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“Tortura que não acaba”: análise do sofrimento de mães de jovens assassinados em Fortaleza

“Torture that never ends”: Analysis of the suffering of mothers of young people murdered in Fortaleza

«Torture qui ne finit jamais»: analyse de la souffrance des mères de jeunes assassinés à Fortaleza

“Una tortura que nunca termina”: análisis del sufrimiento de madres de jóvenes asesinados en Fortaleza

Resumo

Este artigo pretende analisar, a partir de um prisma interseccional, o sofrimento psicossocial de mães de jovens assassinados nas dinâmicas da violência em territórios periféricos de Fortaleza, no Ceará. As reflexões são oriundas de uma pesquisa-intervenção, que, ao tomar a interseccionalidade como conceito-chave, permite-nos acompanhar realidades vividas de mulheres sem incorrer em uma despolitização e individualização de seus sofrimentos. O trabalho buscou articulações de estudos da Psicologia Social com autoras dos feminismos e de áreas afins que tratam sobre violências, mulheres negras e interseccionalidades. Os dados foram produzidos por entrevistas e observações de mobilizações sociais. A seção de resultados e discussão chama a atenção para: (1) processos de culpabilização e sua relação com classe, raça e gênero, em que as mortes dos filhos são indutoras de maior precarização nas vidas dessas mulheres; e (2) medo, isolamento, solidão e silenciamento atuantes no sofrimento psicossocial, produzindo novas formas de sociabilidade.

Palavras-chave:
mães; jovens assassinados; interseccionalidade; sofrimento psicossocial

Abstract

This article aims to analyze, from an intersectional perspective, the psychosocial suffering of mothers of young people murdered in the dynamics of violence in peripheral territories of Fortaleza. The reflections come from research-intervention, which, by taking intersectionality as a key concept, allows us to follow the realities experienced by women without incurring a depoliticization and individualization of their sufferings. The work sought to articulate studies from Social Psychology with authors of Feminisms and related areas that deal with violence, black women and intersectionalities. Data were produced by interviews and observations of social movements. The results and discussion section draws attention to a) blaming processes and their relationship with class, race and gender, in which the deaths of youth induces more precariousness in these women’s lives, and b) fear, isolation, loneliness and silence as actors in the psychosocial suffering producing new forms of sociability.

Keywords:
mothers; murdered Youth; intersectionality; psychosocial suffering

Résumé

Cet article vise à analyser, dans une perspective intersectionnelle, la souffrance psychosociale des mères de jeunes assassinés dans la dynamique de la violence dans les territoires périphériques de Fortaleza-CE. Les réflexions sont issues de la recherche-intervention, qui, en prenant l’intersectionnalité comme concept clé, permet de suivre les réalités vécues par les femmes sans entraîner une dépolitisation et une individualisation de leurs souffrances. Le travail recherchait des articulations d’études de psychologie sociale avec des auteurs de féminismes et de domaines connexes qui traitent de la violence, des femmes noires et des intersectionnalités. Les données ont été produites par des entretiens et des observations de mobilisations sociales. La section résultats et discussion attire l’attention sur a) les processus de blâme et leur relation avec la classe, la race et le sexe, dans lesquels la mort d’enfants induit une plus grande précarité dans la vie de ces femmes et b) la peur, l’isolement, la solitude et le silence agissant dans le souffrance psychosociale, produisant de nouvelles formes de sociabilité.

Mots-clés:
mères; jeune assassine; intersectionnalité; souffrance psychosociale

Resumen

Este artículo propone analizar, desde una perspectiva interseccional, el sufrimiento psicosocial de madres de jóvenes asesinados en las dinámicas de violencia en los territorios periféricos de Fortaleza, en Ceará (Brasil). Las reflexiones provienen de la investigación-intervención, que al tomar la interseccionalidad como concepto clave nos permite seguir con las realidades vividas por las mujeres sin incurrir en una despolitización e individualización de sus sufrimientos. Este trabajo buscó articular los estudios de Psicología Social con los autores de feminismos y áreas afines que abordan la violencia, la mujer negra y las interseccionalidades. Los datos fueron producidos por entrevistas y observaciones de movilizaciones sociales. El apartado de resultados y discusión llama la atención sobre: (1) los procesos de culpabilización y su relación con la clase, la raza y el género, en los que la muerte de los niños induce a una mayor inseguridad en la vida de estas mujeres; y (2) el miedo, el aislamiento, la soledad y el silenciamiento que actúan en el sufrimiento psicosocial produciendo nuevas formas de sociabilidad.

Palabras clave:
madres; juventud asesinada; interseccionalidad; sufrimiento psicosocial

Panorama dos homicídios juvenis na cidade de Fortaleza e a necessidade do debate interseccional

Nos últimos anos, tem-se assistido à intensificação dos assassinatos juvenis em todo o País (Cerqueira et al., 2019Cerqueira, D., Bueno, S., Lima, R. S., Neme, C., Ferreira, H., Alves, P. P., … Armstrong, K. (2019). Atlas da violência 2019. Brasília, DF: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.). Neste panorama, a cidade de Fortaleza destaca-se como a capital brasileira que mais mata adolescentes, de acordo com dados do Programa de Redução da Violência Letal contra Adolescentes e Jovens - PRVL (Melo & Cano, 2017Melo, D. L. B., & Cano, I. (2017). Índice de homicídios na adolescência: IHA 2014. Rio de Janeiro, RJ: Observatório de Favelas.). Esse fato se relaciona às transformações da dinâmica de violência no Ceará, marcadas por questões como o acirramento de conflitos entre facções (Paiva, 2019Paiva, L. F. S. (2019). “Aqui não tem gangue, tem facção”: as transformações sociais do crime em Fortaleza, Brasil. Caderno CRH, 32(85), 165-184. doi: 10.9771/ccrh.v32i85.26375
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) e o fortalecimento de políticas de segurança pública bélicas. A isto, soma-se a fragilização de políticas de garantia de direitos nas periferias (Benicio et al., 2018Benicio, L. F. S., Barros, J. P. P., Rodrigues, J. S., Silva, D. B., Leonardo, C. S., & Costa, A. F. (2018). Necropolítica e pesquisa-intervenção sobre homicídios de adolescentes e jovens em Fortaleza, CE. Psicologia: Ciência e Profissão , 38(2), 192-207. doi: 10.1590/1982-3703000212908
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). Diante desse cenário, uma questão-problema se faz pertinente aos estudos sobre as violências: que efeitos psicossociais tais dinâmicas têm produzido no cotidiano de mães de jovens assassinados? Diante desse questionamento, objetiva-se analisar, a partir de um prisma interseccional, o sofrimento psicossocial de mães que tiveram seus filhos assassinados nas dinâmicas da violência em territorialidades periféricas da cidade de Fortaleza.

Para pensar a noção de “sofrimento psicossocial”, orientamo-nos pela perspectiva de Hur (2018Hur, D. U. (2018). Psicologia, esquizoanálise e biopolítica: sofrimento psicossocial e transformação. In D. U. Hur, F. Lacerda Júnior, & M. R. S. Resende (Orgs.), Psicologia e transformação: intervenções e debates contemporâneos (pp. 262-280). Goiânia, GO: Editora UFG.), que o compreende como efeito de múltiplos agenciamentos entre sujeitos e coletivos, marcados pela máxima do capital. O enlace entre esses vetores opera na produção dos modos de subjetivação contemporâneos e atua na produção do sofrimento, o qual se relaciona ao que o referido autor chama de experiência de crise. A crise, para ele, é marcada pelo sentimento de desagregação e leva sujeitos e coletivos a vivenciarem de modo intenso e individualista a sensação de desamparo. Essa vivência individualista se articula aos imperativos capitalísticos neoliberais, segundo os quais o sujeito é o único responsável pelas condições em que vive, produzindo, assim, processos de culpabilização e silenciamento, intensificando os seus sofrimentos.

Buscando compreender as forças que compõem o sofrimento das mães de jovens assassinados, utilizaremos a interseccionalidade como conceito-ferramenta (Crenshaw, 2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10(1), 171-188. Recuperado de https://www.scielo.br/j/ref/a/mbTpP4SFXPnJZ397j8fSBQQ/?lang=pt&format=pdf
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) para nos ajudar a entender as conexões de aspectos raciais, de gênero, de classe e de território na produção dessas realidades vividas. As discussões aqui propostas se embasam em diferentes autoras feministas que diferem epistemologicamente em suas reflexões. Propomo-nos, assim, a construir pontos de diálogos que nos auxiliem a pensar o sofrimento psicossocial das mães deste estudo de modo interseccional.

Sob esse ponto de vista, o sofrimento dessas mães deve ser relacionado a um contexto histórico-social produtor de uma política de mortificação que trivializa os assassinatos juvenis majoritariamente de negros, pobres e moradores de periferias urbanas, tidos como existências supérfluas e matáveis (Barros, Costa, Cavalcante, & Sousa, 2019Barros, J. P. P., Costa, E. A. G. A., Cavalcante, C. O. B., & Sousa, I. S. (2019). Quanto importa cada vida? Problematizações éticas sobre violência contra populações infantojuvenis no Ceará. In R. C., Freitas, D. M., Mamede, D. T. Barbosa, & P. R. M. Pinheiro (Orgs.), Juventudes, linguagens e direitos (pp. 19-50). Fortaleza, CE: Imprensa Universitária.; Barros, 2019Barros, J. P. P. (2019). Juventudes desimportantes: a produção psicossocial do “envolvido” como emblema de uma necropolítica no Brasil. In V. Colaço, I. Germano, L. L. Miranda, & J. P. P. Barros (Orgs.), Juventudes em movimento: experiências, redes e afetos (pp. 209-238). Fortaleza, CE: Expressão Gráfica Editora.; Benicio et al., 2018Benicio, L. F. S., Barros, J. P. P., Rodrigues, J. S., Silva, D. B., Leonardo, C. S., & Costa, A. F. (2018). Necropolítica e pesquisa-intervenção sobre homicídios de adolescentes e jovens em Fortaleza, CE. Psicologia: Ciência e Profissão , 38(2), 192-207. doi: 10.1590/1982-3703000212908
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). As mães destacam-se como testemunhas de uma necropolítica (Rodrigues, 2019Rodrigues, J. S. (2019). Testemunhas da necropolítica: implicações psicossociais dos homicídios juvenis no cotidiano de suas mães (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE.), à medida que, ao construírem narrativas sobre as violências que atravessam seus cotidianos, denunciam o processo de sofrimento psicossocial atuante em suas trajetórias. Para materializar os efeitos das políticas de morte, destacamos no título deste artigo o recorte da fala de uma interlocutora da pesquisa que originou a construção deste texto. Maria, que ao ser perguntada sobre o assassinato do seu filho, compara sua dor a uma “tortura que não acaba”, uma saudade que nunca será aplacada, uma ausência com a qual nunca vai se acostumar. A comparação da perda com uma tortura é algo emblemático, tendo em vista estarmos falando a respeito de corpos negros, pobres e subalternizados que são torturados de diferentes formas ao longo da vida e dos séculos de marginalização social. A tortura revela-se como uma outra face do açoite colonial, como demarcado por Kilomba (2019Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, RJ: Cobogó.) e Mbembe (2017Mbembe, A. (2017). Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona.).

Portanto, é pertinente um olhar interseccional para os aspectos psicossociais da violência que não incorra na despolitização e individualização desses sofrimentos, mas que problematize o contexto sócio-político-econômico que as produzem e as mantém sob determinados regimes de (in)visibilidade (Sales, 2004Sales, M. A. (2004). (In)visibilidade perversa: adolescentes infratores como metáfora da violência (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.). Considerando que as condições de precariedade são distribuídas de formas desiguais, assolando determinada parcela da sociedade de forma mais intensa (Butler, 2015Butler, J. (2015). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.), o olhar interseccional nos leva a compreender de que modo essas condições precárias de vida compõem o cotidiano das mães de forma múltipla e inter-relacionada, por serem mulheres, pobres e, em sua maioria, negras e moradoras de periferias urbanas (Akotirene, 2018Akotirene, C. (2018). O que é interseccionalidade? Belo Horizonte, MG: Letramento.; Biroli & Miguel, 2014Biroli, F., & Miguel, L. F. (2014). Feminismo e política. São Paulo, SP: Boitempo.; Hirata, 2014Hirata, H. (2014). Gênero, classe e raça: interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, 26(1), 61-73. doi: 10.1590/S0103-20702014000100005
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; Ribeiro, 2017Ribeiro, D. (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte, MG: Letramento .). Cada marcador leva a opressões e violações distintas, convocando-nos a considerar uma atuação conjunta das diferentes opressões para, assim, elaborarmos estratégias de enfrentamento (Hirata, 2014Hirata, H. (2014). Gênero, classe e raça: interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, 26(1), 61-73. doi: 10.1590/S0103-20702014000100005
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). Essa possibilidade de reflexão e construção evidencia a interseccionalidade como um instrumento analítico e, ao mesmo tempo, de luta política, à medida que, ao questionar os processos de dominação que articulam marcadores categoriais de diferença, oportuniza o rompimento com a reprodução das formas de dominação capitalística (Akotirene, 2018; Hirata, 2014Hirata, H. (2014). Gênero, classe e raça: interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, 26(1), 61-73. doi: 10.1590/S0103-20702014000100005
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).

O compartilhamento de experiências de opressão e sofrimento vividas pelas mães de jovens assassinados indica a necessidade de um olhar interseccional (Akotirene, 2018Akotirene, C. (2018). O que é interseccionalidade? Belo Horizonte, MG: Letramento.; Crenshaw, 2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10(1), 171-188. Recuperado de https://www.scielo.br/j/ref/a/mbTpP4SFXPnJZ397j8fSBQQ/?lang=pt&format=pdf
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; Lima, 2018Lima, F. (2018). Raça, interseccionalidade e violência: corpos e processos de subjetivação em mulheres negras e lésbicas. Dossiê, 4(2), 66-82. doi: 10.9771/cgd.v4i2.26646
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;) para o sofrimento psicossocial destas, haja vista a impossibilidade de falar sobre as dores que permeiam seus cotidianos sem considerarmos o lugar social de subalternização que ocupam. A interseccionalidade é, portanto, uma questão essencial à discussão sobre a repercussão dos homicídios juvenis no cotidiano de seus familiares, com destaque para o sofrimento psicossocial das mães expostas aos regimes de (in)visibilidade, uma vez que a perda de um filho por homicídio não é vivida por toda e qualquer mulher. Essa perspectiva nos ajuda não apenas a compreender os lugares de fala dessas mulheres (Ribeiro, 2017Ribeiro, D. (2017). O que é lugar de fala? Belo Horizonte, MG: Letramento .), mas também a entender como certas repercussões e sofrimentos operam e se relacionam em suas vidas.

Por tomar a interseccionalidade como um “projeto de conhecimento” (Hirata, 2014Hirata, H. (2014). Gênero, classe e raça: interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, 26(1), 61-73. doi: 10.1590/S0103-20702014000100005
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, p. 69), este estudo denota sua relevância ao produzir implicações políticas que almejam romper com os modos de (in)visibilização dessas mulheres na sociedade, especialmente na ciência brasileira. Para tal exercício, o artigo está organizado a partir de duas seções de resultados e discussões. A primeira discute os processos de culpabilização e sua relação com classe, raça e gênero. A segunda, ao pensar os processos de subjetivação das mães, debate medo, isolamento, solidão e silenciamento atuantes no sofrimento psicossocial.

Percursos metodológicos

A cartografia como método de pesquisa-inter(in)venção

Este artigo apresenta reflexões oriundas de uma pesquisa-intervenção, que é um tipo de pesquisa participativa que se debruça sobre os sentidos produzidos pelos sujeitos acerca das questões sociopolíticas e institucionais que marcam seus modos de viver. A cartografia, utilizada como método de pesquisa-intervenção, busca acompanhar processos de subjetivação a partir da análise do plano coletivo de forças que engendram tais processos, do exercício de atenção à espreita, da inscrição do(a) cartógrafo(a) no território existencial da pesquisa e da criação de dispositivos de pesquisa com função de referência, explicitação e transformação micropolítica (Passos & Barros, 2015Passos, E., & Barros, R. B. (2015). A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 17-31). Porto Alegre, RS: Sulina.).

A escolha por essa metodologia se deu pela possibilidade de análise coletiva do plano de forças que atuam na produção do sofrimento psicossocial vivido pelas mães acompanhadas e seus efeitos no cotidiano dessas mulheres. Além disso, preconiza a indissociabilidade das esferas clínica e política, o que nos possibilita pensar a desindividualização dos sofrimentos vividos nesses cotidianos.

Cenário da pesquisa

Habitamos nesta pesquisa, mais especificamente, o território do Grande Bom Jardim, composto pelos bairros Bom Jardim, Siqueira, Canindezinho, Granja Lisboa e Granja Portugal. Esse território é historicamente marcado por altos índices de violência, os quais vêm se intensificando ao longo dos últimos anos (CCPHA, 2018Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência. (2018). Cada vida importa: relatório do segundo semestre de 2018 do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência. Fortaleza, CE: Assembleia Legislativa do Estado do Ceará.). Mesmo que o número de homicídios juvenis tenha caído de 2017 para 2018 em Fortaleza, os bairros da Regional V, que compõem a região do Grande Bom Jardim, foram os únicos a não seguirem tal tendência, tendo o bairro Bom Jardim apresentado o maior número de moradores adolescentes assassinados em 2018 (CCPHA, 2018Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência. (2018). Cada vida importa: relatório do segundo semestre de 2018 do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência. Fortaleza, CE: Assembleia Legislativa do Estado do Ceará.).

Participantes e estratégias metodológicas

A pesquisa foi realizada com mães vinculadas aos coletivos Mães do Curió e Vozes de Mães e Familiares do Sistema Socioeducativo e Prisional do Ceará e mães que tiveram seus filhos assassinados na dinâmica de violência letal do Grande Bom Jardim. Aproximamo-nos das mães participantes dos coletivos por meio do acompanhamento do cotidiano do Fórum Popular de Segurança Pública (FPSP). Para chegarmos às mães do Grande Bom Jardim, a estratégia adotada foi mapearmos equipamentos de políticas públicas e organizações da sociedade civil que atuassem no território, de modo a conhecermos os atores locais e criarmos maior vinculação com o campo. A partir desta estratégia, aproximamo-nos do Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ) e da Rede de Desenvolvimento Integral e Sustentável do Grande Bom Jardim (DLIS), os quais nos possibilitaram a articulação de reuniões com escolas da região, seguindo a sugestão dada pelos articuladores sociais que atuam no Grande Bom Jardim como estratégia para o acesso das mães de jovens assassinados de modo discreto e prezando pela segurança delas, tendo em vista a intensificação dos conflitos territoriais e as primeiras conversas com mães.

As nossas ferramentas metodológicas se constituíram em entrevistas cartográficas (Passos, Kastrup, & Tedesco, 2016Passos, E., Kastrup, V., & Tedesco, S. (2016). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum 2. Porto Alegre, RS: Sulina .) e na produção de um diário de campo a partir do acompanhamento de mobilizações sociais, das quais participamos com as mães. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas individuais com 8 mulheres. As entrevistas tiveram duração média de 60 a 120 minutos e ocorreram em diferentes localidades, de acordo com a preferência das interlocutoras. As entrevistas semiestruturadas caracterizam uma das modalidades de entrevista, apresentando um roteiro minimamente ordenado. Foram realizadas sob manejo cartográfico de modo que se deu vazão à experiência do dizer e às conexões possíveis que surgiram a partir desta (Passos et al., 2016Passos, E., Kastrup, V., & Tedesco, S. (2016). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum 2. Porto Alegre, RS: Sulina .). Entre os temas abordados nas entrevistas, destacaram-se as circunstâncias em que se deram as mortes, a relação das mães com os filhos assassinados e as repercussões das mortes no cotidiano das mães e nas dinâmicas familiares. Algumas das perguntas previamente elaboradas foram: (1) você poderia falar sobre a sua vida?; (2) você poderia falar sobre seu filho assassinado? Como era a relação dele com a senhora e com a família?; (3) você percebe mudanças em sua vida após a perda do seu filho? Quais?; (4) Você recebeu algum suporte social após a perda do seu filho? As interlocutoras foram escolhidas por conveniência, isto é, foram definidas conforme se mostraram interessadas e acessíveis, no percurso de inserção em campo, em participar do estudo. A fim de preservar as identidades das participantes, foram atribuídos nomes fictícios a elas, sendo eles: Adelina, Maria, Tereza, Mariane, Esperança, Luiza, Felipa e Anastácia. Quanto às questões étnicas-raciais das participantes, seguindo a definição do IBGE, três eram brancas e cinco eram pardas e negras. Todas as participantes eram residentes da periferia e da classe trabalhadora.

Foi realizada a análise cartográfica dos dados. Nessa perspectiva, os dados são compreendidos como produto de diferentes interações que constituem o campo de pesquisa. Desse modo, esses dados são produzidos ao longo do processo de pesquisa, e não tidos como uma realidade dada a ser colhida. A análise cartográfica se guia por problemas em que o ato de analisar funciona como um amplificador que produz novas inquietações e movimenta o pesquisar. Para Aguiar e Rocha (2007Aguiar, K. F., & Rocha, M. L. (2007). Micropolítica e o exercício da pesquisa-intervenção: referenciais e dispositivos em análise. Psicologia: Ciência e Profissão, 27(4), 648-663.), a análise cartográfica relaciona-se ao compartilhamento de experiências entre o pesquisador e o objeto pesquisado, constituindo-se, portanto, em uma análise de implicação. Os analisadores construídos pelo pesquisador são importantes, pois atuam na elaboração de problematizações que operam na desnaturalização do instituído (Passos et al., 2016Passos, E., Kastrup, V., & Tedesco, S. (2016). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum 2. Porto Alegre, RS: Sulina .). Reitera-se, ainda, que os aspectos éticos foram respeitados conforme dispostos nas Resoluções 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde, com aprovação do Comitê de Ética da UFC (CAAE: 89196718.7.0000.5054).

Resultados e discussão

Processos de culpabilização e sua relação com classe, raça e gênero

Foi recorrente, nas entrevistas, as mães falarem sobre os processos de culpabilização social que recaem sobre elas pelas mortes ou envolvimentos dos filhos em atividades ilícitas. As mães cujos filhos eram estigmatizados sob o rótulo de “envolvidos” (Barros, 2019Barros, J. P. P. (2019). Juventudes desimportantes: a produção psicossocial do “envolvido” como emblema de uma necropolítica no Brasil. In V. Colaço, I. Germano, L. L. Miranda, & J. P. P. Barros (Orgs.), Juventudes em movimento: experiências, redes e afetos (pp. 209-238). Fortaleza, CE: Expressão Gráfica Editora.; Barros, Nunes, Sousa & Cavalcante, 2019Barros, J. P. P., Nunes, L. F., Sousa, I. S., & Cavalcante, C. O. B. (2019). Criminalização, extermínio e encarceramento: expressões necropolíticas no Ceará. Psicologia Política, 19(46), 475-488. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-549X2019000300008
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) afirmaram que em diferentes situações se sentiram apontadas como responsáveis pelas ações de seus filhos, conforme narra Maria: “eu já ouvi muito, você passava a mão na cabeça, porque ele era vagabundo, porque ele é bandido porque é isso, porque é aquilo. Eu já ouvi muito isso” (Maria, 45 anos, parda, serviços gerais, 2018).

Entendemos, aqui, os processos de culpabilização como funções da sujeição capitalística (Guattari & Rolnik, 2006Guattari, F., & Rolnik, S. (2006). Cartografías del deseo. Madrid: Traficantes de sueños.), em que o trabalho se apresenta como uma dimensão moral a ser seguida. Esses modos de subjetivação se dão de forma normatizada e serializada (Guattari & Rolnik, 2006Guattari, F., & Rolnik, S. (2006). Cartografías del deseo. Madrid: Traficantes de sueños.). Imperativos do que seriam “boas mães” ou “famílias estruturadas” permeiam, portanto, esse conjunto de referências, a partir do qual essas mulheres passam a se indagar sobre suas culpas nas mortes dos filhos, de modo a excluir os agenciamentos coletivos que se relacionam a esses processos de culpabilização.

É comum a construção de narrativas baseadas em perspectivas moralizantes da violência que questionem o meio familiar dos jovens e suas “influências sociais” diante de seu envolvimento com atividades ilícitas (Brites & Fonseca, 2013Brites, J., & Fonseca, C. (2013). As metamorfoses de um movimento social: mães de vítimas de violência no Brasil. Análise Social, 48(209), 857-877. Recuperado de http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0003-25732013000400005&lng=pt&nrm=i
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). Sobre as famílias que vivem nas periferias recai a estigmatização, que lhes impõe o rótulo de desestruturadas, o que articula as diversas vulnerabilidades sociais e violências vividas por aqueles que ocupam as margens urbanas (Fonseca, 2005Fonseca, C. (2005). Concepções de família e práticas de intervenção: uma contribuição antropológica. Saúde e Sociedade, 14(2), 50-59. doi: 10.1590/S0104-12902005000200006
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). Cabe-nos questionar o estigma da “desestruturação” posto sobre essas famílias a fim de visibilizarmos as articulações entre as questões de gênero, de raça e de classe, haja vista que estas têm como principais responsáveis mulheres negras pobres, e “durante as primeiras gerações de estudo da família, os pobres eram vistos como ‘a massa amorfa’ dos ‘sem-família’” (Fonseca, 2005Fonseca, C. (2005). Concepções de família e práticas de intervenção: uma contribuição antropológica. Saúde e Sociedade, 14(2), 50-59. doi: 10.1590/S0104-12902005000200006
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, p. 55). Ao mesmo tempo que assistimos à culpabilização do jovem, temos concomitantemente a culpabilização de suas mães e familiares pelo seu suposto envolvimento com atividades “ilícitas”. Dessa forma, os processos de culpabilização e de criminalização estão articulados nos modos de sujeição capitalísticos e são potencializados pelas dinâmicas necropolíticas acionadas nas periferias urbanas brasileiras.

A culpabilização, a que se fez referência anteriormente, é sustentada por uma idealização da maternidade assentada em um ideal branco e elitista, reproduzindo uma ótica que individualiza o cuidado. Essa idealização acaba precarizando desigualmente as mulheres negras e periféricas por meio de processos de estigmatização que recaem sobre elas. Ao se pensar o cuidado sob uma perspectiva individualista, denota-se a reprodução das condições precárias de vida, que se distribuem de forma desigual entre mulheres e homens, ricos e pobres, negros e brancos. Considerando-se que, em geral, o cuidado fica a cabo das mulheres, ao se interseccionar com outros fatores, como a raça e a classe social, o somatório das opressões vividas a partir desses marcadores dirá quais acessos essas mulheres terão a apoios públicos ou privados na execução do cuidado, o que reflete nas outras atividades que poderão desenvolver em suas vidas, como investir em suas carreiras profissionais ou estudar, por exemplo (Biroli & Miguel, 2014Biroli, F., & Miguel, L. F. (2014). Feminismo e política. São Paulo, SP: Boitempo.).

Nesse sentido, Tereza fala sobre a falta de apoio do restante dos familiares, ao mesmo tempo que afirma sentir-se culpada pela família pelo envolvimento dos filhos com drogas ilícitas, questionando-se sobre sua dedicação ao trabalho e falta de tempo para estar com eles.

Acho que é porque eu trabalhei muito e não dei atenção, porque não tinha pai, não tinha como eu ser duas pessoas no mesmo canto, no mesmo jeito… Pra mim ficar com eles e trabalhar. Ou trabalhava ou ficava com eles, aí eu tive que mais trabalhar. (Tereza, idade não informada, branca, auxiliar de cozinha, 2018)

De modo semelhante, Mariane sentia-se culpada por ter deixado o filho em casa quando pequeno para ir trabalhar, apesar de reconhecer a necessidade financeira da família, já que não podia contar com o apoio financeiro do pai das crianças e de outros familiares: “depois eu fiquei me culpando que eu fui trabalhar e deixei meu fi jogado, mas tanta mãe que trabalha, né, pra dar uma vida boa pros fi” (Mariane, 59 anos, parda, costureira, 2018).

No caso de Esperança, o seu companheiro também a culpa pela morte do filho, já que ele não apoiava a sua decisão de trabalhar fora de casa. Em discussões após o assassinato, ele chegou a alegar que ela deveria ter sido mais presente na infância do jovem. A culpabilização sustenta-se na naturalização de que à mulher cabe um lugar restrito no âmbito doméstico e exclusiva responsabilidade no cuidado dos filhos. Com isso, Esperança passou se questionar se o destino do filho teria sido diferente caso ela tivesse recusado os empregos:

É essa culpa que me mata, que eu fico pensando que ele morreu porque eu fui inventar de trabalhar, ele novinho, se perdeu no mundo do crime, né. Num foi porque precisou não… O pai dele: “tu foi inventar de trabalhar, com ele ficando adolescente”, o pai dele sempre me culpa. (Esperança, 48 anos, branca, cuidadora de crianças, 2018)

Além das diversas obrigações de ordem financeira e material, é cobrado dessas mães que mantenham atenção e cuidado constantes com os filhos, tornando-se únicas responsáveis pelas ações deles e também por suas mortes. Esse processo de culpabilização social surge então como uma das expressões de uma sociedade patriarcal.

A fala de Adelina nos dá pistas para pensarmos de que modo essas questões operam no cotidiano e no processo de sofrimento psicossocial. Ela nos falou, emocionada, sobre as discriminações que já viu algumas amigas suas passarem por terem seus filhos cumprindo medidas socioeducativas. Em diversos momentos de sua fala, assim como as outras mães, enfatizou que não era negligente com os seus filhos:

A maioria das mães que eu conheci eram igual a mim, que contava o relato de vida e não foram mães negligente com os filhos, e que aconteceu a mesma coisa que aconteceu com o meu, e que sofre até hoje, né? Mas é discriminado! Você é discriminado em todo o lugar, todo o lugar que você chega, você é discriminado. (Adelina, 43 anos, parda, funcionária pública, 2018)

A culpabilização social dirigida a essas mulheres produz também efeitos de autoculpabilização, visto que algumas das mulheres entrevistadas sofrem por se sentirem responsáveis pelas mortes dos seus filhos, questionando-se, frequentemente, sobre o que poderiam ter feito para evitar o desfecho trágico da trajetória deles. O processo de autoculpabilização faz com que elas rememorem o percurso de vida compartilhado com os filhos, buscando entender os caminhos e motivos que levaram os seus filhos a serem assassinados, como nos fala Maria:

Ás vezes eu penso, “o que foi que faltou? Será que faltou alguma coisa que eu não fiz, pra poder ele ter chegar no ponto que chegou?” Eu não sei! É uma coisa que eu… Não tem explicação não! Que as vezes eu penso: “Será que talvez se eu tivesse feito alguma coisa a mais, será que teria evitado?” (Maria, 45 anos, parda, serviços gerais, 2018)

Historicamente, isso se reproduz principalmente quando pensamos o lugar da mulher negra e pobre na sociedade, já que a ela, desde o período colonial, foi reservado o lugar de subalternidade, de exploração sexual e de sua força de trabalho (Davis, 2016Davis, A. (2016). Mulheres, raça e classe. São Paulo, SP: Boitempo .). Considerando que as condições de precariedade são distribuídas de formas desiguais, assolando determinada parcela da sociedade de forma mais intensa (Butler, 2015Butler, J. (2015). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.), o olhar interseccional nos leva a compreender de que modo essas condições precárias de vida compõem o cotidiano das mães de forma múltipla e inter-relacionada, por serem mulheres, pobres e, em sua maioria, negras.

Pensar essas questões sob o prisma interseccional nos auxilia a questionar sobre quem fornece o cuidado e de que modo o oferta, dentro de uma perspectiva histórica e social dessas práticas (Biroli & Miguel, 2014Biroli, F., & Miguel, L. F. (2014). Feminismo e política. São Paulo, SP: Boitempo.). Ao considerarmos as intersecções das opressões nas vidas dessas mulheres negras e pobres, é importante questionarmos: quem cuida dos seus filhos enquanto elas trabalham? De que modo o suposto lugar de cuidado se articula com a dimensão dos seus sofrimentos psicossociais? É requerido dessas mulheres que desempenhem um papel de heroínas, uma vez que não são disponibilizadas condições de aplacamento das vulnerabilidades vivenciadas, mas exige-se delas um esforço sobre-humano para sustentar e atender a todas as demandas que lhes são impostas, o que produz uma sobrecarga em seus cotidianos, que se relaciona diretamente com seus sofrimentos psicossociais. Das oito mulheres acompanhadas nesta pesquisa, apenas três tinham companheiros, de modo que a maioria delas era de mães solteiras, em condições de vulnerabilidade social, que vivenciavam contextos de pobreza e ocupavam postos de trabalho precarizados, que precisavam enfrentar duras jornadas de trabalho para sustentar a família, dividindo-se entre a oferta de cuidado aos familiares e os trabalhos extenuantes.

Os jovens negros e periféricos são enquadrados como matáveis. São vidas para as quais as condições de precariedade são postas de maneira radical, constituindo um projeto político de extermínio em que se soma a negação de políticas que visem o aplacamento das vulnerabilidades de seus corpos (Butler, 2015Butler, J. (2015). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.). Tais mortes são produzidas/sustentadas a partir de um conjunto de condições precarizadas que permeiam os cotidianos de suas mães, sendo, assim, indutoras de maior precarização nas vidas dessas mulheres à medida que seus sofrimentos são tantas vezes silenciados, postos sob regimes de (in)visibilidade, em que se fomenta a individualização das dores e culpabilização pelas mortes.

Reduzir o sofrimento dessas mulheres ao âmbito individual pode levar à compreensão de que estas são culpadas pelas mortes dos filhos ou pelo envolvimento destes com atividades ilícitas, acarretando a intensificação dos sofrimentos e isolamento que funcionam como modos de fragmentação e docilização de seus corpos.

Medo, isolamento, solidão e silenciamento

O medo é vivido de modo intenso por várias das mulheres entrevistadas. Maria afirma não saber exatamente do que ela tem medo, mas estar em espaços abertos, com outras pessoas que não a conheçam a faz vivenciar um medo que a paralisa. Em sua entrevista, a participante nos falou sobre os medos que vivencia após a morte do seu filho.

Não tem esse negócio: “Ah, tu vai passear não sei aonde”. Porque, se eu for prum canto, é muita gente, é muita gente, sabe? E, pra mim, aquilo ali me tortura. Porque, pra mim, já vem, assim, uma coisa assim pra… sei lá, te agredir, te bater, te matar, eu já fiquei com a minha cabeça assim, sabe? (chora). (Maria, 45 anos, parda, serviços gerais, 2018)

Trata-se de um medo difuso (Barreira, 2013Barreira, C. (2013). Violência difusa, medo e insegurança: as marcas recentes da crueldade. Revista Brasileira de Sociologia, 1(1), 217-242. doi: 10.20336/rbs.30
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), em que qualquer espaço ou relação estabelecida a faz ter a sensação de risco iminente, como se ela ou seus familiares fossem os próximos a morrer. Nesse panorama, o medo e a insegurança assumem distintos significados e formas, operando de modos imensuráveis e incontroláveis. Nos territórios pesquisados, somam-se ao medo e à insegurança generalizados a forte atuação de grupos criminosos e os altos índices de homicídio e violências que os assolam cotidianamente (Paiva, 2019Paiva, L. F. S. (2019). “Aqui não tem gangue, tem facção”: as transformações sociais do crime em Fortaleza, Brasil. Caderno CRH, 32(85), 165-184. doi: 10.9771/ccrh.v32i85.26375
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).

Nesse contexto, a ausência de responsabilização legal dos perpetradores dos homicídios é um aspecto que pode repercutir na revitimização das famílias, produzindo inserção de outros membros familiares em um circuito de morte (Rodrigues & Sá, 2015Rodrigues, H. S. J., & Sá, L. D. (2015). Coração de mãe é terra que ninguém anda: um estudo das redes, “tramas” e conflitos de mães em luto nas favelas à beira-mar. RBSE - Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, 14(40), 37-45. Recuperado de http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/21397
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). Muitas vezes, aqueles que cometeram o homicídio moram próximo às famílias vitimadas, o que contribui para intensificar o sentimento de medo ou mudanças de endereço. Frequentemente, “o medo impede que as pessoas acionem os meios legais, pois se assim o fizerem podem ser também assassinadas” (Santos, 2007Santos, J. E. F. (2007). Homicídio entre jovens de uma periferia de salvador, Bahia: um relato de experiência sobre a violência e o desenvolvimento humano. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, 17(3), 72-84. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12822007000300008
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, p. 79). Desse modo, o medo opera em conjunto com a descrença no sistema criminal por parte dos familiares (Costa, Njaine, & Schenker, 2017Costa, D. H., Njaine, K., & Schenker, M. (2017). Repercussões do homicídio em famílias das vítimas: uma revisão da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, 22(9), 3087-3097. doi: 10.1590/1413-81232017229.18132016
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). Maria e seus familiares conhecem os perpetradores do homicídio de seu filho, que residem próximo à sua casa e chegaram a ameaçar outros membros da família: “a gente também foi ameaçado ali onde nós mora. Tava todo mundo ameaçado mesmo” (Maria, 45 anos, parda, serviços gerais, 2018).

Algumas das mães não receberam ameaças explícitas, embora tenham ocorrido atividades consideradas suspeitas por estas. Como é o caso de Felipa, que, após a mudança de domicílio, foi procurada por homens que não a conheciam no seu antigo endereço. Fato que também ocorreu com Anastácia, que afirmou ter sentido medo por ter sido procurada por homens em uma moto todas as noites na esquina de sua antiga casa, logo após a morte de seu filho. Essas narrativas nos dão elementos para pensarmos o contexto de acirramento das violências urbanas vivenciadas cotidianamente por essas mães.

Além disso, muitas dessas mulheres experienciam, em seus territórios, os limites impostos pelas facções para transitar pelo bairro. Com isso, andar pelo território, assim como falar, tornam-se ações perigosas. O medo passa a operar em seus cotidianos, restringindo suas possibilidades de ser e de viver.

Eu num quero, sabe? Ter esses… muito, muito essas conversa, muito esses movimento não que eu tenho medo. Não sei, não sei, não sei, ainda não descobri um porquê. Só vem a sensação e de muito medo, como se tivesse alguém na tuas costas, sabe? Aquela coisa assim, como que diz assim “eu vou fazer contigo também, vou te pegar, vou fazer isso contigo”, você fica bem assustada. (Maria, 45 anos, parda, serviços gerais, 2018)

Conforme apontado por Passos e Carvalho (2015Passos, L. M., & Carvalho, A. M. P. (2015). Medo e insegurança nas margens urbanas: uma interpretação do “viver acuado” em territórios estigmatizados do Grande Bom Jardim. O Público e o Privado, 1(26), 233-259. Recuperado de http://www.seer.uece.br/?journal=opublicoeoprivado&page=article&op=view&path%5B%5D=1371
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), predomina em territórios marginalizados e estigmatizados como perigosos o que as autoras denominam de “viver acuado”, situação em que preponderam as sensações de desproteção e risco iminente. Diante desse panorama, muitas vezes essas mulheres sentem medo de perder outros filhos ou netos, empenhando-se em tentativas de evitar outras mortes.

Adelina relata que, ao perder o filho, imediatamente, resolveu todas as burocracias para o enterro ser realizado o quanto antes, pois temia que o filho mais novo, que residia em outro estado por estar sob ameaça, decidisse regressar ao Ceará: “quando ele soube da morte do irmão, ele queria vir pra participar do velório, e eu não deixei, disse: ‘não! Não venha’” (Adelina, 43 anos, parda funcionária pública, 2018). Mariane, ao falar sobre como tem sido a sua vida após a morte dos filhos, afirma: “é só preocupação com os outros, né” (Mariane, 59 anos, parda, costureira, 2018). Muitas vezes, torna-se necessário calar diante das dores como forma de proteger os que ficaram, haja vista que impera nos territórios habitados a “lei do silêncio”, que intimida as denúncias e delações (Misse, 1999Misse, M. (1999). Malandros, marginais e vagabundos & a acumulação social da violência no Rio de Janeiro (Tese de Doutorado). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.). Assim, a imposição do medo que advém de possíveis retaliações consiste em um dos principais motivos para as inexpressivas taxas de denúncias. Soma-se a isso a baixa confiança da população na polícia e a intimidação moral em “ser um delator”, consistindo este último um importante fator para essas taxas serem baixas, tendo em conta o estigma de deslealdade que acompanha aquele que rompe a lei do silêncio imposta pelas facções. O medo atua como operador político, ao passo que regula não apenas os modos de sociabilidade dos sujeitos e suas relações com os territórios em que vivem, mas também age na produção de subjetividades acuadas (Barros, Paiva, Rodrigues, Silva, & Leonardo, 2018Barros, J. P. P., Paiva, L. F. S., Rodrigues, J. S., Silva, D. B., & Leonardo, C. S. (2018). “Pacificação” nas periferias: discursos sobre as violências e o cotidiano de juventudes em Fortaleza. Revista de Psicologia, 9(1), 117-128. Recuperado de http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/32862
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).

Desse modo, a intensa sensação de medo pode levar essas mães e familiares ao isolamento. Isolar-se surge como uma forma de lidar tanto com o medo em decorrência do risco que os outros e as diferentes situações passam a representar em suas vidas como com a ausência do filho morto. Para Maria, a experiência de isolamento estava relacionada à sensação de medo. As outras pessoas se tornaram possíveis ameaças não apenas pela insegurança vivida no território, mas também pelas perguntas que elas poderiam fazer acerca da morte, como se essas perguntas fizessem Maria entrar em contato com a dor que negava acessar: “se tiver muita gente aqui e tiver alguém mais assim, eu evito, procuro fazer alguma coisa, porque podem me perguntar alguma coisa que eu não vou gostar, e eu também não vou responder, prefiro ficar calada” (Maria, 45 anos, parda, serviços gerais, 2018).

Ensimesmar-se também surge como uma das principais alternativas contra a intensificação da violência. Mariane afirmou não confiar nas pessoas de seu bairro e não se sentir segura, de tal modo que compartilha com poucas amigas as dores relacionadas à perda do filho. Afastar-se do seu território e ocupar outros lugares é uma das formas que a faz se sentir mais tranquila: “eu não saio pra canto nenhum, só a viagem que eu vou, é só pro interior, quando eu vou lá pra casa da… de uma amiga minha, que mora lá também, que é muito minha amiga também” (Mariane, 59 anos, parda, costureira, 2018). A mãe afirma, ainda, ter modificado sua relação com o trabalho. Após a morte do filho, ela começou a trabalhar em casa com costura, passando mais tempo em domicílio e restringindo as trocas e os relacionamentos com outras pessoas.

Uma das dimensões do medo se dá na sua atuação como forma de controle dos corpos dessas mulheres e seus modos de circulação e ocupação dos espaços públicos, o que se relaciona diretamente ao isolamento, uma vez que, para Arendt (1989Arendt, H. (1989). Origens do totalitarismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras.), ser visto e ouvido no contexto social é requisito fundamental para a vida pública e política dos sujeitos. O isolamento dos sujeitos, então, se relaciona à ruína da vida pública, uma vez que a despotencialização da ação política produz o isolamento (Arendt, 1989Arendt, H. (1989). Origens do totalitarismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras.). No caso das mães deste estudo, o isolamento opera como produto de diversas forças que visam à despotencialização dessas mulheres para a ocupação dos espaços públicos políticos, forças que objetivam calar suas dores, que pretendem, pelo sofrimento, impedi-las de compartilhar a construção de um comum social e político.

Após a morte do filho, Esperança afirmou vivenciar intensa vontade de calar, não falar sobre a dor de sua perda com outras pessoas, de modo a “nunca conversar com ninguém” (Esperança, 48 anos, branca, cuidadora de crianças, 2018). Em sua forma de se expressar, destacavam-se as sensações de indignação pela morte do filho. Esperança afirmou que ninguém poderia compreender a dor que ela estava sentindo. E então, calar-se e isolar-se foi a forma de lidar com a falta, recluindo-se no quarto do filho, chorando abraçada com suas roupas e conversando sozinha, imaginando que ele a ouvia. Segundo Rodrigues e Sá (2015Rodrigues, H. S. J., & Sá, L. D. (2015). Coração de mãe é terra que ninguém anda: um estudo das redes, “tramas” e conflitos de mães em luto nas favelas à beira-mar. RBSE - Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, 14(40), 37-45. Recuperado de http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/21397
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), em um estudo sobre o sofrimento de mães em luto pela perda de seus filhos nas periferias de Fortaleza, diversas são as influências das perdas nas relações familiares e pessoais que podem atuar na produção de silêncios, distâncias e tensões. Vale ressaltar que os sentimentos das mães, ao vivenciarem suas perdas, por vezes são ambíguos, haja vista que, embora buscasse a experiência de isolamento, Maria também desejava poder dividir sua dor com outras pessoas, de falar sobre isso abertamente:

Porque eu pensei, “meu Deus, será que um dia, que Deus vai iluminar uma pessoa pra conversar comigo um pouquinho?” Aí eu disse, “Oh Senhor, bota uma pessoa pra conversar comigo meno dois minuto, pra mim já era importante e pra mim tá muito, sendo gratificante. Eu agradeço de coração. (Maria, 45 anos, parda, serviços gerais, 2018)

Já Anastácia vivenciou de modo intenso a solidão, por sentir que não tinha com quem dividir sua dor. O companheiro trabalhava, a filha saía com os amigos, e restava a ela ficar sozinha com as lembranças do filho. Com a mudança de bairro, ocorrida após o assassinato, Anastácia vivenciou de maneira intensa a sensação de isolamento e solidão, tendo em conta a distância entre sua nova residência e o bairro em que morava anteriormente, local onde obtinha suporte de amigos, de familiares, da igreja e de equipamentos sociais: “aí eu só vivia chorando dende casa, ia lá pro quarto, ia olhar as foto dele, as carta, umas cartas que ele passou, pra [nome da nora], que ele deu pra ela” (Anastácia, idade não informada, parda, artesã, 2018).

A solidão, de acordo com Arendt (1989Arendt, H. (1989). Origens do totalitarismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras.), consiste em minar o potencial criativo dos sujeitos, transcendendo, portanto, a esfera pública e atingindo a esfera privada de suas vidas (Arendt, 1989Arendt, H. (1989). Origens do totalitarismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras.). Dá-se pelo ensimesmamento e pela anulação da possibilidade de que essas mulheres percebam outros possíveis, outras formas de andar na dor que as assolam. Como se pode observar, medo, isolamento e solidão atuam tanto como elementos concernentes ao processo de enlutamento nas singularidades de cada mãe (medo de perder outros filhos, medo das ameaças sofridas) como também participam da operação necropolítica, como reguladores dos comportamentos individuais e coletivos.

O medo funciona como um operador não apenas do isolamento, mas também do silenciamento dessas mulheres. O silenciamento transcende o ato de não falar sobre um evento traumático como as mortes dos filhos, mas surge como uma expressão da colonialidade, atingindo sobretudo mulheres negras (Kilomba, 2019Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, RJ: Cobogó.). Constitui-se a partir de forças históricas e sociais sistemáticas que operam na produção de subjetividades marcadas pela subalternização das suas existências e objetificação de seus corpos, destituídos de valor e inscritos pelas violências sofridas. Essas forças se relacionam com a reprodução de uma segmentação racista, endossando discursos que reforçam que as vidas dessas mulheres e de seus filhos são merecedoras das condições precárias em que vivem (Butler, 2015Butler, J. (2015). Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.).

Acerca da legitimação das mortes juvenis e da produção de (in)visibilidade que permeiam as existências tanto dos jovens como de seus familiares, Maria narra uma situação vivida por ela, em que, logo após a morte do seu filho, um vizinho a abordou proferindo um discurso alinhado a uma perspectiva legitimadora do homicídio:

“Quando a mãe tem um filho, que ele nasce com dor na barriga de ser vagabundo, ele morre sendo vagabundo”; essas coisa, a gente escuta, é uma coisa que você olha pra pessoa, você não tem resposta, você não tem resposta, você procura, você não tem. Você tem o quê? Você tem vergonha, você tem medo, você se sente pra baixo, você perde o chão. (Maria, 45 anos, parda, serviços gerais, 2018)

A invisibilização das existências desses jovens também recai sobre suas mortes e as dores das mães, ocorrendo uma articulação entre legitimidade da morte juvenil e ilegitimidade do sofrimento das mães. Desse modo, a legitimação das mortes não apenas intensifica o sofrimento psicossocial que caracteriza o cotidiano das mulheres após as perdas dos jovens, mas também o processo de silenciamento vivido por elas. À medida que a morte é vista como destino esperado e merecido, o sofrimento em decorrência dessa morte passa a ser vivido como algo que envergonha, que produz medo e as machuca. Pela vergonha, finda-se silenciando em suas dores. Esse dado corrobora com pesquisas feitas anteriormente, como a de Costa, Schenker, Njaine e Souza (2017Costa, D. H., Schenker, M., Njaine, K., & Souza, E. R. (2017). Homicídios de jovens: os impactos da perda em famzzzílias de vítimas. Physis, 27(3), 685-705. doi: 10.1590/s0103-73312017000300016
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), que apontam que determinadas famílias podem se sentir privadas de vivenciar o luto, haja vista que, muitas vezes, a morte dos filhos “envolvidos” é socialmente desejada.

O sofrer em silêncio também constitui as pequenas violências cotidianas de que nos fala Venna Das (2011Das, V. (2011). O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, (37), 9-41. doi: 10.1590/S0104-83332011000200002
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), às quais essas mulheres estão à mercê. Muitas vezes, essas mães estão sozinhas e caladas em suas dores e calam diante de processos macroestruturais e de suas expressões no cenário micropolítico. Processos esses que lhes impõem a sensação de que há algo de errado em sofrer pela morte dos filhos, pois eles eram “bandidos” e, no senso comum, “ser bandido” se torna sinônimo de desumano, descartável. A necropolítica, como tecnologia, nos possibilita olhar não apenas para a morte, mas como ela acontece de modo radicalizado e racializado nas periferias do capitalismo, vitimando, sobretudo, corpos descendentes de afro-ameríndios. Cria-se, aqui, o que Mbembe intitulou de escravos contemporâneos (Mbembe, 2017Mbembe, A. (2017). Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona.).

Tais práticas estiveram presentes nas narrativas das mães dos jovens envolvidos, como é o caso de Maria, Anastácia e Tereza. As vidas dessas mulheres, assim como suas dores, precisam, pois, resistir a processos que visam a seus silenciamentos. Lorde (2019Lorde, A. (2019). Irmã outsider: ensaios e conferências. Belo Horizonte, MG: Autêntica.) aponta, a partir de sua experiência singular como mulher, que os silêncios se dão em decorrência dos medos vividos pelas mulheres, estabelecendo-se como forma de proteção de si.

Em entrevista, Maria falou da impossibilidade de esperar a morte de um filho, mesmo que este esteja ameaçado de morte. Em suas palavras: “ele tava sendo ameaçado. Mas você não espera. É uma coisa que você não espera” (Maria, 45 anos, parda, serviços gerais, 2018). A morte surge, então, como um evento para o qual inexiste a possibilidade de se preparar emocionalmente, mesmo em contextos de ameaça e risco, e com o qual cada membro familiar deverá encontrar uma forma de lidar, podendo também ter a própria família como suporte. Conforme pudemos perceber, as sensações de medo, isolamento, solidão e silenciamento operam de forma conjunta, produzindo novas formas de sociabilidade dessas mulheres e de subjetivação, que se dão a partir das marcas que ficam após as mortes dos filhos. O isolamento, a solidão e o silenciamento surgem em face da experiência de perigo iminente de outras mortes que precisam ser evitadas e se dão de modo articulado com o medo que atua como operador político.

Considerações finais

Conforme argumentamos ao longo deste artigo, as repercussões dos homicídios são diversas e se dão em diferentes âmbitos da vida não só das mães dos jovens, como também dos demais membros familiares. Ouvi-las é importante, uma vez que pode fornecer pistas sobre seus modos de subjetivação, possibilitando discutir o lugar político que elas têm ocupado. Mantivemos o compromisso de mostrar de que modo os sofrimentos dessas mulheres se articulam a processos políticos, históricos e sociais, demarcando as formas distintas pelas quais operam as diferentes opressões que se interseccionam a partir dos marcadores sociais de gênero, classe e raça. Essa perspectiva interseccional nos auxiliou a visibilizar os sofrimentos dessas mulheres a partir dos imbricamentos das distintas opressões vividas por elas em suas trajetórias. Além disso, no intuito de rompermos com perspectivas individualizantes das dores advindas das perdas, abordamos o sofrimento em sua dimensão psicossocial, que se dá na confluência entre os processos singulares (de cada sujeito) e os coletivos (relacionados aos processos macropolíticos), englobando questões como a falta de reconhecimento social, os processos de exclusão e de violação de direitos.

Desse modo, compreendemos a articulação de diversas forças nos agenciamentos coletivos que produzem os sofrimentos, destacando não apenas os processos de adoecimento psíquico e físico, já tão abordados em estudos sobre os lutos de mães e familiares, mas entendendo que estes se dão de forma articulada com a política de matabilidade de corpos negros e periféricos, cujos enquadramentos reiteram imperativos de que são vidas que não valem a pena serem vividas.

As diferentes repercussões discutidas, como as alterações nas dinâmicas familiares; os processos de culpabilização vividos pelas mães; o medo que opera psicossocialmente produzindo isolamentos, silenciamentos e solidão; as desterritorializações produzidas a partir das perdas e a convivência diária com as dores constituem diferentes vetores que compõem o mosaico do sofrimento psicossocial dessas mães. Operam, portanto, como expressões do genocídio da população negra e pobre, um dos modos de “fazer morrer” sem que ocorra o assassinato direto dessas mulheres.

Referências

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  • Barreira, C. (2013). Violência difusa, medo e insegurança: as marcas recentes da crueldade. Revista Brasileira de Sociologia, 1(1), 217-242. doi: 10.20336/rbs.30
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2021
  • Aceito
    27 Jan 2022
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