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Sustentabilidade: um conceito de organização social das ordens de conservação e transformação do mundo

Sustainability: a social organization concept concerned with preserving and transforming the world

Sostenibilidad: un concepto de organización social de órdenes de conservación y transformación del mundo

Durabilité: un concept d’organisation sociale des ordres de conservation et de transformation du monde

Resumo

Este estudo apresenta uma análise semântica do termo sustentabilidade, procurando identificar se seria possível extrair do seu uso estratégico um projeto social. Parte-se da hipótese de que existe uma vacuidade conceitual em seu uso, de modo que suas projeções semânticas não são suficientes para estruturá-lo como conceito organizador de processos sociais compatíveis. Sob o enfoque deste trabalho, o termo sustentabilidade se constituiria no interior da atividade psicológica imanente ao sujeito, que busca interpretar seu mundo e explicar suas ordens de conservação e transformação. O método da pesquisa envolve a construção de um sistema de interpretação do termo sustentabilidade que designa forças semânticas presentes no seu emprego. Observou-se que não é possível extrair do seu uso um conceito de organização social, mas de construções teóricas transformacionistas que se impõem como necessidades lógicas com resignado apelo às referências tecnocientíficas e, ao mesmo tempo, como elemento intersubjetivo regulador de processos socioambientais não revolucionários.

Palavras-chave:
sustentabilidade; conservação; transformação; organização social; psicologia social

Abstract

This study presents a semantic analysis of the term ‘sustainability,’ seeking to identify whether one could draw a social project from its use. Assuming the existence of a conceptual vacuity in its use, its semantic projections would be insufficient to structure ‘sustainability’ as an organizing concept of compatible social processes. Hence, sustainability would be constituted within the psychological activity immanent to the historical subject that seeks to interpret their world and explain its preservation and transformation. The research method involved constructing a system of interpretation to designate the semantic forces present when the term is employed. It is not possible to extract a concept of social organization from its use, only transformational theoretical constructions that impose themselves as logical needs that appeal to technoscientific references, as well as a regulating intersubjective element of non-revolutionary socio-environmental processes.

Keywords:
sustainability; conservation; transformation; social organization; social psychology

Resumen

Este estudio presenta un análisis semántico del término sostenibilidad, buscando identificar si es posible extraer un proyecto social de su uso estratégico. Se parte de la hipótesis de que existe un vacío conceptual en el uso de este término, una vez que sus proyecciones semánticas no son suficientes para estructurarlo como un concepto organizador de procesos sociales compatibles. Bajo el enfoque de este trabajo, el término sostenibilidad se constituiría a través de la actividad psicológica del sujeto que busca interpretar el mundo y explicar sus órdenes de conservación y transformación. El método de investigación implica la construcción de un sistema de interpretación de este término que designa las fuerzas semánticas presentes en su uso. Se observó que no es posible extraer de su uso un concepto de organización social, sino construcciones teóricas transformacionalistas que se imponen como necesidades lógicas con apelación a referencias tecnocientíficas, al mismo tiempo como elemento intersubjetivo de procesos socioambientales no revolucionarios.

Palabras clave:
sostenibilidad; conservación; transformación; organización social; psicología social

Résumé

Cette étude présent une analyse sémantique du terme « durabilité », cherchant à identifier s’il est possible d’extraire de son utilisation un projet social. On suppose qu’il existe une vacuité conceptuelle dans son usage, de sorte que ses projections sémantiques ne sont pas suffisant pour le structurer en tant que concept organisateur de processus sociaux compatibles. Ici, le terme « durabilité » se constituerait au sein de l’activité psychologique immanente au sujet qui cherche à interpréter son monde et à expliquer ses ordres de conservation et de transformation. La méthode de recherche implique la construction d’un système d’interprétation du terme qui désigne les forces sémantiques présentes dans son emploi. On a observé qu’il est impossible d’extraire de son utilisation un concept d’organisation sociale, juste des constructions théoriques transformationnelles qui s’imposent comme des besoins logiques, ainsi qu’un élément intersubjectif régulateur de processus socio-environnementaux non révolutionnaires.

Mots-clés:
durabilité; conservation; transformation; organisation sociale; psychologie sociale

Introdução

Apresentamos a construção de um modelo analítico para a compreensão estrutural das ordens semânticas presentes no uso estratégico do termo sustentabilidade. Identificamos com este estudo que o termo sustentabilidade cumpre uma função reguladora no pensamento socioambiental contemporâneo, se projetando como necessidade lógica de se equacionar processos de organização social no interior das ordens de conservação e das dinâmicas de transformação do mundo. O presente trabalho busca evidenciar que o sentido estruturante do termo sustentabilidade se encontra na necessidade lógica de explicar as ordens de conservação do mundo frente à crise socioambiental que impõe um dinamismo modificador da natureza e da sociedade. Dito de outro modo, sua estrutura semântica se constituiria como uma atividade psicológica imanente ao sujeito histórico, que busca refletir seu mundo e explicar suas ordens de permanência e transformação.

Sob tal modelo teórico, apresenta-se uma proposta de estruturação psicossocial do termo sustentabilidade abrangendo três categorias analíticas: pré-lógica, antropológica e geopolítica. Essas ordens de interpretação se apresentam como forças semânticas que configuram a construção do método deste estudo, desenvolvido com a professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), dra. Eda Tassara (2010), com o intuito de tecer considerações a respeito das principais vertentes do pensamento socioambiental contemporâneo. Assim, o modelo analítico proposto resulta de um estruturalismo metodológico, consistindo no estudo das projeções significativas que emergem da estrutura semântica do termo sustentabilidade, que têm determinado os construtos de organização social derivados do termo.

A ordem pré-lógica se apresenta como categoria sintática do princípio de conservação e das suas leis invariáveis que derivam da própria causalidade física. Sobre este aspecto, optou-se por trabalhar com Jean Piaget, estabelecendo-se, dessa maneira, o princípio comum de que os processos biológicos e cognitivos dependem necessariamente de um equilíbrio orgânico, homeostático, que se impõe como mecanismos de regulação no curso dos processos de desenvolvimento, o que significa que as ordens de conservação e a busca do equilíbrio se apresentam como características inerentes aos processos orgânicos e cognitivos.

A ordem antropológica é uma categoria explicativa da gênese das dinâmicas de transformação do mundo e se apresenta como pressuposto explicativo das tensões sociais, culturais, políticas e psicológicas, características da denominada crise civilizatória de ordem socioambiental. Desse modo, assim como haveria uma necessidade de conservação do mundo e dos seus sistemas de interpretação aplicados a uma ordem civilizatória, se imporiam também dinâmicas de transformações materiais e não materiais responsáveis pelos processos aceleradores da atual crise.

A ordem geopolítica é de natureza explicativa da gênese das antinomias observadas nos construtos teóricos que procuram conservar a ordem hegemônica do mundo no interior dos processos transformacionistas. Nesta ordem analítica, percebe-se o paradoxo entre os mecanismos capazes de promover transformações sociais e os que são arbitrariamente voltados a opor resistência a elas.

As ordens pré-lógica, antropológica e geopolítica parecem regular as forças semânticas que estruturam o termo sustentabilidade como um conceito de organização social, fazendo referência às ordens de conservação e às dinâmicas de transformação do mundo. Abre-se com isso uma investigação estrutural do campo semântico do termo sustentabilidade, buscando identificar se é possível extrair dos construtos teóricos implicados no seu uso estratégico um conceito organizador de processos sociais.

A Psicologia Social se apresenta como referência para a investigação dos contextos polissêmicos que constituem o emprego do termo sustentabilidade. Por hipótese, métodos de análise oriundos da Psicologia Social possibilitariam a apreensão de elementos constitutivos (subjetivos) dos conteúdos discursivos, levando a explicações causais (motivacionais) e interpretações sobre suas determinações semânticas. Nesse sentido, este estudo contribui para uma compreensão das forças que regulam a estrutura conceitual do termo sustentabilidade como um núcleo potencial e organizador de processos sociais.

O campo semântico da sustentabilidade

As respectivas ordens de interpretação pré-lógica, antropológica e geopolítica permitem uma compreensão estrutural do termo sustentabilidade, organizando suas principais linhas de pensamento e as referências teóricas correspondentes. Mediante o quadro de análise apresentado, identifica-se que os nexos semânticos de comunicação sobre o que vem a ser sustentabilidade manifestam tendências teóricas que se apresentam a partir das respectivas ordens de interpretação descritas no presente estudo. Analisaremos nesta seção como o campo semântico da sustentabilidade pode ser pensado à luz das proposições que fundamentam o sistema de referência adotado neste estudo.

Ordem pré-lógica

O estudo considera que é possível extrair da ordem pré-lógica a base do sistema de significação que acompanha o uso teórico do termo sustentabilidade. Assim, o processo social que objetiva a construção conceitual do termo sustentabilidade deriva de uma necessidade pré-lógica aplicada à ordem civilizatória, provocadora de intensas transformações do mundo vivido e pensado, levando a quadros futuros de resultados imprevisíveis e indeterminados.

Tanto na norma mitopoética, quanto científica, as sociedades humanas inscrevem os processos de interpretação do mundo em panoramas de permanência e conservação das coisas existentes dadas como objetos e figuras do mundo e seus substratos materiais e não materiais, tais como os cenários e as memórias das experiências vividas. Trata-se, dessa maneira, do pressuposto analítico que considera a ordem pré-lógica como categoria explicativa das leis e dos processos invariáveis das ordens de conservação do mundo no curso do desenvolvimento biológico (natureza) e cognitivo (espécie).

Partindo dos estudos de Piaget (1967Piaget, J. (1967). Biologie et connaissance: essai sur les relations entre les régulations organiques et les processus cognitifs. Paris: Gallimard.), a inteligência não precede a vida mental nem decorre dela como simples efeito dentre outros, mas é a forma de equilíbrio entre todas as funções cognitivas reguladoras. A teoria piagetiana se inspira no conceito de equilíbrio biológico, pressupondo que os estágios da evolução filogenética e do desenvolvimento ontogenético envolvem um jogo de regulações e compensações que atingem a reversibilidade operatória ao longo do desenvolvimento ontogenético. Segundo o autor, o equilíbrio móvel do sistema nervoso regularia os processos homeostáticos do organismo na interação com o meio, de modo que os estágios de evolução da vida e de desenvolvimento do raciocínio cognitivo se dariam por equilíbrio progressivo de totalidades funcionais que se diferenciam, se integram e se conservam.

Vale ressaltar que Piaget não parte de uma perspectiva vitalista sobre as funções intelectuais e a inteligência. Devido ao modo como entende a relação indissociável entre organismo e meio, é natural que Piaget não interpretasse a totalidade funcional do organismo a partir de uma causa única. Como ele mesmo diz: “Ora... não vamos seguir o vitalismo. Por a organização do ser vivo implicar um poder de adaptação que leva à própria inteligência, não quer dizer que as suas funções sejam inexplicáveis e irredutíveis” (Piaget, 1936/1977Piaget, J. (1977). La naissance de l’intelligence chez l’enfant. Paris: Delachaux et Niestlé.; p. 192).

Na obra La naissance de l’intelligence chez l’enfant (1936/1977Piaget, J. (1977). La naissance de l’intelligence chez l’enfant. Paris: Delachaux et Niestlé.), Piaget deixa claro o que entende por adaptação - um estado de equilíbrio relativo entre organismo e meio. Segundo o autor, processos de adaptação dependem da conservação de leis invariáveis e de estruturas essenciais. Desse modo, o conceito de conservação explica a dinâmica adaptativa de ordem biológica e cognitiva, estruturando uma teoria do desenvolvimento que se apoia na tese de uma ordem invariável da ontogênese de processos biológicos e psicológicos.

De acordo com a tese piagetiana, o equilíbrio se manifesta como invariância dos ritmos, das leis e dos processos de conservação das estruturas reguladoras e responsáveis pela assimilação do novo e da sua acomodação junto às estruturas preexistentes. Assim, o autor trata o conceito de conservação como processo invariante do equilíbrio dinâmico que regula normativamente, tanto os processos de evolução das espécies, quanto a ontogênese dos modos operatórios de interpretação do mundo, assinalando uma correspondência estrutural entre o biológico e o cognoscitivo.

Ordem antropológica

A ordem antropológica se relaciona com o pressuposto explicativo dos contextos motivadores das dinâmicas de transformação do mundo, incluindo o imperativo das mudanças radicais do panorama socioambiental que se impõem em função das ordens de conservação vigentes. Esse nível explicativo envolve um quadro teórico a respeito da gênese das tensões sociais, culturais, políticas e psicológicas características da denominada crise civilizatória de ordem socioambiental.

Em decorrência das exigências de preservação e conservação do mundo vivido materialmente e pensado simbolicamente, em que se inscrevem os acontecimentos e as transformações nele experienciados, manifestam-se, simultaneamente, forças de resistência da ordem psicossocial e cultural, enraizadas nas memórias e reminiscências do passado de indivíduos, grupos e sociedades; e forças contínuas e dinâmicas de transformações materiais e não materiais, impulsionadas pelo sistema econômico que se expande no chamado processo de globalização hegemônica.

A categoria antropológica estrutura as retóricas socioambientais que buscam preservar as dinâmicas de transformação do mundo e seu núcleo modernizador no interior de sua necessidade de conservação. Assim, a ordem antropológica se refere às dinâmicas de transformação do mundo vivido materialmente e pensado simbolicamente.

Essa categoria de análise abrange três perspectivas de compreensão. A primeira trata de uma leitura filosófico-existencial, segundo a qual essas dinâmicas se apresentam como oriundas do anseio humano, que procura ir além das suas necessidades primárias em busca do conhecimento e controle da natureza; a segunda perspectiva considera o papel da narrativa judaico-cristã na conservação dos fundamentos morais, hierárquicos e antropocêntricos, porém de missão conservacionista e transformacionista do mundo, interpondo homem e natureza no interior da construção moral do mundo ocidental; e a terceira perspectiva compreende o papel da modernidade na produção de um modelo científico que passou a explicar os processos de transformação da natureza como um aspecto também inerente a ela em contraposição a sua aparente imutabilidade divina e conservacionista, decorrendo daí a construção e transposição de um modelo científico de desenvolvimento social sem espaço para a conservação do mundo vivido, passando a determinar os processos históricos de transformação que se sucedem desde o alto período moderno até o contemporâneo.

Assim, a ordem antropológica se apresenta como perspectiva epistemológica das dinâmicas de transformação do mundo, compreendendo um processo filosófico; uma hierarquia moral; e um modelo tecnocientífico de desenvolvimento social. Desse modo, a ordem antropológica se centra num quadro teórico moldurado pela análise das dinâmicas de transformação que têm abalado as ordens de conservação material e simbólica do mundo.

Como defende Gregg Mitman (2006Mitman, G. (2006). Where ecology, nature and politics meet: reclaiming the death of nature. Isis, 97(3), 496-504.), o movimento do ecofeminismo vê no Livro do Gênesis e no Cristianismo a presença de um deus masculino que domina e subordina a natureza, de modo que os mesmos processos de dominação se estendem à história de opressão das mulheres e das classes trabalhadoras. Como discute o autor, os relacionamentos ecológicos entre os humanos e o mundo natural teriam sido integrais para a constituição das relações de gêneros instituídas (Mitman, 2006Mitman, G. (2006). Where ecology, nature and politics meet: reclaiming the death of nature. Isis, 97(3), 496-504.). Conforme descreve Engels (1939Engels, F. (1939). Dialética da natureza. São Paulo, SP: Alba Ltda.), os protestantes se adiantaram aos católicos na perseguição da investigação livre da natureza. Nesse sentido, questões religiosas tanto substancializaram a exploração do conhecimento da Natureza e de suas leis, quanto ofereceram fundamentos morais para o avanço do capitalismo, como descreve Weber na primeira publicação (em 1905) da obra A ética protestante e o espírito do capitalismoWeber, M. (2004). A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras..

Max Weber (2008Weber, M. (2008). O sentido da neutralidade axiológica nas ciências sociológicas e econômicas. In M. Weber, Ensaios sobre a teoria das ciências sociais. São Paulo, SP: Centauro.), num de seus textos escritos originalmente em 1917, defende a tese de que o racionalismo científico assumiu um aspecto anti-trágico na modernidade ao se impor como domínio do mundo, fundando um sentido formal e eticamente neutro de sociedade. Na contramão, surge a imagem de um Ocidente desencantado que assume um caráter trágico devido a uma crise de sentido gerada justamente pelas forças racionais científicas aplicadas como leis positivas da sociedade e da natureza.

Em 1830, o sociólogo Augusto Comte publicou Cours de philosophie positive (1949Comte, A. (1949). Cours de philosophie positive: discours sur l’esprit positif. Paris: Garnier.) - tratado em que defende o advento da sociedade científica e a morte da sociedade teológica e metafísica. Da ciência, se extrairia a base moral da sociedade e as leis do desenvolvimento histórico. A concepção comteana de ciência assume uma forma de providência, o desígnio último da História seria o progresso do espírito humano; e a ciência seria a própria realização do espírito positivo.

Já com o advento do capitalismo moderno, a esfera do trabalho passa a ser o ponto de encontro entre sociedade e natureza. O homem trabalha e transforma a natureza conforme suas carências e necessidades impostas por ela própria. Na perspectiva hegeliana, por exemplo, o trabalho se torna o processo dialético da sociedade por meio do qual o homem se transforma num ser social. O avanço do capitalismo transforma o futuro em um plano econômico de ação, controlando e determinando a história dos sujeitos em sociedade e com a própria natureza.

Na concepção de Habermas (1970Habermas, J. (1970). Toward a rational society. Boston: Beacon Press.), é predominante o papel da informação científica e da sua exploração técnica como condutos modernos da educação individual e cultural. Segundo o autor, no curso da industrialização, os estudos acadêmicos acabaram se formalizando em setores distintos do trabalho científico especializado, de modo que o conhecimento tecnicamente explorado passou a ser traduzido no contexto da vida social como produção de bens de consumo, tais como a construção de máquinas, ferramentas, estradas, cidades. Ainda de acordo com o autor, os processos de pesquisa teriam sido submetidos à conversão técnica devido à exploração econômica que revolucionou os meios de produção e estendeu à sociedade e ao conduto da vida social um controle técnico.

Habermas (1970Habermas, J. (1970). Toward a rational society. Boston: Beacon Press.) acusa o processo de conversão e tradução da informação científica em progresso técnico no conduto da vida social, procedimento que teria condicionado toda dimensão política da sociedade moderna. Além disso, aponta para o fato de que a pesquisa e a tecnologia (controle cientificamente racionalizado de processos objetivados) foram capturadas pelos processos econômicos, decorrendo daí o problema que o autor identifica na relação construída entre capitalismo, democracia e tecnologia a partir do momento em que o controle técnico é colocado num consenso de ação. Pesquisa, tecnologia e economia se integraram num sistema estabelecido por contratos e investimentos, logo, um sistema de interesses, acordos e alianças (Habermas, 1970Habermas, J. (1970). Toward a rational society. Boston: Beacon Press.).

Em contrapartida, Michel Foucault (1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Graal.) interpreta os processos históricos como relações de força e poder e não como investidas tecnológicas do capitalismo, de modo que o controle da sociedade sobre os indivíduos teria operado influências por meio do corpo biológico, estendendo-se à ordem econômica e à atividade tecnocientífica, especialmente a partir do início do século XX, quando o papel do intelectual teve que ser reelaborado diante da obrigação de assumir responsabilidades políticas que atrelaram o fazer científico às questões sociais e econômicas advindas, sobretudo, da Primeira Guerra Mundial (Foucault, 1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Graal.).

A posição de Foucault diverge de Habermas (1970Habermas, J. (1970). Toward a rational society. Boston: Beacon Press.), que trata de analisar a conversão da pesquisa científica em atividade técnica por meio da exploração econômica para discorrer a respeito do processo de racionalização científica da cultura moderna. Em outra análise, Foucault (1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Graal.) ressalta os fatores biopolíticos na produção de veículos ideológicos cientificistas, como as noções de evolução e desenvolvimento, que emergiram com força no século XX e substancializaram uma concepção de “verdade científica” como força motora do desenvolvimento social.

Segundo Foucault (1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Graal.), o conhecimento científico teria sido aplicado por uma convenção politicamente arbitrária relacionada à estrutura do capitalismo e não teria orientado modos arbitrários de convenção econômica no bojo da própria ciência e da atividade do especialista. Assim, em vez de dar ênfase à força tecnocientífica, cuja dinâmica se opõe ao processo democrático para Habermas (1970Habermas, J. (1970). Toward a rational society. Boston: Beacon Press.), Foucault (1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Graal.) privilegia a análise das relações de força e poder que estruturam o sistema capitalista moderno.

Por essas considerações, a ordem antropológica instrumentaliza a análise crítica dos contextos motivadores das dinâmicas de transformação pré-globalização que subjazem os processos históricos catalisadores da atual crise global de ordem socioambiental, que buscam acelerar o núcleo modernizador e tecnocientífico do mundo, abalando suas ordens de conservação material e simbólica.

Ordem geopolítica

A ordem geopolítica compreende o domínio explicativo das condições em que se manifestam as forças econômicas determinantes do cenário geopolítico, em que se inscreve a discussão internacional da sustentabilidade. Essa ordem envolve uma análise das antinomias inerentes às dinâmicas de transformação que perturbam as ordens de conservação do mundo.

Essa ordem subjaz tanto as vertentes teóricas que enfrentam a questão socioambiental como uma crise civilizatória, cujas retóricas, apoiadas na certeza dos resultados adquiridos no campo científico da ecologia e transpostos para as sociedades, destacam a necessidade de conservação material e simbólica do mundo; quanto as correntes que procuram enfrentar a problemática socioambiental fora de sua interpretação como uma crise civilizatória, propondo soluções tecnológicas que priorizam a intensificação de esforços no desenvolvimento de engenharias inovadoras de processos sociais a elas compatíveis.

A ordem geopolítica conclui o modelo analítico, articulando o papel do contexto econômico internacional no desenvolvimento de teorias socioambientais que, para definir o termo sustentabilidade, criam formas convenientes de relação entre as dinâmicas de transformação do mundo e suas ordens de conservação.

Nessa ordem, considera-se que não é possível discutir a respeito da sustentabilidade sem levar em conta o jogo dos interesses econômico-internacionais no contexto globalizado que cerca a questão socioambiental. A partir do fenômeno da Globalização, houve um enfraquecimento da soberania dos Estados em função das novas relações estabelecidas com setores privados, distanciando-os dos interesses e das necessidades mais imediatas das comunidades locais. Assim, a Globalização evoca a formação geopolítica de um sistema-mundo que se fundamenta na economia do mercado mundial; o Estado se integra às dimensões transnacionais que, por consequência, tornam pouco definidas as iniciativas independentes relacionadas às políticas socioambientais.

Nesse sentido, a capacidade dos Estados de definir políticas ambientais nacionais é reduzida pela globalização. Sendo assim, as novas mudanças para atender às demandas de reconciliação entre economia e meio ambiente exigem um caráter de mudança civilizacional (Romeiro, 1999Romeiro, A. R. (1999). Globalização e meio ambiente. IE-Unicamp, (91), 1-18.). A ordem geopolítica analisa o tratamento das questões socioambientais, que se nutrem dos benefícios econômicos oriundos do mercado global, gerados nos acordos e alianças que constituem a plataforma geopolítica da discussão. Desse modo, a ordem geopolítica oferece uma compreensão da antinomia presente no modelo econômico de desenvolvimento social.

É no contexto geopolítico que se institucionaliza a pauta internacional da questão socioambiental e se formaliza a causa do meio ambiente. Alguns encontros mundiais ocorridos a partir da segunda metade do século XX promoveram discussões normativas a respeito dos paradigmas do crescimento econômico, dissipando-se daí uma consciência crítica que passou a refletir a respeito dos impactos socioambientais gerados pela política do crescimento econômico absoluto e suas determinações fatídicas.

Após o alarme disparado pelo relatório do MIT & Clube de Roma (1972), prevendo a crise dos recursos naturais a partir de uma perspectiva demográfica, e a resposta do Clube de Bariloche (1976), que relacionou as possibilidades da emergência de uma “catástrofe ambiental” a partir da situação de miséria, pobreza e desigualdade social de países até então denominados terceiro-mundistas, em 1987, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento publica o Relatório Brundtland, intitulado “Our Common Future” (1991Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. (1991). Nosso futuro comum. Rio de Janeiro, RJ: Editora da Fundação Getúlio Vargas.), em que surge o conceito “desenvolvimento sustentável” com a função de ser aplicado pelos sistemas econômicos globais diante do acelerado processo de exploração e modernização do mundo, tendo em vista a conservação dos recursos naturais para as gerações futuras.

Com a derrubada do Muro de Berlim (1889) e a dissolução da União Soviética (1991), abriu-se no final do século XX um horizonte sem limites para a expansão do capitalismo neoliberal. Nesse contexto de efervescência do crescimento econômico, realizou-se em 1992 a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro (ECO-92), construindo-se a Agenda 21 e um plano de ações, envolvendo a mudança do clima, preservação da biodiversidade, desenvolvimento social para a redução da pobreza e mudança dos padrões de consumo.

Em 1997, foram criados, com o Protocolo de Quioto, mecanismos de controle das emissões de gás carbônico na atmosfera, como os “créditos de carbono”. Em 1999, é desenvolvido o Dow Jones Sustainability Indexes, um monitoramento da gestão de ativos que conecta a sustentabilidade a um índice de investimento financeiro. Em 2000, desenvolveu-se a Comissão da Carta da Terra, declarando os princípios éticos da humanidade planetária a serem adotados para a construção do século XXI na articulação de aspectos ecológicos, sociais e políticos. A Conferência Rio+20 sobre Desenvolvimento Sustentável (2012) teve como principais temas de discussão a “Economia Verde” e a “Erradicação da Pobreza” e encerrou sua semana de discussão com indefinições sobre o que se entende realmente por “economia verde”, direcionando o foco da discussão para a questão do desenvolvimento econômico e a erradicação da pobreza.

A Conferência Rio+20 reapresentou a mesma definição de “desenvolvimento sustentável” já sugerida no Relatório Brundtland (1987), quando surgiu o conceito como princípio guia do desenvolvimento econômico, envolvendo as perspectivas de aceleração/crescimento, desenvolvimento social/ proteção ambiental, com o objetivo de orientar as necessidades de satisfação do presente sem comprometer as probabilidades das gerações futuras de satisfazerem suas necessidades. Nesse sentido, não trouxe nada de novo, o que foi uma das críticas dessa conferência, que parece ter reunido mais esforço do que resultado.

Paradoxalmente, na mesma semana em que se realizava a Rio+20, com o intuito de impulsionar plataformas de discussão a respeito de iniciativas políticas de defesa das ordens de conservação do mundo e das condições de vida das pessoas que ainda vivem abaixo da linha da pobreza, realizava-se o encontro dos líderes representantes do G7, devido à preocupação com a desaceleração econômica e a dívida bancária de alguns países, cujo quadro passou a abalar a estabilidade das principais zonas econômicas (euro, dólar) que formam o sistema economia-mundo.

Esse panorama constitui o cenário geopolítico de formação da cúpula mundial que estrutura a pauta da questão socioambiental e o contexto do uso estratégico do termo sustentabilidade e das suas correlações semânticas, como a noção de desenvolvimento sustentável, mas que conserva vantagens econômicas ou cria outras a partir de critérios adotados nas rodadas de negociações que “perduram duelos retóricos transferidos de uma Conferência para outra . . . incapazes de conceber e implantar políticas condutivas à sustentabilidade” (Rattner, 2002Rattner, H. (2002). Meio ambiente e desenvolvimento sustentável: o mundo na encruzilhada da História. Espaço Acadêmico, 2(14), 1-9., pp. 2-9).

Diante dessa perspectiva, as principais vertentes teóricas que versam a respeito da sustentabilidade apontam para leituras de um conjunto de termos, como conservação, transformação, equilíbrio e desenvolvimento, conjugados na cartilha dos interesses geopolíticos que aceleram as dinâmicas de transformação do mundo e perturbam suas ordens de conservação, extraindo-se deste jogo de interesses as forças históricas e causais da crise socioambiental.

Mediante a dimensão geopolítica da análise, é possível observar a antinomia que se expressa entre os mecanismos capazes de promover transformações sociais em função das ordens de conservação do mundo e os que são arbitrariamente voltados a opor resistência àqueles em função das dinâmicas de transformação que impõem o caráter constante do núcleo modernizador do mundo.

Desse modo, as três ordens de interpretação estruturam as principais linhas de pensamento sobre o tema e seu conjunto de significados constituintes. A ordem pré-lógica considera que nos processos biológicos e cognitivos estão presentes as ordens de conservação do mundo, se manifestando como equilíbrios progressivo e dinâmico que acontece à guisa da conservação de leis invariáveis e responsáveis pelo avanço normativo das estruturas de ordem genética e cognitiva, que explicam o caráter necessário da ideia de conservação e sua função na regulação dos estados vitais de equilíbrio diante de transformações que abalam as ordens de conservação das leis invariáveis relacionadas à filogênese e à ontogênese. A ordem antropológica se centra na análise das dinâmicas de transformação do mundo, impondo-se uma leitura estrutural de mecanismos que impulsionam e aceleram seu núcleo modernizador, abalando as ordens de conservação material e simbólica. A ordem geopolítica explica o contexto de formação da antinomia existente entre as forças capazes de transformar o panorama socioambiental existente e os mecanismos que impõem resistência às mudanças, procurando impulsionar dinâmicas de transformação que buscam integrar as ordens de conservação do mundo.

Entende-se que as ordens pré-lógica, antropológica e geopolítica regulam os conteúdos impressos nas principais linhas teóricas circunscritas no uso do termo sustentabilidade, que agrupam significados voltados para a compreensão desse termo como um conceito explicativo das ordens de conservação do mundo e suas dinâmicas de transformação.

Sustentabilidade: um conceito de organização social

Ao procurar compreender como é traduzido um conceito que tem a função de determinar um modo de organização social e um modelo de socialização, observamos que o uso do termo sustentabilidade aparece mais diretamente associado às inovações tecnocientíficas, que assumem uma função estruturante entre os vetores de força, descritos como ordens de conservação e dinâmicas de transformação, o que vem a caracterizar uma estrutura molar para o conceito de sustentabilidade.

Assim, o elemento intersubjetivo no ato comunicativo da sustentabilidade é a tecnociência e suas inovações, tendo como referência valências que ora pendam para os efeitos positivos da tecnociência junto à sociedade, ora para os efeitos negativos. Desse modo, encontramos na tecnociência um vetor que tensiona as ordens de conservação e as dinâmicas de transformação do mundo.

Mediante a perspectiva analítica adotada nesta pesquisa, chega-se ao axioma a posteriori de que a tecnociência estrutura a origem dos discursos socioambientais na medida em que aparece, tanto como objeto de crítica, quanto de solução da crise socioambiental, assumindo um lugar central nas perspectivas teóricas sobre sustentabilidade.

Nesta seção, vamos observar as posições teóricas de alguns autores que apontam para tradições de pensamentos que refletem as ordens pré-lógica, antropológica e geopolítica no tratamento teórico do termo sustentabilidade. Os posicionamentos dos autores apresentam camadas de explicação e sistemas de pensamentos que se conectam com as respectivas ordens analíticas. Dessa forma, o modelo analítico proposto organiza as plataformas de discursos socioambientais, estruturando um conjunto de significados possíveis para o termo sustentabilidade em seu horizonte limite.

De acordo com Pádua (2010Pádua, J, A. (2010). As bases teóricas da história ambiental. Estudos Avançados, 24(68), 81-101.), o caráter político da pesquisa ambiental surge na militância da micro-história, nas vozes das ruas e dos movimentos populares, refletindo a formulação de um conceito de natureza que modifica a noção comum de um mundo natural naturalizado.

Assim, a questão socioambiental aponta para um fenômeno histórico complexo, os efeitos culminantes da determinação humana no processo histórico, de que a natureza é parte constituinte. Nesse sentido, a questão socioambiental não indica um “retorno à natureza”, mas um “retorno à história”, de que emergem as variações geográficas e antropológicas de pensamentos ontológicos e de relações humanas com a natureza.

Segundo Sachs (2010Sachs, I. (2010). Barricadas de ontem, campos de futuro. Estudos Avançados, 24(68), 25-38.), a questão socioambiental aponta para uma concepção antropológica que não exige um “retorno à história” no sentido crítico e avaliativo do percurso civilizatório. Na perspectiva do autor, o vetor da sustentabilidade não está ligado à dimensão do tempo, como pode ser observado no texto de Pádua (2010Pádua, J, A. (2010). As bases teóricas da história ambiental. Estudos Avançados, 24(68), 81-101.), mas à dimensão do espaço, isto é, ao equilíbrio demográfico em função do continuum cidade-campo. Nessa perspectiva, a sustentabilidade seria definida pela implantação de processos econômicos aptos a regular a transição da civilização do petróleo para uma civilização da biomassa.

Por esse caminho, o termo sustentabilidade seria o resultado de processos tecnocientíficos e regulados pelo núcleo modernizador do mundo, ou seja, o termo não seria aplicado fora de um motor transformacionista. O “futuro radioso”, nos termos de Sachs (2010Sachs, I. (2010). Barricadas de ontem, campos de futuro. Estudos Avançados, 24(68), 25-38.), está atrelado ao uso estratégico da biodiversidade, biomassa, biotecnologia, fazendo da tecnociência a solução heroica do problema socioambiental.

Na concepção de Veiga (2010Veiga, J. E. (2010). Indicadores de sustentabilidade. Estudos Avançados, 24(68), 39-52.), a noção de sustentabilidade é uma referência econômica para o equilíbrio ecossistêmico. No entanto, segundo o autor, a resiliência endógena do ecossistema não seria seu caráter fundamental. Na perspectiva de Veiga (2010Veiga, J. E. (2010). Indicadores de sustentabilidade. Estudos Avançados, 24(68), 39-52.), o termo é apreensível e definido por aquilo que está fora dele, logo a sustentabilidade seria inexistente em si-mesma, se apoiando em indicadores exógenos, sem os quais o termo não teria nenhuma materialidade. Nesse sentido, a sustentabilidade é assimilada como uma medida matemática extraída de indicadores socioeconômicos.

Para o autor, a sustentabilidade não se apresenta ligada ao uso estratégico da tecnociência, tal como indicado por Sachs (2010Sachs, I. (2010). Barricadas de ontem, campos de futuro. Estudos Avançados, 24(68), 25-38.). Veiga (2010Veiga, J. E. (2010). Indicadores de sustentabilidade. Estudos Avançados, 24(68), 39-52.) desenvolve uma avaliação mais volátil e relativa do termo sustentabilidade, sugerindo formas analíticas de compreensão de contextos que podem ser mais ou menos sustentáveis ao mesmo tempo. Enquanto o texto de Sachs (2010Sachs, I. (2010). Barricadas de ontem, campos de futuro. Estudos Avançados, 24(68), 25-38.) associa o termo sustentabilidade aos processos inventivos e inovadores da tecnociência, Veiga (2010Veiga, J. E. (2010). Indicadores de sustentabilidade. Estudos Avançados, 24(68), 39-52.) apresenta o termo sustentabilidade fundamentado na preservação do capital natural diante do fluxo hegemônico do crescimento econômico.

No texto de Cavalcanti (2010Cavalcanti, C. (2010). Concepções da economia ecológica: suas relações com a economia dominante e a economia ambiental. Estudos Avançados, 24(68), 53-67.), o termo sustentabilidade é conectado à ideia de felicidade e se apresenta como fim da produção de bens e serviços econômicos, proporcionando um fluxo de prazer e bem-estar psíquico aos indivíduos que compõem a sociedade. De acordo com Ribeiro (2010Ribeiro, W. C. (2010). Teorias socioambientais: em busca de uma nova sociedade. Estudos Avançados, 24(68), 9-13.), o termo sustentabilidade não tem expressão histórica nem aplicação técnica fora de uma razão institucional determinada pela geografia política. O termo sustentabilidade se apresenta no texto do autor como a principal matriz conceitual da questão socioambiental, representada pela capacidade do planeta em suportar a reprodução da vida.

Segundo Ribeiro (2010Ribeiro, W. C. (2010). Teorias socioambientais: em busca de uma nova sociedade. Estudos Avançados, 24(68), 9-13.), o objetivo da pesquisa científica de cunho ambiental é criar maneiras de repor a base material da produção capitalista, criando em laboratório o conhecimento necessário que livraria a humanidade da dependência dos recursos não renováveis, conduzindo a discussão da sustentabilidade para o cenário inovador da tecnociência.

Segundo Marina Silva (2012Silva, M. (2012). An essay on our common future. In S. G. Vaz (Org.), Environment: why read the classics? (pp. 134-156). Abingdon: Greenleaf.), a ética seria o plasma substancial da ideia de sustentabilidade, de modo que os problemas de ordem socioambiental não dependeriam de respostas técnicas, como propõem os autores anteriores, mas de soluções que subordinem a técnica à ética. Conforme analisa a autora, entende-se que a condição histórica do Futuro estaria submetida às bases éticas da ação política. Marina Silva introduz a dimensão política como uma epistemologia crítica dos processos de desenvolvimento, ora chamando atenção para a dimensão social da sustentabilidade, ora refletindo seu aspecto ambiental, tratando o termo por meio de dois vetores conceituais - a conservação da matéria e a transformação do mundo.

A partir das considerações traçadas, pode-se concluir que o vácuo conceitual que acompanha o uso do termo sustentabilidade só será preenchido quando ele transcorrer de um conceito acadêmico para um conceito de organização social, o que não se fará sem o apoio das contribuições reflexivas e heurísticas das ciências humanas em proximidade com os atores comuns que compõem o palco do mundo da vida.

Considerações finais

O foco deste artigo foi analisar as ordens semânticas do termo sustentabilidade, buscando compreender como se tem projetado do seu uso estratégico formas contemporâneas de organização social e modelos de socialização. Nesse sentido, observamos que o elemento intersubjetivo no ato comunicativo do termo sustentabilidade tem sido a tecnociência e suas inovações, que têm exercido no plano social um poder instituinte de dizer o que é o símbolo da sustentabilidade, determinando a propagação de ideologias políticas que se utilizam do científico para fundamentar uma determinada ordem do mundo.

Desse modo, compreende-se que o emprego do termo sustentabilidade apresenta um contexto de incompletude semântica, pois os posicionamentos teóricos, isoladamente, não representam a totalidade da estrutura semântica da sustentabilidade. Constatou-se que seu uso estratégico tem privilegiado o saber tecnocientífico como motor das dinâmicas sociais de transformação do mundo. Por essa razão, as informações científicas retiradas do seu uso discursivo ainda não são capazes de atingir o conduto da vida social, devido aos dispositivos de socialização disparados, que partem de uma estrutura conceitual frágil que não reflete a amplitude dos processos sociais reguladores derivados da estrutura semântica do termo sustentabilidade.

No sentido epistemológico, o uso estratégico do termo sustentabilidade é inflado por perspectivas transformacionistas de caráter tecnocientífico, que abalam as ordens de conservação do mundo vivido. No entanto, o contexto discursivo do termo sustentabilidade é definido pela análise geopolítica, disposta como ordem explicativa das antinomias que cercam os interesses de conservação do fluxo hegemônico, como se a este só restasse uma requalificação do mundo (sustentável) e não um redirecionamento histórico do curso do desenvolvimento.

A ordem geopolítica contextualiza o paradoxo entre os mecanismos capazes de promover transformações sociais e os que são arbitrariamente voltados a opor resistência a elas, chegando-se à observação de que o uso do termo sustentabilidade não impele para uma busca explícita de conservação da natureza em sua condição material ou simbólica, mas a uma preservação das ordens econômicas diluídas nos processos tecnocientíficos e transformacionistas.

Assim, a ordem conservacionista parece assumir um caráter geopolítico na medida em que o esforço central é o desenvolvimento de um modelo econômico que internaliza o mundo social em referências naturalistas e biologistas.

O método demonstra que a ordem conservacionista, tal como sistematizada na dimensão pré-lógica, vem sendo discutida num contexto geopolítico de ação e não em ares românticos ou idealistas de movimentos protecionistas da natureza. Por sua vez, a ordem antropológica identificou nas dinâmicas de transformação do mundo a gênese das tensões sociais, culturais e históricas presentes na questão da crise socioambiental. Tais dinâmicas de transformação são impulsionadas pelas inovações tecnocientíficas creditadas como perspectivas de futuro diante do fim de recursos naturais finitos e esgotáveis. Nesse ponto, ora essas dinâmicas assumem a função de reflexão ontológica da condição humana, ora de inovação tecnocientífica do mundo.

Esta pesquisa chega ao final do seu exercício constatando que o uso conceitual do termo sustentabilidade encerra um conjunto de perspectivas isoladas que não contemplam num único modelo as três dimensões, pré-lógica, antropológica e geopolítica. A estrutura do termo é refletida em partes pelas teorias socioambientais que concentram suas discussões numa ou noutra ordem explicativa. Assim, a ausência de um núcleo estruturante no uso do termo sustentabilidade ainda o impede de ser assimilado como um conceito organizador de processos sociais compatíveis com o que busca influenciar.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2020
  • Aceito
    15 Out 2021
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