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O medo e o colaboracionismo neoliberal: “psicologia das massas” do consentimento em tempos sombrios

Fear and neoliberal collaborationism: “mass psychology” of consent in dark times

La peur et le collaborationnisme néolibéral : la « psychologie des masses » du consentement en période sombre

El miedo y el colaboracionismo neoliberal: “psicología de las masas” del consentimiento en tiempos sombríos

Resumo

Neste artigo, apresentam-se algumas contribuições para a investigação do medo como motor da colaboração - transformada em colaboracionismo - no neoliberalismo. Para isso, inicialmente, são recuperadas algumas ideias de Christophe Dejours, salientando o papel do trabalho e do medo no funcionamento da máquina neoliberal. Visto que essa visão não contempla algumas questões a respeito da natureza do engajamento produzido na coletividade, retoma-se, em seguida, a análise freudiana da psicologia das massas em busca de respostas. Por fim, após detectar os limites de tal análise, excessivamente centrada na figura do Pai (ou no líder), este estudo recorre a Jacques Lacan com vistas à elaboração de uma nova psicologia das massas mais adequada ao que se parece assistir na atualidade.

Palavras-chave:
medo; neoliberalismo; psicanálise; trabalho

Abstract

This paper contributes to the investigation of fear as a driver of collaboration-transformed into consent-in neoliberalism. To do so, it first resumes some of Christophe Dejours’ ideas, highlighting the role of work and fear in the neoliberal machine. Since these ideias disregard some questions about the nature of collective engagement, the text turns to Freud’s analysis of mass psychology in search for answers. Finally, after showing the limits of such analysis, excessively focused on the figure of the Father (or the leader), it draws on Jacques Lacan to elaborate a new mass psychology more adequate to current society.

Keywords:
fear; neoliberalism; psychoanalysis; work

Résumé

Cet article contribue à l’étude de la peur comme moteur de la collaboration - transformée en collaborationnisme - dans le néolibéralisme. Pour ce faire, il reprend d’abord quelques idées de Christophe Dejours, soulignant le rôle du travail et de la peur dans la machine néolibérale. Comme ces idées ne tiennent pas compte des questions sur la nature de l’engagement collectif, le text se tourne vers l’analyse freudienne de la psychologie des masses pour trouver des réponses. Enfin, après avoir montré les limites d’une telle analyse, excessivement centrée sur la figure du Père (ou du leader), il s’appuie sur Jacques Lacan pour élaborer une nouvelle psychologie des masses plus adéquate à la société actuelle.

Mots-clés :
peur; néolibéralisme; psychanalyse; travail

Resumen

En este artículo se presentan algunas contribuciones a la investigación del miedo como motor de la colaboración -transformada en colaboracionismo- en el neoliberalismo. Para ello, en un primer momento son tomadas algunas ideas de Christophe Dejours que destacan el papel del trabajo y del miedo en el funcionamiento de la máquina neoliberal. Dado que esta visión no abarca algunas preguntas sobre la naturaleza del compromiso producido en la colectividad, se utiliza el análisis freudiano de la psicología de masas en busca de respuestas. Por último, tras detectar los límites de tal análisis excesivamente centrado en la figura del Padre (o del líder), este estudio recurre a Jacques Lacan para elaborar una nueva psicología de las masas más adecuada a lo que parece haber hoy en día.

Palabras clave:
miedo; neoliberalismo; psicoanálisis; trabajo

Em 13 de julho de 1942, o 101º Batalhão de Reserva da Polícia Alemã, composto por reservistas de meia idade - homens de família das classes trabalhadora e média-baixa de Hamburgo, considerados inadequados para o Exército e sem qualquer experiência prévia no território alemão ocupado -, chegou à vila judia de Józefów, na Polônia, para realizar o que seu comandante, o major Wilhelm Trapp, consternado, qualificou como “tarefa terrivelmente desagradável”: liquidar, ali mesmo, todos os idosos, mulheres e crianças (os homens aptos ao trabalho forçado seriam capturados). Como se a surpresa da tarefa soturna não bastasse, Trapp arrematou as instruções - que, reiterou, haviam sido dadas a ele pelo alto comando - com uma proposta ainda mais inusitada: aqueles que não se sentissem aptos a fazer o serviço poderiam dar um passo para trás. Apesar da oferta, apenas cerca de doze, dentre pouco menos de quinhentos homens, se recusaram a participar do massacre, que inaugurou uma série de outros ataques, totalizando 83 mil vítimas em pouco mais de um ano (Browning, 1992Browning, C. (1992). Ordinary Men: Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland. London: Penguin Books.).

Uma das pedras de toque dessa anuência macabra, mostra-nos seu meticuloso reconstituidor, o historiador Christopher Browning, foi uma espécie de coesão pelo medo da ausência de reconhecimento por parte dos pares. Nem seleção cuidadosa para a tarefa, propensão das personalidades à violência, carreirismo, temor ante a punição da desobediência, obediência cega à autoridade ou pura doutrinação nazista: nenhuma dessas explicações poderia abarcar o fenômeno de grupo verificado em Józefów. O que teria ocorrido seria um “conformismo ao grupo” (Browning, 1992Browning, C. (1992). Ordinary Men: Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland. London: Penguin Books., p. 184), aspecto bem menos explorado do que o peso da autoridade nos estudos centrais de psicologia social - como o de Stanley Milgram, relatado em Obediência à autoridade. De acordo com Browning (1992Browning, C. (1992). Ordinary Men: Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland. London: Penguin Books.), o major Trapp era uma figura frágil, que invocava as ordens do alto comando a fim de chancelar as suas. O que, de fato, parece ter engendrado a mórbida cooperação entre aqueles “homens comuns [ordinary men]” foi o temor do isolamento, da rejeição e do ostracismo e o medo de cada um ser considerado covarde.

Que o medo é um afeto poderoso, o qual nos toma de assalto e por completo, a psicologia clássica já mostrou suficientemente. Ele carrega o peso da ancestralidade, como intuiu Charles Darwin (1872/2000Darwin, C. (2000). A expressão das emoções no homem e nos animais (Leon de Souza Lobo Garcia, Trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1872), herança das experiências inaugurais de fuga e autopreservação da espécie, cujos “esforços imensos” (p. 263) ainda se fazem sentir em nossa carne a cada vez que o experimentamos. Daí a insistência de William James (1890/1983James, W. (1983). The principles of Psychology. Cambridge: Harvard University Press. (Trabalho original publicado em 1890)) no caráter somático desse afeto e na caracterização de toda emoção como, fundamentalmente, uma manifestação de corpo.

Que o medo possa ser motor de tal anuência macabra, por outro lado, é algo que se apresenta ainda como enigma, cuja chave parece repousar na espécie de engajamento que se produz entre os sujeitos - que a psicologia tradicional, enredada entre as fronteiras do indivíduo e da consciência e presa a uma separação radical entre sociedade e indivíduo, não foi capaz de desvendar. Foi a partir do momento em que tais fronteiras começaram a ser dissolvidas que a natureza do laço se tornou menos opaca. Como Theodor Adorno mostrou, as análises freudianas representaram o movimento fundamental dessa dissolução, que permitiu que elas encontrassem “o social . . . nas células psicológicas mais profundas” (Adorno, 1955/2015Adorno, T. W. (2015). Sobre a relação entre sociologia e psicologia. In T. W. Adorno, Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (Verlaine Freitas, Trad., pp. 71-135). São Paulo, SP: Unesp. (Trabalho original publicado em 1955), p. 130). Em outros termos, Freud nos ensinou que é por meio da análise da natureza do laço que se forma entre os membros do grupo ou da massa que somos conduzidos à própria natureza deles. Em Psicologia das massas e análise do eu (Freud, 1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1921)), ele mostrou que se trata de um vínculo libidinal, de amor fundamentalmente. Todavia, o que vimos acima foi uma espécie de coesão pelo medo. Caberia, assim, indagar: poderia de fato ser esse o motor de coesão? Se sim, em que termos isso operaria?

Essas questões se mostram ainda mais urgentes se notarmos que elas não derivam de um mero interesse histórico, e sim de uma necessidade de diagnóstico de nossos tempos. O liberalismo moderno, constitutivo das sociedades contemporâneas, deve seu funcionamento ao medo. Como Adorno percebeu, o que sustenta o comportamento econômico e racional que se quer obter do indivíduo em tais sociedades não é, na verdade, o cálculo ou o interesse, mas o medo. Em outros termos, “o motivo subjetivo da racionalidade objetiva é o medo”, o qual, por isso, “transformou-se historicamente em uma segunda natureza” (Adorno, 1955/2015Adorno, T. W. (2015). Sobre a relação entre sociologia e psicologia. In T. W. Adorno, Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (Verlaine Freitas, Trad., pp. 71-135). São Paulo, SP: Unesp. (Trabalho original publicado em 1955), p. 77). É o temor de ser excluído desse mundo das trocas econômicas. Ainda, como notou Michel Foucault (2004Foucault, M. (2004). Nascimento da biopolítica (P. E. Duarte, Trad.) Lisboa: Edições 70.), é também o estímulo a se lançar a elas constantemente e pôr os indivíduos em perpétua situação de perigo o que caracteriza tais sociedades.

Com o advento do neoliberalismo, porém, o medo parece ter criado raízes ainda mais profundas nas formas de subjetivação. Conforme mostram Pierre Dardot e Christian Laval (2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo.), a implantação das novas formas de gestão, caracterizadas pela corrosão de direitos e pela intensificação do trabalho, deu-se pela exploração do medo e vem sendo mantida graças a ele. O que caracteriza o neoliberalismo, de acordo com os dois autores - e esta é a razão de se recuperar aqui a perspectiva desses autores, dentre a plêiade de caracterizações existentes (Andrade, 2019Andrade, D. P. (2019). O que é o neoliberalismo? A renovação do debate nas ciências sociais. Revista Sociedade e Estado, 34(1), 211-239. doi: 10.1590/s0102-6992-201934010009
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) -, é a produção, mediante tais formas de gestão, de um novo sujeito que “trabalhe para a empresa como se trabalhasse para si mesmo” (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo., p. 327). Não há, como havia nos tempos do liberalismo, qualquer distância entre sujeito e empresa ou instituição coercitiva: efetivamente, o que se assiste então é a colonização do desejo. Os autores indicam que o medo foi motor basal nesse processo, uma espécie de “alavanca ‘negativa’” (p. 226) a propelir à faina esse novo sujeito. Todavia, para eles, essa alavanca não explicaria sozinha a emergência desse sujeito, para cujo advento deveria concorrer ainda uma série de técnicas de gestão de si - que são catalogadas pelos autores.

Cabe, contudo, examinar com mais cautela o peso efetivo de tal “alavanca negativa” nesse novo sujeito neoliberal. Quem nos dá uma chave de investigação preciosa, cuja verdadeira argúcia e audácia foi apresentada pela fina análise do filósofo Paulo Arantes (2011Arantes, P. E. (2011). Sale boulot: Uma janela para o maior trabalho sujo da história. Uma visão no laboratório francês do sofrimento social. Tempo Social, 23(1), 31-66. doi: 10.1590/S0103-20702011000100003
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), é o psiquiatra e psicanalista Christophe Dejours. Ele enxergou no estudo de Browning as razões da cooperação maciça que não apenas possibilitaram o funcionamento da máquina nazista, mas, sobretudo, colocaram em movimento a máquina neoliberal. Graças à leitura do melhor da historiografia sobre o Holocausto e às discussões com o seu colega psiquiatra Joseph Torrente, Dejours pôde perceber o denominador comum daquelas máquinas infernais: o trabalho. O medo dos homens - de serem considerados covardes, isto é, de “não mais serem reconhecidos como homens por outros homens” (Dejours, 2009Dejours, C. (2009). Souffrance en France: La banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil., p. 123) - seria um dos principais motores desse modus operandi, hoje alçado a princípio de gestão, por isso é uma ameaça muito mais disseminada que antigamente. Assim, Dejours buscou mostrar a homologia entre a anuência macabra evidenciada por Browning e a banalização da injustiça e do sofrimento sociais a que todos assistimos desde a ascensão do neoliberalismo.

Essa chave de investigação permitiu identificar a importância de um eixo não tão explorado nas análises mais correntes dos fenômenos coletivos: o da relação estabelecida entre os membros do grupo, e não entre eles e a figura da liderança. Desde ao menos Weber e Freud - cujos trabalhos, indica Sennett (1992Sennett, R. (1992). The fall of public man. Nova York: W. W Norton & Company. ), forneceram os elementos para o exame da figura carismática -, é sobre o eixo o qual podemos chamar de vertical que parecem ter gravitado tais análises. Mesmo que a ligação entre os membros do grupo esteja longe de ser ignorada, o interesse sobre ela parece derivar, genética e analiticamente, do interesse pelo líder - como na análise freudiana da psicologia das massas. Estudos como o de Browning nos fazem ver que o que se estabelece entre os membros de um grupo não vem necessariamente a reboque da relação estabelecida com a autoridade, o que indica a importância da análise desse eixo que denominaremos horizontal. Tal importância é ainda mais reforçada se notarmos que a barbárie neoliberal - cujos efeitos avançam sobre as mais diversas nações (Peck, 2010Peck, J. (2010). Constructions of neoliberal reason. Oxford: Oxford University Press.), mostram-se evidentes nas produções culturais de nosso tempo (Viana, 2013Viana, S. (2013). Rituais de sofrimento. São Paulo: Boitempo.) e caminham a passos largos e autoritariamente em países como o Brasil (Andrade, 2020Andrade, D. P. (2020). Neoliberalismo autoritário no Brasil: Reforma econômica neoliberal e militarização da administração pública. Sens Public, 1(3), 1-28. doi: 10.7202/1079478ar
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) -, assenta-se não mais sobre a verticalidade fordista da obediência, mas, sim, sobre a horizontalidade pós-fordista da concorrência.

Este artigo apresenta algumas contribuições para a investigação do medo como motor da colaboração - transformada, como antes, em colaboracionismo - no neoliberalismo. Para isso, de início, a visão de Dejours exposta no referido livro é recuperada, salientando o papel do medo no funcionamento da máquina neoliberal. Visto que essa visão não contempla algumas questões a respeito da natureza do engajamento produzido na coletividade, é retomada, em seguida, a análise freudiana da psicologia das massas em busca de respostas. Por fim, após detectar os limites da análise de Freud, excessivamente centrada na figura do Pai (ou no líder), recorre-se a Lacan com vistas à elaboração de uma nova psicologia das massas mais adequada ao que se parece assistir atualmente.

O achado de Dejours e o medo como motor da máquina neoliberal

“Do nosso ponto de vista, o processo de mobilização de massa [itálicos nossos] na colaboração para a injustiça e para o sofrimento infligidos a outrem em nossa sociedade é o mesmo que permitiu a mobilização [itálico nosso] do povo alemão no nazismo” (Dejours, 2009Dejours, C. (2009). Souffrance en France: La banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil., p. 154): eis a tese que surpreende por seu arrojo, embora pareça a alguns mero despropósito, se não expediente grosseiro. É preciso, todavia, observar atentamente o paralelo assinalado por Dejours, que reside na identificação de um mesmo “processo de mobilização de massa”, isto é, uma sucessão de etapas e artifícios que resultaram em um engajamento de enormes proporções capaz de gerar (e gerir) sofrimento e injustiça. Como salienta Arantes (2011Arantes, P. E. (2011). Sale boulot: Uma janela para o maior trabalho sujo da história. Uma visão no laboratório francês do sofrimento social. Tempo Social, 23(1), 31-66. doi: 10.1590/S0103-20702011000100003
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), trata-se, com efeito, de um “tremendo achado de percepção histórica” (p. 31), que, entretanto, permanece à sombra desde a época de sua enunciação, reputado amiúde como analogia disparatada.

O que chama a atenção de Dejours (2009Dejours, C. (2009). Souffrance en France: La banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil.) é um consentimento maciço que se traduz em colaboração funesta tanto agora como antigamente. Assim, para esse autor, o silêncio generalizado diante das atrocidades nazistas seria da mesma natureza que o estiolamento cada vez mais global das reações de indignação frente à injustiça social, seja por parte daqueles que aceitam padecer, seja por parte dos que consentem em infligir sofrimento. Com a diferença de que, na realidade neoliberal, o colaboracionismo estaria mais imediatamente assentado sobre motivos econômicos - ante os quais Dejours apresenta uma constatação tão óbvia quanto pungente: “a maquinaria da guerra econômica não é, todavia, um deus ex machina. Funciona porque homens e mulheres, em massa, consentem em participar dela” (Dejours, 2009Dejours, C. (2009). Souffrance en France: La banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil., p. 15). Assim, o autor, em sua busca dos “motores [ressorts] subjetivos do consentimento” (p. 16), nota que é preciso começar inquirindo a todos, acreditando que a maioria de nós tem parte nesse processo de geração de injustiça e sofrimento.

Na visão dejouriana, tal processo é desencadeado pela vivência do sofrimento advindo do mundo do trabalho em sua forma contemporânea - isto é, esse “novo mundo do trabalho moldado pela racionalidade neoliberal dominante” (Arantes, 2011Arantes, P. E. (2011). Sale boulot: Uma janela para o maior trabalho sujo da história. Uma visão no laboratório francês do sofrimento social. Tempo Social, 23(1), 31-66. doi: 10.1590/S0103-20702011000100003
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, p. 38). Mais especificamente, a elucidação da indiferença e da tolerância ao horror deveria ser buscada na natureza do engajamento produzido pelo trabalho. Dessa forma, diferentemente das interpretações mais correntes, calcadas no declínio dos valores ou da força da ideologia, tal elucidação não viria “da análise moral e política, mas da análise psicológica” (Dejours, 2009Dejours, C. (2009). Souffrance en France: La banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil., p. 199). Apenas o trabalho, com seu poder de arregimentar singularidades e conferir valor a um objetivo comum, por mais vil que ele se revele, teria sido capaz de promover a mobilização subjetiva da massa para a realização do horror.

Assim, uma colaboração dessas proporções não se explicaria, como quis a difundida vertente intencionalista, por um fanatismo de fundo perverso. De forma impressionante, Browning (1992Browning, C. (1992). Ordinary Men: Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland. London: Penguin Books.) revela a ausência de perversão ou erotismo nas perpetrações dos executores comuns: nenhum prazer, excitação ou satisfação nas matanças daqueles soldados enviados ao leste, mas sobriedade. Por exemplo, esse autor relata que os perpetradores desenvolveram técnicas destinadas a racionalizar a matança, como empilhar os judeus prestes ao abate sobre os que já haviam sido abatidos ou atirar em um ponto preciso do pescoço das vítimas a fim de, ao mesmo tempo, garantir a morte e evitar a sujeira. Em suma, era um “trabalho [itálico nosso] de extermínio” (Dejours, 2009Dejours, C. (2009). Souffrance en France: La banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil., p. 142). Não se trata, portanto, de um delírio que gera fanatismo, mas de uma indiferença laboral que se transforma em norma - o que faz incidir o olhar não sobre o perverso que arquiteta, e sim sobre a massa que colabora.

Dejours defende que tais fenômenos até então enigmáticos podem ser trazidos à luz graças aos achados da psicodinâmica do trabalho. A noção fundamental para a compreensão dessa mobilização é a de zelo, que designa tudo o que o sujeito acrescenta às prescrições de uma tarefa - ou ainda, tudo o que ele põe de si. Essa noção, por sua vez, só pode ser entendida se retomarmos a distinção entre os conceitos de trabalho prescrito e trabalho real, inventada pela ergonomia francesa e incorporada à psicodinâmica do trabalho. Ao passo que o primeiro conceito designa tudo o que pode ser determinado sobre as tarefas - tempo, espaço, meios de execução, pessoas que irão realizá-las -, o segundo se refere à atividade que escapa a essa determinação (Daniellou, Laville, & Teiger, 1989Daniellou, F., Laville, A., & Teiger, C. (1989). Ficção e realidade no trabalho operário. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 17(68), 7-13. Recuperado de https://bit.ly/2DLyQYQ
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). O que os ergonomistas descobriram é que, de fato, trabalhar é transcender o prescrito. Mesmo o mais elementar gesto de um operador requer uma “atividade mental” cuja complexidade as normas não podem levar em consideração; ademais, trata-se de algo profundamente singular, que, por conseguinte, escapa à normatização. Assim, trabalhar é suplantar o que pode ser determinado - ou, o que quer dizer o mesmo, é impossível trabalhar efetivamente respeitando o que é prescrito escrupulosamente (Dejours, 2009Dejours, C. (2009). Souffrance en France: La banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil.). O zelo, portanto, designa a mobilização da subjetividade, da inteligência e da engenhosidade dos sujeitos necessárias ao trabalhar.

Lendo os estudos sobre o Holocausto com base em tais descobertas, Dejours pôde identificar a eficácia do sistema nazista no grau de mobilização do zelo de seus operadores em proveito do horror. Mobilização do zelo, e não disciplina dos operadores, pois ela não teria sido capaz de gerar os inúmeros “macetes” (o trabalho real) que o morticínio em massa, feito o mais rapidamente possível, de forma coordenada, requeria - como se viu no exemplo de Browning destacado acima. Um tal fordismo da morte não teria ocorrido sem o zelo dos perpetradores como móvel da cadência infernal. Dejours (2009Dejours, C. (2009). Souffrance en France: La banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil.) afirma que “se eles tivessem se prendido à disciplina estrita, o sistema teria sido paralisado” (p. 75). Ao contrário do que parece, portanto, disciplina e ordem não correspondem aos pistões centrais da máquina nazista.

Mesmo que se consiga enxergar o zelo como um desses pistões, ele não é suficiente para conferir aos grupos de operadores do nazismo a coordenação mortífera. Nesse ponto é preciso evocar outra importante noção da psicodinâmica do trabalho: a de estratégias coletivas de defesa. Nela, não se revelam as ressonâncias da ergonomia, mas da psicanálise de grupos, que detectou processos coletivos defensivos frente a angústias mais ou menos arcaicas ou intensas. Em suas pesquisas com os trabalhadores, Dejours percebeu que, por trás dos comportamentos peculiares verificados em variados ofícios, havia angústia e medo. Por exemplo, as demonstrações de virilidade e o alto índice de alcoolismo entre os operários da construção civil corresponderiam a expedientes de domínio simbólico sobre os perigos que sempre espreitam o canteiro de obras. Seriam, assim, estratégias defensivas contra o medo de acidentes e da morte, cuja ocorrência é muito frequente entre aqueles trabalhadores, embora represente um verdadeiro tabu, já que sua consideração constante paralisaria o trabalho. Como as defesas individuais, essas defesas coletivas representariam uma forma de fazer frente a um sofrimento que pode levar o sujeito a descompensações psicopatológicas. Porém, a organização do trabalho pode extrair valor disso. Usando novamente o caso da construção civil, ela não funcionaria se os trabalhadores não se vissem como capazes “de aguentar” - as cargas levantadas, as duras jornadas, as dores decorrentes de eventuais lesões, o sofrimento ante os acidentes. Dessa forma, deve-se notar que o medo - dos riscos, do não-reconhecimento da virilidade - corresponde a “um outro motor [ressort] possível da mobilização da inteligência no trabalho” (Dejours, 2009Dejours, C. (2009). Souffrance en France: La banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil., p. 76); em outros termos, outro pilar do sistema nazista, “sobretudo dos campos de trabalho, de concentração e extermínio” (p. 76).

Passando ao que mais nos interessa, a máquina neoliberal, segundo Dejours, seria movida também por esses dois motores, que seriam responsáveis pelo que ele denomina “banalização do mal”. Essa expressão, diferentemente de “banalidade do mal”, constatação arendtiana da frequência de comportamentos normopáticos, designa um processo que começa com a “manipulação política da ameaça” (Dejours, 2009Dejours, C. (2009). Souffrance en France: La banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil., p. 171). Tal manipulação gera sofrimento na massa, que, por sua vez, desencadeia as estratégias defensivas responsáveis por obnubilar a percepção dos indivíduos e, assim, gerar indiferença e tolerância ao horror. Em razão de sua importância, essas estratégias são catalogadas e descritas por Dejours - inflação do discurso da guerra, cinismo viril, ideologia do realismo econômico, racionalizações, clivagens. Embora o estágio inicial do processo de banalização se deva à ação dos “líderes da doutrina neoliberal” (Dejours, 2009Dejours, C. (2009). Souffrance en France: La banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil., p. 181), cujas personalidades não funcionam de maneira neurótica, mas geralmente perversa ou paranoica, os demais estágios, constituídos pelos colaboradores diretos e pela massa, calcam-se sobre estratégias (neuróticas) defensivas. Vê-se, assim, como elas são o cerne da tolerância às injustiças.

Percebe-se, ainda, como o medo se torna princípio de gestão. Destacamos o papel da manipulação da ameaça na mobilização da massa, mas é preciso deixar claro, como lembra Dejours (2009Dejours, C. (2009). Souffrance en France: La banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil.), que o medo também acomete os próprios gestores - medo de que suas dificuldades e sua incompetência venham à tona, de serem preteridos ou demitidos. Se bem dosado e combinado com o reconhecimento do trabalho bem feito, o medo se torna poderosa fonte de mobilização e, ao mesmo tempo, de uma individualização que “quebra a reciprocidade entre os trabalhadores, aparta o sujeito do sofrimento do outro . . . [e], sobretudo, aparta radicalmente os que sofrem a dominação no trabalho daqueles que estão longe desse universo . . .” (Dejours, 2009Dejours, C. (2009). Souffrance en France: La banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil., p. 68).

Ainda que tenha fornecido essa profícua chave de investigação, que revela o papel crucial do trabalho e do medo na geração da barbárie, Dejours não esclarece suficientemente a dinâmica psíquica que determina um tal engajamento mortífero. Ele enuncia com todas as letras que o grande enigma desse engajamento não repousa sobre o comportamento dos chefes, mas, sim, dos “executores” (Dejours, 2009Dejours, C. (2009). Souffrance en France: La banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil., p. 73), isto é, da “conduta de massa” (p. 158), deixando claro que é para esse eixo horizontal que devemos atentar. Igualmente, parece certo, para o autor, que tal engajamento seja de natureza defensiva - o que, de resto, parece o aproximar da tradição psicanalítica inglesa, a qual teve nos trabalhos de Wilfred Bion, Elliott Jaques e Isabel Menzies Lyth, todos sob forte influência do kleinismo, os marcos fundamentais da concepção da dinâmica do grupo como determinada pelos mecanismos de defesa contra angústias geralmente arcaicas. Dejours, porém, não se detém suficientemente sobre a dinâmica daqueles engajamentos defensivos. Por isso, certas passagens de seu livro, quando cotejadas, mostram-se ambíguas. Por exemplo, a certa altura, ele reputa a uma “atividade sublimatória”, “totalmente deserotizada” (Dejours, 2009Dejours, C. (2009). Souffrance en France: La banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil., p. 143), o trabalho encarado como meramente instrumental dos executores; em outro momento, ao analisar algo também defensivo - o comportamento dito normopático dos indivíduos -, atribui-o a uma “clivagem da personalidade [itálicos nossos]” (p. 171). É preciso explicar esses pontos: sublimação ou defesa1 1 Embora a tradição psicanalítica costume distinguir defesa e sublimação, Anna Freud (1937) inclui a última em sua catalogação dos mecanismos de defesa (p. 47). Dejours, porém, no livro em questão, não deixa claro se de fato concebe a sublimação como defesa e em que termos. , recalque ou recusa, o que opera e como isso se dá nas situações de trabalho examinadas? Em outro momento, o autor até mesmo faz uma pergunta fundamental - “quais são os processos psíquicos implicados nessa alquimia que transforma a abominação em sublimação?” (p. 143) -, sem, no entanto, respondê-la. A investigação desse aspecto, não obstante, parece crucial, já que implica concordar com a dinâmica do engajamento. Por mais que se considere o escopo de análise mais amplo a que se propõe o ensaio dejouriano, não se pode esquecer que tal análise psicodinâmica do trabalho talvez pudesse se deter um pouco mais, justamente, sobre a psicodinâmica em jogo no processo de banalização.

Além disso, parece que a noção de defesa foi bastante inflacionada por Dejours. Isso nos remete à crítica feita por Laplanche e Pontalis acerca do destino da noção de mecanismo de defesa2 2 Deve-se observar que Jacques Lacan, em variados momentos de seu ensino, fez críticas muito mais contundentes a essa noção, porém centradas em outros aspectos, como no pressuposto de uma soberania do eu, desastrosa à psicanálise, e no empobrecimento da técnica analítica (Lacan, 1956/1998b). na tradição analítica:

Um emprego generalizado da noção de mecanismo de defesa não deixa de levantar questões: referindo a uma única função operações tão diferentes quanto, por exemplo, a de racionalização, que faz intervir mecanismos intelectuais complexos, e a volta contra si mesmo, a qual é um “destino” da meta pulsional, designando pelo mesmo termo “defesa” operações verdadeiramente compulsivas, como a anulação retroativa e a busca de uma via de “desimpedimento” que são certas sublimações - utilizamos um conceito verdadeiramente operacional? (Laplanche & Pontalis, 1973Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (1973). Vocabulaire de la psychanalyse. Paris: Presses Universitaires de France., p. 236)

Da mesma forma, não haveria uma grande diferença entre a sublimação da violência, as racionalizações e as clivagens descritas por Dejours? Se é que todos podem ser agrupados sob o mesmo conceito de estratégias defensivas, não seria fundamental se deter sobre a dinâmica psíquica que os distingue? Essa tarefa se revela essencial à operacionalidade de tal conceito - ainda mais considerando que ele é, como atesta Molinier (2013Molinier, P. (2013). O trabalho e a psique: Uma introdução à psicodinâmica do trabalho. (F. Soudant, Trad.). Brasília, DF: Paralelo 15 .), “a descoberta empírica mais original, assim como a mais importante da psicodinâmica do trabalho” (p. 217).

Por fim, parece, de outra parte, que noções capitais freudianas para a compreensão da dinâmica psíquica desse processo, em especial a de identificação, bem como o texto em que elas foram mais bem exploradas, Psicologia das massas e análise do eu, foram subvalorizados. De fato, recorrendo a uma obra posterior e mais abrangente sobre a psicodinâmica do trabalho, Trabalho vivo, vemos como Dejours (2012Dejours, C. (2012). Trabalho vivo (Franck Soudant, Trad.). Brasília, DF: Paralelo 15.) busca salientar a diferença entre seu interesse e o do criador da psicanálise. Ele afirma: “Enquanto Freud procura estabelecer uma teoria do que proporciona a ligação, de nosso lado procuramos compreender o que dissolve essas ligações . . .” (p. 57). Essa afirmação é ocasião para a introdução do conceito de estratégias defensivas, o que indica que tais noções freudianas não ocupam efetivamente um lugar em uma rede conceitual que confere centralidade aos processos defensivos para o funcionamento grupal. Todavia, como o próprio Dejours indica, é preciso pensar na “força de agregação” (Dejours, 2012Dejours, C. (2012). Trabalho vivo (Franck Soudant, Trad.). Brasília, DF: Paralelo 15., p. 69) e localizar de onde ela provém. A hipótese do autor é a de que a natureza da ligação entre os membros da massa “não seria nem a libido, nem o amor, nem Eros, mas antes a virtude reconfortante de um conluio imaginário [itálicos nossos] capaz de conjurar as forças de desagregação . . .” (p. 69). É necessário, em alguma medida, ir no rastro do que proporciona a ligação. Trata-se justamente da tarefa de Freud em seu texto sobre as massas. É preciso, pois, retomá-lo.

A visão de Freud acerca das raízes do engajamento coletivo

Guiado pela busca das raízes do engajamento grupal3 3 No texto em questão, Freud é extremamente ambíguo ao empregar o termo “massa” (Masse), que apresenta múltiplos sentidos - grupo, multidão, aglomeração. Não é do interesse deste trabalho retificar tal equivocidade. Toma-se o texto como uma análise do “coletivo”, como a concebeu Lacan (1945/1998a), ou, ainda, das “organizações” humanas, como o fez Enriquez (1990). , Psicologia das massas e análise do eu revela a capacidade de encontrar uma fundamentação psicanalítica às caracterizações feitas sobre os fenômenos de massa, que, embora fidedignas a eles - sobretudo as de Gustave Le Bon e William McDougall -, permaneciam em um nível descritivo e careciam, portanto, de explicação sólida. Freud reconheceu sua própria intervenção no campo da seguinte forma:

Reconhecemos que nossa contribuição para o esclarecimento da estrutura libidinal de um grupo remonta à diferenciação entre Eu e ideal do Eu, e ao duplo tipo de ligação por ela possibilitada - identificação e colocação do objeto no lugar do ideal do Eu [itálicos nossos]. (Freud, 1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1921), p. 93)

Nessa declaração, três grandes elementos cruciais para a compreensão das raízes de tal engajamento são enunciados, os quais devem ser explicitados.

O primeiro deles é a atribuição de um engajamento de natureza libidinal nos fenômenos coletivos. Essa atribuição permitiu a Freud eliminar a fantasmagoria de que se revestiam as teses de então sobre tais fenômenos, que recorriam à “imitação”, ao “contágio” ou à “sugestionabilidade” como expedientes explicativos da homogeneização e da obediência verificadas nas coletividades e do que se via até então com uma “transformação” de seus indivíduos. Ele assinala que a análise da qual parte, a de Le Bon, a mais disseminada à época não apenas não indagava o que unia os indivíduos da massa como também ignorava o papel de quem inoculava tal “contágio”, do “hipnotizador”. Àqueles que apostavam na sugestão hipnótica como causa do fenômeno, Freud responde com a parábola de São Cristóvão - “Cristóvão carregou Cristo/Cristo carregou o mundo inteiro/Diga, então, onde Cristóvão/Apoiou o pé?” (Freud, 1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1921), p. 42) -, mostrando que tal aposta carecia de qualquer fundamento. Quanto a McDougall, ele havia enxergado o componente afetivo da massa, mas acabou por tomá-lo como algo descritivo, enquanto seria necessário considerá-lo como organizativo. Isto é, o que de fato ligaria os indivíduos da massa seriam afetos - ou, mais precisamente, na terminologia freudiana, a libido, que é “a energia, tomada como grandeza quantitativa - embora atualmente não mensurável - desses instintos [Triebe] relacionados com tudo aquilo que pode ser abrangido na palavra ‘amor’” (p. 43). Eis a natureza do engajamento entre os indivíduos.

O segundo elemento corresponde à “diferenciação entre o Eu e o ideal do Eu”. Em Introdução ao narcisismo, o autor já havia apresentado essa instância que se desenvolve a partir do Eu, separa-se dele e entra em conflito com ele, tutelada pelo que se denomina “consciência moral [Gewissen]”, “uma corporificação inicialmente da crítica dos pais, depois da crítica da sociedade . . .” (Freud, 1914/2010aFreud, S. (2010a). Introdução ao narcisismo. In Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 12, pp. 13-50). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1914), p. 43) - isto é, uma instância censora, que terá como sucedâneo na obra freudiana o Supereu. Já havia até indicado a importância da consideração dessa instância “para o entendimento da psicologia da massa” (Freud, 1914/2010aFreud, S. (2010a). Introdução ao narcisismo. In Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 12, pp. 13-50). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1914), p. 50), considerando-se sua óbvia função socializante. Por fim, já havia também designado o sentimento moral derivado de tal instância, chamando-o de “medo social (soziale Angst)”, e revelado que esse sentimento derivava do medo da perda do amor dos pais. Psicologia das massas retoma essas descobertas. Assim, para Freud, ainda que o vínculo libidinal promova o engajamento coletivo, o medo é o sentimento que funda a sociabilidade de algum modo, da qual depende a intervenção do ideal do Eu.

Antes de examinarmos esse ponto que requer esclarecimento, passemos, por fim, à terceira mudança introduzida por Freud, amparada na apresentação das noções de “identificação e colocação do objeto no lugar do Eu” na análise da coletividade. O autor retoma os desenvolvimentos explicitados acima em torno do ideal do Eu porque eles são condição do desvelamento da organização libidinal da massa, com cuja fórmula nos deparamos ao fim do capítulo VIII de Psicologia das massas: “uma massa primária desse tipo é uma quantidade de indivíduos que puseram um único objeto no lugar de seu ideal do Eu e, em conseqüência, identificaram-se uns com os outros” (Freud, 1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1921), p. 76). A “massa primária” é aquela que gravita sobre o líder e cuja análise foi privilegiada por Freud, que se deteve sobre dois de seus tipos, o Exército e a Igreja, os quais atestam a forte ligação amorosa com o Führer (no caso, um general ou Cristo). Todavia, dada a vastidão morfológica das ligações amorosas, é preciso determinar a ligação em particular. Para isso, Freud procede ao exame do processo fundamental amoroso, o enamoramento (Verliebtheit), que denota, nos mais variados casos, a colocação do objeto no lugar do Eu. Esse processo remete ao hipnótico, com a diferença de que, neste, a meta sexual é afastada. Tal característica indica que a ligação grupal, por conseguinte, dá-se à maneira da hipnose, a qual, na verdade, para o autor, é “uma formação de massa a dois” (Freud, 1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1921), p. 74), posto que isola a “relação do indivíduo da massa com o líder” (p. 74). Cada indivíduo deseja ser amado pelo líder - “igualmente” (p. 83), especifica o autor. É desse desejo que deriva a identificação entre os indivíduos. Todos se sentem semelhantes, como em uma comunhão imaginária.

Após ter retomado esses três movimentos por meio dos quais Freud chega à raiz do engajamento na coletividade, pautado pelos elementos fundantes do laço entre eu e outro, o amor e a identificação, pode-se contemplar a habilidade freudiana de captar sua época. Deve-se lembrar que não apenas o fascismo assistiria à sua ascensão, mas também outros grandes movimentos de massa, assim como o regime de acumulação fordista. É preciso não esquecer as intervenções paternais de Henry Ford e de seu projeto moralizante, amparado inclusive por inspetores enviados às casas de seus trabalhadores para garantir que atendesse às expectativas corporativas “o ‘novo homem’ da produção em massa cultivava o tipo correto de moral, probidade, vida familiar, capacidade de ser prudente (i. e., não-alcoolista) e consumo ‘racional’ . . .” (Harvey, 1989Harvey, D. (1989). The condition of postmodernity: An enquiry into the origins of cultural change. Cambridge: Blackwell., p. 126). Por mais que tais medidas não tenham se estendido pelo período fordista, como assevera Harvey, deve-se lembrar que esse puritanismo coercitivo nos conduz ao coração do projeto antropológico fordista, como vislumbrara Gramsci (1976Gramsci, A. (1976). Americanismo e fordismo. In A. Gramsci, Maquiavel, a política e o estado moderno (pp. 375-413). São Paulo, SP: Civilização Brasileira.) ainda nos anos 1930.

Todavia, nossa época neoliberal parece apresentar uma reconfiguração da forma da exploração dos eixos da coletividade. Visto que o sujeito neoliberal trabalha não tanto por coação externa como por autocoação, em especial, tendo incorporado a forma da empresa, como se frisou acima, as engrenagens do neoliberalismo não podem ser desveladas sobrevalorizando-se a análise do eixo vertical. Dardot e Laval, em sua análise detida do decurso do neoliberalismo, dão elementos determinantes para a compreensão da progressiva centralidade que o eixo horizontal ganha com a nova configuração (neoliberal) da obediência: “em vez de obedecer aos procedimentos formais e às ordens hierárquicas vindas de cima, os assalariados foram levados a curvar-se às exigências do prazo e qualidade impostas pelo ‘cliente’ . . .” (Dardot & Laval, 2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo., p. 226). O resultado é uma introjeção inaudita da concorrência, pois ela não ocorre apenas entre empresas, mas, sobretudo, “entre os assalariados”, e é tomada “como um tipo normal de relações dentro da empresa” (p. 226). Assim, parece que o neoliberalismo deriva seu triunfo da exploração da horizontalidade.

Psicologia das massas, em contrapartida, salienta a importância do eixo vertical de análise. Com efeito, o que Freud (1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1921)) reprova em seus antecessores é o fato de “não terem apreciado suficientemente a importância do líder na psicologia da massa . . .” (p. 49), razão de se frisar tanto esse aspecto. Por esse motivo, Lacan (1947/2003bLacan, J. (2003b). A psiquiatria inglesa e a guerra. In Outros escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 106-126). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho originalmente publicado em 1947)) chegou a denunciar, talvez de modo inaugural, a negligência freudiana do eixo horizontal em proveito do vertical. Afinal, ele já tinha então detectado o “declínio social da imago paterna” (Lacan, 1938/2003aLacan, J. (2003a). Os complexos familiares na formação do indivíduo. In Outros escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 29-90). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho originalmente publicado em 1938), p. 67), temática, por sua vez, que geraria amplas discussões entre os autores da Escola de Frankfurt. Assim, o privilégio do eixo vertical por Freud se evidencia. O próprio autor levanta a questão acerca dos pesos relativos dos dois eixos, mas adianta que ela não será tratada no texto em questão: “Como essas duas ligações [entre indivíduos e entre estes e o líder] se comportam entre si, se são da mesma espécie e do mesmo valor . . ., isso devemos deixar para uma investigação posterior” (Freud, 1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1921), p. 49).

Além de não elucidar suficientemente, para o objetivo deste artigo, a dinâmica do eixo que parece mais central à nossa época, Psicologia das massas tampouco dá lugar ao medo na construção do laço. É preciso retornar ao ponto que requer o esclarecimento assinalado acima. Embora Freud tenha concebido o medo como determinante na sociabilidade, elevou a libido à condição de pedra de toque da coesão da massa. O texto elege como forte indício de tal condição o fenômeno do pânico (Panik), interpretado por Freud (em oposição a McDougall) como efeito, e não causa de um processo de desagregação. Dessa forma, o pânico ou “medo coletivo [Massenangst]” - deve-se lembrar que Angst significa tanto medo como angústia - “nasce pela intensificação do perigo que afeta a todos, ou pela cessação dos laços afetivos que mantêm a massa coesa . . .” (Freud, 1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1921), p. 51). Por um lado, o medo surge às consciências dos indivíduos da massa como índice de que a coesão entre eles não existe mais, por outro, em sociedade, o medo enquanto consciência moral é fator de coesão. Parece haver, por conseguinte, uma diferença no papel do medo na massa e na sociedade, da qual se conclui que ele não pode ser matéria do laço entre os indivíduos da massa.

Ainda que se possa identificar possíveis harmonizações entre a perspectiva freudiana e a dejouriana, não parece que aquela seja capaz de fornecer elementos para detalhar a dinâmica da coesão pelo medo. O fato de Freud postular a emergência do medo como índice da desagregação da massa vai ao encontro do que Dejours observa com o desarranjo das estratégias defensivas, pois elas só se mantêm enquanto o medo não vem à consciência dos indivíduos. Pode-se, ainda, harmonizar a capacidade “de aguentar” conferida por tais estratégias com a atribuição freudiana do “sentimento de onipotência” (Freud, 1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1921), p. 25) da massa e de seus membros, que ocorre devido ao consumo do Eu dos indivíduos pelo objeto, à “posse do inteiro amor-próprio do Eu” (p. 72) pelo líder. Contudo, Freud não parece contribuir para a compreensão desse fulcro do colaboracionismo que é o medo. Para isso, seria necessária, como observou Eugène Enriquez em relação à distinção entre a concepção freudiana e a de autores que o sucederam, como Elliott Jaques e Max Pagès, “uma nova concepção de grupo, em que o primeiro motor não seria uma pessoa . . .” (Enriquez, 1990Enriquez, E. (1990). Da horda ao estado: Psicanálise do vínculo social. (Teresa Cristina Carreteiro, & Jacyara Nasciutti, Trads.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar., p. 75).

Essas considerações nos conduzem a Lacan. Ele não apenas retificou a negligência freudiana ao eixo horizontal, como também franqueou elementos para identificar o lugar privilegiado do medo na constituição do laço social.

A mirada de Lacan e a barbárie da horizontalidade neoliberal

Logo após a Segunda Guerra, Lacan publicou dois textos fundamentais para o encaminhamento da problemática em questão: O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada (Lacan, 1945/1998aLacan, J. (1998a). O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In Escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 197-213). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho originalmente publicado em 1945)) e A psiquiatria inglesa e a guerra (Lacan, 1947/2003bLacan, J. (2003b). A psiquiatria inglesa e a guerra. In Outros escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 106-126). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho originalmente publicado em 1947)). Ambos fornecem, quando combinados, subsídios preciosos para pensar o papel do medo no laço social do pós-guerra, em tempos de declínio da imago paterna4 4 Assim, não interessa aqui detalhar as críticas de Lacan ao enfoque freudiano das massas, retomadas de maneira sintética e precisa, a nosso ver, em artigos como o de Maya (2016). .

Naquele último texto, o psicanalista francês indica que foram as investigações da psiquiatria inglesa acerca dos processos grupais, especialmente as de Bion e Rickman, que o levaram a identificar a supervalorização freudiana do eixo vertical na análise da coletividade. Das intervenções sobre grupos realizadas por esses psiquiatras britânicos, ele extrai o que considera o maior ensinamento delas: tratar os conflitos grupais em seu próprio nível, ou seja, “forçar o grupo a se conscientizar de suas dificuldades de existência enquanto grupo” (Lacan, 1947/2003bLacan, J. (2003b). A psiquiatria inglesa e a guerra. In Outros escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 106-126). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho originalmente publicado em 1947), p. 114), direção que acaba por franquear a cada um de seus membros julgamentos adequados acerca dos progressos conjuntos. É a esse manejo, responsável pela obtenção do “bom espírito de grupo” (p. 116) e calcado, portanto, em intervenções que extraem do eixo horizontal toda a sua potência transformadora, que Lacan atribui o sucesso dos ingleses na guerra. Eles teriam sabido extrair o máximo de seus restritos recursos humanos, inclusive dos inadaptados (os delinquentes, os acometidos por déficits físicos e intelectuais), saber que repousava sobre uma seleção que não visava a qualidades críticas e técnicas, mas à obtenção de “uma certa homogeneidade [itálico nosso], tida como fator essencial de seu [da tropa] moral” (p. 110). Ao contrário do que se poderia supor, o agrupamento daqueles indivíduos inadaptados mostrava um ganho sem precedentes em eficiência devido à “liberação de sua boa vontade” (p. 111), resultado que Lacan atribui, enfim, ao “processo de identificação horizontal que o trabalho de Freud talvez sugira, mas negligencia em favor da identificação vertical, se assim podemos dizer, com o chefe” (p. 110).

Lendo esse texto pelo avesso e levando em conta as reconfigurações do mundo pós-fordista, podemos identificar nesse modo inglês de “gerir” a tropa o que viria a se tornar norma. Isto é, “o princípio da mobilização total5 5 Gorz (2005) mostra que é justamente isso o que o mundo do trabalho contemporâneo cada vez mais exige dos indivíduos. Ver, ainda, os comentários de Arantes (2011) a respeito. [itálicos nossos] das forças da nação” (p. 108), o paradigma da máxima eficiência, a exploração de todo o potencial da horizontalidade grupal, a “utilização desse resíduo que a América pôde dar-se ao luxo de eliminar” (p. 111) no fordismo - essas seriam as engrenagens da máquina neoliberal, como foram as da máquina nazista segundo Dejours. Ainda que Lacan tenha sido capaz de antever, conforme enuncia ao final do texto, que o horror do futuro viria de uma obediência superegoica, dos abandonos da consciência e da exploração das formas de agir sobre o psiquismo, não poderia saber que justamente as descobertas dos autores tão saudados por ele, assim como outras pesquisas no âmbito do Tavistock Institute of Human Relations, serviriam de matéria para a construção de um aparato do governo da subjetividade, como mostram Miller e Rose (1988Miller, P., & Rose, N. (1988). The Tavistock programme: The government of subjectivity and social life. Sociology, 22(2), 171-192. Recuperado de https://bit.ly/3JV10RL
https://bit.ly/3JV10RL...
); e tampouco poderia prever que a descoberta da potência daquela horizontalidade, que havia revelado a potência social e política da psiquiatria, se tornaria a base da exploração do zelo tão bem descrita por Dejours. Assim, pode-se encontrar nessa leitura das entrelinhas do texto lacaniano, com seu resgate da horizontalidade, o enquadre da eficiência dos novos tempos do que Harvey (1989Harvey, D. (1989). The condition of postmodernity: An enquiry into the origins of cultural change. Cambridge: Blackwell.) denominou de “acumulação flexível”.

Ao passo que recupera a importância da horizontalidade grupal, Lacan ainda nos fornece elementos para a compreensão da dinâmica psíquica do engajamento ao qual nos referíamos acima. Eles podem ser retirados de O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada6 6 Texto que, aliás, costuma ser retomado para fins clínicos (e para delinear a estrutura e os dispositivos do setting lacaniano em especial), mas que contém indicações fundamentais sobre a natureza do laço social, conforme se indicará. De todo modo, de início, não se deve esquecer que, como informa Roudinesco (1994), o texto foi publicado em um número especial da revista artística e literária Les Cahiers d’Art após a Libertação e com o objetivo de “celebrar a vitória da liberdade sobre a opressão” (p. 188). O texto, aliás, enceta um diálogo com o existencialismo sartreano. . Vejamos em que termos.

O texto parte de um problema de lógica. Trata-se de um sofisma em que um diretor de presídio propunha a três prisioneiros a soltura de um deles, caso ele resolvesse um enigma antes de todos, que consistia em descobrir a cor de um círculo que seria colado às costas de cada prisioneiro. O diretor informava que dispunha de cinco círculos, três brancos e dois pretos, e que apenas três deles, portanto, seriam colados nas costas de cada prisioneiro, o qual estaria proibido de obter acesso à cor dos círculos dos colegas (já que não podia ver o disco colado às próprias costas) por outros meios que não o da visão. A tarefa seria, assim, desvendar, com base na certeza e não em probabilidades, a cor do círculo colado às próprias costas. Cada um dos sujeitos, por fim, teve um círculo branco colado às costas e eles então se lançaram à resolução do enigma. Eis o que ocorreu:

Depois de se haverem considerado entre si por um certo tempo, os três sujeitos dão juntos alguns passos, que os levam simultaneamente a cruzar a porta. Em separado, cada um fornece então uma resposta semelhante, que se exprime assim: “Sou branco, e eis como sei disso. Dado que meus companheiros eram brancos, achei que, se eu fosse preto, cada um deles poderia ter inferido o seguinte: ‘Se eu também fosse preto, o outro, devendo reconhecer imediatamente que era branco, teria saído na mesma hora, logo, não sou preto’. E os dois teriam saído juntos, convencidos de ser brancos. Se não estavam fazendo nada, é que eu era branco como eles. Ao que saí porta afora, para dar a conhecer minha conclusão”. Foi assim que todos três saíram simultaneamente, seguros das mesmas razões de concluir. (Lacan, 1945/1998aLacan, J. (1998a). O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In Escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 197-213). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho originalmente publicado em 1945), p. 198)

Nesse enigma, a certeza é obtida por meio de um processo temporal que se desdobra em uma exclusão lógica, em um reconhecimento e, finalmente, em uma antecipação. Exclusão lógica: base de todo o movimento, opera-se no instante em que os prisioneiros não veem os dois círculos pretos. Reconhecimento: a inércia dos três é o instante da compreensão de que estão em uma mesma situação, o que os leva a se reconhecerem reciprocamente, isto é, ao fato de que um deles os reconhece do mesmo modo que eles o reconhecem. Antecipação: os prisioneiros se apressam em comunicar a solução ao diretor, temendo que seu semelhante se adiante.

Importa frisar que o desfecho desse processo, de que Lacan, em um movimento freudiano, serve-se para compreender tanto a gênese do eu quanto da coletividade, opera-se graças ao medo. Eis o que o autor afirma ao analisar esse momento crucial:

. . . a conclusão aqui manifesta se vincula a uma motivação da conclusão, ‘para que não haja’ (demora que gere o erro), onde parece aflorar a forma ontológica da angústia curiosamente refletida na expressão gramatical equivalente, ‘por medo de que’ (a demora gere o erro). (Lacan, 1945/1998aLacan, J. (1998a). O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In Escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 197-213). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho originalmente publicado em 1945), p. 207)

Dessa forma, o medo é o motor de uma precipitação que leva à certeza, uma espécie de corrida contra o tempo e o vazio. Como o autor já havia enunciado em sua comunicação sobre o estádio do espelho (publicada muito depois), é a própria formação do eu que se opera por um ato antecipatório do indivíduo prematuro que é o bebê ante a imagem especular (Lacan, 1966/1998cLacan, J. (1998c). O estádio do espelho como formador da função do eu. In Escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 96-103). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho originalmente publicado em 1966)). O que Lacan acrescenta em seu texto sobre o tempo lógico são as implicações dessa antecipação para a formação da coletividade. Ele concebe, da mesma forma, a lógica coletiva de acordo com aquela estrutura temporal tripartida: “1º) Um homem sabe o que não é homem; 2º) Os homens se reconhecem entre si como sendo homens; 3º) Eu afirmo ser homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser homem” (Lacan, 1945/1998aLacan, J. (1998a). O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In Escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 197-213). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho originalmente publicado em 1945), p. 213). Ser homem implica se antecipar ao que os outros supõem que não seja um homem. Eis a maneira como Lacan concebe o laço entre o outro social e o sujeito, o que remete, como ele explicita na nota ao final do texto, à atitude freudiana que elimina a oposição entre psicologia individual e psicologia social em Psicologia das massas.

Cotejando as conclusões desse texto com as de Freud em Psicologia das massas, Brousse (2015Brousse, M.-H. (2015). Lacan: la guerre, um mode de juissance. In M.-H. Brousse (Org.), La psychanalyse à l’épreuve de la guerre (pp. 143-161). Paris: Berg International Editeurs.) traz elementos que são fundamentais ao esclarecimento de nossa problemática. Enquanto Freud postulou que o vínculo grupal se forma a partir do que é um homem, o líder, Lacan, em oposição, assinalou que esse vínculo se forma a partir do que não é um homem. Para este autor, não é uma colocação (do líder no lugar do ideal do Eu), mas, sim, uma ausência que funda o laço social. Podemos acrescentar, considerando nossos propósitos, que o cimento desse laço não é o desejo do amor (do líder), mas o medo de não ser (homem). É justamente isso que é explorado na guerra, conforme nos revela Brousse (2015Brousse, M.-H. (2015). Lacan: la guerre, um mode de juissance. In M.-H. Brousse (Org.), La psychanalyse à l’épreuve de la guerre (pp. 143-161). Paris: Berg International Editeurs.): “Essa lógica da angústia da recusa pelo grupo é imediatamente posta em prática nas guerras, pois cada um é intimado a se decidir. Afirma-se ‘eu sou francês’, sem se saber o que é ser francês . . .” (p. 150). Com base no que se desenvolveu acima, pode-se dizer que se trata do mesmo que é explorado no neoliberalismo.

Unindo tais elementos extraídos desses textos de Lacan, pode-se adquirir, assim, elementos mais sólidos à compreensão psicodinâmica do lugar privilegiado do medo na constituição do laço social contemporâneo. É possível dizer que a “maquinaria de guerra” neoliberal, como a caracterizou Dejours (2009Dejours, C. (2009). Souffrance en France: La banalisation de l’injustice sociale. Paris: Seuil.), serve-se da exploração desse motor constitutivo da subjetividade, o medo, para extrair da horizontalidade grupal todo o seu potencial. Essas são as engrenagens de um engajamento potencialmente mortífero, como o da guerra. Eis o campo da exploração sem limites do zelo.

Dejours, Freud, Lacan - e o medo

Os referidos textos de Freud e Lacan podem, dessa forma, fornecer mais subsídios para fundamentar o que foi descrito e engenhosamente captado por Dejours, ainda que haja diferenças consideráveis entre as teorias desses autores. Parece que os primeiros podem oferecer elementos substanciais para que se possa analisar não apenas o que o último chamou de “conluio imaginário”, como, ainda, a extrema eficácia funesta da máquina neoliberal, cujo grande motor parece ser o medo. De outra parte, não parece possível analisar esses aspectos prescindindo da categoria de trabalho. Assim, ambos os movimentos se mostram indispensáveis para uma compreensão do presente: o achado dejouriano da homologia, por meio daquela categoria, entre a máquina nazista e a neoliberal e seus efeitos deletérios sobre o laço social, assim como a investigação da dinâmica psíquica do engajamento feita por Freud e Lacan, que, ao se debruçarem sobre a raiz do laço, ofereceram elementos para dar mais consistência e refinamento psicodinâmico às análises dejourianas.

Foi intuito deste artigo apenas fornecer os contornos de uma tal eficácia, sob o império do medo, com base nos autores mencionados acima. Já a busca das formas de rompê-la é tarefa bem diversa e mais do que necessária e verdadeiramente urgente. De todo modo, parece evidente que rompê-la implica compreendê-la7 7 Agradeço a Silvia Viana pelo estímulo e pela preciosa interlocução e a Luiz Eduardo Moreira pelas sugestões. .

Referências

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  • Viana, S. (2013). Rituais de sofrimento. São Paulo: Boitempo.
  • 1
    Embora a tradição psicanalítica costume distinguir defesa e sublimação, Anna Freud (1937Freud, A. (1937). The ego and the mechanisms of defense. New York: International Universities Press.) inclui a última em sua catalogação dos mecanismos de defesa (p. 47). Dejours, porém, no livro em questão, não deixa claro se de fato concebe a sublimação como defesa e em que termos.
  • 2
    Deve-se observar que Jacques Lacan, em variados momentos de seu ensino, fez críticas muito mais contundentes a essa noção, porém centradas em outros aspectos, como no pressuposto de uma soberania do eu, desastrosa à psicanálise, e no empobrecimento da técnica analítica (Lacan, 1956/1998bLacan, J. (1998b). A coisa freudiana. In Escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 402-437). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho originalmente publicado em 1956)).
  • 3
    No texto em questão, Freud é extremamente ambíguo ao empregar o termo “massa” (Masse), que apresenta múltiplos sentidos - grupo, multidão, aglomeração. Não é do interesse deste trabalho retificar tal equivocidade. Toma-se o texto como uma análise do “coletivo”, como a concebeu Lacan (1945/1998aLacan, J. (1998a). O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In Escritos (V. Ribeiro, Trad., pp. 197-213). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar . (Trabalho originalmente publicado em 1945)), ou, ainda, das “organizações” humanas, como o fez Enriquez (1990Enriquez, E. (1990). Da horda ao estado: Psicanálise do vínculo social. (Teresa Cristina Carreteiro, & Jacyara Nasciutti, Trads.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.).
  • 4
    Assim, não interessa aqui detalhar as críticas de Lacan ao enfoque freudiano das massas, retomadas de maneira sintética e precisa, a nosso ver, em artigos como o de Maya (2016Maya, B. E. (2016). Psicologia das massas: Método analógico? Stylus, (32), 181-190. Recuperado de https://bit.ly/3PrxCn6
    https://bit.ly/3PrxCn6...
    ).
  • 5
    Gorz (2005Gorz, A. (2005). O imaterial: Conhecimento, valor e capital (C. Azan, Trad.). São Paulo, SP: Annablume.) mostra que é justamente isso o que o mundo do trabalho contemporâneo cada vez mais exige dos indivíduos. Ver, ainda, os comentários de Arantes (2011Arantes, P. E. (2011). Sale boulot: Uma janela para o maior trabalho sujo da história. Uma visão no laboratório francês do sofrimento social. Tempo Social, 23(1), 31-66. doi: 10.1590/S0103-20702011000100003
    https://doi.org/10.1590/S0103-2070201100...
    ) a respeito.
  • 6
    Texto que, aliás, costuma ser retomado para fins clínicos (e para delinear a estrutura e os dispositivos do setting lacaniano em especial), mas que contém indicações fundamentais sobre a natureza do laço social, conforme se indicará. De todo modo, de início, não se deve esquecer que, como informa Roudinesco (1994Roudinesco, E. (1994). Jacques Lacan: Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento (P. Neves, Trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras .), o texto foi publicado em um número especial da revista artística e literária Les Cahiers d’Art após a Libertação e com o objetivo de “celebrar a vitória da liberdade sobre a opressão” (p. 188). O texto, aliás, enceta um diálogo com o existencialismo sartreano.
  • 7
    Agradeço a Silvia Viana pelo estímulo e pela preciosa interlocução e a Luiz Eduardo Moreira pelas sugestões.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2022
  • Revisado
    09 Ago 2022
  • Aceito
    09 Ago 2022
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