Ortigues, M.-C, & Ortigues, E. (1989). Édipo africano. São Paulo, SP: Escuta. (Trabalho original publicado em 1966)), inserindo-se no debate sobre a existência do complexo de Édipo fora do Ocidente iniciado no século passado por autores como Malinowski e Jones, concluem que o “que distingue o homem do animal é que a referência ao pai se inscreve de uma maneira estável na linguagem e nas instituições” (p. 13). Assim como acontece em Assoun (1993/2012Assoun, P.-L. (2012). Freud e as ciências sociais: psicanálise e teoria da cultura. São Paulo, SP: Edições Loyola. (Trabalho original publicado em 1993)), os autores utilizam a noção de Kultur de maneira acrítica, pois desligada de seu contexto de origem, tomando o Pai como elemento ordenador único e indispensável da cultura (Ortigues & Ortigues, 1966/1989Ortigues, M.-C, & Ortigues, E. (1989). Édipo africano. São Paulo, SP: Escuta. (Trabalho original publicado em 1966)). Trabalhos como esses, que exemplificam o pai-centrismo na compreensão psicanalítica da cultura, ajudam a apontar a razão do aparente desencontro entre psicanálise e contemporaneidade destacado na revisão bibliográfica exposta: uma teoria moderna e pai-centrada depara com uma contemporaneidade que apresentaria descontinuidades com os ideais modernos. A revisão bibliográfica demonstra que a causa dessa dificuldade não é atribuída pelos autores a alguma insuficiência do psicanalista ou da racionalidade explicativa da psicanálise, mas a déficits da cultura e do sujeito contemporâneos, considerado desbussolado (Forbes, 2012Forbes, J. (2012). Inconsciente e responsabilidade: psicanálise do século XXI. Barueri, SP: Manole.; Santos, 2005Santos, T. C. (2005). A prática lacaniana na civilização sem bússola. In T. C. Santos (Org.), Efeitos terapêuticos da psicanálise aplicada (pp. 61-92). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa.), “precário” (Dufour, 2005Dufour, D.-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud., p. 21) ou em “crise” (Kehl, 2009Kehl, M. R. (2009). O tempo e o cão. São Paulo, SP: Boitempo ., p. 280), por exemplo. Diante da afirmação de que “a metáfora freudiana do complexo de Édipo” se tornou difícil de compreender para nossos contemporâneos (Ortigues & Ortigues, 1966/1989Ortigues, M.-C, & Ortigues, E. (1989). Édipo africano. São Paulo, SP: Escuta. (Trabalho original publicado em 1966), p. 281), sugiro o contrário: talvez a contemporaneidade tenha se tornado difícil de compreender por meio do complexo de Édipo.

Entendo que a literatura psicanalítica freudo-lacaniana - ou sua parcela que forma consenso com as ideias aqui identificadas - toma a contemporaneidade em termos de déficit sem considerar seus próprios déficits teóricos, ou seja, a ausência de uma racionalidade explicativa que não seja pai-centrada para uma abordagem contemporânea da cultura. Uma importante afirmação de Dunker (2015Dunker, C. I. L. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo, SP: Boitempo.) contribui para sustentar essa crítica: “o déficit paterno é na verdade um déficit do totemismo como esquema explicativo” (p. 404). A bibliografia abordada propõe que o que antes eram balizas estruturantes da cultura totêmica e do sujeito neurótico caracterizariam a contemporaneidade pela sua ausência, mas o alcance explicativo do totemismo não é problematizado.

Duas questões são daí secretadas: (1) é a cultura contemporânea e seu sujeito que são deficitários ou é a teoria psicanalítica que não pode mais compreendê-los senão negativamente? (2) Inscrição ou déficit paterno: será apenas limitada a esses polos que a psicanálise pode pensar? A resposta que proponho à primeira questão já foi dada: descobrimos que os déficits teóricos são projetados sobre a contemporaneidade. Quanto à segunda questão, esta investigação não pode ir além de colocá-la e sugerir alguns caminhos.

O obstáculo epistemológico

Noção concebida por Gaston Bachelard em A formação do espírito científico (1938/1996), um obstáculo epistemológico é o que “se incrusta no conhecimento não questionado”, fazendo que “hábitos intelectuais que foram úteis e sadios” acabem por “entravar a pesquisa” (Bachelard, 1938/1996Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1939), p. 19). O filósofo da ciência, interessado nas condições que permitem ou impedem a produção de conhecimento, afirma que “o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização” (Bachelard, 1938/1996Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1939), p. 17). Por meio de exemplos da história da ciência, o autor caracteriza o advento desta pela desconstrução do uso metafórico das imagens utilizadas na antiguidade para explicar os mais diversos fenômenos. Bachelard convoca, assim, à crítica do conhecimento mal construído, das imagens e ideias explicativas que se sedimentam como obstáculo.

Entre algumas modalidades específicas de obstáculo epistemológico propostas por Bachelard (1938/1996Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1939)), duas delas se mostrarão apropriadas para uma compreensão crítica da referência ao Pai na abordagem freudo-lacaniana da contemporaneidade: o conhecimento primeiro e o geral. O primeiro obstáculo se explica pela concepção de que a ciência se edifica por uma ruptura entre observação e experimentação, fazendo de todo conhecimento científico uma construção experimental, resposta a uma pergunta, e não um dado evidente e resultado da observação (Bachelard, 1938/1996Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1939)). O que se conhece por meio da observação primeira e pretensamente imediata não seria de forma alguma objetivo, afinal “o que existe de mais imediato na experiência primeira somos nós mesmos, nossas surdas paixões, nossos desejos inconscientes” (Bachelard, 1938/1996Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1939), p. 56). Ora, assim como a ciência antes constrói seus objetos do que os encontra prontos, indagamos como que os autores dos trabalhos analisados conhecem a contemporaneidade e o declínio paterno. Se existem novos laços sociais ou mesmo uma mutação cultural que marca descontinuidades em relação à modernidade, como isso é constatado? A partir da prática clínica com uma amostra limitada de pacientes? Seria, por outro lado, a partir da inserção na cultura, como se o psicanalista ocupasse um lugar privilegiado de observação?

Segundo Melman, (2002Melman, C. (2002). Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, RS: CMC Editora .), “hoje podemos assistir a um declínio do Nome-do-Pai” (p. 79, grifo nosso) e, da mesma forma, Lebrun (2004Lebrun, J.-P. (2004). Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud .) afirma que “assistimos” (p. 151) ao momento atual assim como “assistimos à deslegitimação progressiva da autoridade paterna” (2004, p. 109, grifos nossos). De acordo com Forbes (2012Forbes, J. (2012). Inconsciente e responsabilidade: psicanálise do século XXI. Barueri, SP: Manole.), também “assistimos a uma quebra dos padrões do laço social” (p. 32, grifo nosso). Ora, o emprego do verbo assistir evidentemente não comprova nada por si só, mas bem expressa a já mencionada falta de crítica a respeito da implicação dos psicanalistas e de suas racionalidades explicativas nos problemas que abordam. A reflexão ausente nesses trabalhos é acerca dos meios teóricos dos quais a psicanálise dispõe para relançar uma compreensão sobre a correlação entre cultura e sujeito na contemporaneidade. No âmbito clínico, tomemos como exemplo uma passagem de Coelho dos Santos (2005Santos, T. C. (2005). A prática lacaniana na civilização sem bússola. In T. C. Santos (Org.), Efeitos terapêuticos da psicanálise aplicada (pp. 61-92). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa.), para quem os novos sintomas seriam “muito pouco sensíveis à interpretação”, pois a “satisfação que o sujeito obtém por meio deles é muito menos cifrada e confina mais abertamente com diferentes modalidades de automutilação e dor” (p. 62). Nota-se aqui também que a autora não reflete sobre o alcance de sua interpretação e da racionalidade teórica que a justifica antes de atribuir um déficit de simbolização aos novos sintomas. A noção de Pai realiza um caso de obstáculo epistemológico quando utilizada da maneira demonstrada nos exemplos apresentados porque, quer seja através da constatação de seu declínio, quer seja de suas consequências clínicas, trata-se de um conhecimento primeiro supostamente obtido de forma não construída e independente das concepções dos psicanalistas, formando ideias mal estabelecidas.

A segunda modalidade de obstáculo epistemológico, a do conhecimento geral, explicitará o uso deletério do Pai de maneira mais contundente, acrescendo-se à primeira. De acordo com o inventor da noção, “as ideias gerais são suficientemente fluídas para que se encontre sempre um meio de as verificar. As ideias gerais são razões de imobilidade. Por isso, passam por fundamentais” (Bachelard, 1971/2006Bachelard, G. (2006). A epistemologia. Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1971), p. 152). O epistemólogo chama nossa atenção às ideias suficientemente estendíveis e moldáveis para se adaptarem a diferentes contextos e servirem de explicação a variados problemas, de modo que adquirem aparência de fundamentos. Haveria, afirma o autor, certo “prazer intelectual na generalização apressada e fácil”, nas “seduções da facilidade” (Bachelard, 1939/1996Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1939), p. 69). A ciência, porém, apresentaria seus mais marcantes progressos justamente quando “abandona os fatores filosóficos de unificação fácil”, como “a unidade de ação do Criador, a unidade de organização da Natureza, a unidade lógica” (Bachelard, 1939/1996Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1939), p. 20). A ideia geral unificadora, então, enquanto obstáculo epistemológico, muito embora pareça explicar uma série de problemas, na verdade bloqueia as ideias novas e a produção de conhecimentos, pois funciona como uma espécie de polo que atrai, absorve a acomoda o discrepante. Uma suspensão do espírito inventivo tenderia a seguir a “lei do mínimo esforço”, isto é, “ligar todos os seus conhecimentos à imagem central e primeira” (Bachelard, 1939/1996Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1939), p. 290), explicando todos os fenômenos pela ideia geral unificante. Como exemplo, vejamos como Dufour (2005Dufour, D.-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.) lista fenômenos clínicos e sociais bastante diversos - que acontecem “diante de nossos olhos, nas nossas sociedades” (p. 23) - obstáculo primeiro, aliás:

domínio do mercado, dificuldades de subjetivação e de socialização, toxicomania, multiplicação das passagens ao ato, aparecimento do que se chama, corretamente ou não, “os novos sintomas”, explosão da delinquência em porções não negligenciáveis da população jovem, nova violência e novas formas sacrificiais. (Dufour, 2005Dufour, D.-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud., p. 23)

O autor unifica essa variedade a partir da hipótese da decadência de “um poder superior (de ordem transcendental ou moral)” que provocaria uma “dessimbolização do mundo” (Dufour, 2005Dufour, D.-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud., p. 12). Poderíamos reconhecer aí, der forma subjacente, a referência ao Pai ordenador da cultura? Outro exemplo semelhante nos é dado por Forbes (2012Forbes, J. (2012). Inconsciente e responsabilidade: psicanálise do século XXI. Barueri, SP: Manole.), que lista “fracasso escolar, agressões inusitadas, toxicofilias, anorexia, bulimia, epidemia de depressão” (p. xxix) como elementos cuja causa pode ser unificada pelo declínio paterno. Também Lebrun (2004Lebrun, J.-P. (2004). Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud .) unifica a diversidade de elementos a partir de uma causa geral - um mundo “sem limites” produzido pelo “declínio do pai simbólico” (p. 49):

erosão das diferenças marcadas entre as estruturas, complexificação das entidades clínicas, recuo das indicações clássicas da cura psicanalítica tais como a histeria e a obsessão, ampliação paralela da necessidade de cuidados, aumentos de distúrbios ditos arcaicos enquanto o sexual seria desalojado de seu lugar preponderante, operando este muito mais como máscara ou como defesa; enfim, reconhecimento de que essas modificações estão estreitamente vinculadas a um devir da sociedade contemporânea. (Lebrun, 2004Lebrun, J.-P. (2004). Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud ., p. 141)

Mesmo conceitos corretos e úteis, lembra Bachelard (1939/1996Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1939)), poderiam “representar um obstáculo ao oferecerem ao pensamento uma forma geral prematura” (p. 82). E, de fato, o que encontramos em listas como essas é a ligação do fato novo a uma ideia explicativa geral preexistente. Não se propõe aqui, portanto, eliminar as noções paternas da psicanálise, mas sim identificar excessos do pai-centrismo que prejudicam as investigações e diálogos da psicanálise com a contemporaneidade. O Pai cuja ausência ou enfraquecimento a literatura analisada encontra como explicação última da contemporaneidade e de suas formas clínicas é, na verdade, sua explicação primeira. Produz-se uma circularidade na qual a descoberta é o próprio princípio. Não se trata, então, de descoberta, mas do aniquilamento de suas possiblidades, do apagamento das perguntas novas em nome da ideia antiga. Suspendendo a ideia geral atrativa e o ímpeto de reunir elementos heterogêneos a partir de causa única, até onde as investigações localizadas sobre novos sintomas e tipos clínicos nos levariam? Os estudos psicanalíticos sobre contemporaneidade não estão coincidentemente encontrando a mesma causa geral (contemporaneidade marcada pelo déficit paterno) para todos os problemas abordados (depressão, toxicomanias, tipos clínicos para além das estruturas neurose-psicose-perversão), mas sim pelas facilidades da unificação em torno de um mesmo princípio, subordinando os mais diversos elementos à ideia geral do Pai negativizado.

A bibliografia percorrida demonstra a redução de três diferentes problemas ao déficit do Pai, formando uma compreensão mais ou menos harmonizada da contemporaneidade. Primeiramente, o avanço combinado dos discursos da ciência e do capitalismo que reconfigura fronteiras éticas e biológicas, considerado idiossincrasia do contemporâneo, é lido ora em termos de contravenção dos interditos determinados pelas leis da linguagem (Lebrun, 2004Lebrun, J.-P. (2004). Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud .; Melman, 2002Melman, C. (2002). Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, RS: CMC Editora .), ora como elisão dos impossíveis impostos pelo Real (Dufour, 2002Dufour, D.-R. (2002). Il n’y a pas d’indistinction sexuelle. Essaim, 2(10), 5-24. Recuperado de https://bit.ly/2Y89jSO
https://bit.ly/2Y89jSO...
; Mauas, 2012Mauas, L. (2012). Um desorden creciente de la sexuación. Lacan Quotidien, (245), 1-7. Recuperado de https://bit.ly/2z8uDPw
https://bit.ly/2z8uDPw...
; Miller, 2012Miller, J.-A. (2012). Hay gran desorden em el real, em el siglo XXI. Lacan Quotidien. Recuperado de https://bit.ly/3eRMSIe
https://bit.ly/3eRMSIe...
). Uma vez desconsiderados os seus limites ordenadores, denegados pelos discursos da ciência e do capitalismo, a cultura estaria em estado de desordem. A difusão do neoliberalismo, por sua vez, lógica econômica que implica na diminuição da intervenção do Estado, também é interpretada como declínio do Pai por promover a exclusão do terceiro que regula as trocas entre os pares (Dufour, 2005Dufour, D.-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.; Lebrun, 2004Lebrun, J.-P. (2004). Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud .). Esse raciocínio, que coloca o Estado como representante da Lei paterna, baseia-se na concepção freudiana de que as instituições são formações decorrentes do próprio pacto que sustenta a Kultur, conforme lembra Assoun (1993/2012Assoun, P.-L. (2012). Freud e as ciências sociais: psicanálise e teoria da cultura. São Paulo, SP: Edições Loyola. (Trabalho original publicado em 1993)). Por último, constata-se que o lugar da toxicomania na contemporaneidade não escapará à ideia geral aqui criticada. Ela seria a forma clínica que atesta uma modificação no estatuto do objeto - antes falta causadora do desejo, agora ofertado, consumível, gozável - que acompanharia a lógica da própria sociedade de consumo e das adições (Jerusalinsky, 1993Jerusalinsky, A. (1993). O fantasma da lógica no social ou as razões científicas da corrupção. In M. Fleig (Org.), Psicanálise e sintoma social (pp. 13-25). São Leopoldo, RS: Editora Unisinos.; Melman, 2003Melman, C. (2003). O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud .; Pacheco Filho, 2007Pacheco Filho, R. A. (2007). Toxicomania: um modo fracassado de lidar com a falta estrutural do sujeito e com as condições da sociedade. Mental, 5(9), 29-45. Recuperado de https://bit.ly/3cuiaTH
https://bit.ly/3cuiaTH...
). O matema lacaniano do discurso do capitalista (Lacan, 1972Lacan, J. (1972). Du discours psychanalytique. Recuperado de https://bit.ly/36ZV32t
https://bit.ly/36ZV32t...
), que põe em conexão sujeito ($) e objeto a, é frequentemente empregado para fundamentar essa relação de consumidor e objeto de consumo (Braunstein, 2010Braunstein, N. A. (2010). O discurso capitalista: quinto discurso? O discurso dos mercados (pst): sexto discurso? A Peste, 2(1), 143-165. doi: 10.5546/peste.v2i1.12079
https://doi.org/10.5546/peste.v2i1.12079...
; Rosa, 2010Rosa, M. (2010). Jacques Lacan e a clínica do consumo. Psicologia Clínica, 22(1), 157-171. doi: 10.1590/S0103-56652010000100010
https://doi.org/10.1590/S0103-5665201000...
). Essa leitura contribui à ideia de que, em vez de uma cultura baseada em interditos decorrentes da operação do Pai, na contemporaneidade em desordem caracterizada pelo déficit paterno, o objeto está acessível para consumo.

Discursos da ciência e do capitalismo, neoliberalismo, toxicomania, mas também depressão, segregação e tipos clínicos para além da lógica tripartida das estruturas clínicas são ligados à generalidade da ideia de declínio do Pai. Um lógica explicativa pai-centrada, baseada na equiparação entre cultura e ordem, aborda a contemporaneidade em termos de déficit paterno e desordem, produzindo um discurso nostálgico que diz que hoje não é mais como era antigamente.

Pai, pais e mais além

O que chamo de Pai não é uma noção correspondente a um conceito específico da teoria psicanalítica. É uma ideia difusa, primeira e geral que subjaz e fundamenta a racionalidade explicativa pai-centrada. Ela aparece em termos de déficit na bibliografia de várias formas, conforme já demonstrado: ausência da referência paterna, declínio do Nome-do-Pai, o descrédito da figura paterna, laço social não disciplinado pela hierarquia paterna, decadência psíquica do pai, deslegitimação da autoridade paterna, declínio do pai simbólico, descrédito atual do pai real, inconsistência das formações imaginárias que sustentam o lugar simbólico do pai como representante da Lei, declínio da função paterna, declínio paterno, declínio da organização fálica e dilaceração do Nome-do-Pai. Enquanto vimos alguns trabalhos sublinharem o declínio paterno a nível simbólico, ou seja, como estruturante do pacto de renúncia pulsional sobre o qual se ordena a cultura, outros apontam a inconsistência ou o descrédito dos níveis imaginário e real que impediriam uma sustentação do pai simbólico e a inscrição deste a nível individual, produzindo novos tipos clínicos para além da lógica diagnóstica pai-centrada - onde a Lei paterna é recalcada, denegada ou foracluída. De toda forma, as várias noções paternas identificadas demonstram a fluidez e a maleabilidade adquirida pelo Pai para que apareça em todos os lugares e se mantenha como fundamento central e único.

A correlação freudiana entre o nível coletivo e individual (Freud, 1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In Obras completas: Psicologia das massas e Análise do eu e outros textos (P. C. Souza, Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)), que faz cultura e sujeito dialogarem, é mantida, mas de maneira a sustentar que sua modalidade ideal (supra-histórica, universal, ordenada) é a que se dá entre cultura totêmica e sujeito neurótico. A partir da assunção desse ideal, porém, o que lhe escapa é apreendido em termos de desordem. Uma teoria oriunda de determinado contexto serve para resolver problemas localizados, mas, quando utilizada de forma acrítica, correrá o risco de atribuir seus déficits aos novos objetos. Como afirma Butler (2000Butler, J. (2000). Restaging the universal: hegemony and the limits of formalism. In J. Butler, E. Laclau & S. Zizek, Contingency, hegemony, universality contemporary dialogues on the left (pp. 11-43). London: Verso.), “a universalidade não pode proceder sem destruir aquilo que busca incluir” (p. 24, tradução nossa).

Os autores mencionados e outros de raciocínio coincidente tendem a manter o Pai em lugar destacado e intocável em sua abordagem da cultura, justificando assim uma crítica de Butler (2004Butler, J. (2004). Undoing gender. New York: Routledge.). Segundo a filósofa, a compreensão de que o simbólico - noção herdeira do estruturalismo de Lévi-Strauss - é composto por um campo de leis inalteráveis e eternas tem um alcance limitado na abordagem de problemas relativos a transformações sociais. Se dessa noção de simbólico deriva uma noção de cultura igualmente supra-histórica e constante, a psicanálise encontraria um importante impasse teórico diante das comentadas mutações culturais. A autora (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. New York: Routledge.) utiliza o exemplo paradigmático do pai simbólico, elemento ordenador, para indagar que, diante de uma reorganização geral da família e da função da paternidade no social, como ainda conceber o pai simbólico como baliza organizadora da cultura? Poder-se-ia refutar que a crítica de Butler não leva em conta a distinção entre função paterna e pai imaginário, por exemplo, ou ainda que o Nome-do-Pai é um significante qualquer, singular para cada sujeito, não um elemento estanque do campo simbólico e cultural. Descobrimos, todavia, uma desconsideração desse rigor teórico nos trabalhos dos próprios autores freudo-lacanianos abordados, onde uma grande variedade de noções referentes ao Pai é convenientemente empregada para transposições vertiginosas entre cultura e sujeito.

Trabalhos como Las estructuras clínicas a partir de Lacan, de Eidelsztein (2008Eidelsztein, A. (2008). Las estructuras clínicas a partir de Lacan (Vol. 1, 2a ed.). Buenos Aires: Letra Viva.), contribuem para uma revisão da centralidade do Pai na teoria e clínica psicanalíticas. O psicanalista argentino propõe uma “clínica do objeto a”, promovendo “o abandono da suposição de que a clínica está ordenada pela função paterna” (Eidelsztein, 2008Dunker, C. I. L. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo, SP: Boitempo., p. 61, tradução nossa). Segundo o autor, orientar a clínica pela função paterna seria “supor que o pai é causador da falta no Outro”, ou seja, “supô-lo Outro do Outro” (Eidelsztein, 2008Dunker, C. I. L. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo, SP: Boitempo., p. 65). A proposta de Eidelsztein está de acordo com possiblidades já encontradas na obra lacaniana. Em De um Outro ao outro, por exemplo, Lacan (1968-1969/2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 16: de um Outro ao outro, 1968-1969. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.) explora a topologia do Outro, destacando o objeto a como ponto de falta de saber e suas consequências na constituição do sujeito - o que fomenta uma retomada da estrutura perversa. As noções de Les non-dupes errent (Lacan, 1973-74Lacan, J. (1973-1974). Les non-dupes errent. Recuperado de https://bit.ly/3gXAIPF
https://bit.ly/3gXAIPF...
), Père-version e Le sinthome (Lacan, 1975-1976Lacan, J. (1975-76). Le sinthome. Recuperado de https://bit.ly/3cKqWNt
https://bit.ly/3cKqWNt...
) também atestam desdobramentos ou mesmo desconstruções da centralidade do Pai presentes na obra de Lacan, permitindo, por exemplo, revisar a psicose como um tipo clínico determinado apenas negativamente pela foraclusão do Nome-do-Pai.

Em Mal-estar, sofrimento e sintoma, Dunker (2015Dunker, C. I. L. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo, SP: Boitempo.) critica a tomada do totemismo como base antropológica única para a psicanálise. Segundo o autor, “o totemismo representa uma das articulações do sintoma que nos deixou cegos para a possibilidade de que existam sintomas de estrutura animista” (Dunker, 2015Dunker, C. I. L. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo, SP: Boitempo., p. 368). Promovendo um diálogo entre psicanálise e contemporaneidade a partir da revisão de uma série de referências teóricas, é a própria centralidade exclusiva do Pai que é colocada em questão:

É preciso uma reformulação da racionalidade diagnóstica que cerca a leitura do mal-estar brasileiro para além do pai como articulador central dos dispositivos de autoridade, para além da família como lugar de asfixia do desejo, para além da oposição simples entre ideais subjetivos e condições objetivas. É preciso reconhecer que agora sofremos de outra maneira. (Dunker, 2015Dunker, C. I. L. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo, SP: Boitempo., p. 86)

Já vimos anteriormente como Dunker sugere que o déficit paterno, atribuído à contemporaneidade e ao seu sujeito, seja pensando como um déficit da própria teoria psicanalítica. Promovendo uma implicação da psicanálise com as patologias contemporâneas, o autor afirma que, se “temos agora novas patologias baseadas no déficit narrativo, na incapacidade de contar a história de um sofrimento, na redução do mal-estar à dor sensorial”, isso não deve ser pensado como independente da “condensação das formas de linguagem que a pós-modernidade reserva ao sofrimento” (Dunker, 2015Dunker, C. I. L. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo, SP: Boitempo., p. 33).

A partir dessa reflexão concluímos que não basta que a psicanálise se ocupe de curar as patologias contemporâneas, seria preciso também pensar de que forma ela participa dessas patologias ao oferecer uma lógica explicativa baseada em déficits - como a descrição de sintomas pouco simbolizados e interpretáveis que correspondem a uma contemporaneidade em desordem. Sugere-se, assim, um diálogo renovado e atento à construção de narrativas que promovam a articulação de sofrimentos ainda pouco reconhecidos, incrementando e ampliando as modalidades psicanalíticas de escuta e tratamento para além do pai-centrismo. Como nos lembra Lacan, afinal, “não temos nenhuma razão para pensar que os quadros nosológicos estão aí desde toda a eternidade e nos esperavam” (1953-54/1986Lacan, J. (1986). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. Rio de Janeiro, RJ: Zahar ., p. 127).

Referências

  • Agamben, G. (1993). A comunidade que vem. Lisboa: Editorial Presença.
  • Assoun, P.-L. (2012). Freud e as ciências sociais: psicanálise e teoria da cultura. São Paulo, SP: Edições Loyola. (Trabalho original publicado em 1993)
  • Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. (Trabalho original publicado em 1939)
  • Bachelard, G. (2006). A epistemologia. Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1971)
  • Bauman, Z. (1998). O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
  • Bauman, Z. (1999). Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro, RJ: Zahar . (Trabalho original publicado em 1975)
  • Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .
  • Birman, J. (1997). Estilo e modernidade em psicanálise. São Paulo, SP: Editora 34.
  • Braga, E. C. (2010). A intervenção psicanalítica no campo social: análise de uma experiência. In M. Pelizzoli (Org.), Cultura de paz (pp. 177-196). Recife, PE: Editora da UFPE.
  • Braunstein, N. A. (2010). O discurso capitalista: quinto discurso? O discurso dos mercados (pst): sexto discurso? A Peste, 2(1), 143-165. doi: 10.5546/peste.v2i1.12079
    » https://doi.org/10.5546/peste.v2i1.12079
  • Butler, J. (2000). Restaging the universal: hegemony and the limits of formalism. In J. Butler, E. Laclau & S. Zizek, Contingency, hegemony, universality contemporary dialogues on the left (pp. 11-43). London: Verso.
  • Butler, J. (2004). Undoing gender. New York: Routledge.
  • Chemama, R. (2007). Depressão: a grande neurose contemporânea. Porto Alegre, RS: CMC Editora.
  • Coutinho, L. G. (2005). A adolescência na contemporaneidade: ideal cultural ou sintoma social? Pulsional, Revista de Psicanálise, 18(181), 16-23.
  • Cuche, D. (2002). A noção de cultura nas ciências sociais (2a ed.). Bauru, SP: Edusc. (Trabalho original publicado em 1996)
  • Debord, G. (1992). La société du spectacle. Paris: Les Éditions Gallimard. (Trabalho original publicado em 1967)
  • Dufour, D.-R. (2002). Il n’y a pas d’indistinction sexuelle. Essaim, 2(10), 5-24. Recuperado de https://bit.ly/2Y89jSO
    » https://bit.ly/2Y89jSO
  • Dufour, D.-R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.
  • Dumont, L. (1985). O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro, RJ: Rocco.
  • Dunker, C. I. L. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo, SP: Boitempo.
  • Eidelsztein, A. (2008). Las estructuras clínicas a partir de Lacan (Vol. 1, 2a ed.). Buenos Aires: Letra Viva.
  • Forbes, J. (2012). Inconsciente e responsabilidade: psicanálise do século XXI. Barueri, SP: Manole.
  • Freud, S. (1974). Totem e tabu. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (P. C. Souza, trad., Vol. 13, pp. 11-191). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1913)
  • Freud, S. (1996). O mal-estar na civilização. In Edição standard das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 21, pp. 38-92). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)
  • Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In Obras completas: Psicologia das massas e Análise do eu e outros textos (P. C. Souza, Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)
  • Giddens, A. (2003). Modernidade e identidade (P. Dentzien, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar .
  • Hall, S. (2005). A identidade cultural na pós-modernidade (10a ed.). Rio de Janeiro, RJ: DP&A Editora. (Trabalho original publicado em 1992)
  • Harari, R. (2010). Palavra, violência, segregação. Tempo Psicanalítico, 42(2), 333-368.
  • Jerusalinsky, A. (1993). O fantasma da lógica no social ou as razões científicas da corrupção. In M. Fleig (Org.), Psicanálise e sintoma social (pp. 13-25). São Leopoldo, RS: Editora Unisinos.
  • Jullien, F. (2009). O diálogo entre as culturas: do universal ao multiculturalismo. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .
  • Kehl, M. R. (2009). O tempo e o cão. São Paulo, SP: Boitempo .
  • Lacan, J. (1969). Intervention sur l’exposé de M. de Certeau, Congrès de Strasbourg (12/10/1968). Lettres de L’école Freudienne, (7), 84. Recuperado de https://bit.ly/3dAl6Q3
    » https://bit.ly/3dAl6Q3
  • Lacan, J. (1972). Du discours psychanalytique. Recuperado de https://bit.ly/36ZV32t
    » https://bit.ly/36ZV32t
  • Lacan, J. (1973-1974). Les non-dupes errent. Recuperado de https://bit.ly/3gXAIPF
    » https://bit.ly/3gXAIPF
  • Lacan, J. (1975-76). Le sinthome. Recuperado de https://bit.ly/3cKqWNt
    » https://bit.ly/3cKqWNt
  • Lacan, J. (1986). O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .
  • Lacan, J. (1998). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 1964 (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar .
  • Lacan, J. (2003). Os complexos familiares na formação do indivíduo. In Outros escritos (pp. 29-90). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . (Trabalho original publicado em 1938)
  • Lacan, J. (2008). O seminário, livro 16: de um Outro ao outro, 1968-1969. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.
  • Lasch, C. (1983). A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em Declínio (E. Pavaneli, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Imago .
  • Lebrun, J.-P. (2004). Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud .
  • Lipovetsky, G. (2005). A era do vazio. Barueri, SP: Manole . (Trabalho original publicado em 1993)
  • Lyotard, J.-F. (1986). O pós-moderno. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio.
  • Mattuella, L. (2010). Uma época sem nome: sobre a tautologia do tempo perdido. In C. Söhngen & A. Pandolfo (Orgs.), Encontros entre Direito e Literatura II: ética, estética e política (pp. 89-104). Porto Alegre, RS: EDIPUCRS.
  • Mauas, L. (2012). Um desorden creciente de la sexuación. Lacan Quotidien, (245), 1-7. Recuperado de https://bit.ly/2z8uDPw
    » https://bit.ly/2z8uDPw
  • Melman, C. (2002). Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre, RS: CMC Editora .
  • Melman, C. (2003). O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud .
  • Miller, J.-A. (2012). Hay gran desorden em el real, em el siglo XXI. Lacan Quotidien. Recuperado de https://bit.ly/3eRMSIe
    » https://bit.ly/3eRMSIe
  • Milner, J.-C. (2008). Le périple structural. Paris: Verdier.
  • Ortigues, M.-C, & Ortigues, E. (1989). Édipo africano. São Paulo, SP: Escuta. (Trabalho original publicado em 1966)
  • Pacheco Filho, R. A. (2007). Toxicomania: um modo fracassado de lidar com a falta estrutural do sujeito e com as condições da sociedade. Mental, 5(9), 29-45. Recuperado de https://bit.ly/3cuiaTH
    » https://bit.ly/3cuiaTH
  • Rosa, M. (2010). Jacques Lacan e a clínica do consumo. Psicologia Clínica, 22(1), 157-171. doi: 10.1590/S0103-56652010000100010
    » https://doi.org/10.1590/S0103-56652010000100010
  • Santos, T. C. (2005). A prática lacaniana na civilização sem bússola. In T. C. Santos (Org.), Efeitos terapêuticos da psicanálise aplicada (pp. 61-92). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa.
  • Wagner, R. (2010). A invenção da cultura. São Paulo, SP: Cosac Naify. (Trabalho original publicado em 1975)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2018
  • Aceito
    01 Jun 2020
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco A, sala 202, Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, 05508-900 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revpsico@usp.br