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Psicanálise, grupo e teoria da técnica: conselhos ao jovem coordenador de grupos

Psychoanalysis, group and technique theory: advice to the young group coordinator

Psicoanálisis, grupo y teoría de la técnica: consejos al joven coordinador de grupos

Psychanalyse, groupe et théorie de la technique: conseils aux jeunes coordinateurs de groupe

Resumo

Atualmente, na universidade, os estudos e pesquisas sobre psicanálise e grupos vêm aumentando. Contudo, muitos trabalhos sobre intervenção em grupos não descrevem como se realiza a análise grupal. Dessa forma, o objetivo deste artigo é sistematizar uma proposta de análise da cadeia associativa grupal, a partir dos ensinamentos de René Kaës e Enrique Pichon-Rivière. O método utilizado foi o de pesquisa bibliográfica em toda obra de Kaës e Pichon-Rivière, com a finalidade de identificar conceitos que ofereçam referências para a análise. Como resultados, discutimos as diferenças entre dispositivo, enquadramento e tarefa; as formas de realização do registro ou protocolo grupal; a análise da transferência; e a análise dos emergentes e do momento ideológico no grupo.

Palavras-chave:
grupo; pesquisa; método; psicologia social; ideologia

Abstract

Although studies and research on psychoanalysis and groups have currently increased in university, many works on group intervention fail to describe how group analysis is performed. This article sought thus to systematize a proposal for analyzing the group associative chain, based on René Kaës and Enrique Pichon-Rivière. A bibliographic research on the entire work of Kaës and Pichon-Rivière was carried out to identify concepts that provide references for the analysis. The text discusses the differences between device, framework, and task; the ways in which group recording and protocol is performed; the analysis of transference; and the analysis of the emergent and the ideological moment in the group.

Keywords:
group; research; method; social psychology; ideology

Resumen

Actualmente, los estudios e investigaciones sobre psicoanálisis y grupos vienen aumentando en la Universidad. Sin embargo, muchos trabajos sobre intervención en grupos no describen cómo se realiza un análisis grupal. El objetivo de este artículo es sistematizar una propuesta de análisis de la cadena asociativa grupal a partir de las enseñanzas de René Kaës y de Enrique Pichon-Rivière. El método utilizado fue la investigación bibliográfica de la obra de Kaës y de Pichon-Rivière para identificar los conceptos que brindan referentes para el análisis. Como resultado, se discuten las diferencias entre dispositivo, encuadre y tarea; las formas de realización del registro o protocolo grupal; el análisis de la transferencia; y el análisis de los emergentes y del momento ideológico en el grupo.

Palabras clave:
grupo; investigación; método; psicología social; ideología

Résumé

Actuellement, à l’université, les études et les recherches sur la psychanalyse et les groupes se sont multipliés. Cependant, de nombreux ouvrages sur l’intervention en groupe ne décrivent pas comment l’analyse de groupe est effectuée. Ainsi, cet article vise à systématiser une proposition d’analyse de la chaîne associative groupale, basée sur les enseignements de René Kaës et d’Enrique Pichon-Rivière. On a effectué une recherche bibliographique dans l’ensemble de l’œuvre de Kaës et Pichon-Rivière afin d’identifier les concepts qui fournissent des références pour l’analyse. On discute les différences entre le dispositif, le cadre et la tâche; la manière dont le registre et le protocole du groupe est réalisé; l’analyse du transfert; l’analyse des émergents et du moment idéologique dans le groupe.

Mots-clés:
groupe; recherche; méthode; psychologie sociale; idéologie

Na psicanálise tradicional, a cadeia associativa pode ser entendida como o livre curso dos acontecimentos do dizer e do não dizer (Kaës, 1994Kaës, R. (1994). La invención psicoanalítica del grupo. Buenos Aires: Asociación Argentina de Psicología y Psicoterapia de Grupo.). No espaço grupal, ela se complexifica, pois o fluxo associativo se dá a partir de uma polifonia de vozes, constituindo uma trama discursiva, ou melhor, uma interdiscursividade. “Isto significa que não se trata apenas de uma cadeia significante, mas de um conjunto semiótico amplo e composto, no qual se entrelaçam palavras, olhares, lugares, mímicas, gestos” (Kaës, 1994Kaës, R. (1994). La invención psicoanalítica del grupo. Buenos Aires: Asociación Argentina de Psicología y Psicoterapia de Grupo., p. 56). Essa cadeia associativa é determinada tanto pelo sujeito em sua singularidade, como pelo processo psíquico grupal, com seus processos intertransferenciais e alianças inconscientes.

A partir de uma revisão da literatura, constata-se que em muitos trabalhos sobre intervenção em grupos não se desenvolve como foi realizada a análise da cadeia associativa grupal. Muitos deles optam por apresentar os principais conceitos da psicanálise sobre os grupos, ou então visibilizar os resultados da pesquisa ou da intervenção, fornecendo poucos caminhos acerca do método de análise para o jovem coordenador de grupos. Dessa forma, a escassez de textos sobre o processo de análise de grupos faz com que a transmissão desse conhecimento fique dificultada, visto que a formação de psicanalistas de grupos geralmente se dá em suas associações e sociedades de formação. Nesse sentido, deparamo-nos com as vicissitudes da transmissão e da formação em psicanálise na universidade. Institucionalmente, para alguém se formar psicanalista deve passar ele próprio pelo processo de análise, ter supervisão dos seus casos clínicos, além de ter conhecimento e domínio teórico e técnico sobre seu campo de saber. Formação que, evidentemente, é impossível de se realizar na graduação ou pós-graduação stricto sensu em psicologia no espaço universitário.

Entretanto, os estudos e pesquisas em psicanálise sobre os grupos vêm aumentando na universidade, não sendo praticados apenas nos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia, mas também em outros campos, como a Enfermagem (Fortuna, Franceschini, Mishima, Matumoto, & Pereira, 2011Fortuna, C. M.; Franceschini, T. R. C.; Mishima, S. M.; Matumoto, S., & Pereira, M. J. B. (2011). Movimentos da educação permanente em saúde, desencadeados a partir da formação de facilitadores. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 19(2), 411-420.) e até na Física (Villani & Santana, 2004Villani, A., & Santana, D. A. (2004). Analisando as interações dos participantes numa disciplina de Física. Ciência e educação, 10(2), 197-217. doi: 10.1590/S1516-73132004000200005
https://doi.org/10.1590/S1516-7313200400...
). Portanto, entende-se que a pesquisa em psicanálise e grupos já extrapolou o campo de suas associações de formação, adentrando no território das pesquisas de pós-graduação, em que é regida pela lógica universitária.

Dessa forma, o objetivo deste artigo é sistematizar uma proposta de análise da cadeia associativa grupal, a partir dos ensinamentos de René Kaës e Enrique Pichon-Rivière, para que possa subsidiar futuras pesquisas e análises de grupos. Visamos focar na teoria dos processos associativos nos grupos.

Como método para nosso estudo, realizamos uma pesquisa bibliográfica em toda obra publicada de René Kaës e Enrique Pichon-Rivière, com a finalidade de identificar conceitos e passagens que mostrem as referências para a análise dos discursos do grupo. Salientamos que neste artigo não citamos todos os seus escritos, mas apenas as passagens que contribuem para a elucidação de nosso problema de pesquisa. Igualmente, sabemos que são dois autores com repertórios teóricos distintos, assim, nosso intuito foi trabalhar nos pontos de articulação e convergência que contribuam para a análise do processo grupal. Nesse sentido, não buscamos percorrer a singularidade do pensamento de cada autor, mas sim buscar alguns elementos conceituais que nos instrumentalizem na análise da cadeia associativa grupal.

Também utilizamos como fonte de dados nossa experiência clínica e investigativa com grupos. Ressaltamos que a psicanálise no contexto grupal não é mera psicanálise individual aplicada ao grupo. Por se tratar de agenciamentos distintos, ocorrem outros processos, que discriminaremos no próximo tópico.

Dispositivo, enquadramento e tarefa: situação psicanalítica

Nas sessões de grupo, diferenciamos três dimensões que devem ser elucidadas: o dispositivo, o enquadramento e a tarefa. O dispositivo é uma máquina de produção de visibilidades, discursos e modos de subjetivação (Deleuze, 1996Deleuze, G. (1996). O que é um dispositivo? In G. Deleuze, O mistério de Ariana (pp. 83-96). Lisboa: Vega.). É um aparelho de trabalho construído com certa finalidade (Kaës, 2007Kaës, R. (2007). Um Singular plural: a psicanálise à prova do grupo. São Paulo, SP: Loyola.). Dessa forma, ele é um artifício, uma construção que agencia elementos espaciais, temporais e materiais com o propósito de servir aos objetivos de conhecimento e transformação, próprios ao exercício do método psicanalítico. Assim, o dispositivo permite a manifestação de uma certa ordem de realidade psíquica, que é objeto de operações que visam a transformação. Possui uma tetravalência: na dimensão horizontal, os agenciamentos maquínico-corporal e coletivo de enunciação; e, na dimensão vertical, os lados territoriais e os picos de desterritorialização (Deleuze & Guattari, 1995Deleuze, G., & Guattari, F. (1995). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vols. 1 a 5). São Paulo, SP: Editora 34. (Trabalho original publicado em 1980); Hur, 2012Hur, D. U. (2012). O dispositivo de grupo na esquizoanálise: tetravalência e esquizodrama. Vínculo, 9(1), 18-26., 2018Hur, D. U. (2018). Psicologia, política e esquizoanálise. Campinas, SP: Alínea.).

A psicanálise emergiu enquanto um campo de saberes que tinha a demanda, inicialmente, de trabalhar o sintoma da histeria. Para tanto, Freud criou uma “máquina”, o dispositivo do sofá-divã (Kaës, 1997Kaës, R. (1997). O grupo e o sujeito do grupo: elementos para uma teoria psicanalítica do grupo. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.). Trouxe um agenciamento em que instaurou uma nova disposição corporal e um novo regime de enunciação. Esse regime decorre diretamente da compreensão do que seria próprio do psíquico: associar e dissociar. No que se refere à primeira dimensão, o agenciamento maquínico-corporal, Freud dispôs o corpo da histérica de tal forma que o analista fosse retirado de seu campo visual, deitando-a à sua frente, para assim trabalhar a carga transferencial ao analista. Em relação ao agenciamento coletivo de enunciação, o analista incitou uma nova forma de produção discursiva, no conhecido método da associação livre. O discurso da histérica foi agenciado para que a analisada pudesse falar tudo o que associasse. Esse dispositivo buscou fomentar processos de associação e desterritorialização que proporcionassem efeitos no processo de repetição do sintoma para o caminho de uma elaboração, da transformação do quadro clínico e da produção de um novo modo de subjetivação.

O dispositivo do sofá-divã é uma tecnologia, tal como o dispositivo de grupo. O segundo instaura um agenciamento que, de certa forma, é a negação do dispositivo princeps da psicanálise (Kaës, 1997Kaës, R. (1997). O grupo e o sujeito do grupo: elementos para uma teoria psicanalítica do grupo. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.), visto que coloca em cena a relação face-a-face, situação que deveria ser neutralizada nos primórdios da psicanálise. Obviamente, a máquina grupal incita processos diferenciados do dispositivo do sofá-divã, como lidar com a diferenciação de limites e fronteiras, os processos intertransferenciais (Kaës, 1994Kaës, R. (1994). La invención psicoanalítica del grupo. Buenos Aires: Asociación Argentina de Psicología y Psicoterapia de Grupo.), a ressonância fantasmática no espaço coletivo (Foulkes & Anthony, 1967Foulkes, S. H., & Anthony, E. J. (1967). Psicoterapia de grupo. Rio de Janeiro, RJ: Biblioteca Universal Popular.), entre outros fenômenos.

Todo dispositivo possui um território, seus lados territoriais, que é chamado de enquadramento, na acepção de Bleger (1975Bleger, J. (1975). Simbiosis y ambigüedad. Buenos Aires: Paidós.). O enquadramento é parte essencial do trabalho analítico, pois é justamente a base em que o processo se firma para ocorrer. O enquadramento, enquanto instituição, é a parte constante que possibilita o processo analítico, é o que dá sustentação à parte dinâmica (Bleger, 1975Bleger, J. (1975). Simbiosis y ambigüedad. Buenos Aires: Paidós.). É a porção de território que dá ancoragem para o trabalho psíquico e de transformação. Faz parte do enquadramento seu conjunto de coordenadas: o espaço físico em que o processo ocorrerá; as consignas; os agenciamentos discursivos, corporais e espaciais; o tempo e o contrato que se faz com o cliente ou com o grupo. Mas isso não quer dizer que o enquadramento seja formado apenas por linhas de segmentaridade rígida. De acordo com as linhas de forças em jogo, pode flexibilizar-se, pois “nesse sentido, é uma forma móvel que trata de capturar o movimento. Esta modalidade de trabalho, mais que interpretar, permite desdobrar uma linha de experimentação” (Lans, 2003Lans, A. (2003). El esquizoanálisis: una clínica en movimiento. Montevideo: Multiplicidades., p. 96).

A função de ancoragem, ou apoio psíquico, do enquadramento é fundamental para os processos de elaboração e criação do coletivo. Kaës (2005Kaës, R. (2005). Os espaços psíquicos comuns e partilhados: transmissão e negatividade. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.) distingue seis funções distintas do enquadramento: a função continente se refere ao receptáculo das partes indiferenciadas e indiscriminadas do sujeito; a função de limitação garante a distinção entre um Eu e um não Eu; a função transicional delimita fronteiras, as continuidades e ligações; a função de apoio e suporte marca a sensação de segurança e de identidade; a função contentora corresponde aos fenômenos de figurabilidade; e, finalmente, a função simbolizante é marca de uma das principais condições do pensamento. Por isso não entendemos o enquadramento como elemento fixo que apenas dá base ao movimento, ele mesmo incita processos de elaboração e simbolização.

Vale ressaltar que no campo da pesquisa em grupos há diferentes contextos, portanto deve-se fundamentar o dispositivo e o enquadramento a partir das diferentes configurações de trabalho em que se está inserido. Há assim uma maleabilidade das configurações disposicionais a que o pesquisador deve ficar atento.

A terceira dimensão, fundamental, é a tarefa proposta ao grupo ou ao sujeito, com vistas à investigação (Pichon-Rivière, 1982Pichon-Rivière, E. (1982). O processo grupal. São Paulo, SP: Martins Fontes.). A tarefa é a linha de partida para a cadeia associativa grupal, sendo a consigna que incita o trabalho psíquico e a produção discursiva dos grupos investigados. A tarefa é um organizador psíquico do processo grupal e deve estar diretamente relacionada ao problema de pesquisa do investigador.

O discurso do grupo se configura assim como uma associação livre incitada pela tarefa, cabendo aos sujeitos construir o discurso da maneira que lhes convier. Na condução do grupo, propomos que o coletivo associe-rememore livremente sobre sua experiência e, apenas em suas pausas, lacunas, ou enunciados emergentes, que manifestem uma nova ordem do discurso ou de acontecimentos, realizamos alguma intervenção. De forma geral, podemos adotar intervenções: de caráter interrogativo sobre algo que possa ter ficado ambíguo ou em falta (Veci, 1983Veci, M. M. G., & Fumagalli, C. (1983). Intervenciones del coordinador. In M. M. G. Veci & C. Fumagalli, (pp. 1-6). Buenos Aires: Ediciones Cinco.), de assinalamento de um emergente (Pichon-Rivière, 1982Pichon-Rivière, E. (1982). O processo grupal. São Paulo, SP: Martins Fontes., 1998Pichon-Rivière, E. (1998). Teoria do vínculo (6a ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes.), ou mesmo de levantamento de hipóteses e produção de mais sentidos para um determinado tema. Compreendemos que o relato trazido é resultante de uma produção da relação entre o grupo e a equipe que o coordena.

Tal como Bleger (1980Bleger, J. (1980). Temas de psicologia: entrevistas e grupos. São Paulo, SP: Martins Fontes.) preconiza no processo de entrevista psicológica, o grupo é solicitado a configurar seu campo discursivo a partir de sua estrutura psicológica singular, ou dito de outra maneira, a partir de sua configuração vincular intersubjetiva. Buscamos “que o campo da entrevista se configure, o máximo possível, pelas variáveis que dependem da personalidade do entrevistado” (p. 10), neste caso, do grupo mediado pela tarefa. A cadeia associativa a ser desdobrada é o processo em movimento, que está apoiado sobre o enquadramento do dispositivo de investigação.

Protocolo e registro grupal

Para a análise do grupo é fundamental realizar um registro minucioso do que ocorreu na sessão grupal, para que possamos contar com dados para a análise. Uma boa descrição do ocorrido é a base para uma análise mais detalhada, complexa e menos marcada pelos pressupostos do pesquisador.

Primeiramente, como forma de facilitar o registro grupal, e localizar espacialmente os integrantes, costuma-se desenhar um círculo e situar os nomes dos participantes nos lugares que ocupam, conforme a Figura 1. Essa forma de esquematização é uma adaptação em relação ao que está presente nos registros de “Crônica de um grupo” (1979Kaës, R., & Anzieu, D. (1979). Crónica de un grupo. Barcelona: Gedisa.), realizados por René Kaës a partir de sessões de grupo coordenadas por Didier Anzieu.

Figura 1
Esquema da disposição espacial dos participantes do grupo. Fonte: Kaës & Anzieu, 1979Kaës, R., & Anzieu, D. (1979). Crónica de un grupo. Barcelona: Gedisa..

As obras de René Kaës e as de Pichon-Rivière não exploram um modelo de registro do discurso dos grupos. Entretanto, encontramos na literatura sobre grupos diferentes formas de registro do discurso grupal. Citamos as que consideramos as principais: (1) Gravação em áudio e transcrição posterior de todas as falas; (2) Registro escrito de todas as falas no decorrer do grupo; (3) Registro a posteriori da sessão do grupo; (4) Protocolo do Ibrapsi - Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições (Saidón, 1986Saidón, O. I. (1986). O grupo operativo de Pichon-Rivière: guia terminológico para a construção de uma teoria crítica dos grupos operativos. In G. F. Baremblitt (Org.), Grupos: teoria e técnica (2a ed., pp. 169-200). Rio de Janeiro, RJ: Graal.).

A gravação e transcrição posterior de todas as falas é uma forma de registro que possibilita arquivar um grande montante de dados, em que as falas, expressão da associação livre, ficam registradas. Alguns consideram que é a melhor forma de conservar dados. No entanto, há algumas dificuldades nesse tipo de registro. Nele, mantêm-se integralmente as falas verbalizadas, mas perdem-se expressões faciais, corporais e os movimentos afetivos das relações intersubjetivas. Com o montante de dados, o transcritor, mesmo tendo sido o coordenador ou o observador, não se lembrará fidedignamente quando, por exemplo, o afeto de tristeza irrompeu no grupo. Soma-se também uma dificuldade operacional: o fato de que a transcrição das falas gravadas no grupo é um trabalho muito mais árduo do que a transcrição da entrevista de um único indivíduo. Pois, no grupo, há uma variação dos turnos de fala, em que cada ator social tem um ritmo e tipo de fala. Tal alternância de tipos e entonações narrativas faz com que o trabalho de transcrição fique mais difícil, pois o fluxo de falas - a interdiscursividade - se apresenta bastante fragmentado e descontínuo, além de haver o risco de se confundir o sujeito que enuncia e o que está sendo enunciado1 1 Em uma ocasião, transcrevemos a posteriori sessões de grupos gravadas com adolescentes internos da Febem (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor, hoje Fundação Casa - Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) e levamos cerca do triplo do tempo em comparação à transcrição de entrevistas individuais. .

O registro escrito de todas as falas no decorrer da sessão do grupo é uma forma de apontamento que permite registrar, além de parte significativa do conteúdo discursivo verbal, elementos afetivos, faciais, corporais e espaciais do grupo marcados pela transferência (e pela contratransferência). Obviamente o registro, seja escrito numa folha de papel, ou diretamente digitado no computador, não é capaz de contemplar todas as falas expressas no grupo. Entretanto, solicita-se que o transcritor, nesse caso o observador, sintetize a fala de cada participante do grupo, além das considerações que pode fazer durante o registro, que posteriormente serão parte do material a ser analisado. No protocolo, devem constar duas colunas: uma delas, maior, em que se anotam as falas, e uma menor, em que se anotam os afetos e expressões corporais que emergem. Portanto, por mais que possa haver uma perda de elementos verbalizados, busca-se proceder com o registro do que é extralinguístico (Lazzarato, 2014Lazzarato, M. (2014). Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo, SP: N-1 edições.), do que se refere aos afetos, às intensidades, ao que é “pré-significante”. Aspectos que muitas vezes são centrais e reveladores para a análise. Essa é nossa forma preferida de registro grupal.

O registro a posteriori do encontro é uma forma de apontamento da sessão grupal utilizada geralmente quando o coordenador do grupo está impossibilitado de gravar ou de realizar o registro no momento imediato em que ocorre a reunião. Seja pelo fato de que o registro possa gerar efeitos persecutórios ou desagregadores ao grupo, ou então pelo fato de o coordenador não contar com o auxílio de um cocoordenador ou observador que se encarregue desse ofício. Assemelha-se a um diário de campo e é fruto direto da perspectiva e da memória do pesquisador, que deve registrar as falas e elementos significativos do grupo da maneira mais fidedigna possível (embora sob o efeito da contratransferência), buscando as falas e opiniões dos participantes do grupo, visto que sua interpretação será posterior. Muitas vezes é sintético em demasia em relação ao que ocorre na sessão grupal, reduzindo a potência dos dados, ao invés de multiplicá-los.

O Protocolo de registro grupal do Ibrapsi está apresentado no livro organizado por essa importante instituição, que formou inúmeros psicanalistas e coordenadores de grupos, analistas institucionais e esquizoanalistas na década de 1980 no Rio de Janeiro (Baremblitt, 1986Baremblitt, G. F. (Org.) (1986). Grupos: teoria e técnica (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Graal.; Hur, 2014Hur, D. U. (2014). Esquizoanálisis y esquizodrama, clínica y política: presentación de la obra de Gregorio Baremblitt. Teoría y Crítica de la Psicología, 4, 1-16.; Rossi, 2021Rossi, A. (2021). Formação em esquizoanálise: pistas para uma formação transinstitucional. Curitiba, PR: Appris.). Ao invés do registro do dado bruto, nesse protocolo elenca-se uma série de aspectos derivados da teoria de Pichon-Rivière (1982Pichon-Rivière, E. (1982). O processo grupal. São Paulo, SP: Martins Fontes., 1998Pichon-Rivière, E. (1998). Teoria do vínculo (6a ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes.), que a equipe interventiva deve assinalar após o encerramento do grupo. Por exemplo, constam o primeiro emergente; o medo dominante; a extensão da pré-tarefa; os seis vetores do cone invertido; a intensidade do medo da perda e do ataque; temas tratados e omitidos; déficit de informação; sonhos; líderes e papéis; e observações gerais do grupo (Saidón, 1986Saidón, O. I. (1986). O grupo operativo de Pichon-Rivière: guia terminológico para a construção de uma teoria crítica dos grupos operativos. In G. F. Baremblitt (Org.), Grupos: teoria e técnica (2a ed., pp. 169-200). Rio de Janeiro, RJ: Graal., pp. 201-202). Consideramos que é um instrumento que sintetiza os principais momentos do grupo, mas que corre o risco de achatar seu movimento e de, eventualmente, não considerar a construção da cadeia associativa grupal em prol de conceitos analíticos já instituídos.

Análise da transferência

Compreendemos os desafios de se elaborar um texto didático sobre a técnica de análise de grupos, pois ela implica colocar em foco as transferências, os processos associativos, a escuta e a interpretação.

Lembremos, conforme assinala Kaës (2015Kaës, R. (2015). L’extension de la psychanalyse: pour une métapsychologie de troisième type. Paris: Dunod.), que são quatro os elementos que compõem as condições de uma situação psicanalítica de grupo: o enquadre/enquadramento; a enunciação da regra fundamental e de abstinência; a formação de um campo transferencial/contratransferencial e o lugar e a função do analista. No caso do espaço analítico referido aos dispositivos plurissubjetivos, ou seja, ao grupo, considera-se o lugar e a função dos psicanalistas.

No que se refere ao conceito de transferência, embora haja diferenças em relação às teorias diversas em psicanálise, entende-se o que é nomeado transferência como “o resultado da propriedade da situação psicanalítica e do transferido específico que nela se encontra convocado” (Kaës, 2015Kaës, R. (2015). L’extension de la psychanalyse: pour une métapsychologie de troisième type. Paris: Dunod., p. 164). Freud já havia assinalado a natureza paradoxal da transferência em relação a ser, ao mesmo tempo, o motor do processo analítico e obstáculo à análise, por estar associada à resistência, ou seja, aos mecanismos de defesa que são aí elaborados contra o reconhecimento dos efeitos do inconsciente.

Essa característica paradoxal é, na realidade, aquilo que justifica pensá-la em situação de grupo, pois resistência e transferência são duas faces de um mesmo processo, embora alguns autores considerem a transferência somente como uma condição de processo psicanalítico individual. A transferência não é somente a repetição de um conflito inconsciente. Ela, na realidade, se inscreve no campo da intersubjetividade e é condição de construção das vias pelas quais essa repetição pode ser ultrapassada.

Compreender a transferência nos grupos supõe levar em consideração a simultaneidade e a multiplicidade de suas manifestações. O que se transfere é a conexão dos objetos tornados inconscientes: “o grupo é um dispositivo particularmente adequado a receber em seu espaço e nos seus sujeitos essas conexões de transferências simultâneas e sucessivas” (Kaës, 1993Kaës, R. (1993). Le groupe et le sujet du group. Paris: Dunod., p. 177). Segundo Kaës (1993Kaës, R. (1993). Le groupe et le sujet du group. Paris: Dunod.), um dos conceitos principais solicitados à reflexão sobre a transferência nos grupos, é o conceito de difração. A difração de um objeto interno sobre diferentes sujeitos, sobre o analista ou sobre o próprio grupo “é o regime habitual e particularmente fecundo do trabalho psíquico que se opera nos grupos” (p. 178); se configura como uma repartição econômica das cargas pulsionais ligadas a esses objetos. Contudo, é importante acrescentar que, nos grupos, a transferência não é somente repartida e difratada, pois seus objetos e seus lugares estão também em interconexão. Dessa forma, “o grupo é o lugar da emergência de configurações particulares de transferência” (Kaës, 2015Kaës, R. (2015). L’extension de la psychanalyse: pour une métapsychologie de troisième type. Paris: Dunod., p. 174).

Os processos primários em ação na transferência (condensação, deslocamento e difração) estão ligados à forma da matéria psíquica transferida. Os estudos revelam duas formas de matéria psíquica referentes a configurações psíquicas diversas, como no caso das neuroses ou dos estados psicóticos e borderline (Kaës, 2015Kaës, R. (2015). L’extension de la psychanalyse: pour une métapsychologie de troisième type. Paris: Dunod.). Nos dispositivos psicanalíticos de grupo essas duas configurações transferenciais coexistem: aquela que depende de uma organização da psique que se refere a objetos e configurações de objetos organizados em grupos internos (ver Kaës e Pichon-Rivière), complexos e imagos; e aquela que transporta “a matéria psíquica informe e carregada de energia de ligação e de desligamento” (Kaës, 2015Kaës, R. (2015). L’extension de la psychanalyse: pour une métapsychologie de troisième type. Paris: Dunod., p. 169), como os objetos brutos, arcaicos ou fusionais2 2 Kaës propõe pensar o informe a partir de duas valências: a primeira como energia inaugural e um material primitivo da vida psíquica; a segunda, como a da confusão, da decomposição e da morte. Elas somente são acessíveis aos sujeitos e aos analistas a partir dos afetos, dos fantasmas e das angústias que as acompanham (Kaës, 2015, p. 167). .

Acrescente-se a tais considerações uma potente discussão teórica, no sentido de pensar a gestão, pelo aparelho psíquico grupal, daquilo que não pode ser tratado pelo aparelho psíquico individual. Nesse sentido, haveria uma transferência de gestão: as transferências voltam para o espaço interno, trabalhadas pelo processo grupal. A noção de funções fóricas ilustraria esse tipo de transferência.

Ora, pensar a transferência nos grupos implica operar, no campo transfero - contratransferencial, os processos psíquicos aí mobilizados, sejam referidos aos membros do grupo como àqueles da equipe de coordenação, como efeito produzido no espaço interno de cada analista, em contato com a transferência dos sujeitos. Nesse caso, o trabalho dos analistas é o de reconhecer as localizações que eles ocupam nas transferências, porque foram capazes de experienciá-las e pensá-las em sua própria experiência de transferência (que se manifesta por vezes como resistência). Kaës retoma Béjarano (1975Béjarano, A. (1975). Resistence et transfert dans les groupes. In D. Anzieu, A. Béjarano, A. Missenard, & R. Kaës, Le travail psychanalytique dans les groupes (pp. 65-140). Paris: Dunod.), que propôs uma teoria geral da transferência e dos objetos de transferência nos grupos, destacando uma transferência de grupo e uma transferência em situação de grupo e indicando quatro objetos de transferência.

Na situação grupal, a pluralidade de sujeitos e de espaços psíquicos que coexistem e interferem entre si, os objetos, as modalidades, os conteúdos e as conexões de transferências adquirem características específicas em seus conteúdos e em suas modalidades de manifestação, exigindo que tenhamos em mente a pluralidade de espaços de realidade psíquica aí produzida: a do sujeito, a dos vínculos intersubjetivos e a do grupo como conjunto (Kaës, 2015Kaës, R. (2015). L’extension de la psychanalyse: pour une métapsychologie de troisième type. Paris: Dunod.).

Análise dos emergentes

A partir do protocolo de registro transcrito e da análise da transferência, trabalhamos sobre todo o material coletado numa espécie de cartografia grupal. Inicialmente, identificamos o significado manifesto apresentado na organização do discurso e buscamos seu sentido latente (implícito) e possíveis derivações em relação ao momento do grupo e na relação com a tarefa. Para tanto, muitas vezes observamos/segmentamos o material numa análise frase a frase, ou até mesmo em fragmentos de uma frase, ou de uma palavra, que denominamos de unidades de registro. Esse material anuncia os primeiros movimentos de construção dos modos de vinculação do grupo. Articulamos os elementos afetivos, gestuais, espaciais à verbalização de cada momento. Buscamos não romper a temporalidade e a sucessão das unidades de registro, na tentativa de esboçar o mapa da cadeia associativa grupal. Assim, preservamos a sequência de falas, buscando garantir o acesso ao conhecimento do que é comunicado e transmitido pelas verbalizações de cada sujeito e o que se comunica e se transmite entre e na sucessão de verbalizações. Utilizamo-nos da noção de grupo interno a fim de precisar a articulação entre certas estruturas intrapsíquicas e os agenciamentos intersubjetivos que elas desvelam.

Reconhecemos nesse processo de escuta o que se nomeia como emergente, tal como formulado por Enrique Pichon-Rivière (1982Pichon-Rivière, E. (1982). O processo grupal. São Paulo, SP: Martins Fontes.). O emergente enuncia/denuncia uma certa modalidade de vínculo do grupo entre si e com a tarefa - efeito de transferência - pela articulação entre uma fantasia inconsciente (aí mobilizada) e os diferentes papéis/lugares sociais distribuídos entre os membros do grupo (Pichon-Rivière, 1998Pichon-Rivière, E. (1998). Teoria do vínculo (6a ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes.). Esse emergente é expresso pelo porta-voz, cuja função é dar acesso às representações que conduziriam o grupo a atingir seu objetivo, ou seja, realizar a tarefa explícita. Assim, consideramos que os emergentes são os elementos diferenciais que aparecem como saltos e rupturas no discurso e nos movimentos afetivos, reveladores da relação transferencial dos sujeitos entre si, com o coordenador e com a tarefa. Expressam conteúdos latentes, recalcados ou mesmo inscrições psíquicas não representadas, sendo o ponto de cruzamento entre problemática individual e grupal. Podem aparecer sob a forma de uma denúncia verbal, mas também pela enunciação de um sonho, ou de um sintoma; que expõe o exercício das funções fóricas (porta-voz ou porta-palavra) exercidas por um porta-sonho ou um porta-sintoma (Kaës, 1997Kaës, R. (1997). O grupo e o sujeito do grupo: elementos para uma teoria psicanalítica do grupo. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.). O emergente é o elemento transicional, intermediário, entre o manifesto e o negado-desconhecido. Cabe assim à equipe interventiva analisar os emergentes que surgem do processo associativo grupal. Como forma de tentar mapear os emergentes devemos estar atentos, igualmente, ao que no fluxo discursivo parece fugir da tarefa proposta, o que emerge enquanto diferença, nova associação. Focalizam-se assim as falas e figurações que parecem fugir da tarefa, por exemplo, aquelas com tom pessoais que remetem a aspectos singulares de sua própria vida, às metáforas, metonímias, hipérboles e outras figuras de linguagem contidas nos discursos, aos desvios a outros assuntos, aos afetos exacerbados, aos conflitos etc., buscando identificar o que aparece como associação discursiva nova, diferente, produto da relação entre o existente - a interpretação - e o novo emergente.

Entretanto, nesse método não cartografamos apenas as diferenças, como também as repetições. Consideramos as resistências como emergentes no processo de se repetir, pois o que se repete é o que tem força para retornar e insistir, não sendo a simples volta do mesmo (Deleuze, 2006Deleuze, G. (2006). Diferença e repetição. São Paulo, SP: Brasiliense.). “A repetição é uma condição de ação antes de ser um conceito de reflexão” (Deleuze, 2006Deleuze, G. (2006). Diferença e repetição. São Paulo, SP: Brasiliense., p. 138). Tratamos a repetição como resistência enquanto um emergente grupal, como a irrupção de uma força que insiste e subsiste e que é estruturante da configuração transferencial vincular grupal. Portanto, buscamos rastrear as distintas configurações vinculares marcadas pelo negativo (recalque, recusa etc.) e as resistências que lhe são decorrentes, ou seja, pelas alianças inconscientes e suas diferentes modalidades como os pactos denegativos e os pactos narcísicos. Nos grupos, as alianças inconscientes definem as configurações de vínculos que qualificam os diferentes momentos dos grupos em seu processo de transformação: o momento fantasmático, em que o grupo externaliza “os grupos internos para destinar a si próprio e aos outros um lugar determinado” (Kaës, 1993Kaës, R. (1993). Le groupe et le sujet du group. Paris: Dunod., p. 214); o momento ideológico, em que o grupo produz uma redução das diferenças entre os lugares atribuídos a cada membro (Kaës, 1980Kaës, R. (1980). L’idéologie: études psychanalytiques. Paris: Bordas.); o momento figurativo transicional, marcado pela possibilidade do grupo suportar a diferença e admitir as representações antes recalcadas; e o momento mitopoético, em que o grupo elabora o luto do objeto grupo, que não mais é reconhecido como prolongamento dos sujeitos (Kaës, 1993Kaës, R. (1993). Le groupe et le sujet du group. Paris: Dunod.), se abrindo a processos de criação e experimentação.

Dentre esses distintos momentos grupais, discutimos abaixo o momento ideológico (Kaës, 1980Kaës, R. (1980). L’idéologie: études psychanalytiques. Paris: Bordas.), por ser uma configuração vincular muito comum aos coletivos sociais e que produz processos de estereotipia e resistência à mudança (Pichon-Rivière, 1982Pichon-Rivière, E. (1982). O processo grupal. São Paulo, SP: Martins Fontes.). No momento ideológico o grupo erige um conjunto de representações partilhadas, todo um ideário que justifica e explica imaginariamente a configuração das relações: tal como uma ideologia no âmbito intersubjetivo. O grupo assume condutas e falas estereotipadas de acordo com a ideologia, podendo se conformar como um “bloco”, em que qualquer elemento diferencial é recusado e não aceito. A reiteração e reprodução da ideologia assumem, portanto, a função de aliança defensiva, frente às ansiedades persecutórias ou depressivas, que estão relacionadas às fantasias de fragmentação e afetos de insegurança (Kaës & Anzieu, 1979Kaës, R., & Anzieu, D. (1979). Crónica de un grupo. Barcelona: Gedisa.). Desse modo, o grupo pode constituir uma ideologia em comum e totalitária que serve como defesa imaginária frente aos desafios enfrentados, havendo o fenômeno de bloqueio e paralisia do processo associativo. A ideologia também tem como função a manutenção dos fundamentos narcísicos, atualizados no âmbito grupal como contratos narcísicos, e de distanciamento do trauma, de aspectos negados, intoleráveis e insuportáveis, reforçando os pactos denegativos (Kaës, 2005Kaës, R. (2005). Os espaços psíquicos comuns e partilhados: transmissão e negatividade. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.). Igualmente, há um ataque à diferença, seja externa ou interna, em prol da manutenção da ideologia instituída, ou seja, da homogeneidade grupal. Por mais que possa parecer que a ideologia forneça uma certa estabilidade psíquica, nesse momento os afetos estão exacerbados, havendo mecanismos relacionados à posição esquizoparanóide, como a regressão, clivagem, cisão, que fomentam processos de hostilidade e rivalidade. Esse momento não é difícil de ser identificado, pois há um “clima grupal” de morosidade, de peso, de paralisia, ou até mesmo de um fatalismo e angústia aparentemente insuperáveis, que justificam a resistência à mudança e a não elaboração da tarefa (explícita e implícita). Identificar as repetições e resistências, ou seja, operar sobre as alianças inconscientes, é fundamental para construirmos uma compreensão do que pode estar obstruindo a tarefa e o movimento do grupo. Como os dados passam a ser muito repetitivos ou reiterativos, nesses momentos podemos proceder com a análise, assinalando um momento específico do grupo, ou criando uma hipótese acerca da função psíquica da estereotipia.

Portanto, na análise dos emergentes e das repetições, buscamos cartografar os sintomas, idealizações, ideologias, fantasias, ansiedades, afetos e resistências compartilhados pelo grupo. Deve-se refletir sobre a função psíquica de cada configuração e conduta grupal assumida. A partir de sua análise temos acesso a elementos inconscientes do conjunto em questão e pode-se, dessa forma, elaborar significações, sentidos e hipóteses para tais aspectos.

Nesse sentido, as interpretações e hipóteses devem ser realizadas a partir dos elementos emergentes, que são nossos dados brutos, as unidades de registro. Por sua vez, denominamos nossas leituras/interpretações como unidades de análise.

Registramos passo-a-passo as unidades de registro e de análise. Elas nunca são tomadas isoladamente, mas sempre em seu contexto de enunciação, no seu lugar na cadeia associativa, na sua temporalidade e conjunto, como elo na cadeia associativa. Por exemplo, o participante 1, em dois momentos distintos, pode assumir duas ou mais opiniões diversas em relação a determinado tema. Na análise do grupo, tal divergência deverá ser apreendida contingencialmente à cadeia associativa precedente às suas enunciações. Pois o discurso “individual” sempre é modulado pela cadeia discursiva grupal, ou seja, nesse enfoque não há discurso individual isolado; a fala sempre é contingente às outras falas e afetos. A enunciação, supostamente individual, sempre remete a um conjunto de vozes, a uma pluralidade. A fala de um sujeito é orquestrada pela “sinfonia” da cadeia associativa grupal. Mas não somente o grupo, o indivíduo em si já é polifônico, ele já é plural. Então a própria cadeia associativa grupal faz com que um participante reelabore sua posição, seu discurso, seus afetos, por isso que as distintas unidades de registro não podem ser apreendidas de forma isolada de seu lugar temporal na cadeia discursiva.

Com o conjunto de dados/elementos analisados, podemos agrupá-los em categorias, considerando como eixo estruturante o movimento do grupo, no que se refere à elaboração e resistência à tarefa. As categorias devem estar articuladas aos emergentes, à tarefa colocada ao grupo, bem como à problemática de pesquisa da equipe interventiva. Portanto, as categorias são construídas a posteriori da análise dos dados, visto que no processo grupal não há como prever quais serão os emergentes. As categorias têm como função estabelecer eixos que auxiliam na compreensão do acontecer grupal e em contribuir para a construção das respostas ao problema de pesquisa. Obviamente as categorias também estarão articuladas pelo repertório teórico assumido pela equipe interventiva, pois a teoria, como a técnica, é a caixa de ferramentas analítica dos pesquisadores. Dessa forma, as categorias podem estar referidas a diversas temáticas, como aspectos reveladores do grupo ou da instituição, por exemplo, um organizador psíquico inconsciente grupal, um mito fundador coletivo, elementos encobertos e denegados etc.

Considerações finais

Este artigo visou percorrer as principais etapas para a análise de grupos sob a perspectiva psicanalítica de Kaës e Pichon-Rivière como uma forma de transmitir conselhos ao jovem coordenador de grupos. Nesse sentido, iniciamos nossa discussão com a definição e diferenciação entre dispositivo, enquadramento e tarefa, trabalhados a partir de diferentes enfoques teóricos convergentes, respectivamente: Deleuze, Bleger, Pichon-Rivière e Kaës. Com tal debate, diferenciamos o dispositivo grupal do dispositivo individual e citamos as funções do enquadramento e da tarefa. Em seguida passamos por uma etapa mais “instrumental”, descrevendo as distintas formas de registro e transcrição das narrativas no grupo. Na terceira parte, realizamos uma “análise da implicação” do pesquisador, ao discutir a questão da análise da transferência e da contratransferência. E, para finalizar, discutimos o procedimento analítico das falas no grupo, propondo a análise dos emergentes, a partir de Pichon-Rivière, enquanto uma analítica dos vínculos intersubjetivos que surgem na cadeia associativa grupal, e dos momentos de grupo sob a perspectiva de Kaës, enfatizando o momento ideológico como um estrato marcado por alianças inconscientes que levam a processos de estereotipia e resistência à mudança.

Portanto, este trabalho é uma forma de sistematização da análise do desenvolvimento da cadeia associativa grupal. Consideramos que este texto pode oferecer uma contribuição ao método, mais diretamente ao trabalho de análise dos dados resultantes da investigação grupal a partir de uma perspectiva psicanalítica.

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    » https://doi.org/10.1590/S1516-73132004000200005
  • 1
    Em uma ocasião, transcrevemos a posteriori sessões de grupos gravadas com adolescentes internos da Febem (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor, hoje Fundação Casa - Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) e levamos cerca do triplo do tempo em comparação à transcrição de entrevistas individuais.
  • 2
    Kaës propõe pensar o informe a partir de duas valências: a primeira como energia inaugural e um material primitivo da vida psíquica; a segunda, como a da confusão, da decomposição e da morte. Elas somente são acessíveis aos sujeitos e aos analistas a partir dos afetos, dos fantasmas e das angústias que as acompanham (Kaës, 2015, p. 167).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2019
  • Revisado
    04 Out 2019
  • Aceito
    14 Out 2019
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