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Inversão geracional na família: repercussões da parentalização na vida adulta

Generational inversion in the family: Repercussions of parentification in adult life

Inversion générationnelle dans la famille: répercussions de la parentification dans la vie adulte

Inversión generacional en la familia: repercusiones de la parentalización en la vida adulta

Resumo

Este trabalho discute o processo de inversão geracional na família, tendo como enfoque as repercussões da parentalização na vida adulta. Inicialmente, investiga-se o conceito de parentalização, das primeiras impressões no campo psicanalítico à sua configuração no campo das psicoterapias de família. Em seguida, diferencia-se a noção de parentalização destrutiva da parentalização construtiva. Posteriormente, discute-se sobre as repercussões da parentalização na vida adulta, utilizando fragmentos de casos clínicos como ilustração. Considera-se que a inversão geracional em seu espectro crônico e amplo em suas dimensões gera dificuldades significativas para a construção de uma base pessoal segura e confiante na vida adulta, repercutindo no modo como os adultos parentalizados destrutivamente se relacionam com o outro. Tais relações transitam nos extremos, do desejo de fusão e proximidade absolutas ao desejo de distância e recusa do outro, tendo a insegurança e o medo do abandono como pano de fundo.

Palavras-chave:
parentalização; inversão geracional; processo de subjetivação

Abstract

This paper discusses the process of generational inversion within the family, focusing on the repercussions of parentification in adult life. Initially, we investigate the concept of parentification from its emergence in the field of psychoanalysis to its configuration in the field of family psychotherapy. Next, we differentiate the notion of destructive parentification from constructive parentification. Later, we discuss the repercussions of parentification in adult life, using clinical excerpts as illustration. We consider that generational inversion in its chronic aspect and full dimension leads to significant issues in the construction of a sound and confident personal foundation in adult life, affecting how adults who were negatively parentified relate with others. Such relations shift through the extremes, from the desire of fusion and absolute proximity to the desire of distance and refusal of others, and having insecurity and fear of abandonment as a background.

Keywords:
parentification; generational inversion; subjectivation process

Résumé

Cet article traite du processus d’inversion générationnelle dans la famille, basé sur les répercussions de la parentification dans la vie adulte. Tout d’abord, nous examinons le concept de parentification, depuis les premières impressions dans le champ psychanalytique jusqu’à sa configuration dans le domaine des psychothérapies familiales. Ensuite, nous différencions la notion de parentification destructrice de la parentification constructive. Puis, nous discutons les répercussions de la parentification dans la vie adulte, en utilisant des fragments de cas cliniques comme illustration. Nous considérons que l’inversion générationnelle, dans son spectre chronique et large dans ses dimensions, génère des difficultés significatives pour la construction d’une base personnelle sûre et confiante dans la vie adulte, en réfléchissant sur la façon dont les adultes parentifiés destructivement se relient les uns aux autres. De telles relations vont aux extrêmes, du désir de fusion et de proximité absolues, au désir de distance et de rejet de l’autre, avec l’insécurité et la peur de l’abandon en arrière-plan.

Mots-clés:
parentification; inversion générationnelle; processus de subjectivation

Resumen

El presente trabajo discute el proceso de inversión generacional en la familia, enfocándose en las repercusiones de la parentalización en la vida adulta. Inicialmente, se investiga el concepto de parentalización, desde las impresiones iniciales en el campo psicoanalítico hasta su configuración en el campo de las psicoterapias de familia. En seguida, se diferencia la noción de parentalización destructiva de la parentalización constructiva. Posteriormente, se discute sobre las repercusiones de la parentalización en la vida adulta, utilizando fragmentos clínicos como ilustración. Se considera que la inversión generacional en su espectro crónico y amplio en sus dimensiones genera dificultades significativas para la construcción de una base personal segura y confiada en la vida adulta, repercutiendo en el modo cómo los adultos parentalizados destructivamente se relacionan con el otro. Estas relaciones transitan entre los extremos, del deseo de fusión y proximidad absolutas al deseo de distancia y rechazo del otro, teniendo la inseguridad y el miedo del abandono como segundo plano.

Palabras clave:
parentalización; inversión generacional; proceso de subjetivación

Em uma série de situações clínicas, deparamos com jovens adultos que apresentam sinais de esgotamento que se expressam por um estado emocional ansioso ou deprimido, ou, ainda, por meio de psicossomatizações e compulsões. As queixas gravitam em torno de tristezas profundas, estresse permanente, cansaço extremo, falta de confiança e desorientação com relação ao futuro e ao reconhecimento dos próprios desejos. Trata-se, muitas vezes, de sujeitos com significativos entraves para estabelecer um vínculo amoroso e/ou progredir na carreira profissional, permanecendo em uma relação bastante indiferenciada com a família de origem. Alguns já saíram da casa dos pais, outros permanecem ainda sob o mesmo teto. Um elemento significativo atrelado à vida desses indivíduos é que se encontram muito ocupados em atender às necessidades dos pais (pai e/ou mãe), a despeito das suas próprias.

Por se tratar de adultos, à primeira vista, há a impressão de que se trata, especialmente, de questões intrapsíquicas, contudo, ao longo das sessões, reconhecemos, para além disso, o acento extremamente relacional no cerne de tais questões. Isto é, aos poucos, podemos escutar o sofrimento latente em causa, vinculando-o às preocupações excessivas com os pais e aos impedimentos no processo de separação deles, de tal forma que um modo de funcionamento atento e hipervigilante se estabelece. Nesses casos, parece haver uma equivalência entre a emancipação pessoal ou profissional do jovem adulto e a vivência de abandono dos pais, tornando complexa a construção de uma vida própria e autônoma. Nesse contexto, podemos constatar que algumas queixas, inicialmente descritas como ligadas exclusivamente ao âmbito individual, parecem indicar uma dinâmica familiar marcada pela inversão geracional, mais especificamente pelo processo de parentalização crônico e amplo nas exigências de cuidado.

O processo de parentalização pode ser compreendido como uma distorção subjetiva das relações parento-filiais, a partir da qual o filho assume uma postura parental na família. No contexto familiar invertido, as crianças desempenham funções parentais, supostamente cabíveis aos adultos. Tal inversão se apresenta, potencialmente, por conta de pais absorvidos por suas vidas emocionais bastante frágeis e instáveis. Em geral, as crianças não costumam ter uma percepção consciente da ausência de cuidado e sustentação das figuras parentais, sentindo-se, ao contrário, responsáveis por suprir as carências do ambiente familiar.

A parentalização se apresenta como uma noção desenvolvida no campo das psicoterapias familiares (Boszormenyi-Nagy & Spark, 1973/2012Boszormenyi-Nagy, I., & Spark, G. (2012). Lealtades invisibles. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1973); Minuchin, Montalvo, Guerney, Rosman, & Shumer, 1967Minuchin, S., Montalvo, B., Guerney, B., Rosman, B., & Shumer, F. (1967). Families of the slums: an exploration of their structure and treatment. New York: Basic Books .), originalmente, influenciada pela psicanálise e pelas teorias das relações de objeto (Le Goff, 1999Le Goff, J.-F. (1999). L’enfant, parent de ses parents. Parentification et thérapie familiale. Paris: Harmattan.). Atualmente, embora encontremos algumas publicações a respeito, especialmente nos países francófonos, sobretudo na Suíça e Bélgica, e algumas pesquisas realizadas nos Estados Unidos, ainda se trata de uma noção pouco utilizada no Brasil. Nesse contexto, grande parte dos estudos se refere às crianças parentalizadas, sendo pouco considerados os adultos jovens que ainda permanecem nessa função parental em relação a seus pais (pai e/ou mãe).

A nosso ver, o conceito de parentalização abre uma nova perspectiva de compreensão para determinados estados psíquicos encontrados tanto na prática clínica individual quanto na prática clínica com famílias. Trata-se, assim, de uma chave de leitura importante, levando em conta, especialmente que, apesar da existência de afetos e comportamentos evidentes, muitos sujeitos não reconhecem esse tipo de vínculo estabelecido com seus pais. Tampouco identificam as repercussões da inversão geracional no andamento da sua própria vida. Nesse sentido, a parentalização não aparece como uma queixa manifesta - apresentada pelo sujeito, tratando-se de um atendimento individual, ou pelos membros da família, tratando-se de um atendimento familiar, - na medida em que se torna bastante funcional em determinadas relações entre pais e filhos, nas quais os progenitores não se sentem em condições de exercer suas funções com relação à geração seguinte.

No âmbito dessas considerações, neste trabalho, pretendemos discutir o processo de inversão geracional na família, tendo como enfoque as repercussões da parentalização na vida adulta. Para ilustrar a discussão, vamos utilizar fragmentos de casos clínicos nos quais questões referentes à parentalização se apresentam nos atendimentos de adultos.

O conceito de parentalização: das impressões iniciais ao delineamento substancial

Uma das mais antigas referências à noção de parentalização, no que se refere ao aspecto de inversão do papel parental entre pais e filhos, se localiza em um artigo de Schmideberg (1948Schmideberg, M. (1948). Parents as childrens. Psychiatric Quarterly Supplement, 22, 207-218.), intitulado “Parents as children”. Nesse artigo, a psicanalista aponta que alguns pais, em função de experiências altamente emocionais, como os conflitos conjugais, envolvendo perdas significativas, tendem a investir no filho como uma figura parental. Nessa mesma direção, Mahler e Rabinovitch (1956Mahler, M. S., & Rabinovitch, R. (1956). The effects of marital conflict on child development. In V. E. Eisenstein (Org.), Neurotic interaction in marriage (pp. 44-56). New York: Basic Books.) observam que a criança pode assumir vários papéis na família, tais como de pacificadores, ajudantes e confidentes, para fortalecer os laços familiares, especialmente a relação conjugal dos pais. Por essa via, Anna Freud (1965Freud, A. (1965). Normality and pathology in childhood. New York: International Universities Press .) também sugere que o lugar vazio deixado pela separação do casal conjugal pode levar o filho a preenchê-lo.

Nesse contexto, podemos perceber como a parentalização dos filhos se mostra tributária de certa fragilidade emocional dos pais, os quais encontram dificuldades para arcar com a estrutura e o direcionamento familiar. Cabe sublinhar que tais referências iniciais colocam em evidência um elemento fundamental para a compreensão do conceito de parentalização, que consiste no esforço das crianças para assegurar o bem-estar dos seus progenitores, garantindo, assim, um ambiente mais favorável para se habitar.

Apesar de a noção de parentalização ter sido esboçada no campo psicanalítico, sua emergência enquanto conceito definido surge, essencialmente, no campo das terapias de família. Em 1967, o terapeuta de família argentino Minuchin, em conjunto com seus colaboradores, introduz o conceito de “criança parental” ao se referir à atribuição de poder parental a uma criança. Minuchin et al. (1967Minuchin, S., Montalvo, B., Guerney, B., Rosman, B., & Shumer, F. (1967). Families of the slums: an exploration of their structure and treatment. New York: Basic Books .), a partir do trabalho com famílias que habitam comunidades muito precárias na cidade de Nova York, chamam atenção para as crianças que assumem responsabilidades parentais em um contexto desorganizado e socioeconômico precário.

No contexto de famílias caóticas, frequentemente numerosas, os pais exercem uma gestão relativa das suas funções parentais, demonstrando certa autoridade na relação com os filhos, por um lado, e indisponibilidade, por outro. Nesse sentido, as crianças ora podem contar com os pais, ora não. Em caso de ausência parental, os filhos tomariam para si parte da função dos pais. Há, portanto, uma delegação da responsabilidade adulta à criança parental, o que, por sua vez, pode ser feito de maneira explícita e consciente ou implícita e inconsciente. Com efeito, atribuir a função parental à criança implica na desorganização dos subsistemas parentais e fraternos e na inversão dos papéis parentais e filiais na família.

Alguns anos depois, em 1973, o psiquiatra e terapeuta de família húngaro-americano Boszormenyi-Nagy, na companhia de Spark, propõe o termo “parentalização” para designar a distorção subjetiva das relações, nas quais um dos membros, frequentemente, uma criança, torna-se um pai para o outro. Boszormenyi-Nagy e Spark (1973/2012Boszormenyi-Nagy, I., & Spark, G. (2012). Lealtades invisibles. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1973)) destacam a distorção subjetiva das relações entre pais e filhos como elemento central do processo de parentalização. Nesse caso, o progenitor passa a tomar a criança como se fosse um igual, do ponto de vista geracional.

Com efeito, a conduta regressiva dos pais termina por demandar uma postura progressiva dos filhos, independentemente do estágio de maturação infantil. Desse modo, parece-nos evidente que a parentalização se institui num sistema familiar no seio do qual os pais estão eles mesmo sofrendo carências afetivas ou com falta de definição das fronteiras geracionais. Nessas condições, então, a criança vai tentar ser uma figura parental para seus próprios pais (pai e/ou mãe). Segundo Michard (2017Michard, P. (2017). La thérapie contextuelle de Bozsormenyi-Nagy. Enfant, dette, et don en thérapie familiale. Paris: De Boeck Supérieur.), a capacidade fundamental de solicitude da criança se apoia sobre uma avaliação significativamente realista das necessidades de seus pais.

Na linha dessas ideias, Boszormenyi-Nagy e Spark (2012/1973Boszormenyi-Nagy, I., & Spark, G. (2012). Lealtades invisibles. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1973)) afirmam que a criança parentalizada é eleita não apenas pelos pais, mas com base em toda evolução das relações familiares. Em geral, pensa-se na escolha de um dos pais ou do casal parental, mas devemos considerar, também, os membros da fratria e o modo de ser da própria criança. Nesse sentido, alçada ao lugar parental, a criança habitualmente demonstra maior disponibilidade, sensibilidade e empatia com relação às necessidades de seus progenitores. O processo de parentalização resulta, portanto, de um encontro. Haxhe (2013Haxhe, S. (2013). L’enfant parentifié et sa famille. Toulouse: Érés.) propõe a existência de uma “causalidade circular”, na medida em que a criança sensível, responsável e sábia pode levar os pais a lhe demandar para além do seu estágio maturacional, porém são as demandas parentais que suscitam uma hipermaturação.

Em relação às demandas parentais, cabe diferenciar necessidades em termos de sustentação objetiva e física ou amparo afetivo e subjetivo, sendo que estes últimos se configuram como maior sacrifício para as crianças. Nessa direção, Jurkovic (1997Jurkovic, G. (1997). Lost childhoods: the plight of the parentified child. New York: Brunner-Routledge.) ressalta a existência de duas funções constituintes da parentalização: a função emocional e a função instrumental. Trata-se, sem dúvida, de duas funções que podem se apresentar associadas no cotidiano familiar.

Para Harrus-Révidi (2004Harrus-Révidi, G. (2004). Parents immatures et enfants-adultes. Paris: Petit Bibliothèque Payot.), a “criança-adulta” se constitui a partir de um adulto imaturo, isto é, orientado em torno das suas próprias necessidades. A imaturidade dos pais dificulta o acolhimento e a adaptação às necessidades do filho. Por esse viés, Olson e Gariti (1993Olson, M., & Gariti, P. (1993). Symbolic loss in horizontal relating: defining the role of parentification in addictive relationships. Contemporary Family Therapy, 15, 197-208.) sugerem que os pais das crianças parentalizadas também não foram atendidos em suas necessidades primárias pelos seus progenitores. Dando relevo ao aspecto transgeracional da parentalização, Bekir, Mclellan, Childress e Gariti (1993Bekir, P., McLellan, T., Childress, A., & Gariti, P. (1993). Role reversal in families of substance misusers: a transgeracional phemonen. The International Journal of the Addictions, 28, 613-630.) apontam, ainda, que muitos dos pais que demandam uma postura parental de seus filhos também foram parentalizados por seus pais quando crianças.

Existem alguns contextos ambientais que favorecem o processo de parentalização das crianças. A esse propósito, Kehlstadt (2018Kehlstadt, L. Z. (2018). Des adultes encore parentifiés: la parentification, un concept clé en psyhcothérapies d’adultes. Thérapie Familiale, 39(2), 127-147.) destaca: a imigração; a separação, os divórcios ou conflitos conjugais; as famílias monoparentais ou a morte de um dos pais; os adoecimentos físicos ou mentais de um dos pais; a adicção de um dos pais; as fratrias numerosas. Nesses casos, as figuras parentais se encontram muito absorvidas pelas suas vidas instáveis e turbulentas, ausentando-se de suas funções de cuidado e autoridade. Cabe precisar que tais contextos nos oferecem apenas pistas para discriminar a lógica familiar invertida, na medida em que demandam esforços pessoais mais substanciais da parte do conjunto dos membros. No entanto, é preciso diferenciar a colaboração da criança na promoção de uma dinâmica familiar saudável de uma situação que resulta em um processo de parentalização destrutiva.

Parentalização destrutiva versus parentalização construtiva

Consideramos importante abordar o processo de parentalização a partir de um espectro, no qual a “infantilização” se encontra em uma extremidade e a “parentalização destrutiva” no extremo oposto (Féres-Carneiro, Benghozi, Mello, Magalhães, 2019Féres-Carneiro, T., Benghozi, P., Mello, R., & Magalhães, A. S. (2019). L’enfant parentifié: maturation psychoaffective et contexte familial. Revue de Psychothérapie Psychanalytique de Groupe, 72, 187-200.; Jurkovic, 1997Jurkovic, G. (1997). Lost childhoods: the plight of the parentified child. New York: Brunner-Routledge.; Le Goff, 1999Le Goff, J.-F. (1999). L’enfant, parent de ses parents. Parentification et thérapie familiale. Paris: Harmattan.; Mello, Féres-Carneiro, Magalhães, 2015Mello, R., Féres-Carneiro, T., & Magalhães, A. S. (2015). Das demandas ao dom: as crianças pais de seus pais. Revista Subjetividades, 15, 213-220.). Com efeito, é importante avaliar a intensidade e o grau das responsabilidades assumidas pela criança. A “infantilização” se refere aos filhos cujas expectativas dos pais são de engajamento mínimo com cuidados emocionais e/ou instrumentais na dinâmica familiar. Nesse contexto, os pais satisfazem às necessidades dos filhos em demasia, dificultando a tomada de responsabilidade e a conquista da autonomia. A “parentalização destrutiva”, por sua vez, diz respeito ao filho que assume explicitamente responsabilidades instrumentais e/ou emocionais excessivas em relação ao seu estágio de desenvolvimento, não sendo prescritas culturalmente nem atribuídas de forma justa. Nesses casos, a parentalização, além de violar os limites pessoais da criança e as fronteiras familiares, torna-se uma fonte primária da identidade do filho.

Na linha dessas ideias, Le Goff (1999Le Goff, J.-F. (1999). L’enfant, parent de ses parents. Parentification et thérapie familiale. Paris: Harmattan.) destaca dois tipos de parentalização: a construtiva e a destrutiva. Tais tipos mantêm uma relação complexa, tendo em vista que a experiência de parentalização envolve aspectos negativos e positivos. Quando os efeitos positivos permanecem em primeiro plano, a parentalização se torna uma experiência a favor do movimento de maturação que permitirá à criança enfrentar as dificuldades da vida com mais confiança e recursos. Em contraposição, quando os fatores negativos são imperativos, a criança será exposta à vulnerabilidade e ao desamparo. De acordo com Boszormenyi-Nagy (1991Boszormenyi-Nagy, I. (1991). Glossaire de thérapie contextuelle. Dialogue, 111, 31-44.), a parentalização se apresenta destrutiva sobretudo quando esgota os recursos e as reservas de confiança da criança.

Em relação à parentalização construtiva, Le Goff (1999Le Goff, J.-F. (1999). L’enfant, parent de ses parents. Parentification et thérapie familiale. Paris: Harmattan.) considera fundamental que as responsabilidades delegadas à criança não sejam esmagadoras em relação à sua maturidade. Além disso, o fato de a criança contar com outros adultos ou membros da fratria também se mostra positivo. Assim, quando se trata de uma experiência de tomada de responsabilidade, por um período determinado e transitório, sob alguma supervisão e apoio, a criança pode tirar algum proveito disso em favor da sua evolução. A parentalização destrutiva, por sua vez, diz respeito à criança sobrecarregada de tarefas que ultrapassam suas competências. Nessas condições, os pais se comportam como crianças em relação ao filho, de modo que as necessidades infantis são negligenciadas. Não há sustentação da família de origem dos progenitores ou rede de apoio. Trata-se de uma manobra de exploração manifesta da disponibilidade e lealdade da criança, com severas implicações para seu desenvolvimento emocional.

Para Le Goff (1999Le Goff, J.-F. (1999). L’enfant, parent de ses parents. Parentification et thérapie familiale. Paris: Harmattan.), a interação entre pais e filhos pode evoluir na direção de uma relação não parentalizada, parentalizada positivamente ou parentalizada negativamente. Seja como for, o reconhecimento dos esforços dos filhos pelos pais atenua, sobremaneira, os efeitos destrutivos da inversão geracional. Nesse sentido, Boszormeny-Nagy e Krasner (1986Boszormeny-Nagy, I., & Krasner, B. (1986). Between give and take. New York: Brunner/Mazel.) afirmam que a parentalização é o inverso do justo reconhecimento da privação do direito de ser criança à qual o filho se submete. Levando em conta a assimetria relacional entre adultos e crianças, fica claro o direito destas de receberem os cuidados das figuras parentais, tanto por sua condição biológica quanto por sua vulnerabilidade e dependência. Para Le Goff (1999Le Goff, J.-F. (1999). L’enfant, parent de ses parents. Parentification et thérapie familiale. Paris: Harmattan.), a capacidade da criança para confiar e investir no mundo está intimamente relacionada com a aceitação dos pais dessa assimetria entre o dar e o receber.

A nosso ver, a vivência de uma criança que se ocupa de modo delimitado e provisório do cuidado dos pais é absolutamente diferente da experiência de um filho instado a adotar uma postura parental, a fim de satisfazer a dependência de adultos regredidos e imaturos pelos quais não se sente cuidado. Entendemos, assim, que a parentalização adquire um sentido patológico e disfuncional, na medida em que interfere nas possibilidades de liberdade, crescimento e individualização da criança, sobretudo quando a condição de inversão é negada pelos pais. Nesses casos, ocorre uma exploração dos laços de dependência e lealdade da criança em favor do bem-estar do adulto (Kehlstadt, 2018Kehlstadt, L. Z. (2018). Des adultes encore parentifiés: la parentification, un concept clé en psyhcothérapies d’adultes. Thérapie Familiale, 39(2), 127-147.).

Muitas vezes, as repercussões psíquicas do processo de parentalização se tornam mais proeminentes quando a criança depara com a construção de sua identidade e intimidade. Durante a infância, algumas crianças não apresentam sintomas, mostrando-se bastante adaptadas e responsivas diante do que é esperado delas. Desse modo, o sofrimento da criança se torna imperceptível, mascarando sentimentos de insegurança, vulnerabilidade e necessidades importantes não satisfeitas. De acordo com Kehlstadt (2018Kehlstadt, L. Z. (2018). Des adultes encore parentifiés: la parentification, un concept clé en psyhcothérapies d’adultes. Thérapie Familiale, 39(2), 127-147.), esta provavelmente seja a razão pela qual é especialmente nos períodos de transição do ciclo de vida, como a entrada na vida adulta, que surgem verdadeiramente as dificuldades. Para a autora, a cegueira da criança quanto às suas condições de falta de apoio e exploração deve-se, em parte, devido a seu sentimento de valorização de suas “pseudocapacidades” de adulta. Sentimentos de culpa (Jurkovic, 1997Jurkovic, G. (1997). Lost childhoods: the plight of the parentified child. New York: Brunner-Routledge.) e compromissos de simbiose (Boszormenyi-Nagy & Spark, 1973/2012Boszormenyi-Nagy, I., & Spark, G. (2012). Lealtades invisibles. Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1973)) também podem continuar a favorecer a manutenção da relação parentalizada com os pais, como veremos a seguir.

Repercussões da parentalização na vida adulta

A grande parte dos autores que se debruçam sobre a problemática da parentalização não desenvolve a ideia de que crianças podem permanecer parentalizadas quando adultas, o que constatamos não raramente em nossa prática clínica. E é interessante notar que, muitas vezes, os adultos não costumam ser conscientes de sua posição de criança parentalizada nem mesmo do abuso que a inversão geracional constituiu ao longo do seu desenvolvimento. Certamente, a posição de adulto parentalizado se estabelece, na maioria dos casos, em continuidade a uma posição de criança parentalizada nos tempos da infância. É por isso, então, que o conceito continua válido na idade adulta e sendo referência importante na escuta clínica.

Kehlstadt (2018Kehlstadt, L. Z. (2018). Des adultes encore parentifiés: la parentification, un concept clé en psyhcothérapies d’adultes. Thérapie Familiale, 39(2), 127-147.) define os adultos que permanecem em função parental com base no laço de dependência entre a criança tornada adulta e seus pais, a partir do qual são revividos os sentimentos de responsabilidade em relação a seus pais, tanto com relação às necessidades afetivas quanto objetivas, como na infância. As necessidades parentais continuam, portanto, sendo prioritárias às necessidades pessoais. Nessas condições, podemos reconhecer uma condição “pseudodependente” dos jovens adultos em relação aos pais (Kehlstadt, 2018Kehlstadt, L. Z. (2018). Des adultes encore parentifiés: la parentification, un concept clé en psyhcothérapies d’adultes. Thérapie Familiale, 39(2), 127-147.). Ou seja, mesmo sendo autônomos em muitos domínios na vida, alguns filhos se descrevem como ainda necessitando das figuras parentais, não distinguindo a fragilidade parental da sua própria. Isso implica pensar que tal dependência dos pais corresponde especialmente à expressão de uma falta de segurança afetiva na relação com os pais, mais do que uma situação objetiva de amparo necessário. Além disso, nesses adultos parentalizados na infância, o sistema de paraexcitação e regulação das emoções se mostra precário em função da falta de cuidados parentais capazes de reconhecer, conter e nomear os estados internos (Blacioti, 2019Blacioti, E. (2019). La parentification, un processus intrapsychique, intersubjectif et transubjectif. Le Divan familial, 42(1), 179-193.).

Para Khelstadt (2018), em muitos casos de adultos parentalizados, trataria-se de pensar em uma forma de autonomia na vida prática que pode mascarar sensações de insegurança significativas. Nessas condições, os filhos podem permanecer bastante ligados à sua família de origem. Os que já habitam a própria casa têm o hábito de visitar os pais com alta frequência, atrelados a uma sensação de dever e responsabilidade, independentemente da longa jornada de trabalho e dos afazeres pessoais. Encontram-se, assim, presos em uma “lealdade para não crescer” (loyauté à ne pas grandir), nos servindo dos termos de Le Goff (1999Le Goff, J.-F. (1999). L’enfant, parent de ses parents. Parentification et thérapie familiale. Paris: Harmattan., p. 109).

Tal como podemos perceber na situação clínica familiar com Teresa (45 anos) e Rosa (24 anos), mãe e filha, respectivamente. Teresa apresenta um quadro depressivo crônico, uma desvitalização severa e alguns sintomas obsessivo-compulsivos, ausentando-se das funções de cuidado e autoridade na família desde a infância de Rosa. Na ausência da figura paterna e de uma rede de apoio familiar, Rosa passou a desempenhar as funções supostamente cabíveis à mãe, ainda criança, tornando-se a responsável tanto pelos afazeres da casa quanto pelo suporte emocional à mãe. Atualmente, mesmo sendo recém-casada, com emprego novo e morando com o marido, a filha permanece no lugar parentalizado, frequentando diariamente a casa materna, a fim de assegurar o bem-estar da família de origem.

Entretanto a transição da adolescência para a vida adulta demanda, inevitavelmente, novos movimentos de adaptação, tanto dos pais quanto dos filhos, gerando, muitas vezes, instabilidades na família. Tais crises, comumente descritas nas transformações dos ciclos de vida familiar (Carter & McGoldrick, 1995Carter, B., & McGoldrick, M. (1995). As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para terapia familiar. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.), podem desencadear o aparecimento de sintomas e dificuldades relacionados ao processo de parentalização na infância. Nesse período de transição, então, pode surgir um desejo de viver experiências fora do âmbito familiar e, ao mesmo tempo, um receio de abrir mão do lugar de filho parentalizado, instaurando, assim, conflitos psíquicos com relação à saída de casa (Jurkovic, 1997Jurkovic, G. (1997). Lost childhoods: the plight of the parentified child. New York: Brunner-Routledge.). Tal período desperta no filho angústias de separação e vivências de culpa e abandono dos pais fragilizados, por um lado, e pressões dos membros da família para que ele permaneça no papel de sustentação, por outro.

Isso nos remete ao atendimento clínico de Letícia (22 anos). Embora seja uma mulher ativa e bastante desembaraçada, mantém uma relação de dependência e preocupação excessiva com os pais. É permanentemente convocada a resolver os problemas da família, exercendo funções de mediação dos conflitos conjugais dos pais; confidente da mãe, sempre queixosa; e cuidadora do pai alcoolista, por vezes violento. A jovem acabara de se formar na universidade, sendo selecionada para uma vaga importante em sua área. Apesar da excelência acadêmica e notória sofisticação intelectual, Letícia tem dificuldades para confiar em suas competências, sentindo-se extremamente insegura para ingressar no mundo do trabalho, desligando-se relativamente da sua esfera familiar. É importante notar que tal insegurança se deve, também, à vivência de não se sentir à altura do lugar parental ao qual foi lançada.

De forma geral, podemos dizer que o desejo de emancipação do filho diz respeito, sobretudo, às escolhas profissionais e parcerias amorosas. Trata-se de acontecimentos que se apresentam quando o jovem está em vias de tomar uma relativa distância da família de origem, rumo à construção de uma vida própria e autônoma. Sob essa perspectiva, é interessante retomar o caso anteriormente citado de Rosa, que aos 24 anos começa a gestar o desejo de ser mãe. Tal desejo parece produzir, pouco a pouco, uma descontinuidade em relação à homeostase familiar com base na inversão geracional, abrindo espaço para a instauração de novas dinâmicas entre mãe e filha.

Bowlby (1979/2015Bowlby, J. (2015). Formação e rompimento dos laços afetivos. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1979)) postula que a ausência, parcial ou total, de uma “figura de confiança” na infância interfere na formação de uma base segura em cada fase do ciclo vital. Ou seja, o padrão das relações familiares que o indivíduo experimenta quando criança apresenta uma importância fundamental para a construção de uma base pessoal segura e confiante ao longo da vida. Nesse sentido, o reconhecimento dos pais pela necessidade que a criança tem de segurança e, por conseguinte, o ajustamento a tal necessidade torna-se decisivo. Para além disso, muito importante também é o respeito pelo desejo da criança de explorar e ampliar gradualmente suas relações com seus pares e outros adultos (Bowlby, 1979/2015Bowlby, J. (2015). Formação e rompimento dos laços afetivos. São Paulo, SP: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1979)). Contudo, nos casos de parentalização, são as crianças que atuam como “figura de ligação” para os pais (pai e/ou mãe), invertendo a relação de cuidado.

De acordo com Winnicott (1965/2011Winnicott, D. W. (2011). Segurança. In D. W. Winnicott, A família e o desenvolvimento individual (pp. 43-48). São Paulo, SP: Martins Fontes . (Trabalho original publicado em 1965)), para a criança se tornar uma pessoa sadia e, com o tempo, adulta, determinadas condições ambientais precisam ser satisfeitas. Ou seja, é a segurança de um cuidado parental suficientemente bom que torna possível o crescimento pessoal e individual do filho. Desse modo, o conjunto de cuidados necessários ao desenvolvimento da criança oferecido pelos pais pode ser compreendido como o alicerce do futuro sentido de segurança. Trata-se, fundamentalmente, de uma provisão psicológica de confiança e estabilidade que vai permitir à criança e, posteriormente, ao adulto alçar voos próprios e fazer frente à dependência dos pais, caso contrário, os laços de dependência são reforçados e o processo de diferenciação comprometido.

Podemos reconhecer tal comprometimento no caso clínico com Marieta (55 anos), que buscou atendimento em função de uma solidão extrema e da falta de uma identidade pessoal. Fusionada com sua família de origem, mesmo na vida adulta, Marieta não conseguiu construir a própria família e/ou uma vida individual, tampouco obteve suficientes experiências prazerosas ao longo de sua vida. Sua família sustentava o mito de que sobreviver se sobrepunha ao viver, exigindo, assim, altas doses de dedicação e sacrifício. Oriunda de uma cidade pequena, Marieta, aos 18 anos, se mudou para a cidade grande para que pudesse ganhar mais dinheiro com a finalidade de ajudar a família. Ela sentia o dever de não decepcionar as expectativas familiares e enviava a maior parte do seu salário para que os pais e irmãs tivessem uma vida mais confortável. É interessante destacar que Marieta chegou a engravidar duas vezes de um namorado quando jovem, mas decidiu abortar, pois não acreditava haver espaço para cuidar de uma criança. Apresentava a fantasia de que o nascimento de um filho seu traria muito sofrimento e miséria a toda a família. Nesse caso, não houve possibilidade de abrir mão do lugar de filha parentalizada e de romper, de certa forma, com a lealdade à sua família de origem para ser leal à construção de uma nova família nuclear.

De acordo com Kehlstadt (2018Kehlstadt, L. Z. (2018). Des adultes encore parentifiés: la parentification, un concept clé en psyhcothérapies d’adultes. Thérapie Familiale, 39(2), 127-147.), há uma forma de imaturidade ligada às faltas afetivas importantes, mesmo se o adulto-cuidador parece em geral mais adulto que o adulto-criança. Consideramos que tal imaturidade nos parece especialmente relacionada à dificuldade de viver uma existência pessoal - e separada dos pais - que é satisfatória, e não apenas uma série de adaptações ao ambiente e ligações inseguras com o outro. A esse propósito, Haxhe (2013Haxhe, S. (2013). L’enfant parentifié et sa famille. Toulouse: Érés.) postula que a criança parentalizada - podemos incluir aí o adulto - pode ser muito próxima no nível comportamental quando se ocupa dos seus pais, encontrando-os com frequência, por exemplo, em contraposição, sentir uma grande solidão afetiva na intimidade.

Le Goff (1999Le Goff, J.-F. (1999). L’enfant, parent de ses parents. Parentification et thérapie familiale. Paris: Harmattan.) se debruça sobre a evolução do processo de parentalização, abordando as especificidades das qualidades relacionais dos adultos que foram parentalizados quando crianças. O autor descreve tal evolução a partir de dois eixos cujas extremidades representam desdobramentos opostos. Trata-se do eixo “codependência” versus “desinvestimento afetivo”. A codependência se sustenta sobre o medo do abandono que resulta em uma relação fusional ou autoritária. O adulto pode se sentir, frequentemente, criticado e culpado, por um lado, ou se mostrar exigente e acusador, por outro. O processo de parentalização também pode resultar em um desinvestimento afetivo, de tal forma que o sujeito recusa e se distancia das situações que demandam envolvimento e doação. É como se o sujeito tivesse esgotado sua reserva de investimento, não tendo mais nada a dar.

Isso nos remete a dois modos de relação com o objeto que se estabelecem em função da angústia de separação vivenciada nas primeiras relações objetais, designados por Balint (1959Balint, M. (1959). Thrills and regressions. New York: International Universities Press.) como ocnofilia e filobastimo. O primeiro se refere ao apego exagerado aos objetos como fonte de segurança, e o segundo diz respeito ao desapego extremo dos objetos que são sentidos como fonte de perigo. De um lado, medo do vazio; do outro, medo do contato. Assim, quando os vínculos com os objetos cuidadores são falhos e/ou interrompidos precoce e duradouramente, instaura-se um estado de violenta insegurança subjetiva vida afora. Nesse sentido, o ocnofílico busca segurança se agarrando aos objetos, enquanto o filobata sente-se seguro mantendo os objetos à distância.

Para Le Goff (1999Le Goff, J.-F. (1999). L’enfant, parent de ses parents. Parentification et thérapie familiale. Paris: Harmattan.), a criança parentalizada, quando se torna adulta, pode assumir duas versões: “adulto-criança” e “cuidador”. O “adulto-criança” designa o adulto que não pôde ser criança, pois teve que se encarregar de responsabilidades familiares significativas e foi privado de certas experiências de aprendizagem e lúdicas. Durante a infância, era considerado uma criança ultramadura, porém, na vida adulta, tenderia a conduzir a vida de forma bastante infantil, resgatando necessidades de dependência, apoio e reconhecimento que não puderam ser vividas. O “cuidador”, por sua vez, refere-se à criança que se adaptou bem à situação de dar sem receber. Tornada adulta, ela continua a ter uma forte tendência a se preocupar com o cuidado dos outros. Nessa direção, alguns autores ressaltam que tais sujeitos podem realizar escolhas profissionais ligadas ao campo do cuidado, tais como: medicina, enfermagem, psicologia (Haxhe, 2013Haxhe, S. (2013). L’enfant parentifié et sa famille. Toulouse: Érés.; Jurkovic, 1997Jurkovic, G. (1997). Lost childhoods: the plight of the parentified child. New York: Brunner-Routledge.). Kehlstadt, (2018Kehlstadt, L. Z. (2018). Des adultes encore parentifiés: la parentification, un concept clé en psyhcothérapies d’adultes. Thérapie Familiale, 39(2), 127-147.) acrescenta ainda, nesses casos, o interesse por quadros profissionais de liderança e direção.

Considerações finais

Propusemos, neste trabalho, discutir as repercussões da inversão geracional no processo de subjetivação, considerando os adultos que foram parentalizados na infância e que permanecem em uma relação invertida com os pais. A posição de adulto parentalizado se estabelece, na maioria dos casos atendidos por nós, em continuidade à posição de criança parentalizada. Notamos que as repercussões psíquicas do processo de parentalização muitas vezes se tornam mais evidentes na vida adulta quando o jovem adulto depara com a construção de sua identidade e intimidade. Ou seja, durante a infância, algumas crianças não apresentam sintomas ou queixas, adaptando-se às exigências do ambiente familiar.

Consideramos que a inversão geracional suscita dificuldades importantes para a construção de uma base pessoal segura e confiante na vida adulta, repercutindo sobremaneira no modo como os adultos, uma vez parentalizados, se relacionam com o outro. Tais relações transitam nos extremos, do desejo de fusão e proximidade absolutas ao desejo de distância e recusa do outro, tendo a insegurança e o medo do abandono como pano de fundo. Desse modo, testemunhamos jovens adultos com significativos entraves para criar um laço amoroso, investir em sua família nuclear e/ou ingressar no mundo do trabalho, mantendo-se em uma relação bastante indiferenciada com a família de origem. Contudo a saída da adolescência e o começo da vida adulta exigem novos reposicionamentos psíquicos e remanejamentos familiares, podendo, assim, criar brechas para formas de relação até então inéditas na família.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2019
  • Aceito
    29 Jul 2020
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