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O trabalho interdisciplinar no hospital: acompanhamento de uma criança com condições crônicas complexas

Hospital interdisciplinary work: monitoring a child with complex chronic conditions

Travail interdisciplinaire à l’hôpital : suivi d’un enfant atteint de maladies chroniques complexes

El trabajo interdisciplinar en el hospital: monitoreo de una niña con enfermedades complejas crónicas

Resumo

Este estudo narra a experiência de uma psicóloga em intervenção interdisciplinar realizada com uma criança hospitalizada com condições crônicas complexas de saúde, diagnosticada com amiotrofia muscular espinhal tipo I. A experiência foi vivenciada em conjunto com a terapia ocupacional e o relato foi estruturado a partir do material clínico registrado em diário de campo pela psicóloga da dupla, durante as sessões semanais ao longo de dois anos de acompanhamento. A experiência trouxe desafios e crescimento pessoal à psicóloga, autora deste estudo, bem como à paciente, por meio de atividades lúdicas adaptadas às suas necessidades, ampliando o cuidado para além da dimensão técnica e tecnológica, que são importantes para a garantia do funcionamento orgânico, embora não suficientes para uma qualidade de vida minimamente satisfatória.

Palavras-chave:
condições crônicas de saúde; doença crônica; criança

Abstract

This study narrates the experience of a psychologist in an interdisciplinary intervention carried out with a hospitalized child with Complex Chronic Conditions, diagnosed with Spinal Muscular Amyotrophy Type I. The intervention took place in conjunction with occupational therapy and the report was structured based on clinical material recorded on the psychologist’s fieldnotes, during weekly sessions over two years of monitoring. The experience brought challenges and personal growth to the psychologist, author of this study, as well as to the patient, by means of playful activities adapted to her needs, expanding care beyond the technical and technological dimension-which are important to guarantee organic functioning, although insufficient for a minimally satisfactory quality of life.

Keywords:
chronic health conditions; chronic disease; child

Résumé

Cette étude raconte l’expérience d’une psychologue dans une intervention interdisciplinaire menée auprès d’un enfant hospitalisé atteint de maladies chroniques complexes, diagnostiqué avec une amyotrophie musculaire spinale de type I. L’intervention a eu lieu en conjonction avec l’ergothérapie et le rapport a été structuré à partir du matériel clinique enregistré par le psychologue dans un journal de terrain, au cours de séances hebdomadaires pendant deux ans de suivi. L’expérience a apporté des défis et une croissance personnelle au psychologue, auteur de cette étude, ainsi qu’à la patiente, par le biais d’activités ludiques adaptées à ses besoins, élargissant les soins au-delà de la dimension technique et technologique-qui sont importantes pour assurer le fonctionnement organique, bien qu’insuffisantes pour une qualité de vie minimalement satisfaisante.

Mots-clés :
conditions de santé chronique; maladie chronique; enfant

Resumen

Este estudio presenta la experiencia de una psicóloga en una intervención interdisciplinaria, realizada con una niña hospitalizada con enfermedades complejas crónicas, específicamente con amiotrofia muscular espinal tipo I. La experiencia se dio junto con la terapia ocupacional, y el relato fue estructurado a partir de material clínico registrado por la psicóloga del dúo en un diario de campo, durante sesiones semanales por dos años de monitoreo. La experiencia trajo desafíos y crecimiento personal a la psicóloga, autora de este estudio, así como a la paciente por medio de actividades lúdicas adaptadas a sus necesidades, lo que amplió la atención más allá de la dimensión técnica y tecnológica, elementos importantes para garantizar el funcionamiento orgánico, pero no suficiente para brindarle una calidad de vida mínimamente satisfactoria.

Palabras clave:
condiciones crónicas de salud; enfermedad crónica; niños

Introdução

Os estudos no campo dos adoecimentos crônicos na infância e na adolescência têm ganhado visibilidade, tendo em vista que o perfil epidemiológico, nesta fase do desenvolvimento, está se modificando. Diante dos avanços tecnológicos em pediatria, na realização do diagnóstico e do tratamento, nota-se maior sobrevida de crianças com sequelas, quadros de malformações congênitas, pré-termos e com condições crônicas (Carvalho, Menezes, Figueiredo, & Maciel, 2019Carvalho, M. S. N., Menezes, L. A., Figueiredo, C. E. S., & Maciel, C. M. P. (2019). Apresentação. In M. S. N. Carvalho, L. A. Menezes, A. D. Cruz Filho, & C. M. P. Maciel (Orgs.), Desospitalização de crianças com condições crônicas complexas: perspectivas e desafios (pp. 108-360). Rio de Janeiro, RJ: Eldorado .).

Assim, utiliza-se a expressão “condições crônicas complexas” (CCC) para caracterizar um grupo de crianças e adolescentes com necessidades muito específicas, cujo grau de complexidade é maior em relação a outros adoecimentos crônicos. Tal público se diferencia por apresentar, durante todo o desenvolvimento, mais de um órgão acometido, demandar longo período de hospitalização com acompanhamento especializado, podendo ainda apresentar dependência tecnológica para compensar a perda de alguma função vital (Castro & Moreira, 2018Castro, B. S. M., & Moreira, M. C. N. (2018). (Re)conhecendo suas casas: narrativas sobre a desospitalização de crianças com doenças de longa duração. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 28(3), 1-19.; Menezes, Nehab, Carvalho, Meirelles, & Veiga, 2019Menezes, L. A., Nehab, M. F., Carvalho, J. L., Meirelles, A. F. V., & Veiga, F. D. L. (2019). Capítulo I: Conceito, abordagem clínica e reflexões. In M. S. N. Carvalho, L. A. Menezes, A. D. Cruz Filho, & C. M. P. Maciel (Orgs.), Desospitalização de crianças com condições crônicas complexas: perspectivas e desafios (pp. 366-1074). Rio de Janeiro, RJ: Eldorado .; Moura, Moreira, Menezes, Ferreira, & Gomes, 2017Moura, E. C., Moreira, M. C. N., Menezes, L. A., Ferreira, I. A., & Gomes, R. (2017). Complex chronic conditions in children and adolescents: hospitalizations in Brazil, 2013. Ciência & Saúde Coletiva, 22(8), 2727-2734.).

As CCC se caracterizam, portanto, pela “presença de limitação de função física ou mental, dependência medicamentosa, dietética e tecnológica, necessidade de terapia, de reabilitação física, de linguagem, deglutição e de cuidados multiprofissionais” (Moreira, Albernaz, Sá, Correia, & Tanabe, 2017Moreira, M. C. N., Albernaz, L. V., Sá, M. R. C., Correia, R. F., & Tanabe, R. F. (2017). Recomendações para uma linha de cuidados para crianças e adolescentes com condições crônicas complexas de saúde. Cadernos de Saúde Pública, 33(11), 1-13., p. 2). As pessoas com CCC são marcadas não só pela cronicidade de uma doença, mas pelo nascimento, crescimento e desenvolvimento dentro de um hospital, com dependência tecnológica e doenças multissistêmicas (Moreira et al., 2017Moreira, M. C. N., Albernaz, L. V., Sá, M. R. C., Correia, R. F., & Tanabe, R. F. (2017). Recomendações para uma linha de cuidados para crianças e adolescentes com condições crônicas complexas de saúde. Cadernos de Saúde Pública, 33(11), 1-13.).

A demanda por complexos cuidados hospitalares pode levar a experiências restritivas na infância, o que acarreta estímulos estressores que prejudicam o desenvolvimento (Ribeiro et al., 2019Ribeiro, C. T. M., Gonçalves, C. P., Maia, F. N., Souza, K. M. O., Muzzio, M. C. S., Sá, M. R. C., ... Afonso, S. B. C. (2019). Perspectivas de atuação multiprofissional. In M. S. N. Carvalho, L. A. Menezes, A. D. Cruz Filho, & C. M. P. Maciel (Orgs.), Desospitalização de crianças com condições crônicas complexas: perspectivas e desafios (pp. 1491-2003). Rio de Janeiro, RJ: Eldorado .). Nesse contexto, percebe-se que o foco dos profissionais acaba sendo direcionado aos cuidados concretos, por meio de técnicas e tecnologias voltadas para a dimensão biológica e orgânica (Araújo et al., 2019Araújo, M. I. G. S., Paez, A. S., Ribeiro, K. F., Oliveira, M. M. Q., Carvalho, M. S. N., & Mitre, R. M. A. (2019). Capítulo 5: Importância da autonomia do sujeito e a legislação. In M. S. N. Carvalho, L. A. Menezes, A. D. Cruz Filho, & C. M. P. Maciel (Orgs.), Desospitalização de crianças com condições crônicas complexas: perspectivas e desafios (pp. 2491-2812). Rio de Janeiro, RJ: Eldorado.). Em contrapartida, a abordagem das questões psicológicas, emocionais e comportamentais não é muito valorizada (Menezes et al., 2019Menezes, L. A., Nehab, M. F., Carvalho, J. L., Meirelles, A. F. V., & Veiga, F. D. L. (2019). Capítulo I: Conceito, abordagem clínica e reflexões. In M. S. N. Carvalho, L. A. Menezes, A. D. Cruz Filho, & C. M. P. Maciel (Orgs.), Desospitalização de crianças com condições crônicas complexas: perspectivas e desafios (pp. 366-1074). Rio de Janeiro, RJ: Eldorado .), resultando na violação de direitos dessas crianças, nem sempre compreendidas como sujeitos (Araújo et al., 2019Araújo, M. I. G. S., Paez, A. S., Ribeiro, K. F., Oliveira, M. M. Q., Carvalho, M. S. N., & Mitre, R. M. A. (2019). Capítulo 5: Importância da autonomia do sujeito e a legislação. In M. S. N. Carvalho, L. A. Menezes, A. D. Cruz Filho, & C. M. P. Maciel (Orgs.), Desospitalização de crianças com condições crônicas complexas: perspectivas e desafios (pp. 2491-2812). Rio de Janeiro, RJ: Eldorado.).

As CCC acarretam o desafio de superar as abordagens biologicistas, pois, como a cronicidade é um fato, é preciso desenvolver um cuidado para além da cura orgânica (Castro & Moreira, 2018Castro, B. S. M., & Moreira, M. C. N. (2018). (Re)conhecendo suas casas: narrativas sobre a desospitalização de crianças com doenças de longa duração. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 28(3), 1-19.). Pensar em estratégias que contribuam para a visibilidade desse público e para sua autonomia se torna uma medida urgente, na direção de oferecer experiências prazerosas e lúdicas, que são próprias da infância, de modo a estimular as dimensões do desenvolvimento infantil: motora, sensorial, cognitiva e afetiva (Ribeiro et al., 2019Ribeiro, C. T. M., Gonçalves, C. P., Maia, F. N., Souza, K. M. O., Muzzio, M. C. S., Sá, M. R. C., ... Afonso, S. B. C. (2019). Perspectivas de atuação multiprofissional. In M. S. N. Carvalho, L. A. Menezes, A. D. Cruz Filho, & C. M. P. Maciel (Orgs.), Desospitalização de crianças com condições crônicas complexas: perspectivas e desafios (pp. 1491-2003). Rio de Janeiro, RJ: Eldorado .).

Quando se trata do mundo infantil, o brincar pode se revelar uma forma importante de comunicação e de cuidado às crianças. A experiência do brincar tem função central no desenvolvimento humano, envolvendo uma área de experimentação compartilhada, em que a criança pode viver fantasias, elaborar medos, frustrações e ansiedades conscientes ou inconscientes, de modo a se aproximar da realidade externa a partir de uma experiência de ilusão (Winnicott, 1983Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (I. C. S. Ortiz, Trad.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.).

Ao pensar na comunicação que pode ser estabelecida por meio de experiências lúdicas, esses recursos podem ser ainda mais valiosos quando, em função do adoecimento, a criança não consegue se expressar de forma ativa. Muitas vezes, os profissionais falam delas com os familiares e com outros cuidadores, mas não se comunicam com elas, ignorando as diferentes formas de expressão humana para além da verbal, muitas delas primitivas, como o choro, a respiração, as batidas do coração e o tônus muscular (Araújo et al., 2019Araújo, M. I. G. S., Paez, A. S., Ribeiro, K. F., Oliveira, M. M. Q., Carvalho, M. S. N., & Mitre, R. M. A. (2019). Capítulo 5: Importância da autonomia do sujeito e a legislação. In M. S. N. Carvalho, L. A. Menezes, A. D. Cruz Filho, & C. M. P. Maciel (Orgs.), Desospitalização de crianças com condições crônicas complexas: perspectivas e desafios (pp. 2491-2812). Rio de Janeiro, RJ: Eldorado.).

Há que se considerar que o cuidado dos seres humanos é mais complexo do que se imagina (Winnicott, 1969/1994Winnicott, D. W. (1994). A experiência mãe-bebê de mutualidade. In C. Winnicott, R. Shepherd & M. Davis (Orgs.), Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott (pp. 195-202). Porto Alegre. RS: Artes Médicas Sul. (Trabalho original publicado em 1969)). Por isso, quando se pensa nas dimensões consciente e inconsciente das relações humanas, principalmente no início da vida, a comunicação verbal não ganha tanto destaque, mas, sim, as “comunicações silenciosas” ou inconscientes. Nesse relacionamento, o segurar, o manipular, o cheiro, a respiração, o calor do hálito, o som das batidas do coração, o ritmo, a intensidade da voz e as brincadeiras, que dão lugar à afeição e ao prazer pela experiência, representam a principal forma de se comunicar, por meio da qual pode ir nascendo o sentimento de confiabilidade em outro indivíduo (Winnicott, 1999Winnicott, D. W. (1999). Os bebês e suas mães (2a ed.). São Paulo, SP: Martins Fontes.).

De acordo com a teoria do amadurecimento humano de D. W. Winnicott, o indivíduo nasce com uma tendência à integração da personalidade, mas depende do ambiente em que vive para que essa tendência possa encontrar espaço seguro e adequado para se desenvolver. O ambiente, por sua vez, não se constitui apenas de estrutura física, mas envolve as relações humanas que devem estabelecer um cuidado sensível e adaptado às necessidades do indivíduo em desenvolvimento (Winnicott, 1983Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (I. C. S. Ortiz, Trad.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.). Assim, é importante refletir sobre as intervenções dos profissionais de saúde, uma vez que estas precisam ser confiáveis para que consigam reproduzir um ambiente familiar protetor (Serralha, 2016Serralha, C. A. (2016). O ambiente facilitador winnicottiano: teoria e prática clínica. Curitiba, PR: CRV.).

O ambiente não determina o desenvolvimento da criança, embora facilite que esta desenvolva seus potenciais, quando há condições suficientemente boas (Serralha, 2016Serralha, C. A. (2016). O ambiente facilitador winnicottiano: teoria e prática clínica. Curitiba, PR: CRV.). É preciso que os cuidadores se identifiquem com as necessidades das crianças que estão sob seus cuidados e, diante de uma condição de adoecimento, torna-se fundamental que o terapeuta se envolva inteira e pessoalmente (Winnicott, 1983Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (I. C. S. Ortiz, Trad.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.).

Winnicott propõe o termo holding, para se referir à capacidade do cuidador de sustentar e conter o bebê ou a criança, favorecendo o sentimento de continuidade e integração. Para isso, a pessoa que cuida precisará se identificar com o indivíduo sob seus cuidados, perceber suas necessidades, atendê-las e se comunicar com ele, estabelecendo a dinâmica de um ambiente “estável e pessoal, com muito amor, firmeza e tolerância” (Serralha, 2016Serralha, C. A. (2016). O ambiente facilitador winnicottiano: teoria e prática clínica. Curitiba, PR: CRV., p. 80), para que esse indivíduo possa se desenvolver emocionalmente.

Logo, quando se pensa na dimensão ética do cuidado, é preciso considerar a dimensão subjetiva do cuidador. Se o profissional se atém apenas ao trabalho burocrático, técnico e protocolar, não se permite envolver afetiva e subjetivamente, impossibilitando que se coloque na condição do outro, a fim de se identificar com suas necessidades e promover um cuidado singular e sensível (Serralha, 2011Serralha, C. A. (2011). A ética do cuidado e as ações em saúde e educação. Winnicott e-prints, 6(1), 15-36.).

Tais questões são relevantes para refletir sobre o trabalho com crianças em CCC de saúde e, talvez, pelos desafios implicados nessa prática, nota-se uma escassez de trabalhos acadêmicos voltados a essa clientela (Okido, Zago, & Lima, 2015Okido, A. C. C., Zago, M. M. F., & Lima, R. A. G. (2015). O cuidado do filho dependente de tecnologia e suas relações com os sistemas de cuidado em saúde. Revista Latinoamericana de Enfermagem, 23(2), 291-298.). Trabalhar pela maior visibilidade a esses pacientes é essencial, pois o reconhecimento de suas necessidades de cuidados singulares pode favorecer a criação de estratégias de cuidado e políticas públicas (Moreira et al., 2017Moreira, M. C. N., Albernaz, L. V., Sá, M. R. C., Correia, R. F., & Tanabe, R. F. (2017). Recomendações para uma linha de cuidados para crianças e adolescentes com condições crônicas complexas de saúde. Cadernos de Saúde Pública, 33(11), 1-13.).

Assim, este estudo narra a experiência de uma psicóloga em intervenção interdisciplinar realizada com uma criança hospitalizada em CCC. Propõe-se, mais especificamente, a realizar reflexões acerca da experiência sob o viés psicanalítico, abordar o atendimento multiprofissional com a terapeuta ocupacional, discutir a dimensão intersubjetiva da comunicação, do cuidado e das experiências lúdicas adaptadas às necessidades da criança.

Contextualização da experiência

A experiência narrada foi fruto do trabalho da psicóloga, autora deste estudo, em dupla com uma terapeuta ocupacional, ambas atuantes em um programa de residência multiprofissional de uma universidade federal pública de Minas Gerais. O relato foi estruturado a partir do material clínico registrado em diário de campo pela psicóloga, de modo que o texto foi narrado em primeira pessoa, tendo em vista o caráter pessoal da experiência.

Respeitando a identidade da criança, irei chamá-la de a “Menina dos Olhos”, com o objetivo de trazer uma conotação poética ao texto, uma vez que esta é uma expressão utilizada para se referir a algo ou alguém a quem se atribui prioridade ou preferência. Além disso, porque foi por meio dessa dinâmica da troca de olhares que me senti capturada pela expressão singular da paciente, o que indicava uma subjetividade para além da doença e das limitações corporais. Acompanhamos a Menina dos Olhos dos três aos cinco anos de idade e, desde os oito meses, ela morava em um hospital geral devido ao seu diagnóstico de amiotrofia muscular espinhal (AME) tipo I, chamada também de síndrome Werdnig-Hoffmann. Esta é um tipo de doença genética degenerativa, que limita os movimentos musculares, afetando o desenvolvimento motor e da fala ao longo do tempo, embora os aspectos cognitivos se mantenham preservados.

Os casos de crianças com CCC desafiam as “expectativas de uma não sobrevivência frente às dependências tecnológicas” (Moreira et al., 2017Moreira, M. C. N., Albernaz, L. V., Sá, M. R. C., Correia, R. F., & Tanabe, R. F. (2017). Recomendações para uma linha de cuidados para crianças e adolescentes com condições crônicas complexas de saúde. Cadernos de Saúde Pública, 33(11), 1-13., p. 2). No caso da Menina dos Olhos, ela havia superado as expectativas de vida presentes nos estudos científicos relacionados ao seu diagnóstico. O acompanhamento à criança foi semanal, iniciou-se em abril de 2016 e se encerrou em abril de 2018. A configuração multiprofissional dos atendimentos teve o objetivo de favorecer uma abordagem integral às suas necessidades. Nosso contato se iniciou na unidade de tratamento intensivo (UTI), onde a criança viveu até seus três anos, com continuidade na enfermaria pediátrica, para onde ela foi transferida no segundo semestre de 2016.

As crianças com CCC acabam por gerar alguns impasses nos serviços hospitalares, pois ocupam leitos da UTI e dificultam a internação de casos agudos. Assim, estabelecem novos desafios na transição para o setor da enfermaria pediátrica, já que dependem de tecnologias para sobreviver. Infelizmente, a mudança de setores acaba se fundamentando no imperativo de diminuir gastos e liberar os leitos intensivos, embora também represente a possibilidade de ampliar as experiências e a qualidade de vida dessas crianças, uma vez que a UTI é um setor restritivo ao paciente e aos familiares (Moreira et al., 2017Moreira, M. C. N., Albernaz, L. V., Sá, M. R. C., Correia, R. F., & Tanabe, R. F. (2017). Recomendações para uma linha de cuidados para crianças e adolescentes com condições crônicas complexas de saúde. Cadernos de Saúde Pública, 33(11), 1-13.).

A Menina dos Olhos se apresentava com um olhar curioso, parecendo buscar algum sentido em meio à agitação dos profissionais, aos sons dos equipamentos hospitalares e de seus desenhos animados expostos no aparelho de DVD - sua única fonte de lazer e de conhecimento a respeito do mundo. Nossa aproximação foi difícil para ela, que se mostrava resistente e fechava os olhos negando qualquer interação conosco. Eu me sentia angustiada e com várias dúvidas: pelas limitações do seu próprio diagnóstico, todos percebiam uma menina que não falava, mas havia um silêncio de fato? A equipe não estaria também “fechando os olhos” para as necessidades que a paciente manifestava? Qual era o silêncio imposto e qual era o silêncio de fato manifestado por ela?

De acordo com Zolty (2010Zolty, L. (2010). O psicanalista à escuta do silêncio. In J. D. Nasio (Org.), O silêncio na psicanálise (pp. 191-196). Rio de Janeiro, RJ: Zahar.), o silêncio do paciente é algo que deixa a dúvida em destaque e que coloca o psicoterapeuta na posição do “não saber”. Neste caso, o silêncio verbal era parte do diagnóstico da paciente; diagnóstico caracterizado por lacunas de informações e conhecimentos, bem como pela especificidade de um cuidado, que impunham dúvidas, o que me exigia integrar o trabalho da psicologia com outras áreas da saúde, em especial com a terapia ocupacional. Nós duas voltávamos semanalmente, de modo que a constância e a continuidade do nosso trabalho e de nossa presença foi abrindo espaço para a confiabilidade da paciente no vínculo terapêutico que vinha sendo construído.

Em determinado encontro, quando a criança fechou os olhos, eu interpretei seu silêncio: “Entendi… você não quer conversar. Mas está tudo bem! A gente volta outro dia”. Imediatamente, ela abriu os olhos, o que me fez compreender que ela estava confirmando a minha interpretação. Nesses momentos em que ela abria os olhos, eu entendia que minhas interpretações faziam sentido para ela: nosso contato começava a se estabelecer pelo olhar e pela palavra.

Com o passar do tempo, foi se constituindo uma relação de confiança entre nós. Por meio dessa observação, a terapeuta ocupacional entendeu que seria possível introduzir um processo de Comunicação Alternativa Ampliada (CAA) com a criança, além de possibilitar experiências lúdicas por meio de brinquedos adaptados às necessidades que ela apresentava.

O trabalho com crianças em CCC coloca o desafio de criar um ambiente, dentro da lógica hospitalar, que favoreça o desenvolvimento infantil, no sentido de permitir maior exploração de estímulos, autonomia e qualidade de vida. Para alcançar esses objetivos, a terapia ocupacional utiliza tecnologias assistivas (TA) e, dentre elas, a comunicação alternativa e ampliada (CAA), que permite que a criança faça escolhas, estabeleça relações mais ativas e expresse sentimentos e emoções (Ribeiro et al., 2019Ribeiro, C. T. M., Gonçalves, C. P., Maia, F. N., Souza, K. M. O., Muzzio, M. C. S., Sá, M. R. C., ... Afonso, S. B. C. (2019). Perspectivas de atuação multiprofissional. In M. S. N. Carvalho, L. A. Menezes, A. D. Cruz Filho, & C. M. P. Maciel (Orgs.), Desospitalização de crianças com condições crônicas complexas: perspectivas e desafios (pp. 1491-2003). Rio de Janeiro, RJ: Eldorado .).

A terapeuta ocupacional utilizou movimentos residuais dos dedos indicadores da Menina dos Olhos, treinando as respostas de “sim” (representadas por um dedo indicador levantado) e de “não” (dois dedos levantados). A Menina dos Olhos apresentou resultados rápidos com a técnica e pareceu aprender os códigos da CAA em tempo menor que o esperado, o que nos surpreendeu. Contudo, com a evolução da doença, perdeu a amplitude do movimento do dedo indicador da mão esquerda, o que dificultou sua resposta de “não” com os dois dedos levantados.

Então, ela mesma passou a criar, espontaneamente, seus próprios meios de se comunicar, mantendo o “sim” com o dedo indicador direito levantado e o “não” com os olhos fechados. Além disso, criamos alguns materiais para facilitar suas escolhas, a partir de figuras representando as cores, brincadeiras conhecidas por ela, dores que poderia estar sentindo etc. Essas imagens eram colocadas, duas a duas, em uma prancha de comunicação, como apresentado na Figura 1. Dessa maneira, ela poderia olhar fixamente para a imagem que representava a resposta que gostaria de emitir, de modo a facilitar nossa compreensão.

Figura 1
Prancha de CAA, confeccionada com material higienizável e com velcro, que permite mobilidade dos símbolos. Estes foram extraídos por meio do software Boardmaker, composto por um sistema de símbolos de comunicação pictórica (PCS). O trabalho foi desenvolvido pela terapeuta ocupacional, que esteve à frente de todas as intervenções, cujas mensagens facilitavam a comunicação objetiva da criança.

Diante da possibilidade de compreendê-la melhor, eu podia, como psicóloga, atuar por meio da comunicação e compreensão da dimensão emocional e subjetiva da criança. Durante nossa intervenção em dupla, a terapeuta ocupacional e eu conversávamos uma com a outra em voz alta, trazendo interpretações indiretas cabíveis na realidade da mãe e da criança. Assim, a criança pôde compreender algumas questões importantes sobre sua própria realidade e a mãe pôde observar o nosso modo de nos aproximar e de lidar com a criança, descobrindo novas possibilidades de interação com a filha.

Portanto a escolha por relatar essa experiência se justifica pelo desafio que este trabalho representou. A experiência nos permitiu acompanhar a evolução gradual da criança, bem como o crescimento e aprendizados de ambas as profissionais, tanto a nível pessoal como no intercâmbio disciplinar.

A discussão dos resultados dessa experiência foi realizada com base no referencial teórico psicanalítico, com ênfase na teoria do amadurecimento humano de D. W. Winnicott, bem como em autores atuais que realizam pesquisas no contexto dos cuidados com crianças hospitalizadas em CCC. Os resultados foram divididos em três categorias temáticas para apresentação e discussão: (a) Sobre os ecos do silêncio: o que um olhar nos conta?; (b) Possibilidades do brincar: uma comunicação silenciosa; (c) A “garimpagem” do cuidado: transformações vividas a partir de uma experiência emocional.

Discussão da experiência

Sobre os ecos do silêncio: o que um olhar nos conta?

Em nosso primeiro contato com a UTI, a terapeuta ocupacional e eu fomos capturadas pelo olhar significativo da menina, que parecia refletir um estado mental de expectativa. O que ela esperava? Há quanto tempo? Simultaneamente, parecia haver dor e indiferença em seu olhar, talvez em função de uma espera prolongada demais que a fazia reagir com hostilidade diante de nossa aproximação e intenção de cuidado - hostilidade percebida pela expressão do olhar, ora fechado, ora torto indicando desprezo, tédio ou deboche, ou pela emissão de ruídos que sugeriam algum incômodo com nossa presença.

No início, senti muitas dificuldades, com frequentes sensações de mal-estar; o cheiro e os barulhos do ambiente me incomodavam e atrapalhavam minha atenção à criança. Nos primeiros atendimentos, eu me vi deslocada e inadequada para aquele trabalho, sensação que me era suscitada, contratransferencialmente, no contato com a paciente e, também, pelo olhar da equipe. Em alguns momentos, senti um mal-estar físico que me impediu de dar continuidade ao atendimento. Na maioria das vezes, senti muito medo de ser invasiva com a criança e, a qualquer sinal de desconforto manifesto por ela, eu indicava à terapeuta ocupacional que era hora de encerrarmos e de nos afastarmos.

De fato, foi importante que respeitássemos sua negativa até que ela pudesse nos receber e permitir que ficássemos. Contudo entendi que minhas atitudes ansiosas e agitadas refletiam muito mais as dificuldades que eu tinha de me identificar com as necessidades da criança, lidando com essa comunicação por meio da fuga. O psicoterapeuta se envolve com os aspectos que perpassam o campo emocional do cuidado, de modo que a demanda e a turbulência atravessam sua vivência e a do paciente (Scappaticci, 2011Scappaticci, A. L. S. S. (2011). Agruras na busca da experiência emocional da análise de uma criança. Jornal de Psicanálise, 44(81), 187-202.).

É possível inferir uma situação contratransferencial: eu estava vivenciando a inadequação e o desconforto vividos pela própria criança naquele ambiente, cujos sentimentos, conscientes ou inconscientes, ela tentava nos comunicar. Eu tinha dificuldades de falar com ela e me sentia, em várias situações, paralisada em meus movimentos, principalmente quando ela fechava seus olhos diante de nossa presença ou respondia a nossas propostas com olhar hostil - sentimentos que, possivelmente, assemelhavam-se ao que era suscitado nela pelas limitações impostas por sua doença e pela rotina hospitalar.

Segundo Winnicott (1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar & a realidade (Coleção de Psicologia Psicanalítica). Rio de Janeiro, RJ: Imago.), a história de um indivíduo não pode ser descrita apenas em função de suas características pessoais, sem considerar a provisão ambiental que recebeu, caso esta tenha atendido às necessidades de dependência ou fracassado nelas. Neste caso, o papel do ambiente para a Menina dos Olhos era significativo. Ao abordar a doença psíquica, Winnicott (1975)Winnicott, D. W. (1975). O brincar & a realidade (Coleção de Psicologia Psicanalítica). Rio de Janeiro, RJ: Imago. ressalta que o existir submisso implica em adoecimento, em contraposição a um existir criativo, próprio da saúde. Considerando o caso de nossa paciente, havia um existir criativo em potencial que necessitava de um ambiente facilitador para se desenvolver.

Aos poucos eu pude entender que o nosso distanciamento no momento em que ela se negava a nos receber poderia ser terapêutico, tendo em vista que a rotina hospitalar não a possibilitava escolher ou rejeitar qualquer coisa. Contudo eu também me questionava sobre o limite tênue entre respeitar suas necessidades e omitir um cuidado que despertava sofrimento em mim.

Cuidar é uma capacidade que acontece no limiar entre o que fazemos com nossa presença (acolher e reconhecer) e o que fazemos com nossa ausência (dar tempo e espaço, saber esperar e se manter disponível sem causar invasões), cujo foco é a necessidade do paciente (Figueiredo, 2011Figueiredo, L. C. (2011). Cuidado e saúde: uma visão integrada. Alter: Revista de Estudos Psicanalíticos, 29(2), 11-29.). “Muitas vezes, cuidar é, basicamente, ser capaz de prestar atenção e reconhecer o objeto dos cuidados no que ele tem de próprio e singular, dando disso testemunho e, se possível, levando de volta ao sujeito sua própria imagem” (Figueiredo, 2007Figueiredo, L. C. (2007). A metapsicologia do cuidado. Psychê, 21(11), 13-30., p. 18).

Aos poucos, nossa presença começou a ser aceita e nos surpreendíamos com a perspicácia da criança, pois quando dizíamos algo que fazia sentido para ela, abria apenas um dos olhos, espiando nossas reações. Houve um momento significativo que determinou o estreitamento de nosso vínculo: a Menina dos Olhos tinha muito medo da chuva, em função dos barulhos dos trovões que, segundo sua mãe, eram associados à explosão de um caixa eletrônico, que havia acontecido há algum tempo dentro do hospital, durante um assalto.

Estávamos em um período chuvoso na cidade e aproveitamos para falar sobre isso, pois seu leito ficava próximo à janela. Entretanto conversar sobre assuntos diferentes não era tão fácil quanto imaginávamos, pois ela conhecia o mundo externo ao hospital por meio das referências apresentadas em seus filmes e desenhos infantis. Seu conhecimento sobre o mundo era restrito e precisamos ajudá-la a ampliá-lo de forma mais realista, estabelecendo uma mediação e comunicação efetivas para fazer comparações e dar exemplos que pudessem ser compreendidos por ela.

Foi preciso construir formas lúdicas para apresentar novos conceitos: para falar sobre a chuva, apresentamos inicialmente vídeos da chuva real, histórias que falavam sobre o tema e fizemos atendimentos em dias chuvosos, de modo a facilitar sua aproximação com o assunto e favorecer uma imagem mental do termo. Na sequência, montamos uma sessão lúdica, em que construímos um “pau de chuva”, um instrumento musical com tubo, pregos e arroz em seu interior que, ao ser movimentado, produzia um barulho semelhante ao da chuva. Levamos também placas de raios X para simular os barulhos do trovão e luvas médicas cheias de água com furos, representando as nuvens. Fizemos chover dentro do hospital em uma bacia, possibilitando que ela sentisse a interação com os pingos de água em suas mãos, ao que demonstrou surpresa, prazer e interesse.

Talvez, pela novidade dessa vivência e por nos sentirmos presentes e envolvidas emocionalmente com ela, a Menina dos Olhos pareceu nos receber com maior disponibilidade nos atendimentos seguintes. A CAA favoreceu que ela solicitasse outras vezes a brincadeira da chuva e quando por coincidência realmente chovia durante nossos atendimentos, ela demonstrava um olhar entusiasmado, de quem sabia o que estava acontecendo. A mãe e a equipe começaram a nos dar uma devolutiva positiva de que a criança estava oscilando menos a saturação e os batimentos cardíacos durante esses momentos que geravam ansiedade.

Ganhamos mais segurança nas intervenções que criamos e nas respostas que a paciente nos apresentava. Analogamente à psicoterapia, nossos atendimentos implicavam em um brincar mútuo, cuja função era resgatar a capacidade saudável do paciente de poder brincar, atingindo um estado de relaxamento. Segundo Winnicott (1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar & a realidade (Coleção de Psicologia Psicanalítica). Rio de Janeiro, RJ: Imago.), mesmo em casos extremos de submissão, a capacidade criativa humana não pode ser destruída, embora fique oculta, de modo que “permanece a insatisfação em virtude daquilo que está oculto, carente por isso mesmo do enriquecimento propiciado pela experiência do viver” (p. 99).

Safra (2009Safra, G. (2009). A face estética do self: teoria e clínica. São Paulo, SP: Ideias e Letras.) destaca que o surgimento do fenômeno da comunicação depende do reconhecimento do outro, como presença única e singular no mundo. É terrível emitir um “som sem que ele jamais seja ecoado por outro ser humano, o que significa perder-se em espaços infinitos, aniquiladores de qualquer registro de vida psíquica” (p. 381). Desse modo, devolver o eco de um som, gesto ou sinal expressivo possibilita que o paciente se encontre com sua criatividade primária, com o “gesto criador, o suporte para surgimento de uma vida pulsional pessoal” (p. 381).

Em nossa prática, sugerimos ideias e aceitamos recusas, descobrindo o que se adaptava às necessidades da criança. Nossos atendimentos foram ganhando contorno, a partir do que os olhos e os silêncios queriam dizer e sinalizar.

Possibilidades do brincar: uma comunicação silenciosa

Brincar é uma atividade humana que envolve todo o corpo e exige confiança para que aconteça (Winnicott, 1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar & a realidade (Coleção de Psicologia Psicanalítica). Rio de Janeiro, RJ: Imago.). Na dinâmica de nossos atendimentos em dupla, percebi que a terapeuta ocupacional auxiliou a Menina dos Olhos a redescobrir seu corpo capaz de brincar. À medida que ela passou a confiar na relação de cuidado que construíamos, usou seu corpo na brincadeira com mais espontaneidade e isso favoreceu o estabelecimento de uma comunicação mais significativa. Nessa dinâmica de cuidado, a doença e o corpo deficiente começaram a se tornar “figuras de fundo” e o destaque foi direcionado para a saúde psíquica da criança - o que tornou o trabalho terapêutico interdisciplinar possível.

Abrir espaço para acolher o “não” da paciente possibilitou que ela dissesse “sim” a novas experiências lúdicas e afetivas. Em alguns encontros, era possível que estabelecêssemos diálogos contínuos, permeados por perguntas nossas e respostas suas, ou por afirmações e interpretações de minha parte, com as quais ela concordava ou discordava por meio de seus códigos de comunicação. Além disso, introduzimos brincadeiras adaptadas às suas necessidades, de modo que ela pudesse brincar com suporte de um adulto.

A realidade de intervenções hospitalares às crianças em CCC impõe foco na complexidade técnica e tecnológica, deixando em segundo plano a importância de oferecer experiências livres, prazerosas, espontâneas, de exploração e descobrimento a esses pacientes. O brincar é um recurso terapêutico fundamental e precisa ser adaptado às necessidades e condições da criança, às regras de higienização e às rotinas hospitalares (Ribeiro et al., 2019Ribeiro, C. T. M., Gonçalves, C. P., Maia, F. N., Souza, K. M. O., Muzzio, M. C. S., Sá, M. R. C., ... Afonso, S. B. C. (2019). Perspectivas de atuação multiprofissional. In M. S. N. Carvalho, L. A. Menezes, A. D. Cruz Filho, & C. M. P. Maciel (Orgs.), Desospitalização de crianças com condições crônicas complexas: perspectivas e desafios (pp. 1491-2003). Rio de Janeiro, RJ: Eldorado .).

De acordo com Figueiredo (2011Figueiredo, L. C. (2011). Cuidado e saúde: uma visão integrada. Alter: Revista de Estudos Psicanalíticos, 29(2), 11-29.), em estados de enfermidades crônicas, os desempenhos dos pacientes, em termos de mecanismos internos, são comprometidos, exigindo contribuições mais significativas dos cuidadores, um manejo mais ativo no sentido de facilitar transformações. “Não se trataria, nestas situações, apenas de facilitar o restabelecimento da saúde, tantas vezes inviável, mas de introduzir imediata e efetivamente um fator de saúde na vida debilitada e limitada” (p. 24). Nesse sentido, o autor destaca que, em tais situações, quem cuida não é um facilitador da saúde, mas se torna integrante dessa própria saúde.

Com base na adaptação das necessidades infantis, Winnicott também aborda a importância do trabalho interconectado com outras profissões, de modo que a criança possa ser atendida e compreendida em sua integralidade. Ele discute que, assim como a mãe precisa de diferentes recursos e acessórios para cuidar de seu bebê, os profissionais também precisam de se associar a diferentes áreas de saber e estratégias, para alcançar a dimensão de um cuidado mais humano (Winnicott, 1983Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (I. C. S. Ortiz, Trad.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.).

Refletindo sobre a prática com a Menina dos Olhos, percebi que nosso trabalho interdisciplinar foi fundamental, no que se refere a encontrar estratégias concretas e subjetivas para facilitar a comunicação da criança, bem como para favorecer a possibilidade do brincar. Criar um ambiente facilitador, conforme afirma Fulgencio (2008Fulgencio, L. (2008). O brincar como modelo do método de tratamento psicanalítico. Revista Brasileira de Psicanálise , 42(1), 124-136.), “depende do quanto uma comunicação e um partilhar conjunto podem ser efetuados” (p. 131).

Voltando à experiência, buscamos utilizar algum recurso que favorecesse nossa aproximação com a paciente de modo menos assustador. Foi criado então o Doutor Bigode, um fantoche de cachorro, construído pela terapeuta ocupacional com sucata e impermeável, possibilitando a higienização submetida ao protocolo de controle de infecção hospitalar, como ilustra a Figura 2.

Figura 2
Fantoche Doutor Bigode, construído pela terapeuta ocupacional com caixa de leite e EVA. Foi utilizado nos atendimentos como recurso lúdico mediador da comunicação com a criança. A figura apresenta parte dos recursos utilizados no momento da intervenção sobre a chuva, bem como a prancha de CAA com os símbolos de “sim” e “não”, para facilitar as escolhas da criança no processo lúdico.

As cores e o movimento do brinquedo chamaram atenção da criança, a princípio com espanto e, depois, com curiosidade. Eu manipulava o brinquedo fazendo uma voz específica para representá-lo e, quando ela percebia que era minha voz, reagia com olhar de impaciência e discordância, que fazia que eu me sentisse um pouco ridícula naquela situação inicial.

Mesmo assim, insistimos nesse objeto, utilizando-o como recurso para reconhecer os possíveis pensamentos e a “voz” da criança em relação às situações que aconteciam no hospital e, também, aos possíveis sentimentos e emoções que ela vivenciava. Quando havia agravamento de seu estado clínico, por exemplo, o cachorrinho chegava contando que havia acontecido algo semelhante com ele, falava dos sentimentos que havia vivido, como medo e raiva; perguntava à terapeuta ocupacional se era errado chorar e, à medida que íamos conversando sobre isso, a Menina dos Olhos acompanhava e podia se identificar e compreender as situações que vivenciava.

Com o passar do tempo, ela foi deixando de reagir com hostilidade ao nosso brincar, e observava o cachorrinho com certa desconfiança, avaliando, de vez em quando, se eu mexia minha boca durante sua fala, ao que eu tentava disfarçar. Aos poucos, esse movimento intelectualizado foi se amenizando, e ela começou a ser absorvida pela fala do fantoche, por seus latidos e lambidas no dedinho indicador, com o qual ela nos dava respostas.

Por fim, a Menina dos Olhos passou a responder às perguntas do Doutor Bigode e a pedir por ele em determinados atendimentos: ao fechar seus olhos em alguma atividade, tentávamos adivinhar o que ela queria nos dizer e, quando questionávamos se ela queria que chamássemos seu novo amigo para uma visita, ela levantava o dedo indicador, demonstrando o “sim”.

De acordo com Boraks (2002Boraks, R. (2002). Do íntimo à intimidade: ressonâncias de um percurso. Revista Brasileira de Psicanálise , 36(4), 885-898.), o holding também se refere à presença do psicoterapeuta, aberto a receber críticas e hostilidade, dando espaço para que a criança desenvolva sua mente por meio de “escolhas, aceitações e renúncias” (p. 896). O Doutor Bigode foi um dos recursos que permitiu que a paciente, por meio da fantasia, pudesse se dar conta de sua própria realidade. Aproximamo-nos da Menina dos Olhos real, saudável e viva. Abadi (2002Abadi, S. (2002). Explorações: perder-se e achar-se no espaço potencial. Revista Brasileira de Psicanálise, 36(4), 807-816.) esclarece que “se uma pessoa doente procura, acha ou cria um analista que possa suportá-la, estará menos doente. A ilusão ali é de potencialidade, mas também de esperança” (p. 812).

Em referência ao texto de Boraks (2002Boraks, R. (2002). Do íntimo à intimidade: ressonâncias de um percurso. Revista Brasileira de Psicanálise , 36(4), 885-898.), o sentimento de ser real está implicado com um adulto que vá ao encontro da criança, permitindo que tenha gestos próprios e que sua “espontaneidade se conecte com acontecimentos externos” (p. 896). À medida que o paciente começa a sentir que alguma compreensão do seu sofrimento poderá ser atingida, ele passa a interagir e a se comunicar por meio de uma comunicação silenciosa no brincar (Jacintho, 2018Jacintho, A. C. A. (2018). Gesto espontâneo na clínica psicanalítica com crianças. Palestra proferida no Pré-Encontro para o XIII Encontro Brasileiro sobre o Pensamento de Donald Winnicott, Uberaba, MG.).

Além disso, o trabalho interdisciplinar oferece um cuidado mais integrado, que se mostra um desafio para o padrão hospitalar tradicional, seja pela dificuldade de integrar saberes ou pela resistência às mudanças de antigos processos (Menezes, et al., 2019Menezes, L. A., Nehab, M. F., Carvalho, J. L., Meirelles, A. F. V., & Veiga, F. D. L. (2019). Capítulo I: Conceito, abordagem clínica e reflexões. In M. S. N. Carvalho, L. A. Menezes, A. D. Cruz Filho, & C. M. P. Maciel (Orgs.), Desospitalização de crianças com condições crônicas complexas: perspectivas e desafios (pp. 366-1074). Rio de Janeiro, RJ: Eldorado .). Assim, o trabalho em conjunto se tornou um recurso muito potente, em que a dupla se sustentava nos aspectos técnicos e, também, emocionais.

Foi uma experiência interessante, em que eu e a terapeuta ocupacional também passamos a estabelecer uma comunicação não verbal durante nossos atendimentos, integrando nossos saberes técnicos e teóricos com a vivência, o que nos fortalecia para enfrentar os desafios do meio hospitalar.

A “garimpagem” do cuidado: transformações vividas a partir de uma experiência emocional

Utilizo o termo “garimpagem” para me referir à dimensão sensível do cuidado. Cuidar de uma criança com limitações físicas severas e uma mente rica e criativa exigiu-me grande trabalho psíquico para descobrir o que existia para além da amorfia provocada pela doença. Estabelecemos uma comunicação silenciosa e não verbal, que demandou, como afirmam Pfeil e Azevedo (2017Pfeil, N. V., & Azevedo, C. S. (2017). Na fronteira da psicanálise: a dimensão intersubjetiva do cuidado ao bebê no contexto de internações prolongadas e condições crônicas de saúde. Psicologia Revista, 26(2), 281-302.), o uso de todos os sentidos corporais e da minha sensibilidade enquanto cuidadora. “Os profissionais necessitam ter uma disponibilidade emocional para se conectar afetivamente. O cuidado envolve o desenvolvimento de uma comunicação sensorial bastante refinada” (p. 291).

Para ilustrar a dinâmica dessa comunicação, apresento um de nossos atendimentos, quando surgiu um assunto sobre o fundo do mar. Tentamos explicar para a Menina dos Olhos, com base nas referências que ela tinha de mundo, o que era o peixe e como era o lugar onde ele morava. Ela fechou os olhos, mostrando-se irritada com o assunto. Começamos a investigar se ela queria fazer algo diferente e, quando lhe perguntamos se queria ver algum desenho no DVD, respondeu que sim com o dedo indicador levantado.

Apresentamos sua coleção de filmes, verbalizando seus nomes para que ela escolhesse o de sua preferência. Colocamos o filme escolhido por ela no DVD, e qual foi a nossa surpresa ao ver que o desenho se tratava de peixinhos em um rio! Ela me direcionou um olhar triunfante. Logo compreendi, comemorando e valorizando seu conhecimento: ela queria nos mostrar que já conhecia há muito tempo o que estávamos nos esforçando para lhe explicar.

Em outro contexto, uma das crianças hospitalizada em CCC, que cresceu no leito ao lado do seu, foi a óbito, e a Menina dos Olhos se mostrou muito agitada ao longo da semana, desenvolvendo uma irritação na pele de origem psicossomática. Tentamos conversar sobre as mudanças vividas nesses dias e ela solicitou, à sua maneira, a presença do Doutor Bigode. Durante minha fala, representando o cachorrinho, mencionei como era bom ser seu amigo. Imediatamente, ela começou a chorar.

Compreendi, após um período de silêncio, que, quando mencionei a amizade dela com o cachorrinho, ela se entristeceu por pensar no amigo que cresceu com ela e que, de repente, tinha “sumido” sem que ninguém lhe explicasse a situação. A Menina dos Olhos levantou o dedinho, confirmando minha interpretação. Com seu choro, pude conversar e dar contorno às suas angústias referentes à morte - intuição que só me foi possível mediante nossa experiência de intimidade mental e emocional, construída por meio da relação de cuidado contínua e gradual.

À medida que nossa relação se fortaleceu, começamos a lhe contar histórias que faziam referências a elementos de sua vida. Falamos com ela sobre o hospital, o porquê de sua internação, seu diagnóstico, a morte, os pais - falamos sobre a realidade que a cercava. Quando lhe trazíamos uma informação nova, seus olhos expressavam curiosidade e interesse, de modo que a confiança no vínculo se estreitava, pois ela podia sentir que também confiávamos em sua capacidade de ouvir e de nos compreender.

A confiança no cuidado se estabelece a partir de relações que estão abertas para a dimensão do sensível, no campo primitivo e inconsciente, constituído pela ordem subjetiva, “internalizada pelos sujeitos com base em sua própria capacidade de partilha de uma experiência com o outro” (Bakes & Azevedo, 2017Bakes, J. C., & Azevedo, C. S. (2017). Os paradoxos do trabalho em equipe em um Centro de Tratamento Intensivo Pediátrico (CTI - Pediátrico). Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 60(21), 77-87.). O trabalho produtivo e silencioso com a Menina dos Olhos me auxiliou a expandir horizontes e perspectivas na minha prática. Experiências mutativas, como as relatadas, são necessárias, pois um corpo que não se permite transformar a partir da presença do outro, revela-se um corpo-objeto, sem que possa perceber a vida e o mundo de maneira subjetiva (Safra, 2009Safra, G. (2009). A face estética do self: teoria e clínica. São Paulo, SP: Ideias e Letras.).

Segundo Figueiredo (2007Figueiredo, L. C. (2007). A metapsicologia do cuidado. Psychê, 21(11), 13-30.), infelizmente, o cuidado das equipes de saúde tem se restringido aos procedimentos tecnológicos e rotineiros do hospital, limitação que leva à perda da possibilidade de prestar atenção e reconhecer o outro, oferecendo uma experiência de integração ao indivíduo. Nesse sentido, Winnicott (1983Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (I. C. S. Ortiz, Trad.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.) é original ao ressignificar o conceito de saúde e doença, pois destaca que a provisão da condição saudável está diretamente ligada ao “desenvolvimento emocional da criança e ao estabelecimento das bases de uma vida de saúde mental” (p. 62).

Cuidar não se resume às ações realizadas, mas engloba uma atitude humana de se preocupar e de se ocupar, de estabelecer um envolvimento afetivo com o outro e se responsabilizar por sua saúde (Pereira, Conceição, Cruz, Oliveira, & Barreto, 2019Pereira, C. D., Conceição, D. S., Cruz, F. S. B., Oliveira, M. S., & Barreto, T. B. (2019). Capítulo 2: O protagonismo da família. In M. S. N. Carvalho, L. A. Menezes, A. D. Cruz Filho, & C. M. P. Maciel (Orgs.), Desospitalização de crianças com condições crônicas complexas: perspectivas e desafios (pp. 1083-1488). Rio de Janeiro, RJ: Eldorado .). Assim, o trabalho com crianças em CCC impõe o desafio de tecer um cuidado sensível que garanta visibilidade e autonomia ao paciente, bem como diálogo e construção de relações de confiança com a família, no sentido de minimizar os estímulos estressores que afetam o conjunto (Ribeiro et al., 2019Ribeiro, C. T. M., Gonçalves, C. P., Maia, F. N., Souza, K. M. O., Muzzio, M. C. S., Sá, M. R. C., ... Afonso, S. B. C. (2019). Perspectivas de atuação multiprofissional. In M. S. N. Carvalho, L. A. Menezes, A. D. Cruz Filho, & C. M. P. Maciel (Orgs.), Desospitalização de crianças com condições crônicas complexas: perspectivas e desafios (pp. 1491-2003). Rio de Janeiro, RJ: Eldorado .).

Vale ressaltar que, no contato com crianças em CCC, sua natureza humana parece ser negada pelo excesso de atenção direcionada aos artefatos tecnológicos. É como se o humano aparecesse apenas em seu estado mais bruto, na exposição de um corpo com suas secreções e entranhas (Paez & Moreira, 2016Paez, A. S., & Moreira, M. C. N. (2016). Construção de maternidade: experiência de mães de crianças com síndrome do intestino curto. Physis: Revista de Saúde Coletiva , 26(3), 1053-1072.). No entanto, em minha experiência, percebi que essa realidade nos convida a vivenciar, na verdade, as relações mais básicas e intensas da natureza humana, muito próprias do começo da vida. “Este é o paradoxo que o corpo destas crianças nos apresenta: são cultura e natureza em intensidade máxima” (Paez & Moreira, 2016Paez, A. S., & Moreira, M. C. N. (2016). Construção de maternidade: experiência de mães de crianças com síndrome do intestino curto. Physis: Revista de Saúde Coletiva , 26(3), 1053-1072., p. 1064).

Esses desafios acabam por deixar em evidência a falência do fazer biomédico e mecanicista e, embora essa condição clínica seja denominada “complexa”, essas crianças não demandam apenas cuidados complexos, havendo a necessidade de uma assistência permeada por “tecnologias leves” e serviços básicos (Silva & Moreira, 2019Silva, M. F., & Moreira, M. C. N. (2019). Dilemas na regulação do acesso à atenção especializada de crianças com condições crônicas complexas de saúde. Ciência & Saúde Coletiva , 26(6), 2215-2224.). Nesta experiência, pude observar que a capacidade de identificação com as necessidades da criança, por meio de uma comunicação sensível e de um cuidado responsável, não garantiu apenas a manutenção de sobrevida biológica, mas também a da continuidade de vida emocional e psíquica.

Desse modo, “os filhos da tecnologia” precisam ser adotados por seus cuidadores, dentro de uma relação de continuidade e de aproximações sucessivas, que ofereça espaço para “um ambiente relacional, de construção de referências recíprocas, de alteridade” (Paez & Moreira, 2016Paez, A. S., & Moreira, M. C. N. (2016). Construção de maternidade: experiência de mães de crianças com síndrome do intestino curto. Physis: Revista de Saúde Coletiva , 26(3), 1053-1072., p. 1068). A ética do cuidar se faz na possibilidade criativa do cuidador desenvolver uma capacidade de ser e estar com o outro, de se colocar em sua condição, ao encontro de suas necessidades (Serralha, 2011Serralha, C. A. (2011). A ética do cuidado e as ações em saúde e educação. Winnicott e-prints, 6(1), 15-36.).

Os atendimentos à Menina dos Olhos se encerraram em função do tempo determinado de atuação das profissionais no programa de residência multiprofissional. Estabelecemos com a criança uma preparação para encerrar o acompanhamento, com antecedência de alguns meses, e elaboramos algumas atividades lúdicas sobre o tema de despedida, para introduzir o assunto e prepará-la para o desligamento conosco, o que foi muito difícil para nós.

Após a narrativa e discussão do tema, chego ao fim deste relato, embora continue escutando seus ecos dentro de mim. Escrever sobre essa experiência, em alguma medida, é também sussurrar para aqueles que têm ouvidos para escutar e olhos para ver.

Considerações finais

Dou início às considerações finais com o poema “O apanhador de desperdícios”, do autor Manoel de Barros (2006Barros, M. (2006). Memórias inventadas: as infâncias. São Paulo, SP: Planeta do Brasil.):

uso a palavra para compor meus silêncios Não gosto das palavras fatigadas de informar... Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes Prezo insetos mais que aviões Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis Tenho em mim um atraso de nascença... Meu quintal é maior do que o mundo Sou um apanhador de desperdícios Amo os restos como as boas moscas... Porque eu não sou da informática eu sou da invencionática Só uso a palavra para compor meus silêncios. (p. 25)

O encontro com esse poema nos remete ao paradoxo no processo de amadurecimento humano: vida que flerta com a morte, que mescla palavras e silêncios, movimentos e pausas. Perceber e se envolver com as contradições inerentes à natureza humana é função do psicanalista, principalmente aquele que trabalha diretamente com a infância, pois precisa ser também um “apanhador de desperdícios”, um profissional que valoriza a lentidão no meio do caos acelerado de nossa sociedade, que se encanta com os detalhes e que possibilita que o setting seja “um quintal maior que o mundo” (Barros, 2006Barros, M. (2006). Memórias inventadas: as infâncias. São Paulo, SP: Planeta do Brasil.).

Com a Menina dos Olhos, tive a oportunidade de entrar em contato com esses versos de modo vivencial. Sua funcionalidade orgânica era suprida com aparelhos e instrumentos tecnológicos, porém era necessário mais que informática: “invencionática”. Como é difícil compreender o “sotaque” do silêncio! Em um mundo que valoriza os resultados quantificáveis e o produtivismo, mostra-se um desafio respeitar “as coisas e os seres desimportantes”.

Em minha experiência pessoal, descobri que, quando há um encontro verdadeiro, a mente humana pode florescer e desabrochar, ainda que em meio à hostilidade do ambiente hospitalar. Não foi um processo fácil, vivíamos angústias frequentes e, por vezes, observávamos a oscilação de evoluções e regressões em seus e em nossos comportamentos. A escrita deste relato me permitiu resgatar os registros dos atendimentos, para tomar consciência da importante experiência emocional que tive a oportunidade de viver.

Contudo as reflexões aqui compartilhadas não se restringem à dimensão individual ou ao campo psicológico, pois a possibilidade de se transformar a partir da experiência, pensando no pressuposto psicanalítico da dimensão inconsciente e da dinâmica transferencial e contratransferencial que se estabelece entre os pacientes e profissionais, perpassa todo o coletivo e afeta as práticas instituídas no contexto hospitalar. Tais problematizações indicam a importância da formação contínua no campo da saúde, na direção de ofertar um cuidado comprometido com o outro, autocrítico e constantemente repensado em equipe.

Por meio deste trabalho interdisciplinar, pudemos levantar questionamentos aos profissionais, instigar trocas e diálogos com a equipe e com os familiares, além de dar visibilidade ao cuidado das crianças em CCC, que estão hospitalizadas desde o nascimento no mesmo quarto da Menina dos Olhos, e que ainda não haviam recebido intervenções terapêuticas específicas e adaptadas às suas condições diagnósticas, para além dos procedimentos técnicos e medicamentosos cotidianos. Além disso, tal experiência no programa de residência foi um pontapé para a continuidade da formação da primeira autora deste artigo, na sequência dos estudos no mestrado, cuja pesquisa está sendo desenvolvida com os familiares das crianças em CCC, no mesmo cenário hospitalar onde se desenvolveu esta experiência e sob orientação da segunda autora. Tais produções poderão contribuir para maior visibilidade a este público, no sentido de redirecionar e ampliar o “olhar” dos pais e dos profissionais sobre essas crianças.

Para encerrar, ouso dizer que a experiência que pessoalmente me provocou transformações foi a de descobrir a minha capacidade de amar uma criança saudável que habita um corpo adoecido. Winnicott (1983Winnicott, D. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (I. C. S. Ortiz, Trad.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.) afirmou que “antes necessitamos dar a oportunidade para as pessoas certas conhecerem as crianças e assim pressentirem suas necessidades” (p. 69). O autor afirma que poderia usar a palavra “amor”, correndo o risco de parecer sentimental. Manoel de Barros (2006Barros, M. (2006). Memórias inventadas: as infâncias. São Paulo, SP: Planeta do Brasil.) afirmou que “ama os restos”. Eu decidi optar pelo poema e correr o risco de afirmar que esta foi uma experiência de descoberta e transformação, a partir do sentimento de amor, pois a mim não soa sentimental: soa verdadeiro.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2020
  • Revisado
    26 Set 2021
  • Aceito
    01 Fev 2022
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